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REFLEXÕES SOBRE AS COTAS DE GÊNERO À LUZ DA TEORIA CRÍTICA FEMINISTA DE NANCY FRASER

REFLECTIONS ON GENDER QUOTAS IN LIGHT OF NANCY FRASER'S FEMINIST CRITICAL THEORY

REFLEXIONES SOBRE LAS CUOTAS DE GÉNERO A LA LUZ DE LA TEORÍA CRÍTICA FEMINISTA DE NANCY FRASER

RESUMO

Diante do crescente debate acadêmico e organizacional sobre gênero, voltamos nosso olhar neste artigo para os sistemas de cotas de participação feminina que vêm sendo adotados em diferentes países. Neste contexto, questionamos a afinidade desses sistemas com a efetiva igualdade de gênero reivindicada pelos movimentos feministas. A partir disso, o objetivo deste ensaio teórico é refletir sobre as cotas de gênero nas organizações à luz dos ensinamentos da abordagem feminista de Nancy Fraser, que possui um compromisso com a justiça social e a emancipação da mulher. A articulação teórica revela que as cotas de gênero estão inseridas em estruturas amparadas por ideais neoliberais e, portanto, não são capazes de romper com a opressão de gênero.

Palavras-chave:
Ações Afirmativas; Cotas de Gênero; Feminismo; Nancy Fraser; Neoliberalismo

In view of the growing academic and organizational debate on gender, we turn our attention in this article to the quota systems for female participation that have been adopted in different countries. In this context, we question the affinity of these systems with the effective gender equality demanded by feminist movements. The aim of this theoretical essay is to reflect on gender quotas in organizations in the light of the teachings of Nancy Fraser's feminist approach, which is committed to social justice and the emancipation of women. The theoretical articulation reveals that gender quotas are embedded in structures supported by neoliberal ideals and are therefore not capable of breaking with gender oppression.

Keywords:
Affirmative Actions; Feminism; Gender Quotas; Nancy Fraser; Neoliberalism


En vista del creciente debate académico y organizativo sobre el género, en este artículo dirigimos nuestra atención a los sistemas de cuotas de participación femenina que se han adoptado en distintos países. En este contexto, nos cuestionamos la afinidad de estos sistemas con la igualdad de género efectiva que reclaman los movimientos feministas. El objetivo de este ensayo teórico es reflexionar sobre las cuotas de género en las organizaciones a la luz de las enseñanzas del enfoque feminista de Nancy Fraser, comprometida con la justicia social y la emancipación de las mujeres. La articulación teórica revela que las cuotas de género están incrustadas en estructuras sustentadas en ideales neoliberales y, por tanto, no son capaces de acabar con la opresión de género.

Palabras clave:
Acciones Afirmativas; Cuotas de Género; Feminismo; Nancy Fraser; Neoliberalismo


INTRODUÇÃO

As trajetórias profissionais das mulheres no mercado de trabalho contemporâneo são marcadas por inúmeras barreiras, inconsistências e desigualdades. Por exemplo, as mulheres ainda ganham menos do que os homens (Goyal; Bhattacharya; Gandhi, 2022GOYAL, P.; BHATTACHARYA, S.; GANDHI, A. Grounded theory in management research: through the lens of gender-based pay disparity. Journal of Advances in Management Research, v. 19, n. 1, p. 12-30, 2022.), são pouco representadas em cargos de gestão (Sojo et al., 2016SOJO, V. E.; WOOD, R. E.; WOOD, S. A.; WHEELER, M. A. Reporting requirements, targets, and quotas for women in leadership. The Leadership Quarterly, v. 27, n. 3, p. 519-536, 2016.) e são mais cobradas pelo trabalho reprodutivo (Fraser, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), v. 27, n. 53, p. 261-288, 2020.). Esse contexto é representado pela desigualdade de gênero, uma realidade que atravessa a vida de todas as mulheres ao redor do mundo, de tal forma que levou a Organização das Nações Unidas (ONU) a definir a meta de igualdade de gênero como um dos objetivos para o desenvolvimento sustentável (ONU, 2023ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). The Sustainable Development Goals Report: Special edition, 2023.).

Tendo em vista a relevância desse assunto, muitos países têm adotado estratégias que buscam minimizar as diferenças sociais e econômicas entre homens e mulheres, como as cotas de participação feminina ou, como são mais conhecidas, cotas de gênero (Schäpers; Stolte; Heinemann, 2023SCHÄPERS, P.; STOLTE, T.; HEINEMANN, H. On the influence of gender quotas on the employer attractiveness of companies – Do the means harm the ends? Gender in Management: An International Journal, v. 38, n. 3, p. 357-372, 2023.). De acordo com a literatura, as cotas de gênero são entendidas como uma estratégia efetiva para ampliar o acesso de mulheres a espaços historicamente ocupados e protagonizados por homens (Lari, 2023LARI, N. Adopting a gender quota policy in Qatar: a path to gender equity. Gender in Management: An International Journal, 2023.).

As cotas de gênero representam uma política que determina uma proporção de vagas destinadas às mulheres em uma organização, seja pública ou privada (Axelsdóttir; Einarsdóttir; Rafnsdóttir, 2023AXELSDÓTTIR, L; EINARSDÓTTIR, Þ. J.; RAFNSDÓTTIR, G. L. Justice and utility: Approval of gender quotas to increase gender balance in top-level managements – lessons from Iceland. Gender, Work & Organization, v. 30, n. 4, p. 1218-1235, 2023.). Em alguns países, as cotas de gênero são direcionadas a postos públicos ou são em formato de cotas eleitorais, como no Brasil (Araújo, 2005ARAÚJO, C. Partidos políticos e gênero: mediações nas rotas de ingresso das mulheres na representação política. Revista de Sociologia e Política, p. 193-215, 2005., 2009ARAÚJO, C. Gênero e acesso ao poder legislativo no Brasil: as cotas entre as instituições e a cultura Revista Brasileira de Ciência Política, n. 2, p 23-59, 2009.; Franco, 2004FRANCO, H. P. P. A política de cotas para mulheres no Legislativo, o feminismo e as ações afirmativas. Revista de Administração Pública, v. 38, n. 6, p. 1109-1122, 2004.). Em outros países, essas cotas são direcionadas às organizações, principalmente com relação à composição de conselhos administrativos, como Espanha (Cabo et al., 2019CABO, R. M. de; TERJESEN, S.; ESCOT, L.; GIMENO, R. Do ‘soft law’board gender quotas work? Evidence from a natural experiment. European Management Journal, v. 37, n. 5, p. 611-624, 2019.), Islândia (Axelsdóttir; Einarsdóttir, 2017AXELSDÓTTIR, L; EINARSDÓTTIR, Þ. The realization of gender quotas in post-collapse Iceland NORA-Nordic Journal of Feminist and Gender Research, v. 25, n. 1, p. 48-61, 2017.), Noruega (Brandth; Bjørkhaug, 2015BRANDTH, B.; BJØRKHAUG, H. Gender quotas for agricultural boards: changing constructions of gender? Gender, Work & Organization, v. 22, n. 6, p. 614-628, 2015.), entre outros países.

