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Relações entre o Planejamento da Aula e as Aprendizagens Matemáticas em um Estudo de Aula no Sul do Brasil

Relations between lesson planning and mathematical learning in a Lesson Study in Southern Brazil

Resumo

Este artigo visa conhecer a relação entre o planejamento da aula e as aprendizagens dos alunos em um estudo de aula realizado no sul do Brasil. Envolve uma investigação qualitativa com perspectiva interpretativa. Os dados foram produzidos com três professoras, a partir de oito sessões de um estudo de aula, sendo analisadas as transcrições dos encontros, a tarefa planejada e resoluções dos alunos. Com relação ao tópico a ensinar, objetivo da aula e tarefa, os resultados mostram que houve preocupação das professoras com as dificuldades dos alunos e com a adaptação da tarefa, considerando o contexto. Quanto às aprendizagens dos alunos, as professoras anteciparam algumas possibilidades de resolução, de encaminhamentos da aula e de avaliação da tarefa, mas consideraram que o objetivo de aprendizagem não foi atingido. De fato, a adaptação de uma tarefa envolvendo proporcionalidade não possibilitou que os alunos chegassem de modo natural ao conceito visado de divisão. Conclui-se a necessidade de participação em outros estudos de aula, na perspectiva das mudanças das práticas profissionais, com uma atenção particular à seleção de tarefas para atingir o objetivo de aprendizagem proposto.

Estudo de Aula; Planejamento; Tarefa; Aprendizagens; Educação Matemática

Abstract

This article aims to understand the relationship between lesson planning and student learning in a lesson study carried out in southern Brazil. It involves a qualitative investigation with an interpretive perspective. The data were produced with three teachers, from eight sessions of a lesson study. We analyzed the transcripts of the meetings, the planned tasks, and the students’ resolutions. Regarding the topic to be taught, the objective of the lesson, and the task, the results show that the teachers were concerned with the students’ difficulties and with adapting the task, considering the context. Regarding the students’ learning, the teachers anticipated some possibilities of task resolution, of forwarding the class, and of evaluating the task, but they considered that the learning objective was not reached. In fact, the adaptation of a task involving proportionality did not allow the students to reach the intended concept of division in a natural way. It concludes that there is a need to participate in other lesson studies, from the perspective of changes in professional practices, with particular attention to the selection of tasks to achieve the proposed learning objective.

Lesson study; Planning; Task; Apprenticeships; Mathematics Education

1 Introdução

A qualidade do ensino e da aprendizagem está diretamente relacionada com a prática profissional do professor de Matemática. Esta prática envolve vários campos da atividade do professor, como as práticas letivas, as práticas profissionais na instituição e as práticas de formação (Ponte; Serrazina, 2004PONTE, J. P.; SERRAZINA, L. Práticas profissionais dos professores de Matemática. Quadrante, Lisboa, v. 13, n. 2, p. 51-74, 2004.). A prática profissional do professor de Matemática decorre do exercício da docência, que envolve o que faz o professor, no que tange aos “[...] seus planos de ação e procurando caracterizar a sua atividade, bem como identificar o modo específico como são postos em prática [...]” (Ponte et al., 2012, p. 275), na perspectiva das aprendizagens dos alunos.

O estudo de aula (lesson study) é um processo formativo de desenvolvimento profissional (Fujii, 2018FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21.; Stigler; Hiebert, 1999STIGLER, J.; HIEBERT, J. The Teaching Gap: Best Ideas from the World's Teachers for Improving Education in the Classroom. Los Angeles, Califórnia: The Free Press, 1999.), que está alicerçado na prática profissional, pois tem o foco em “[...] aspectos dessa prática (as dificuldades de aprendizagem dos alunos) [...]”, na recolha de elementos da prática e na intervenção sobre a prática (Ponte et al., 2016, p. 887). Esse processo formativo, desencadeado a partir da prática, está centrado na aprendizagem do aluno e nas relações entre o ensinar e aprender.

Neste artigo, trazemos o recorte de uma investigação realizada no contexto brasileiro, referente a um projeto de pós-doutoramento desenvolvido pela primeira autora, que envolveu um estudo de aula com três professoras no sul do Brasil. Desse modo, o objetivo do artigo é conhecer a relação entre o planejamento da aula e as aprendizagens dos alunos. Elencamos duas questões: a) Como o tópico, o objetivo e as tarefas foram definidos pelas professoras? b) Qual a relação entre o objetivo da aula, a tarefa e as aprendizagens dos alunos? Para respondermos às questões, desenvolvemos uma pesquisa de natureza qualitativa, com viés interpretativo.

Sendo assim, organizamos o artigo com esta introdução e mais cinco seções, que envolvem as discussões teóricas, a metodologia, os resultados, as discussões e as conclusões.

2 Estudo de Aula: o planejamento e as aprendizagens dos alunos

O estudo de aula, entendido como um processo formativo, pode propiciar mudanças nas práticas profissionais dos professores (Baptista et al., 2014). Na prática profissional docente, os professores são desafiados a refletir sobre os processos de ensino e de aprendizagem, na perspectiva de mobilizarem modos de ensinar para que o aluno aprenda. O estudo de aula está centrado na prática profissional, sendo considerado no Japão, de onde é originário, uma prática comum na vida profissional dos professores (Fujii, 2018FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21.). No Japão, os professores desde o início da sua carreira profissional são responsáveis pelo seu processo de formação, como um processo contínuo de desenvolvimento profissional (Stigler; Hiebert, 1999STIGLER, J.; HIEBERT, J. The Teaching Gap: Best Ideas from the World's Teachers for Improving Education in the Classroom. Los Angeles, Califórnia: The Free Press, 1999.).