Nos últimos anos, as pesquisas sobre as cotas de gênero ganharam ainda mais espaço (Garcia-Blandon et al., 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D.; CASTILLO-MERINO, D. Direct and spillover effects of board gender quotas: Revisiting the Norwegian experience Business Ethics, the Environment & Responsibility, v. 32, n. 4, p. 1297-1309, 2023.). A literatura caminha no sentido de compreender os benefícios que essas cotas podem oferecer às mulheres e às organizações, a relevância social das cotas de gênero, os ônus de sua aplicação, os tipos de cotas mais vantajosos e os efeitos das cotas nos diferentes países que adotaram tais políticas afirmativas (Axelsdóttir; Einarsdóttir; Rafnsdóttir, 2023AXELSDÓTTIR, L; EINARSDÓTTIR, Þ. J.; RAFNSDÓTTIR, G. L. Justice and utility: Approval of gender quotas to increase gender balance in top-level managements – lessons from Iceland. Gender, Work & Organization, v. 30, n. 4, p. 1218-1235, 2023.; Garcia-Blandon; Argilés-Bosch; Ravenda, 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D. Board gender diversity and firm solvency: Evidence from Scandinavia. European Management Review, p. 1-9, 2023.; Lari, 2023LARI, N. Adopting a gender quota policy in Qatar: a path to gender equity. Gender in Management: An International Journal, 2023.).

No entanto, o que tem chamado a atenção em diferentes pesquisas é a inconsistência dos resultados positivos atribuídos às cotas de gênero. Ao que tudo indica, a adoção das cotas de gênero não tem gerado melhores resultados financeiros para as organizações (Yang et al., 2019YANG, P.; RIEPE, J.; MOSER, K.; PULL, K.; TERJESEN, S. Women directors, firm performance, and firm risk: A causal perspective. The Leadership Quarterly, v. 30, n. 5, p. 101297, 2019.), não tem criado espaços legítimos para a inclusão das mulheres (Wagner; Pernsteiner; Riaz, 2023WAGNER, E.; PERNSTEINER, H.; RIAZ, A. Blood is thicker than water: an analysis of women’s presence on Pakistani boards. Gender in Management: An International Journal, 2023.) e não tem aumentado a percepção de diversidade nas organizações ou a atratividade por organizações que adotam o sistema de cotas (Schäpers; Stolte; Heinemann, 2023SCHÄPERS, P.; STOLTE, T.; HEINEMANN, H. On the influence of gender quotas on the employer attractiveness of companies – Do the means harm the ends? Gender in Management: An International Journal, v. 38, n. 3, p. 357-372, 2023.). Além disso, em muitos países as mulheres continuam sub-representadas em cargos de gestão mesmo com a adoção de cotas de gênero (Cabo et al., 2019CABO, R. M. de; TERJESEN, S.; ESCOT, L.; GIMENO, R. Do ‘soft law’board gender quotas work? Evidence from a natural experiment. European Management Journal, v. 37, n. 5, p. 611-624, 2019.).

Diante deste cenário, o que se percebe é que pouco se questiona se as cotas de gênero promovem ambientes organizacionais realmente comprometidos com a igualdade de gênero. O que começou como um esforço legítimo dos movimentos feministas hoje parece mais interessado em benefícios financeiros que as organizações podem extrair das cotas ao invés de compreender as experiências das mulheres nesses contextos (Kirsch, 2018KIRSCH, A. The gender composition of corporate boards: A review and research agenda. The Leadership Quarterly, v. 29, n. 2, p. 346-364, 2018.).

A igualdade de gênero é uma pauta importante na perspectiva feminista de Nancy Fraser, que se traduz em suas críticas ao neoliberalismo e os seus frutos, como o feminismo neoliberal (Fraser, 2019FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019.). A autora também é conhecida por sua proposta de justiça social, fundamentada nas dimensões de redistribuição, reconhecimento e representação (Fraser, 2010FRASER, N. Injustice at intersecting scales: On ‘social exclusion’ and the ‘global poor’ European journal of social theory, v. 13, n. 3, p. 363-371, 2010.). O diálogo entre esses conceitos revela um projeto que defende a emancipação da mulher em uma sociedade articulada para negar constantemente os direitos, espaços e vozes das mulheres (Fraser, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), v. 27, n. 53, p. 261-288, 2020.). Diante desta abordagem teórica, questionamos se as cotas de gênero estão promovendo, de fato, a igualdade de gênero e a emancipação da mulher, argumentando que o neoliberalismo se apropriou desse discurso para sustentar a lógica do desempenho e do lucro. Assim, as cotas de gênero são revestidas de uma promessa de igualdade de gênero, mas que alcança apenas algumas mulheres.

Neste sentido, o objetivo deste ensaio teórico é refletir sobre as cotas de gênero à luz dos ensinamentos da abordagem feminista de Nancy Fraser. Argumentamos que as cotas de gênero podem representar um instrumento paliativo, que abre espaço para as mulheres, mas que não muda as regras do jogo, ou seja, não rompe efetivamente com a dominação masculina (Arruzza; Bhattacharya; Fraser, 2019ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.).

Este ensaio está disposto nas seguintes seções: i) ações afirmativas: origens e propósitos; ii) cotas de gênero: promessas para a igualdade de gênero; iii) contribuições da teoria feminista de Fraser para as cotas de gênero; iv) a apropriação das cotas de gênero pelo neoliberalismo; e v) considerações finais.

1 AÇÕES AFIRMATIVAS: ORIGENS E PROPÓSITOS

Há dúvidas sobre as origens das ações afirmativas, uma vez que o seu surgimento é reconhecido no direito indiano (Jaffrelot, 2006JAFFRELOT, C. The impact of affirmative action in India: More political than socioeconomic. India Review, v. 5, n. 2, p. 173-189, 2006.). Outros autores apontam seu início no direito estadunidense em 1960, com o crescimento do interesse pela busca da igualdade racial (Moehlecke, 2002MOEHLECKE, S. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de pesquisa, n. 117, p. 197-217, 2002.).

Enquanto conceito, no entanto, foi nos Estados Unidos que a ação afirmativa teve sua maior notoriedade, principalmente com a promulgação da Ordem Executiva n. 10925, em 1961, por John F. Kennedy, a qual proibia os empreiteiros federais de discriminarem seus empregados em razão de cor, raça, religião e nacionalidade, ao mesmo passo que exigia que ações afirmativas fossem implementadas para garantir oportunidades igualitárias (Moehlecke, 2002MOEHLECKE, S. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de pesquisa, n. 117, p. 197-217, 2002.).

Nos Estados Unidos, as ações afirmativas surgiram em meio aos movimentos raciais em 1960 e foram se ampliando ao longo do tempo (Santos, 2021SANTOS, T. T. Ações afirmativas no direito brasileiro. Research, Society and Development, v. 10, n. 7, 2021.). No Brasil, foi com a promulgação da Constituição de 1988, na qual se estipulava como objetivo principal “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Brasil, Constituição, 1988BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF Disponível em: & lt;https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm & gt;. Acesso em: 12 jan. 2024.
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, art. 3º, item IV), que as ações afirmativas começaram a ter maior espaço (Moehlecke, 2002MOEHLECKE, S. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de pesquisa, n. 117, p. 197-217, 2002.).