O estudo de aula foi difundido para vários países, mas difere de um país para outro, de uma vivência para outra, devido às diferenças de contexto, de condições locais, de currículos (Ponte et al., 2018). Mas mesmo com algumas adaptações, os estudos de aula seguem alguns princípios, como a centralidade da prática letiva, o foco na aprendizagem dos alunos e o caráter colaborativo e reflexivo, em que os professores “[...] trabalham em conjunto, procurando identificar dificuldades dos alunos, e preparam em detalhe uma aula que depois observam e analisam em profundidade [...]”, ou seja, “[...] realizam uma pequena investigação sobre a sua própria prática profissional, em contexto colaborativo [...]” (Ponte et al., 2016, p. 869).

Deste modo, o estudo de aula desencadeia-se da prática letiva dos professores, sendo proposto a partir da colaboração de um grupo de professores que se reúnem para preparar uma aula, com base num problema de aprendizagem. Neste processo formativo, o foco é a aprendizagem dos alunos na aula, na perspectiva de aprimorar tanto o ensino como a aprendizagem. Por isso, é fundamental que os professores se enxerguem como profissionais, sendo desafiados a planejar e aprimorar as aulas e, ainda, compartilhar com os colegas os conhecimentos produzidos (Stigler; Hiebert, 1999STIGLER, J.; HIEBERT, J. The Teaching Gap: Best Ideas from the World's Teachers for Improving Education in the Classroom. Los Angeles, Califórnia: The Free Press, 1999.).

Segundo Fujii (2018)FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21., um estudo de aula é organizado em diversas etapas: a) estabelecimento de metas, em que se identificam lacunas na aprendizagem dos alunos e se define o tema da aula; b) planejamento coletivo da aula, com antecipação de estratégias de resolução dos alunos; c) desenvolvimento da aula, em que um membro do grupo leciona a aula e os outros observam; d) discussão pós-aula, o professor que lecionou a aula e os observadores compartilham anotações e analisam a aprendizagem dos alunos; e) reflexão, que envolve o registro do que foi aprendido durante o ciclo de estudo de aula.

Nesse sentido, o grupo de professores realiza uma pequena investigação, desencadeada na prática profissional, e que decorre das dúvidas e questionamentos acerca da aprendizagem dos alunos. Dito de outro modo, o estudo de aula é desencadeado da prática letiva e envolve o planejamento de uma aula com base nos objetivos de aprendizagem; na observação da aula; na análise e discussão em conjunto da aula e na reflexão (Ponte et al., 2016; Quaresma; Ponte, 2015). Um estudo de aula pelo seu caráter formativo, com forte ligação com a prática, possibilita, além do aprofundamento teórico, a vivência de “múltiplas situações para os professores envolvidos realizarem eles próprios um trabalho de cunho exploratório em questões de Matemática e Didática” (Ponte et al., 2016, p. 870).

Com o foco na prática letiva, o estudo de aula é organizado em ciclos colaborativos, possibilitando que os professores tratem dos problemas da sala de aula, promovendo a melhoria do ensino e da aprendizagem. O planejamento da aula assume um papel importante para delinear a ação docente, considerando a tarefa, a atividade do aluno e a comunicação em sala de aula. Esta atividade tem impacto em quatro frentes, produzindo melhorias, tanto no ensino como na aprendizagem dos alunos: a) no conhecimento dos professores, em relação ao conteúdo, ao pensamento do aluno, ao conhecimento pedagógico; b) na crença e disposição dos professores, que envolve conhecer o pensamento do aluno e acreditar na sua capacidade para aprender; c) na comunidade de professores, que envolve as práticas colaborativas; d) no currículo, considerando as tarefas e os materiais de ensino utilizados (Lewis, 2016LEWIS, C. How does lesson study improve mathematics instruction?. ZDM-Mathematics Education, Berlin, [s.v.], n. 48, p. 571-580, 2016.).

Com isso, espera-se que um grupo de professores organize uma aula, que é desencadeada das concepções docentes acerca do currículo, dos modos como entende a gestão da sala de aula e da abordagem do ensino de Matemática (Ponte, 2005PONTE, J. P. Gestão curricular em Matemática. In: GTI (ed.). O professor e o desenvolvimento curricular. Lisboa: APM, 2005. p. 11-34.). Uma parte fundamental do estudo de aula é o planejamento da aula, prevendo as ações do professor, as resoluções dos alunos, a discussão das soluções das tarefas e a síntese da aula pelo professor (Fujii, 2018FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21.). Essas etapas são consideradas no processo de planejamento da aula e também na reflexão pós-aula. O grupo de professores deve prever as respostas dos alunos durante o planejamento da aula; os observadores, durante a aula, precisam considerar os processos de aprendizagem dos alunos e os encaminhamentos docentes; na discussão pós-aula discutem-se as anotações, considerando as soluções dos alunos e as aprendizagens que realizaram (Fujii, 2018FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21.).

Para isso, a escolha do tópico a ensinar precisa ser resultante da identificação das dificuldades dos alunos, para que possa contribuir para a aprendizagem, remetendo ao proposto nos documentos curriculares (Ponte et al., 2014). Sendo assim, a escolha do tópico assume um papel importante no estudo de aula, tendo em atenção as dificuldades dos professores em ensinarem determinado conteúdo, as dificuldades dos alunos ou a inserção recente no currículo (Fujii, 2014FUJII, T. Implementing Japanese lesson study in foreign countries: Misconceptions revealed. Mathematics Teacher Education and Development, [s. l.], v. 16, n. 1, p. 65-83. 2014.). Diante dessas escolhas, os professores trabalham de modo colaborativo para a escolha e seleção do tópico a ensinar, estudando materiais de ensino, o currículo e o conteúdo (Lewis et al., 2019). Nesta fase preparatória de planejamento, o grupo define os objetivos de aprendizagem, buscando nas orientações curriculares e em outros materiais “[...] os aspetos matematicamente relevantes desse mesmo tópico – conceitos, procedimentos, representações e simbolismo, conexões importantes com outros tópicos matemáticos e com temas extramatemáticos [...]” (Ponte; Quaresma; Mata-Pereira, 2015, p. 27).

De acordo com os objetivos da aula, seleciona-se a tarefa, reconhecida como “elemento organizador da atividade dos alunos” (Ponte et al., 2015, p. 111). Num estudo de aula é usual organizar a aula em quatro etapas: a) apresentação do problema pelo professor; b) resolução pelos alunos; c) discussão das soluções dos alunos conduzida pelo professor; d) síntese da aula pelo professor (Fujii, 2018FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21.). Procurando esclarecer os diversos tipos de tarefas, Doig, Groves e Fujii (2011) destacam que estas podem abordar um conceito, desenvolver processos matemáticos, seguir um estudo rigoroso em relação a uma finalidade e sequência, ou abordar um equívoco comum. Porém, conforme refere Fujii (2015)FUJII, T. The critical role of task design in lesson Study. In: WATSON, A; OHTANI, M. (eds.). Task design in mathematics education. New York: Springer, 2015. p. 273-286., para que se escolha uma tarefa ideal para a aula de investigação, é necessário que seja apropriada matematicamente ao objetivo da aula, seja do interesse dos alunos, esteja no nível adequado para estes, possa ser resolvida usando várias estratégias e tenha potencial para aquisição dos conhecimentos básicos.

3 Metodologia

Neste artigo, trazemos uma investigação realizada com um grupo de três professoras de Matemática de uma escola do sul do Brasil, que se dispuseram a participar pela primeira vez de um estudo de aula. A pesquisa apresenta uma abordagem de natureza qualitativa, com perspectiva interpretativa (Bogdan; Biklen, 1994BOGDAN, R. C.; BIKLEN, S. K. Investigação qualitativa em educação: uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora, 1994.). A escola em que foi realizada faz parte da rede municipal de ensino, abrangendo turmas da Educação Infantil até o 9º ano do Ensino Fundamental. As professoras participantes atuam com turmas de 6º ao 9º ano, com a disciplina de Matemática. Diante da disponibilidade dessas professoras, realizamos o estudo de aula de março a maio de 20231 1 O ano letivo começou em fevereiro de 2023. , adaptando as etapas ao proposto por Fujii (2018)FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21., como indicado no Quadro 1.

Quadro 1
– Etapas e sessões do estudo de aula

O grupo que vivenciou o estudo de aula foi constituído pelas três professoras de Matemática da escola, que denominamos de modo fictício2 2 As professoras assinaram o termo de consentimento, de acordo com as orientações do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP). O projeto de pesquisa foi submetido ao CEP sob o número nnnnn. como Maria, que atua com as turmas do 6º ano, Sandra com as turmas do 7º e 8º ano e Carla com as turmas do 8º e 9º ano. Participaram, também, do grupo, a primeira autora que exerceu o papel de facilitadora e uma observadora, que é aluna do mestrado em Educação Matemática. O grupo de professoras aceitou participar do estudo de aula, com a colaboração da equipe gestora da escola, que liberou uma das professoras das atividades de apoio (atendimento aos alunos do turno inverso) e da disponibilidade de uma das professoras, que participou das sessões fora do seu horário de trabalho.

As três professoras têm formação de Licenciatura em Matemática. Maria trabalhou por muitos anos com contabilidade de empresas, diplomando-se como professora em 2016 e finalizando o curso de Mestrado em Educação Matemática em 2018, no mesmo ano em que começou a atuar como professora de Matemática. Sandra se diplomou em Matemática em 2006 e começou a atuar como professora em 2007; cursou graduação em Psicologia e, desde 2020, trabalha 20h com esta área e 20h na escola onde realizamos a pesquisa. Carla se diplomou em Matemática em 2007, atua como professora desde 2008 e atualmente cursa Psicologia.

Os dados foram coletados a partir da gravação em áudio das sessões (sessões 1-6 e 8) e filmagem da sessão 7, e posteriormente transcritos. Também fizemos recolha documental da tarefa planejada e registros de resoluções dos alunos. Os dados foram analisados por análise de conteúdo (Bardin, 2021BARDIN, L. Análise de conteúdo. 5. ed. Lisboa: Edições 70, 2021. 281 p.). Nos dados realizamos: a) leitura na íntegra e observação; b) leitura cuidadosa, destacando temáticas recorrentes, como discussões sobre: escolha do tópico a ensinar (divisão); dificuldades dos alunos; objetivo da aula; ensino e aprendizagem de matemática; c) separação dos excertos a partir das temáticas; d) aproximação dos registros, considerando as resoluções dos alunos; e) escolha de temáticas para análise e organização das categorias apresentadas no Quadro 2, que emergiram dos dados e do referencial teórico.

Quadro 2
– Temáticas e categorias

Na próxima seção, apresentamos os resultados, usando alguns exemplos de codificação para a apresentação dos excertos: S11 – Sessão 1, excerto 1; S28 – Sessão 2, excerto 8, sendo que o primeiro número se refere à sessão e o segundo ao excerto. Para a apresentação das figuras, consideramos, por exemplo: S7F1 – sendo que Sn representa o número da sessão e Fn representa o número da figura.

4 Resultados

Nesta seção, consideramos os resultados provenientes das temáticas de análise, organizadas nas subseções 4.1 e 4.2.

4.1 Tópico a ensinar, objetivo da aula e tarefa

Durante a realização do estudo de aula, percebemos que os conhecimentos anteriores e as dificuldades dos alunos foram desencadeadores para a escolha do tópico a ensinar, a definição do objetivo da aula e o planejamento da tarefa. As dificuldades dos alunos assumiram muita relevância para as professoras, pois começamos as sessões na metade do mês de março e o ano letivo de 2023 havia começado há menos de um mês (23 de fevereiro). Maria justifica as dificuldades, dizendo:

Porque a gente está vindo de uma pandemia (Maria, S11, 2023).

E explica que muitos alunos não realizaram o proposto durante a pandemia e todos foram aprovados. Sandra considera:

Muito difícil! Eles estão muito desparelhos. A gente já pegava turmas que tinham níveis muito diversos, mas agora escancarou mesmo (Sandra, S12, 2023).

Devido a essas disparidades em relação à aprendizagem, as professoras apontam a divisão para ser o tópico a ensinar:

Sandra: Eu tinha pensado exatamente nisso, em algo que fosse comum a todos os adiantamentos [anos escolares]. A gente tem vários tipos de frações, mas eu pensei...