Neste ensaio teórico, o conceito de ação afirmativa está alinhado ao de Feres Júnior et al. (2018)FERES JÚNIOR, J.; CAMPOS, L. A.; DAFLON, V. T.; VENTURINI, A. C. Ação afirmativa: conceito, história e debates. Sociedade e política collection. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018., que definem ação afirmativa como “todo programa, público ou privado, que tem por objetivo conferir recursos ou direitos especiais para membros de um grupo social desfavorecido, com vistas a um bem coletivo” (Feres Júnior et al. 2018, p. 13FERES JÚNIOR, J.; CAMPOS, L. A.; DAFLON, V. T.; VENTURINI, A. C. Ação afirmativa: conceito, história e debates. Sociedade e política collection. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.). O grupo desfavorecido é todo aquele que, na ocasião da aplicação da política, se vê em desvantagem social em relação aos outros.

À vista disso, é por meio da lógica das ações afirmativas que as cotas são introduzidas nas organizações, como um programa implementado para conferir direitos a grupos socialmente desfavorecidos. Elas podem ser utilizadas tanto como uma reserva de um número específico de vagas quanto como um percentual de vagas, seja em empresas, no poder público, em órgãos de ensino, entre outros espaços organizacionais (Feres Júnior et al., 2018FERES JÚNIOR, J.; CAMPOS, L. A.; DAFLON, V. T.; VENTURINI, A. C. Ação afirmativa: conceito, história e debates. Sociedade e política collection. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2018.).

As cotas, assim como todas as ações afirmativas, possuem o objetivo de igualar as oportunidades por meio da “discriminação positiva”, sendo aquela que diferencia a fim de garantir o bem-estar de um grupo que se encontra em desvantagem, e que difere da “discriminação negativa”, que aumenta o hiato social entre os grupos (Araújo, 2005ARAÚJO, C. Partidos políticos e gênero: mediações nas rotas de ingresso das mulheres na representação política. Revista de Sociologia e Política, p. 193-215, 2005.).

Entre as justificativas para o uso das cotas, destaca-se a possibilidade de oferecer oportunidades para pessoas que, sem as cotas, estariam desamparadas por diversos motivos, variando o grupo de interesse. Por exemplo, as cotas raciais para vagas no ensino superior no Brasil são defendidas como uma forma de reparar a negação sistêmica e histórica do acesso ao ensino superior por pessoas negras (Batista; Figueiredo, 2020BATISTA, N. C; FIGUEIREDO, H. A. C. de. Comissões de heteroidentificação racial para acesso em universidades federais. Cadernos de Pesquisa, v. 50, p. 865-881, 2020.). As cotas para pessoas com deficiência, também adotadas no Brasil, representam outra estratégia instituída para fomentar espaços de inclusão para pessoas que ficam à margem do mercado de trabalho (Brasil, Lei 8.213/91BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de Julho de 1991. Dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Brasília, DF. Disponível em: & lt;https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm & gt;. Acesso em: 12 jan. 2024.
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). Neste ensaio teórico, por sua vez, é explorada a discussão das cotas por meio da interface de gênero, que também é adotada legalmente no Brasil no contexto eleitoral (Araújo, 2005ARAÚJO, C. Partidos políticos e gênero: mediações nas rotas de ingresso das mulheres na representação política. Revista de Sociologia e Política, p. 193-215, 2005., 2009ARAÚJO, C. Gênero e acesso ao poder legislativo no Brasil: as cotas entre as instituições e a cultura Revista Brasileira de Ciência Política, n. 2, p 23-59, 2009.; Franco, 2004FRANCO, H. P. P. A política de cotas para mulheres no Legislativo, o feminismo e as ações afirmativas. Revista de Administração Pública, v. 38, n. 6, p. 1109-1122, 2004.).

2 COTAS DE GÊNERO: PROMESSAS PARA A IGUALDADE DE GÊNERO

As cotas de gênero surgiram a partir de fervorosas discussões a respeito das dificuldades que as mulheres enfrentam em suas carreiras. O fenômeno do teto de vidro, por exemplo, alude às dificuldades invisíveis que são impostas sobre as mulheres em suas trajetórias profissionais, impedindo que elas alcancem posições tão elevadas quanto os homens nas organizações (Ryan; Haslam, 2007RYAN, M. K.; HASLAM, S. A. The glass cliff: Exploring the dynamics surrounding the appointment of women to precarious leadership positions. Academy of management review, v. 32, n. 2, p. 549-572, 2007.). Outras literaturas que atravessam as cotas de gênero incluem as desigualdades salariais entre homens e mulheres (Goyal; Bhattacharya; Gandhi, 2022GOYAL, P.; BHATTACHARYA, S.; GANDHI, A. Grounded theory in management research: through the lens of gender-based pay disparity. Journal of Advances in Management Research, v. 19, n. 1, p. 12-30, 2022.), a representatividade das mulheres em cargos de poder e de tomada de decisão (Sojo et al., 2016SOJO, V. E.; WOOD, R. E.; WOOD, S. A.; WHEELER, M. A. Reporting requirements, targets, and quotas for women in leadership. The Leadership Quarterly, v. 27, n. 3, p. 519-536, 2016.), os estereótipos de gênero que interpõem formas de agir no mundo do trabalho (Kirsch, 2018KIRSCH, A. The gender composition of corporate boards: A review and research agenda. The Leadership Quarterly, v. 29, n. 2, p. 346-364, 2018.), entre outras barreiras.

Neste panorama, torna-se evidente que as mulheres não possuem as mesmas condições que os homens para entrar, permanecer e avançar no mercado de trabalho (Lari, 2023LARI, N. Adopting a gender quota policy in Qatar: a path to gender equity. Gender in Management: An International Journal, 2023.; Wagner; Pernsteiner; Riaz, 2023WAGNER, E.; PERNSTEINER, H.; RIAZ, A. Blood is thicker than water: an analysis of women’s presence on Pakistani boards. Gender in Management: An International Journal, 2023.). Portanto, as cotas de gênero representam uma potencial estratégia para estreitar as lacunas existentes entre os homens e as mulheres, almejando a igualdade de gênero (Axelsdóttir; Einarsdóttir; Rafnsdóttir, 2023AXELSDÓTTIR, L; EINARSDÓTTIR, Þ. J.; RAFNSDÓTTIR, G. L. Justice and utility: Approval of gender quotas to increase gender balance in top-level managements – lessons from Iceland. Gender, Work & Organization, v. 30, n. 4, p. 1218-1235, 2023.).

As cotas de gênero apareceram pela primeira vez no contexto norueguês, em 2003, sendo a Noruega o primeiro país a adotar, por meios legais, cotas específicas para aumentar a representatividade das mulheres nos conselhos das organizações (Kirsch, 2018KIRSCH, A. The gender composition of corporate boards: A review and research agenda. The Leadership Quarterly, v. 29, n. 2, p. 346-364, 2018.; Yang et al., 2019YANG, P.; RIEPE, J.; MOSER, K.; PULL, K.; TERJESEN, S. Women directors, firm performance, and firm risk: A causal perspective. The Leadership Quarterly, v. 30, n. 5, p. 101297, 2019.). A partir disso, as cotas foram disseminadas para outros países. No entanto, a motivação para adoção das cotas de gênero apresenta particularidades em cada lugar, assim como a forma como são estruturadas nas organizações (Sojo et al., 2016SOJO, V. E.; WOOD, R. E.; WOOD, S. A.; WHEELER, M. A. Reporting requirements, targets, and quotas for women in leadership. The Leadership Quarterly, v. 27, n. 3, p. 519-536, 2016.). Por exemplo, na Noruega, na Islândia e na Espanha os sistemas de cotas foram implementados a partir de motivações distintas e com estruturas diferentes.