Carla: Todos precisam.

Sandra: Todos têm. Eu pensei, vindo pelo mesmo viés das frações, eu pensei na divisão, nas relações entre multiplicação e divisão, que é uma das operações que eles têm mais dificuldade.

Maria: Muita dificuldade. Muita de montar, porque se for pensar na divisão, são três operações que eles têm que fazer na divisão.

Carla: Os que chegam no 8º, no 9º, não sabem fazer.

Maria: Não sabem.

Carla: Se der com vírgula ali, já deu problema.

Facilitadora: Então, vocês acham assim, que a divisão, no caso...?

Sandra: Aí falar sobre todos os aspectos que envolvem, relações contrárias, alguma coisa para revisar.

Facilitadora: Com números naturais, racionais?

Sandra: Naturais mesmo. Para começar do básico mesmo.

(S13, 2023).

Definido o tópico, fomos delineando o objetivo da aula de investigação, considerando que as professoras abordavam as dificuldades dos alunos, ora enfatizando o conhecimento das operações matemáticas, o uso das operações na resolução de problemas, ora o algoritmo. Segundo as professoras, os alunos questionam:

Carla: É de mais, é de menos, é de dividir?

Sandra: Só perguntam: que conta tem que fazer?

Carla: É dividir ou é de vezes?

Maria: Parece que a gente nunca sai, nunca sai disso. A gente estuda tudo, eu estudei [...], mesmo assim a coisa parece que se repete.

(S24, 2023).

Mas, também trazem fortemente sobre as dificuldades dos alunos no algoritmo da operação:

Maria: Porque a dúvida deles é... A gente estava colocando primeiro direto na continha. Aí, quando monta a continha? Aí, eles me disseram assim, professora, quando a gente monta a continha, eu não sei qual é o resultado. Qual desses números eu...?

Sandra: Onde é que coloca? E onde é que coloca quanto deu?

Maria: Qual desses valores é o resultado?

(S65, 2023).

As dificuldades dos alunos na divisão foram apontadas em várias sessões. Com a definição do tópico a ensinar e com a busca nos documentos curriculares, encontrarmos que a divisão com os naturais é proposta até o 6º ano do Ensino Fundamental. Decidimos que Maria lecionaria a aula de investigação, pois é professora nas duas turmas (6º A e B). Com esses delineamentos, conversamos sobre o objetivo da aula, levantamos algumas ideias, mas somente na terceira sessão definimos o objetivo:

Facilitadora: Pensando no que vocês falaram, das dificuldades e pensando que vamos organizar a aula para o 6º ano. [...] o que nós vamos trabalhar, então, da operação divisão, o que podemos adaptar? [...] O que queremos com a aula...? Qual é o objetivo que queremos? Pensando, Maria, no que tu trouxeste (referência às dificuldades dos alunos), como é que podemos pensar no objetivo da aula? O que vocês acham?

[...]

Sandra: Acho que a partir desses exemplos que a gente fez, desses exemplos... Ou nas ideias aqui... Quais seriam os nossos objetivos relacionados com...

Facilitadora: Com esta aula.

Sandra: Relacionar a divisão com a multiplicação. Eu acho que é por aí. Os objetivos têm que ser por aí, eu acho.

Facilitadora: O que vocês acham? Que a tarefa possibilite relacionar a multiplicação...

Maria: É fazer essa relação. É porque eu estou trabalhando agora, eu trabalhei com a soma e a subtração, a relação que tem entre essas duas. Agora eu estou trabalhando a multiplicação e muitos não sabiam multiplicar... Uma centena por uma dezena. [...] Mas aí eu estava querendo ver depois para fazer justamente essa relação.

(S36, 2023).

Como as professoras retomavam ora a ideia que envolve o conceito de divisão, ora o algoritmo, a facilitadora questiona novamente:

Facilitadora: Vamos trabalhar nessa aula a relação ou vamos trabalhar nessa aula a ideia de... dividir com restos ou alguma coisa assim? [Nos documentos curriculares propõe-se para o 6º ano a divisão euclidiana e a divisibilidade].

Sandra: Eu acho que divisão com resto não precisa. (S37, 2023).

Na sessão 3, o objetivo da aula ficou definido e registrado no plano, como sendo Relacionar a divisão com a multiplicação a partir de uma situação contextualizada, de conhecimento dos alunos, e nas sessões seguintes, a facilitadora questionava ou relembrava o objetivo, na perspectiva de adaptar à tarefa da aula. O objetivo também foi desencadeado pela ideia de contexto, que foi trazida por Maria ao descrever o que está trabalhando com os alunos, sugerindo que poderia ser considerada no planejamento da tarefa para a aula. A professora explica sobre a ideia de proporcionalidade que está trabalhando e inicialmente trouxe um exemplo do livro didático, mas que devido às dificuldades dos alunos em entender a ideia a partir do suco concentrado, trouxe o contexto do biofertilizante3 3 Adubo orgânico líquido, produzido com materiais encontrados no comércio ou na propriedade. Fornece nutrientes para as plantas. Disponível em: https://www.embrapa.br/busca-de-solucoes-tecnologicas/-/produto-servico/804/processo-de-fabricacao-de-biofertilizante. . Acredita que a aproximação com o contexto pode colaborar com as aprendizagens dos alunos:

Maria: Só para ter mais ou menos uma ideia, esta semana eu vou trabalhar com biofertilizante, porque eu estou trabalhando proporcionalidade. E eu tenho biofertilizante em casa, que é aquele líquido preto, chorume. E eu dei a última aula, que é o exercício que está no livro, que era... Um copo de suco concentrado rendia seis copos, ou três copos, não lembro. Aí, aquilo, eles não estão acostumados com suco concentrado. Suco concentrado? [...] Não, eles não estão ligando uma coisa com a outra. A semana que vem eu vou trazer o biofertilizante, que ele também é concentrado. Aí, eu vou trazer para que eles façam a mistura na água, que é um décimo de fertilizante, mas eu não vou trabalhar fração. Se para cada copo de biofertilizante eu tenho que colocar nove. E aí, a gente vai fazer no balde e vamos molhar as plantas. [...] A gente vai estar nessa função, na multiplicação (S38, 2023).

Diante dessa ideia de contexto trazida por Maria, que se estrutura pelo proposto nos documentos curriculares para o 6º ano, no que envolve números e operações: “Operações (adição, subtração, multiplicação, divisão e potenciação) com números naturais; Divisão euclidiana; Fluxograma para determinar a paridade de um número natural; Múltiplos e divisores de um número natural; Números primos e compostos” (Brasil, 2018BRASIL. Base nacional comum curricular: educação é a base. Brasília: MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abase/. Acesso em: 12 jan. 2023.
http://basenacionalcomum.mec.gov.br/abas...
, p. 300). Com isso, a tarefa foi adaptada, considerando os vários estudos de materiais produzidos sobre o ensino da divisão, a partir de uma abordagem exploratória do ensino de Matemática, nos quais as professoras consideraram relevante a tarefa produzida por Marques (2022)MARQUES, J. F. G. Promover o raciocínio matemático com alunos do 3º ano: fundamentação e operacionalização de uma intervenção. 2022. 11 f. Dissertação (Mestrado em Educação Pré-Escolar e Ensino do 1º Ciclo do Ensino Básico) - Escola Superior de Educação, Instituto Politécnico de Setúbal, Setúbal, Portugal, 2022., em sua dissertação de mestrado, para ser desenvolvida com alunos do 3º ano: Vamos plantar feijões!

Na sessão 4, a facilitadora chama a atenção sobre os estudos e as ideias levantadas nas sessões anteriores, dizendo:

Facilitadora: Porque lembras que tinhas a ideia, que tu tinhas dado e achamos interessante... Não trabalhar o algoritmo agora, o algoritmo não ser o centro. Colocamos, relacionar a divisão com a multiplicação, mas trabalhar uma tarefa que tenha um contexto e que esse contexto seja o contexto já conhecido por eles [os alunos].

Maria: Mas me lembro que esta aqui iria... Porque fiquei pensando o que eu ia recortar de papel para grudar no quadro, para ficar coloridinha. Eu pensei, não cheguei a falar, mas pensei que é o que eu tinha que recortar para colocar no quadro com fita crepe, para mostrar para eles. Não vou desenhar no quadro.

(S49, 2023).

Maria se referia ao uso do material para representar as quantidades de xícaras de biofertilizante concentrado e de água, pois a tarefa envolvia uma parte de preenchimento de uma tabela pelos alunos (Figura 1).

Figura 1
– Parte inicial da tarefa

Na perspectiva de retomar o objetivo da aula e de ultrapassar a ideia de multiplicação, a facilitadora propõe:

Facilitadora: E para a nossa tarefa, que vai envolver essa relação, divisão com multiplicação, como é que podemos pensar?

Maria: Isso, aí eu vou dizer assim, bom, agora eu tenho um balde com toda essa preparação. Mas eu quero saber quanto de água eu tenho aqui dentro. Como é que era que eu tinha pensado? Não, eu tenho 27 canecas de água aqui dentro. Então, quantas xícaras de fertilizante eu coloquei? [...] Porque quando tu vais colocar no balde, tu trabalhas com a multiplicação. Agora, quando tu queres saber o que... O balde pronto, tu vais ter que trabalhar com a divisão

(S410, 2023).

Com essas ideias, trouxemos a continuação da tarefa que envolvia algumas questões (Figura 2), sendo apenas a última pensada, para que os alunos usassem a divisão para a resolver, pois na questão 4, as professoras previam que os alunos buscariam a resposta na tabela, que seria preenchida na introdução da aula.

Figura 2
– Continuação da tarefa

Com relação ao tópico a ensinar, o objetivo da aula e a tarefa, houve a preocupação com as dificuldades dos alunos, com o contexto a usar, adaptando a tarefa, trazendo a ideia de proporcionalidade, principalmente com a operação de multiplicação, considerando o que tinha sido desenvolvido nas aulas anteriores.

4.2 Aprendizagens dos alunos e reflexão das professoras

A fim de mostrarmos as aprendizagens dos alunos, consideramos a resolução da tarefa, apontando também alguns encaminhamentos das professoras e a antecipação das estratégias de resolução. Na sequência, destacamos algumas resoluções realizadas pelos alunos, a condução das professoras e a avaliação da tarefa.

Durante a conversa sobre as dificuldades para resolver a tarefa, Maria aponta que:

Eu vou ter que explicar essa tabela. Eles não conseguem entender a tabela. [...] Talvez seja um pouquinho difícil, talvez a gente precise dar uma explicaçãozinha do que está aqui na tabela. [...] para te ter uma ideia, eu já trabalhei com eles tabelas, com a tabela do horário de aula deles mesmo. [...] Para eles fecharem a linha com a coluna, eles têm dificuldade. Tiveram dificuldade para compreender que o recreio é sempre no mesmo horário. Então, eu espero que eles já estejam acostumados... (S611, 2023).

Deste modo, a professora prevê um tempo maior para a introdução da aula, considerando a exploração e preenchimento da tabela, juntamente com os alunos.

Além da dificuldade com a tabela, a facilitadora questiona se os alunos teriam outras dificuldades na resolução da tarefa. Maria considera que não terão dificuldade de entender a tarefa, pois já trabalharam com o biofertilizante, percebendo que para cada xícara de concentrado, teriam que colocar nove xícaras de água. Mas chama a atenção que as dúvidas podem surgir na questão 5, que previam o uso da operação de divisão para a resolução e conversam sobre essas dificuldades:

Maria: Até a questão 4... Quantas canecas, das 30 canecas de biofertilizante... 3 vezes o 9. Aqui eles estão multiplicando. Quantas canecas são utilizadas... Eles vão olhar de novo na tabela. Tudo é na tabela, menos a três. Até agora eu só trabalhei com multiplicação. [...] Aí como é que eles fariam? Um balde com 60 canecas. Bom, se aqui 30 canecas, que eles vão ver aqui, e vão ver que 30 é 3. Esse resultado que está aqui dividido por 3, vai dar 10, que acaba chegando nessa linha, 60 canecas de biofertilizante. Mas é muito, né? Não acham? Pra eles fazerem a soma, irem somando?