Na Noruega, a legislação está direcionada às companhias públicas limitadas, em que se requer um mínimo de 40% de mulheres nas cadeiras dos conselhos administrativos. No caso norueguês, o descumprimento das cotas incorre em diversas sanções, como fechamento de capital e multas. Apesar de as cotas serem obrigatórias apenas para empresas públicas, outros setores no país também adotaram essa legislação, como é o caso de conselhos de cooperativas agrícolas (Brandth; Bjørkhaug, 2015BRANDTH, B.; BJØRKHAUG, H. Gender quotas for agricultural boards: changing constructions of gender? Gender, Work & Organization, v. 22, n. 6, p. 614-628, 2015.).

Na Islândia, o país adotou em 2013 o sistema de cotas de participação feminina em nível organizacional, tanto para empresas públicas quanto para empresas privadas, determinando que todos os conselhos administrativos e fundos de pensão com mais de 50 funcionários deveriam ter a participação de pelo menos 40% de mulheres em sua composição. Essa legislação foi regulamentada em resposta à crise econômica de 2008, quando o país entrou em colapso e muitas mulheres acusavam que essa derrocada havia acontecido em virtude da dominação masculina no mercado de trabalho. Por isso, a resposta surgiu como proposta de inclusão de mais mulheres nas organizações (Axelsdóttir; Einarsdóttir, 2017AXELSDÓTTIR, L; EINARSDÓTTIR, Þ. The realization of gender quotas in post-collapse Iceland NORA-Nordic Journal of Feminist and Gender Research, v. 25, n. 1, p. 48-61, 2017.).

Em contrapartida, na Espanha, as cotas fazem parte de um programa de incentivos maior que envolve outros países da União Europeia. Pelo “Ato de Equidade de Gênero Espanhol”, de 2007, estipulava-se que todas as empresas públicas e privadas de grande porte deveriam ser compostas por até 40% de mulheres em seus conselhos diretivos até 2015. No caso espanhol, as cotas não eram mandatórias, mas sim recomendadas, e ofereciam benefícios em contratos públicos quando acatadas pelas organizações (Cabo et al., 2019CABO, R. M. de; TERJESEN, S.; ESCOT, L.; GIMENO, R. Do ‘soft law’board gender quotas work? Evidence from a natural experiment. European Management Journal, v. 37, n. 5, p. 611-624, 2019.).

A partir desses exemplos, é possível verificar três motivações distintas de adoção de cotas de participação feminina: Noruega, um sistema mandatório com a execução de sanções, mas direcionado apenas às empresas públicas do país; Islândia, motivada por um contexto nacional, em que existe uma obrigatoriedade que se estende a empresas públicas e privadas; e Espanha, não obrigatório, mas que envolve um sistema de recompensas para as organizações que as adotam.

Diante disso, a literatura demonstra que as cotas de gênero foram eficazes para aumentar a representatividade das mulheres nos conselhos administrativos, especialmente nos casos em que as leis foram instituídas de forma compulsória, com participação objetivamente definida entre homens e mulheres, e nos casos em que as organizações foram penalizadas por não cumprirem a lei (Sojo et al., 2016SOJO, V. E.; WOOD, R. E.; WOOD, S. A.; WHEELER, M. A. Reporting requirements, targets, and quotas for women in leadership. The Leadership Quarterly, v. 27, n. 3, p. 519-536, 2016.). Nestes contextos, foi possível observar mudanças notáveis na composição dos cargos de alta gestão em governos e organizações, abrindo um espaço rápido e efetivo para a inclusão das mulheres. No entanto, ao se tratar das nações que fomentaram as cotas de gênero de modo opcional e sem penalidades, as mulheres continuam sub-representadas (Cabo et al., 2019CABO, R. M. de; TERJESEN, S.; ESCOT, L.; GIMENO, R. Do ‘soft law’board gender quotas work? Evidence from a natural experiment. European Management Journal, v. 37, n. 5, p. 611-624, 2019.).

Entre os países que adotaram as cotas de gênero, motivou-se uma série de pesquisas para explorar os benefícios gerados por essas cotas (Leibbrandt; Wang; Foo, 2018LEIBBRANDT, A.; WANG, L. C.; FOO, C. Gender quotas, competitions, and peer review: Experimental evidence on the backlash against women. Management Science, v. 64, n. 8, p. 3501-3516, 2018.; Neschen; Hügelschäfer, 2021NESCHEN, A.; HÜGELSCHÄFER, S. Gender bias in performance evaluations: The impact of gender quotas. Journal of Economic Psychology, v. 85, p. 102383, 2021.; Zenou; Allemand; Brullebaut, 2017ZENOU, E.; ALLEMAND, I.; BRULLEBAUT, B. Gender diversity on French boards: Example of a success from a hard law. In: Gender Diversity in the Boardroom: Volume 1: The Use of Different Quota Regulations. Cham: Springer International Publishing, p. 103-124, 2017.). Uma vez que o objetivo era reduzir a desigualdade de gênero, esperava-se que as mulheres tivessem logrado espaços legítimos em campos historicamente destinados aos homens (Schäpers; Stolte; Heinemann, 2023SCHÄPERS, P.; STOLTE, T.; HEINEMANN, H. On the influence of gender quotas on the employer attractiveness of companies – Do the means harm the ends? Gender in Management: An International Journal, v. 38, n. 3, p. 357-372, 2023.). Mas isso, até então, tem sido bastante tímido na literatura sobre as cotas de gênero, uma vez que o debate recai mais sobre os resultados financeiros das organizações do que sobre as vivências das mulheres nestes contextos (Comi et al., 2020COMI, S.; GRASSENI, M.; ORIGO, F; PAGANI, L. Where women make a difference: gender quotas and firms’ performance in three European countries. ILR Review, v. 73, n. 3, p. 768-793, 2020.; Dobija et al., 2022DOBIJA, D.; HRYCKIEWICZ, A.; ZAMAN, M.; PUŁAWSKA, K. Critical mass and voice: Board gender diversity and financial reporting quality. European Management Journal, v. 40, n. 1, p. 29-44, 2022.; Garcia-Blandon; Argilés-Bosch; Ravenda, 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D. Board gender diversity and firm solvency: Evidence from Scandinavia. European Management Review, p. 1-9, 2023.; Kirsch, 2018KIRSCH, A. The gender composition of corporate boards: A review and research agenda. The Leadership Quarterly, v. 29, n. 2, p. 346-364, 2018.).