Sandra: Não, porque é o dobro de 30.

Maria: Ah, mas não vão se dar conta que é dobro, porque não se dão quando é o dobro, eu acho.

Facilitadora: [...] Mas gostaríamos que eles usassem a divisão, a multiplicação e a divisão?

Maria: Mas como aqui não colocamos a palavra dobro, eles não sabem. É capaz de eles não pensarem nisso. Mas 60 é o dobro de 30? Olhar para o 60 e perceber que é o dobro de 30. Eles não vão perceber.

[...]

Carla: A 4 tem um balde de 30 canecas de biofertilizante... Quantas canecas são utilizadas de biofertilizante concentrado?

Maria: Porque aqui, eles vão achar esse valor na tabela. Aí eles vão ver aqui. Porque essa é a próxima linha.

Sandra: É, do 60, porque a do 30 está ali. Mas acho que, quando ela falasse aqui do total de biofertilizante diluído, eu acho que ela já podia apontar a relação da divisão. Mostrar a relação ali. A gente quer que eles façam 60.

Carla: Eu acho que eles vão se dar conta. Será que não? [...] Se essa deu 10, era uma. Se deu 20, deu dois. Vão fazer a relação, acho que não era bom dizer.

Maria: Tu achas?

Carla: Para dar uma forçada.

(S612, 2023).

E no sentido dos encaminhamentos docentes, depois de os alunos tentarem resolver a tarefa, as professoras propõem algumas intervenções, na perspectiva de trazer a operação de divisão, na questão 5.

Carla: Quando vê, a gente dá um tempo para eles tentarem sozinhos. E vendo que não tem jeito, a gente...

Maria: Aí aponta.

Carla: Aponta. Vamos perceber que...

Maria: Agora sim. Agora eu vou para operação inversa. [...] Se eu tenho 60 de diluído... Como é que eu posso chegar na primeira coluna e na segunda coluna? É que eles têm que fazer 60 dividido por 10.

Facilitadora: Ou... Continuar a tabela também.

Maria: Ou continuar a tabela que vai dar 6 concentrados. E depois eles vão ter que se dar conta de fazer 6 vezes 9, que é a quantidade de água.

Facilitadora: É, vai ter a multiplicação. Porque a nossa ideia deve ser a... A divisão e a multiplicação. E ver se vai surgir... O que vai surgir ali nas resoluções?

(S613, 2023).

As professoras previam que os alunos usariam a operação de divisão para a resolução da questão 5. Os registros da resolução da tarefa pelos alunos na aula de investigação (Figura 3) mostram o seu entendimento a partir do proposto na tabela, que conduziria a resoluções com as operações de adição e multiplicação. Notamos que nenhum aluno usou a divisão, a maioria dos alunos usou a multiplicação e adição, e três alunos escreveram os resultados, não usando nenhum registro de operação.

Figura 3
– Resoluções dos alunos (S7F1)

Na aula, no momento da discussão coletiva, Maria se preocupou em retomar a explicação da tabela, preenchendo todos os dados possíveis e usando a multiplicação para saber a quantidade de água necessária para diluir o biofertilizante. Oralmente enfatizava a adição dos dados da primeira e segunda coluna, para obter o resultado total da terceira coluna (Figura 4).

Figura 4
– Preenchimento da tabela pela professora (S7F2)

Ao perceber que os alunos não usaram a divisão para resolver a questão 5, Maria retomou a tabela enfatizando a linha 1, como mostra a Figura 5.

Figura 5
– Exploração da tabela pela professora (S7F3)

Apenas um aluno copiou a operação de divisão proposta pela professora, pois não houve o uso de tal operação para a resolução da tarefa. Isso levou a considerarmos o seguinte excerto, referente à reflexão pós-aula.

Maria: Eu disse, gente, vocês não utilizaram a divisão? O que que houve? Eles dizem, professora, sempre para resolver um problema de divisão a gente prefere não usar a divisão. A gente prefere ir na tentativa e erro.

Carla: Já como eles têm essa dificuldade com a divisão, eles já não vão tentar uma coisa que eles têm dificuldade. Eles vão tentar as coisas que eles têm certeza que conseguem, a soma, a multiplicação.

(S814, 2023).

Nessa linha de argumentação, as professoras dizem que talvez, com algumas mudanças na tarefa, os alunos poderiam ter usado a divisão e, também, com a mudança na condução durante a aula.

Carla: E aí, eu vendo ali de fora, como era uma sequência, fácil de construir. Claro, na minha concepção, bem fácil. Mas eu percebi que eles notaram que tinha uma sequência lógica, que vinha aumentando. E muitos tiveram essa noção. Até anotaram, até colocaram. Mas era uma sequência. Talvez se não fosse uma sequência de valores, que logo de cara a gente percebia alguns... Se é 10 aqui, aqui é 20, depois 30 e depois segue. Talvez eles poderiam sair da caixa, porque eles ficaram presos naquela tabela. E talvez, penso eu... Que a ideia de divisão na hora do problema, eles não tiveram assim: vamos dividir. Talvez se fosse uma problemática, temos tantos chocolates, aquele bem tradicional. Tantos bombons, vamos dividir para tantas pessoas. Ou colocar em caixas. Essa fala de divisão que não teve, talvez. E como eles não vão pensar em dividir, porque é algo difícil para eles.

Maria: É que a gente não tinha pensado nisso. Que eles talvez pensassem dessa forma. Em nenhum momento, eles pensaram em dividir. De repente, com a ideia da Carla, bem aquela coisa mais básica, de dividir em caixinhas, dividir o chocolate, dividir uma pizza. Eu acho que eles ficam muito mais à vontade, porque ali a gente trabalhou com soma e a multiplicação, porque a gente tinha que juntar a xícara de biofertilizante, com as xícaras de água e somar. E aí já dava um resultado. De repente, isso de fazer essas duas operações e depois eles terem ainda a divisão para fazer, pode ter sido um pouco confuso para eles.

Carla: Como a Maria disse, não atingimos o objetivo, que era da divisão. Foi bem isso que ela disse. Eu acho que talvez, se a gente mudasse a abordagem, eles se dariam conta.

Maria: Pode ter sido, porque eu trabalhei sempre no aumentar, sempre vem a multiplicação. E no diminuir, que seria fazer pela divisão, a gente não trabalhou. Só aumentava.

(S815, 2023).

E para destacar o que faltou nos encaminhamentos e na tarefa, as professoras ressaltam a necessidade de promover o desafio para os alunos e a uma palavra que trouxesse a ideia de divisão.

Maria: Acho que faltou dar ênfase ali, na tal da receita do bolo. Essa impressão que me deu. [...] Eu acho que era uma tarefa de aula, mas não foi algo que eles se aprofundaram. [...] Eu acho que faltou o desafio. Talvez se tivesse... Não sei, eu acredito que eles não se sentiram desafiados para resolver, porque de vez em quando eu coloco alguma coisa, eles correm para tentar fazer.

Facilitadora: [...] Poderíamos explorar de outras formas?

Carla: Eu estava pensando, será que alguma palavra que desse ideia de divisão, que a gente colocasse ali, distribuir, dividir, alguma palavra que fizesse com que eles se dessem conta da divisão.

(S816, 2023).

É importante apontar que em relação às aprendizagens dos alunos, os diálogos apresentados mostram que as professoras tiveram a preocupação com a antecipação de algumas possibilidades de resolução da tarefa, com os encaminhamentos e com a avaliação da tarefa. Esses resultados mostram que o objetivo de aprendizagem não foi atingido, devido à necessidade de ampliação da antecipação de outros modos de resolução da tarefa e, também, da condução da aula.

5 Discussão

Ao tratarmos da relação entre o planejamento e as aprendizagens dos alunos em uma vivência de estudo de aula, delineamos alguns resultados que mostramos de modo resumido no Quadro 3.

Quadro 3
– O planejamento e a aprendizagem dos alunos

Quanto à escolha do tópico e planejamento da tarefa, destacamos que as dificuldades dos alunos e os seus conhecimentos prévios assumiram um papel importante, pois houve a preocupação com a defasagem da aprendizagem devido a vários aspectos, como a pandemia, a aprovação e os conhecimentos matemáticos dos alunos (S11; S12; S13). A definição do tópico a ensinar assumiu um caráter fundamental, na perspectiva da aprendizagem dos alunos, pois contribui para que a aula seja planejada como um desafio para o aluno (Takahashi; Mcdougal, 2016TAKAHASHI, A.; MCDOUGAL, T. Collaborative lesson research: Maximizing the impact of lesson study. ZDM-Mathematics Education, Berlin, [s.v.], n. 48, p. 513-526, 2016.).

As dificuldades dos alunos são apontadas pelas professoras, justificando a escolha do tópico a ensinar (S13; S24; S45). A escolha do tópico, a definição do objetivo e a seleção da tarefa envolvem a fase preparatória da aula, que exige uma atenção especial devido à complexidade de elementos que precisam ser considerados além das dificuldades dos alunos, como a gestão do tempo, os documentos curriculares, o estudo de materiais, a escolha e a adaptação de uma tarefa, e a antecipação dos modos de resolução pelos alunos (Ponte; Quaresma; Mata-Pereira, 2015; Widjaja et al., 2017).

Diante disso, salientamos que as professoras, ao escolherem o tópico a ensinar, consideraram a divisão apenas com os números naturais, mesmo que apontassem que as dificuldades com números decimais e fracionários são motivos de preocupação, por essa operação contemplar o mesmo viés da fração (S13).

É importante destacar que nos conteúdos propostos para o 6º ano, de acordo com as orientações curriculares, encontramos as operações com números naturais, enfatizando a divisão euclidiana e a divisibilidade de modo separado. Não houve uma preocupação com esses conteúdos, possivelmente devido à noção de que existiam dificuldades básicas dos alunos em relação à divisão (S24). Como é usual nos estudos de aula, deu-se atenção para as conexões com outros tópicos a ensinar, no sentido de reconhecer o proposto no currículo (Lewis, 2016LEWIS, C. How does lesson study improve mathematics instruction?. ZDM-Mathematics Education, Berlin, [s.v.], n. 48, p. 571-580, 2016.).

Neste sentido, a definição do objetivo seguiu os argumentos das professoras sobre as dificuldades dos alunos, a defasagem em relação às aprendizagens de conteúdos de anos anteriores. E ainda que tenham apontado dificuldades em relação ao algoritmo da operação (S24; S65), no momento de selecionar a tarefa, sentiram a necessidade de que esta tivesse um contexto conhecido do aluno (S38). O contexto, neste caso, aproxima-se da ideia de situação real, porém com uma adaptação para o contexto educativo, como semirrealidade (Alrø; Skovsmose, 2010ALRØ, H.; SKOVSMOSE, O. Diálogo e Aprendizagem em Educação Matemática. São Paulo: Autêntica, 2010.).

No que se refere à adequação da tarefa ao objetivo da aula (S49; S410), percebemos que houve uma certa dificuldade derivada da ideia de proporcionalidade proposta na tarefa, com ênfase na operação de multiplicação. Mesmo que na antecipação das estratégias dos alunos as professoras considerassem que poderiam usar a divisão para resolver, tinham dúvidas se isso ocorreria (S611; S613). A condução realizada pela professora na aula, enfatizou a multiplicação, realizando esses registros no quadro (S7F2; S7F3).