Os estudos sobre as cotas de gênero têm ganhado cada vez mais espaço nas pesquisas. Isso é refletido na quantidade de pesquisas publicadas sobre este tema. Uma consulta à base de dados Web of Science indicou que, até dezembro de 2023, havia 852 852 artigos científicos explorando o tema de cotas de gênero (“gender quota*”), empregando-se este conceito no título, resumo ou palavras-chave. Desse total, 514 (60,33%) foram publicados nos últimos cinco anos (2019-2023). Esses números denotam a atualidade e a relevância do tema para as políticas públicas e as organizações.

Diante disso, apresentamos brevemente algumas perspectivas que apareceram nesta literatura nos últimos dez anos, de modo a oferecer um panorama sobre diferentes caminhos traçados ao se explorar as cotas de gênero. O quadro 1 sintetiza os autores e objetivos das respectivas pesquisas.

Quadro 1
Artigos sobre cotas de gênero em organizações

É possível observar que a literatura aponta resultados inconclusivos sobre a adesão das cotas de gênero ao longo do tempo (Yang et al., 2019YANG, P.; RIEPE, J.; MOSER, K.; PULL, K.; TERJESEN, S. Women directors, firm performance, and firm risk: A causal perspective. The Leadership Quarterly, v. 30, n. 5, p. 101297, 2019.). Enquanto uma parcela das pesquisas sustenta que a adoção das cotas de gênero levou as organizações a serem mais produtivas e lucrativas (Comi et al., 2020COMI, S.; GRASSENI, M.; ORIGO, F; PAGANI, L. Where women make a difference: gender quotas and firms’ performance in three European countries. ILR Review, v. 73, n. 3, p. 768-793, 2020.), outra parcela das pesquisas não foi capaz de encontrar resultados satisfatórios relacionados às cotas (Schäpers; Stolte; Heinemann, 2023SCHÄPERS, P.; STOLTE, T.; HEINEMANN, H. On the influence of gender quotas on the employer attractiveness of companies – Do the means harm the ends? Gender in Management: An International Journal, v. 38, n. 3, p. 357-372, 2023.; Wagner; Pernsteiner; Riaz, 2023WAGNER, E.; PERNSTEINER, H.; RIAZ, A. Blood is thicker than water: an analysis of women’s presence on Pakistani boards. Gender in Management: An International Journal, 2023.). Tal inconsistência dos achados de pesquisa questionam o verdadeiro valor das cotas de gênero nas organizações.

Diante disso, dois elementos principais enfraquecem a lógica enredada às cotas de gênero. Em primeiro lugar, a trajetória profissional das mulheres que ascenderam aos espaços de poder por meio das cotas não despertou o interesse das organizações e da comunidade científica (Kirsch, 2018KIRSCH, A. The gender composition of corporate boards: A review and research agenda. The Leadership Quarterly, v. 29, n. 2, p. 346-364, 2018.). Em segundo lugar, as evidências de que as cotas de gênero levaram a melhores resultados das organizações são fragmentadas e inconclusivas (Garcia-Blandon et al., 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D.; CASTILLO-MERINO, D. Direct and spillover effects of board gender quotas: Revisiting the Norwegian experience Business Ethics, the Environment & Responsibility, v. 32, n. 4, p. 1297-1309, 2023.; Yang et al., 2019YANG, P.; RIEPE, J.; MOSER, K.; PULL, K.; TERJESEN, S. Women directors, firm performance, and firm risk: A causal perspective. The Leadership Quarterly, v. 30, n. 5, p. 101297, 2019.).

Outras pesquisas também descobriram que as cotas de gênero não aumentaram a percepção sobre diversidade nas organizações e não tornaram estas organizações mais atrativas para quem busca emprego (Schäpers; Stolte; Heinemann, 2023SCHÄPERS, P.; STOLTE, T.; HEINEMANN, H. On the influence of gender quotas on the employer attractiveness of companies – Do the means harm the ends? Gender in Management: An International Journal, v. 38, n. 3, p. 357-372, 2023.). Além disso, a adoção das cotas de gênero em conselhos administrativos não reverberou sobre os demais níveis das organizações, o que manteve a desigualdade de gênero nos cargos de menor nível hierárquico (Garcia-Blandon et al., 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D.; CASTILLO-MERINO, D. Direct and spillover effects of board gender quotas: Revisiting the Norwegian experience Business Ethics, the Environment & Responsibility, v. 32, n. 4, p. 1297-1309, 2023.).

É importante salientar que esses efeitos associados às cotas de gênero, desejados e indesejados, precisam ser geograficamente localizados. Em países onde as cotas foram adotadas há mais de uma década, o discurso atual está direcionado a compreender o que deu certo e o que não logrou êxito (Garcia-Blandon; Argilés-Bosch; Ravenda, 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D. Board gender diversity and firm solvency: Evidence from Scandinavia. European Management Review, p. 1-9, 2023.). No entanto, em outros países, a adoção de políticas para aumentar a representativa das mulheres ainda é uma discussão atual para romper a dominação dos homens em espaços institucionais e organizacionais, como é o caso do Paquistão (Wagner; Pernsteiner; Riaz, 2023WAGNER, E.; PERNSTEINER, H.; RIAZ, A. Blood is thicker than water: an analysis of women’s presence on Pakistani boards. Gender in Management: An International Journal, 2023.) e do Catar (Lari; Al-Ansari; El-Maghraby, 2022LARI, N.; AL-ANSARI, M.; EL-MAGHRABY, E. Challenging gender norms: women’s leadership, political authority, and autonomy. Gender in Management: An International Journal, v. 37, n. 4, p. 476-493, 2022.; Lari, 2023LARI, N. Adopting a gender quota policy in Qatar: a path to gender equity. Gender in Management: An International Journal, 2023.).

As cotas de gênero proporcionaram mudanças que levaram as mulheres a ocuparem posições que antes lhes eram negadas (Sojo et al., 2016SOJO, V. E.; WOOD, R. E.; WOOD, S. A.; WHEELER, M. A. Reporting requirements, targets, and quotas for women in leadership. The Leadership Quarterly, v. 27, n. 3, p. 519-536, 2016.). Há pesquisas que evidenciam as mudanças positivas na forma de conduzir os processos de tomada de decisão, em virtude das cotas de gênero, bem como a redução de risco da organização como um benefício resultante da adoção de cotas (Yang et al., 2019YANG, P.; RIEPE, J.; MOSER, K.; PULL, K.; TERJESEN, S. Women directors, firm performance, and firm risk: A causal perspective. The Leadership Quarterly, v. 30, n. 5, p. 101297, 2019.).

O debate atual sobre as cotas de gênero se encontra diante de uma encruzilhada. Por um lado, mantém-se a posição de que as cotas de gênero são estratégias importantes para ampliar o acesso das mulheres a espaços historicamente protagonizados por homens (Kakabadse et al., 2015KAKABADSE, N. K.; FIGUEIRA, C; NICOLOPOULOU, K.; YANG, J. H; KAKABADSE, A. P.; ÖZBILGIN, M. F. Gender diversity and board performance: Women's experiences and perspectives. Human Resource Management, v. 54, n. 2, p. 265-281, 2015.) e tal perspectiva aparece sobretudo em países onde as mulheres ainda não alcançaram espaços mínimos de representatividade (Lari, 2023LARI, N. Adopting a gender quota policy in Qatar: a path to gender equity. Gender in Management: An International Journal, 2023.); mas por outro lado, em países que já avançaram na inclusão das mulheres por meio das cotas de gênero, as pesquisas se deparam com resultados inconsistentes, com resultados financeiros e sociais questionáveis tanto para as organizações quanto para as mulheres (Garcia-Blandon et al., 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D.; CASTILLO-MERINO, D. Direct and spillover effects of board gender quotas: Revisiting the Norwegian experience Business Ethics, the Environment & Responsibility, v. 32, n. 4, p. 1297-1309, 2023.; Garcia-Blandon; Argilés-Bosch; Ravenda, 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D. Board gender diversity and firm solvency: Evidence from Scandinavia. European Management Review, p. 1-9, 2023.).

Neste sentido, questiona-se o que há de errado em relação às cotas de gênero. Uma vez que a literatura sobre as cotas não está apontando para a igualdade de gênero, a que ou a quem elas servem? Qual é, portanto, o propósito em adotar cotas de gênero? Diante do que foi apresentado pela literatura sobre as cotas de gênero, as contribuições teóricas de Nancy Fraser podem ajudar a compreender melhor esse cenário.

3 CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA FEMINISTA DE FRASER PARA AS COTAS DE GÊNERO

Ainda que em diferentes vertentes, os feminismos possuem um interesse sobre as mulheres e a posição que elas ocupam na sociedade, em suas diferentes instituições (Pinto, 2010PINTO, C. R. J. Feminismo, história e poder. Revista de sociologia e política, v. 18, p. 15-23, 2010.). Há um interesse central em romper com o patriarcado, uma estrutura de dominação masculina que subjuga permanentemente as mulheres em prol dos interesses dos homens (Martins, 2015MARTINS, A. P. A.. O Sujeito “nas ondas” do Feminismo e o lugar do corpo na contemporaneidade. Revista Café com Sociologia, v. 4, n. 1, p. 231-245, 2015.). Neste sentido, as reivindicações dos movimentos feministas atravessam diferentes perspectivas, como o acesso e permanência da mulher no trabalho produtivo, o papel da mulher na família e no trabalho do cuidado, os papéis sociais e estereótipos de gênero, as questões sobre maternidade, relação trabalho-família, entre outros (Fraser, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), v. 27, n. 53, p. 261-288, 2020.).

A escolha de Nancy Fraser neste ensaio não é ao acaso. Herdando uma formação alinhada com a Escola de Frankfurt e a Teoria Crítica, sua trajetória acadêmica é inspirada por críticas ao capitalismo, sobretudo à forma do capitalismo engendrado pelo neoliberalismo (Fraser, 2017FRASER, N. Para uma crítica das crises do capitalismo: entrevista com Nancy Fraser. Perspectivas: Revista de Ciências Sociais, v. 49, 2017.). Assim, Fraser construiu proximidade com a nova esquerda e o movimento feminista socialista, interessando-se pelo discurso da redistribuição dos direitos, reconhecimento e representação das mulheres na sociedade (Fraser, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), v. 27, n. 53, p. 261-288, 2020.).

Nesse contexto, é possível localizar a teoria crítica feminista a partir de Fraser (2019)FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019. como um movimento que busca a justiça social e a emancipação feminina, tendo em vista os elementos que compõem o sistema capitalista em consonância com os elementos que compõem o modelo de opressão a mulheres. Para a autora, ambos os sistemas estão conectados e são complementares e, por isso, não podem ser tratados separadamente.

A justiça social é um conceito central na obra de Fraser (2010, p. 365)FRASER, N. Injustice at intersecting scales: On ‘social exclusion’ and the ‘global poor’ European journal of social theory, v. 13, n. 3, p. 363-371, 2010.. Na visão da autora, a justiça deve ser entendida como uma “paridade de participação”. Nesse contexto, a justiça requer arranjos sociais que permitam a todos os membros da sociedade interagirem como pares em situação de plena igualdade. Isso significa que as interações sociais não acontecem por meio de hierarquias ou com distintas concentrações de poder entre sujeitos. Assim, para que a paridade de participação seja alcançada, ela deve estar atrelada às três dimensões de justiça, fundamentadas na redistribuição, reconhecimento e representação (Fraser, 2010FRASER, N. Injustice at intersecting scales: On ‘social exclusion’ and the ‘global poor’ European journal of social theory, v. 13, n. 3, p. 363-371, 2010.).

A redistribuição pressupõe que todos os sujeitos tenham recursos materiais para assegurar independência e voz. O reconhecimento assume que todos os participantes tenham oportunidades iguais e respeito mútuo. Por sua vez, a representação preza pela igualdade de voz política a todos os atores sociais (Fraser, 2010FRASER, N. Injustice at intersecting scales: On ‘social exclusion’ and the ‘global poor’ European journal of social theory, v. 13, n. 3, p. 363-371, 2010.). Diante disso, a emancipação feminina representa a forma sobre a qual as mulheres rompem as amarras sustentadas pela dominação masculina nas três dimensões da justiça social.

É a partir de Fraser que questionamos: as cotas de gênero nas organizações estão promovendo a igualdade de gênero e a emancipação da mulher? As cotas de gênero são benéficas ao movimento feminista, preocupado com o destronamento do patriarcado e, por consequência, com o fim da opressão contra as mulheres?

Para elucidar estas questões, o presente artigo foi baseado, sobretudo, em duas obras recentes que apresentam a abordagem feminista de Fraser. A primeira diz respeito ao texto “Feminismo, capitalismo e a astúcia da história”, publicado primeiro em 2009 e novamente publicado no livro organizado por Hollanda (2019)HOLLANDA, H. B. de. Introdução. In: HOLLANDA, H. B. de (org). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 9-24, 2019.. A segunda se trata do livro “Feminismo para os 99%: um Manifesto”, escrito em parceria com Cinzia Arruzza e Tithi Bhattacharya (2019)ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019..

Fraser (2019)FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019. fundamenta seu pensamento posicionando a ascensão da segunda onda do feminismo, interessada na inclusão da mulher no trabalho produtivo, no mesmo período histórico da ascensão do neoliberalismo, sendo este uma nova face do sistema capitalista que exacerbou o individualismo e a autorrealização, rompendo com a responsabilidade do Estado em promover o bem-estar social. Assim, as mulheres conquistaram espaço no mercado de trabalho justamente em um cenário emoldurado política e economicamente para degradar as condições de trabalho, reduzir salários e exigir deliberadamente o trabalho assalariado de homens e mulheres para satisfazer as necessidades mínimas das famílias.

De forma bastante sucinta, tendo em vista a profundidade da obra de Fraser, a autora defende que muitas conquistas feministas da segunda onda serviram aos interesses do neoliberalismo, embora possam ter sido fruto de uma infelicidade inesperada (Fraser, 2019FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019.). Fraser relembra o argumento de Luc Boltanski e Ève Chiapello (2005)BOLTANSKI, L.; CHIAPELLO, E. The new spirit of capitalism. International journal of politics, culture, and society, v. 18, p. 161-188, 2005. de que o capitalismo se reorganiza de tempos em tempos para ressignificar críticas direcionadas a ele, de modo que essas críticas passam a compor elementos da lógica do acúmulo de capital. De acordo com Fraser (2019)FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019., isso não foi diferente com o movimento feminista. Por isso, sob o manto da igualdade de gênero, as mulheres passaram a ser um novo alvo do capitalismo no mercado de trabalho.