Na reflexão sobre a tarefa, Carla apontou que esta trouxe a ideia de sequência, de uma lógica que aumentava as quantidades, apontando que talvez a ideia deveria envolver uma quantidade total e a divisão em grupos (S815). Carla, ao dizer que faltou uma palavra que levasse a ideia de divisão, parece trazer a ideia de partilha (quantos são em cada grupo, sabendo a quantidade total e a quantidade de grupos). No entanto, os alunos poderiam realizar a tarefa por tentativa e erro, em vez de quotas ou medida (sabe-se o tamanho do grupo e precisa-se descobrir o número de grupos), podendo usar procedimentos de contagem, aditivos e subtrativos (Mendes, 2013MENDES, F. A aprendizagem da divisão: um olhar sobre os procedimentos usados pelos alunos. Da Investigação às Práticas: Estudos de Natureza Educacional, Benfica, v. 3, n. 2, p. 5-30., 2013.).

Maria concordou com as ideias de Carla e chamou a atenção que a resolução da tarefa envolvia mais de uma operação, que os alunos precisavam usar para preencher a tabela, comparando os valores. E isso levou as professoras a constatarem que não atingiram o objetivo da aula (S815). Ressaltaram que a tarefa (questão 5) precisava trazer uma palavra (dividir ou repartir) que possibilitasse ao aluno compreender que remetia à divisão e, também, precisava que se sentissem mais desafiados a resolverem a tarefa (S816).

Apontamos que as ideias envolvendo as operações de multiplicação e divisão e as relações entre elas se estruturam pelo sentido do número, ou melhor, envolvem conhecimento e destreza com as operações: compreender o efeito da operação (multiplicação o efeito de aumentar e divisão o efeito de diminuir), as propriedades das operações e as relações entre as operações (Serrazina; Rodrigues, 2018SERRAZINA, M. L.; RODRIGUES, M. Formação de professores e desenvolvimento do sentido do número. In: CARNEIRO, R. F.; SOUZA, A. C.; BERINI, L. F. (orgs.). A matemática nos anos iniciais do ensino fundamental: Práticas de sala de aula e de formação de professores. Brasília: Sociedade Brasileira de Educação Matemática, 2018. p 138-162.). Mas o mais importante é que a ideia de proporcionalidade subjacente à tarefa não conduz de modo natural e óbvio ao conceito de divisão.

Diante disso, parece-nos que as professoras identificaram um problema de aprendizagem pertinente para o planejamento e desenvolvimento da aula, não dando destaque ao algoritmo da divisão. Porém, na seleção e adaptação da tarefa, ponderamos que a tarefa não possibilitava o desenvolvimento da compreensão da divisão, estimulando outras estratégias de resolução, que distanciavam os alunos desse conceito. A tarefa envolvia mais o conceito de proporcionalidade, que é bem mais complexo do que o de divisão. Desse modo, mesmo que nas reflexões as professoras apontem que a tarefa não produziu o que esperavam e surgiu a necessidade de algumas adaptações (S815; S816), apontamos a necessidade do planejamento de uma nova tarefa, com mais direcionamento ao conceito de divisão, cuidando de alguns princípios relevantes para a seleção de tarefas, como a adequação matemática ao objetivo da aula, o interesse dos alunos e ao nível de dificuldade, as possibilidades de resolução, a aplicação a outros problemas matemáticos (Fujii, 2015FUJII, T. The critical role of task design in lesson Study. In: WATSON, A; OHTANI, M. (eds.). Task design in mathematics education. New York: Springer, 2015. p. 273-286., 2018FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21.).

6 Conclusão

A investigação desenvolvida possibilitou respondermos às questões delineadas na introdução, as quais retomamos, destacando algumas conclusões.

Com relação a como o tópico, o objetivo e as tarefas foram definidos pelas professoras e a relação com as aprendizagens dos alunos, consideramos que neste estudo de aula, a escolha do tópico a ensinar e o delineamento do objetivo da aula estiveram vinculados com as dificuldades dos alunos, com as orientações curriculares e com encaminhamentos docentes em relação à recuperação de aprendizagens matemáticas. Houve muita preocupação por parte das professoras com as dificuldades dos alunos, desencadeadas principalmente pela pandemia, pela defasagem em relação à aprendizagem de conteúdos de anos anteriores, levando a escolha da divisão com números naturais para o planejamento da aula.

Diante disso, a seleção e a adaptação da tarefa não possibilitaram que os alunos atingissem o objetivo previsto para a aula, do mesmo modo que os encaminhamentos durante a execução da aula não possibilitaram que estes percebessem a necessidade do uso da divisão para a resolução da tarefa. Destacamos que a tarefa selecionada e adaptada pelas professoras não desencadeava a compreensão da divisão, como previsto no objetivo, pois abrangia o conceito de proporcionalidade, que é mais complexo do que essa operação (Vergnaud, 2009VERGNAUD, G. A criança, a matemática e a realidade: problemas do ensino da matemática na escola elementar. Curitiba: UFPR, 2009.).

Ponderamos que a vivência em um primeiro estudo de aula gerou aprendizagens importantes para as professoras, principalmente em relação à colaboração entre o grupo no trabalho de planejamento; a discussão das dificuldades e aprendizagens dos alunos; o desafio de pensar tarefas que sejam do interesse do aluno, que tenham um conhecimento matemático e desafio adequado (Fujii, 2015FUJII, T. The critical role of task design in lesson Study. In: WATSON, A; OHTANI, M. (eds.). Task design in mathematics education. New York: Springer, 2015. p. 273-286., 2018FUJII, T. Lesson study and teaching mathematics through problem solving: The two wheels of a cart. In: QUARESMA, M. et al. Mathematics lesson study around the world. New York: Springer, 2018. p. 1-21.); a antecipação das estratégias dos alunos; a condução da aula, considerando as etapas do planejamento e os seus elementos (Ponte; Quaresma; Mata-Pereira, 2015). Porém, para que tais aprendizagens se aprofundem, será necessária a participação em outros estudos de aula, de modo a poder existir efetiva mudança nas práticas profissionais das professoras.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2023
  • Aceito
    30 Ago 2023
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