A autora situa o patriarcado como um modelo de dominação masculina vinculado ao capitalismo e indica que a conquista de espaço nas organizações pelas mulheres não propiciou o rompimento das amarras da opressão de gênero (Fraser, 2019FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019.). Por exemplo, quanto ao trabalho reprodutivo, as mulheres continuaram sendo as protagonistas dos lares e dos cuidados dos filhos, acumulando jornadas entre as esferas públicas e privadas (Fraser, 2020FRASER, N. Contradições entre capital e cuidado. Princípios: Revista de Filosofia (UFRN), v. 27, n. 53, p. 261-288, 2020.). Para Fraser (2019)FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019., esse movimento apenas permitiu que as mulheres fizessem parte do jogo dos homens, seguindo regras não feitas por elas ou para elas.

Aqui é necessário fazer um parêntese, também provocativo na obra de Fraser, sobre quais mulheres ascenderam às organizações. Uma vez que o movimento feminista é interseccional e atravessa as discussões de classe e raça, as mulheres que alcançaram e ainda alcançam as denominadas conquistas da segunda onda formam um grupo bastante seleto: o grupo que rompe o teto de vidro e mostra que é possível chegar ao topo é predominantemente formado por mulheres brancas, com formação acadêmica e de alta classe social (Arruzza; Bhattacharya; Fraser; 2019ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.).

A crítica de Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019)ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019. sobre os espaços conquistados pelas mulheres nas organizações reside no argumento de que o feminismo neoliberal apenas permitiu que as mulheres fossem inseridas em uma hierarquia social com normas definidas pelos homens. A corrente do feminismo neoliberal se apoia em políticas identitárias e individualização do sujeito, as quais são fortemente negadas por Fraser, de modo que as conquistas das mulheres passam a ser conquistas individuais modeladas dentro dos valores neoliberais de meritocracia e autorrealização, dissipando conquistas coletivas que favoreçam diferentes mulheres.

Nesse cenário, elas conquistaram o direito de ascender na hierarquia, com uma parcela do poder para dominar, tal qual os homens. Nesse novo modelo as normas não são subvertidas e as estruturas não são desmobilizadas. Nestes termos, a opressão de gênero é perpetuada e não se pode defender uma verdadeira emancipação da mulher (Fraser, 2019FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019.). Se não há paridade participativa, uma vez que apenas algumas mulheres alcançam os mesmos recursos, voz ou espaço que os homens, não se pode dizer que há justiça social (Fraser, 2010FRASER, N. Injustice at intersecting scales: On ‘social exclusion’ and the ‘global poor’ European journal of social theory, v. 13, n. 3, p. 363-371, 2010.).

O que se estabelece nesta ordem é um sistema meritocrático, não uma política que promove justiça social. Afinal, poucas mulheres quebram o teto de vidro enquanto a maioria delas limpa os cacos (Arruzza; Bhattacharya; Fraser; 2019ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.). Por isso, o título do livro de Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019)ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019. é provocativo, reforçando que um feminismo neoliberal que beneficia apenas 1% das mulheres não pode ser entendido como conquista da igualdade de gênero.

De acordo com Fraser (2019)FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019., um feminismo interessado genuinamente na emancipação da mulher frente ao patriarcado e no envolvimento de todas as mulheres, sem deixar nenhuma de lado, requer uma crítica radical ao sistema capitalista e à sua forma mais perversa, que está instituída no neoliberalismo. No entanto, isso não é tarefa fácil, pois ao trazer o individualismo como pilar do modelo neoliberal, destitui-se a visão do coletivo necessária ao movimento feminista.

4 A APROPRIAÇÃO DAS COTAS DE GÊNERO PELO NEOLIBERALISMO

A obra de Fraser não expõe uma opinião clara e objetiva da visão da autora em relação às cotas de gênero nas organizações, especificamente nestes termos. No entanto, ao refletir sobre as suas principais ideias e a potência de sua crítica, torna-se possível compreender como as cotas de gênero foram apropriadas pelo neoliberalismo.

A abordagem de Fraser (2019)FRASER, N. Feminismo, capitalismo e a astúcia da história. In: HOLLANDA, H. B. de (org.). Pensamento Feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, p. 25-48, 2019. não oferece espaço para o reconhecimento das cotas de gênero como uma política que pode promover a igualdade de gênero. Uma vez que a opressão de gênero caminha lado a lado com o capitalismo, não se pode conquistar a igualdade de gênero dentro das regras deste sistema.

Vale lembrar, resgatando a literatura das seções anteriores, que as cotas de gênero adotadas tanto como políticas públicas quanto como estratégias organizacionais ainda se apoiam sobre a perspectiva do desempenho e do lucro. Ou seja, não se fala propriamente sobre as conquistas das mulheres, mas sim sobre os benefícios financeiros que as organizações públicas e privadas podem extrair ao se apoiar sobre o discurso das cotas (Comi et al., 2019; Dobija et al., 2022DOBIJA, D.; HRYCKIEWICZ, A.; ZAMAN, M.; PUŁAWSKA, K. Critical mass and voice: Board gender diversity and financial reporting quality. European Management Journal, v. 40, n. 1, p. 29-44, 2022.; Garcia-Blandon; Argilés-Bosch; Ravenda, 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D. Board gender diversity and firm solvency: Evidence from Scandinavia. European Management Review, p. 1-9, 2023.; Kirsch, 2018KIRSCH, A. The gender composition of corporate boards: A review and research agenda. The Leadership Quarterly, v. 29, n. 2, p. 346-364, 2018.).

Ademais, as cotas de gênero não implicam que qualquer mulher ocupará o espaço que é destinado especialmente para elas. Desde o princípio, não se trata de um discurso que envolve a maioria, interseccionando múltiplos demarcadores sociais para oferecer oportunidades para mulheres plurais. Trata-se de ocupar essas vagas com as mulheres mais capacitadas dentro do que é valorizado pelo sistema de produção vigente. Ou seja, uma política de cotas de gênero fundamentada na meritocracia (Kakabadse et al., 2015KAKABADSE, N. K.; FIGUEIRA, C; NICOLOPOULOU, K.; YANG, J. H; KAKABADSE, A. P.; ÖZBILGIN, M. F. Gender diversity and board performance: Women's experiences and perspectives. Human Resource Management, v. 54, n. 2, p. 265-281, 2015.). Abre-se espaço para que apenas algumas mulheres percorram suas trajetórias profissionais seguindo as regras definidas pelos homens (Arruzza; Bhattacharya; Fraser; 2019ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.). Com isso, revela-se uma estrutura que permanece intacta, com normas de trabalho inalteradas e mentalidades ainda opressoras.

Assim, é possível resgatar os questionamentos feitos anteriormente: a que ou a quem as cotas de gênero servem? Qual é o propósito em adotar cotas de gênero? À luz das contribuições teóricas de Fraser, é possível argumentar que as cotas de gênero são apropriadas como uma estratégia neoliberal para incluir as mulheres no mercado de trabalho sob a defesa da igualdade de gênero.

No entanto, o maior interesse desta política está na reprodução do capital. Afinal, as pesquisas que exploram as cotas de gênero invariavelmente estão interessadas em descobrir se elas alavancaram o resultado financeiro das organizações, ao invés de compreender as percepções das mulheres sobre seus avanços nesses espaços (Yang et al., 2019YANG, P.; RIEPE, J.; MOSER, K.; PULL, K.; TERJESEN, S. Women directors, firm performance, and firm risk: A causal perspective. The Leadership Quarterly, v. 30, n. 5, p. 101297, 2019.). Quando observamos que diferentes pesquisas chegaram a resultados inconclusivos sobre os benefícios das cotas de gênero (Schäpers; Stolte; Heinemann, 2023SCHÄPERS, P.; STOLTE, T.; HEINEMANN, H. On the influence of gender quotas on the employer attractiveness of companies – Do the means harm the ends? Gender in Management: An International Journal, v. 38, n. 3, p. 357-372, 2023.; Wagner; Pernsteiner; Riaz, 2023WAGNER, E.; PERNSTEINER, H.; RIAZ, A. Blood is thicker than water: an analysis of women’s presence on Pakistani boards. Gender in Management: An International Journal, 2023.), devemos acompanhar com cautela os desdobramentos destes achados, a ponto que poderá ser questionada a relevância e a necessidade dessas políticas afirmativas.

Argumentamos que as cotas de gênero não são estipuladas para promover paridade participativa, tal como preconiza o conceito de justiça social de Fraser (2010)FRASER, N. Injustice at intersecting scales: On ‘social exclusion’ and the ‘global poor’ European journal of social theory, v. 13, n. 3, p. 363-371, 2010.. Por paridade, a autora reconhece que as condições, as oportunidades e os recursos devem ser iguais para todos. No entanto, o sistema de cotas de gênero adotados em diferentes países não levaram as mulheres a alcançarem plena igualdade nos diferentes níveis hierárquicos (Garcia-Blandon et al., 2023GARCIA-BLANDON, J.; ARGILÉS-BOSCH, J. M.; RAVENDA, D.; CASTILLO-MERINO, D. Direct and spillover effects of board gender quotas: Revisiting the Norwegian experience Business Ethics, the Environment & Responsibility, v. 32, n. 4, p. 1297-1309, 2023.). Além disso, os países que instituíram as políticas de cotas de gênero de forma opcional mantiveram as mulheres sub-representadas nas organizações em favorecimento dos homens (Cabo et al., 2019CABO, R. M. de; TERJESEN, S.; ESCOT, L.; GIMENO, R. Do ‘soft law’board gender quotas work? Evidence from a natural experiment. European Management Journal, v. 37, n. 5, p. 611-624, 2019.).

Antes de traçar os comentários finais desta discussão, também recorremos à visão que se encontra em Arruzza, Bhattacharya e Fraser (2019)ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019. a respeito das políticas públicas enquanto instrumentos legais incapazes de garantir justiça social. Uma vez que as cotas de gênero podem ser instituídas como leis mandatórias, poderia se pensar que o sistema legal seria capaz de garantir a emancipação das mulheres.

No entanto, Fraser nos alerta para esta suposição que se mostra equivocada, pois todas as instituições estão envolvidas na ordem neoliberal, e não se pode assumir ingenuamente que leis, polícias e tribunais estejam desassociados do sistema capitalista (Arruzza; Bhattacharya; Fraser; 2019ARRUZZA, C; BHATTACHARYA, T; FRASER, N. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.). Assim, é preciso ter um olhar cuidadoso diante de argumentos que se direcionam para a instituição de leis de cotas como prerrogativas para se garantir uma efetiva política de acesso das mulheres ao mercado de trabalho, ou seja, que nos levem a assumir que as cotas vão promover a igualdade de gênero e que a partir delas as mulheres vão romper com a dominação masculina.

Nesta perspectiva, parece ser simples questionar se as cotas de gênero devem sequer existir, uma vez que a literatura aponta para a sua instrumentalidade. É preciso reconhecer que as cotas de gênero permitiram maior acesso das mulheres a espaços historicamente negados a elas. No entanto, a abordagem feminista de Nancy Fraser nos ensina que as cotas de gênero devem ser vistas como instrumentos paliativos para um problema muito mais complexo e com diferentes camadas, cuja resposta não se encontra no interior dos ideais neoliberais. Deste modo, não se deve assumir que as cotas de gênero, por si só, são suficientes para promover a igualdade entre homens e mulheres.

Em síntese, as cotas de gênero podem ser entendidas como uma apropriação do neoliberalismo que defende a igualdade de gênero ao mesmo passo que as instrumentaliza para a reprodução do capital. Somado a isso, as cotas alinham-se ao feminismo neoliberal, garantindo que apenas as mulheres privilegiadas tenham acesso a estes espaços de poder, e distanciam-se da luta coletiva do feminismo que se destina a todas as mulheres. Assim, a justiça social e a emancipação das mulheres não são alcançadas, uma vez que não há redistribuição, reconhecimento e representação de todas as mulheres.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo deste texto foi propor uma reflexão sobre as cotas de gênero nas organizações à luz da abordagem feminista de Nancy Fraser. Para tal, foi apresentada uma breve contextualização sobre ações afirmativas e os sistemas de cotas de gênero. Foi constatado que normalmente se debate as cotas de gênero enquanto políticas públicas ou estratégias organizacionais e pouco se discute sobre as cotas de gênero dentro do contexto dos movimentos feministas.

A partir de elementos da perspectiva de Nancy Fraser, com foco nas questões de justiça social e da emancipação feminina, bem como de um rompimento com o sistema de produção capitalista que se entrelaça ao patriarcado, evoca-se um desconforto diante da aparente positividade, herança do feminismo neoliberal, em torno da ideia das cotas como propulsoras da igualdade de gênero.

Como contribuição teórica, aponta-se que as cotas de gênero foram apropriadas pelo neoliberalismo, o qual foi capaz de instrumentalizar a promessa da igualdade de gênero e circunscrever fronteiras entre as mulheres que podem ou não ocupar espaços de poder nas organizações. Nesta lente teórica, as cotas de gênero se distanciam de um projeto emancipatório para todas as mulheres pautado nas três dimensões de justiça social. Assim, evidenciamos que as cotas de gênero não são capazes de alcançar, de fato, a igualdade de gênero que um dia foi prometida. Por isso, as cotas de gênero representam apenas uma medida paliativa para conferir certo espaço para as mulheres na sociedade, mas sem um compromisso efetivo de romper com a dominação masculina.

Para estudos futuros, sugerimos ampliar o debate sobre as cotas de gênero à luz dos movimentos feministas tendo em vista diferentes elementos que se fazem presentes na literatura: i) como os discursos sobre a falta de resultados financeiros associados às cotas de gênero vão delinear as futuras decisões sobre a sua manutenção ou fragmentação?; ii) uma vez que as cotas de gênero servem aos interesses neoliberais, quais são os caminhos possíveis para alcançar a emancipação das mulheres?; e iii) como as cotas de gênero podem ser implementadas tendo em vista as três dimensões da justiça social? Acreditamos que estas questões oferecem um espaço propício para a continuidade das discussões iniciadas neste texto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jun 2023
  • Aceito
    19 Fev 2024
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