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Preensões trágicas: Significações de desastres na ação discursiva parlamentar do Legislativo fluminense* * A pesquisa apresentada neste artigo se beneficiou da bolsa Programa Nacional de Pós-Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PNPD-Capes) no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Vila Velha (UVV) (número de processo 88882.317013/2019-01).

Tragic grasps: Significations of disasters in the parliamentary discursive action of the State of Rio de Janeiro’s legislature

Resumos

Este artigo endereça o problema das definições práticas sobre desastres. Apoiado teórica e metodologicamente em linhagens sociológicas orientadas pelo pragmatismo, suas considerações se baseiam na análise da ação discursiva política produzida entre 2010 e 2022 na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro sobre deslizamentos de terra associados a eventos pluviais. O principal resultado encontrado é a relevância da ideia de tragédia como forma de interpretação dos desastres, algo que segue duas vias principais de construção discursiva: a nomeação e a narrativa. O artigo também se engaja em um diálogo teórico crítico com a sociologia pragmática.

Palavras-chave:
Desastre; tragédia; discurso político; preensões; sociologia pragmática


This article addresses the problem of practical definitions of disasters. Theoretically and methodologically supported by pragmatically oriented sociological approaches, its considerations are based on the analysis of political discursive action about landslides associated with pluvial events set between 2010 and 2022 in the Legislative Assembly of the State of Rio de Janeiro. The main finding is the relevance of the idea of tragedy to interpret disasters, something that follows two primary paths of discursive construction: naming and narrative. The article also engages in a critical theoretical dialogue within pragmatic sociology.

Keywords:
Disaster; tragedy; political discourse; grasps; pragmatic sociology


Introdução

Não é raro que desastres socioambientais sejam chamados de tragédias em discussões cotidianas, uma referência que se remete tanto à forma drástica com que afetam as vidas daqueles que os vivenciam quanto ao choque suscitado naqueles que, mesmo em segurança, testemunham os danos. Em outros termos, a identificação do desastre como um fenômeno trágico chama a atenção ao elemento humano, social e existencial presente em tais processos. Na literatura sobre o tema, Pinheiro (2017)PINHEIRO, Marta de Araújo. “O sentido das catástrofes naturais na mídia: Da prevenção à adaptação”. Disertaciones, Armenia, vol. 10, n. 2, pp. 39-55, 2017. já identificou a relevância desse tipo de classificação na cobertura midiática sobre os desastres no estado do Rio de Janeiro, que se valeu recorrentemente do termo “tragédia” ao enfatizar o sofrimento social de afetados e responsabilizar governantes. Contudo, a afinidade entre o fenômeno socioambiental e a tragédia enquanto elemento de significação permanece um tema pouco estudado. Na verdade, isso nos remete à outra questão merecedora de maior atenção na agenda de pesquisa sobre desastres: os processos sociais de definição sobre o que estes são a partir das experiências daqueles que, de algum modo, os vivenciam na prática. Mesmo atravessando o importante debate sobre o conteúdo conceitual de desastre desenvolvido a partir da década de 1980 (QUARANTELLI, 1998QUARANTELLI, Enrico (ed.). What is a Disaster?: Perspectives on the Question. London; New York: Routledge, 1998.), tal questão ainda demanda maior investimento por parte dos interessados em uma abordagem complexa ao tema. O principal objetivo deste trabalho é contribuir para esse esforço. A discussão a seguir se dá na forma de uma investigação sociológica sobre a definição prática de situações de desastre em que a ideia de tragédia aparece como eixo de construção de significado.

Isso será feito a partir da análise de um corpus textual construído com material discursivo elaborado no âmbito da Assembleia Legislativa do Estado Rio de Janeiro (Alerj). Diferentes desastres de grandes proporções têm afetado o estado nos últimos anos, de modo a seus desdobramentos entrarem na pauta da arena pública local e alcançarem as discussões de atores políticos oficiais. O interesse pela forma como os deputados fluminenses interpretam e classificam os desastres se dá pela importância de sua participação na construção de significados políticos sobre o fenômeno, assim como pela compreensão dos modos de apropriação deste em um ambiente político altamente institucionalizado. O foco, portanto, estará centrado sobre a produção política, sobretudo a parlamentar, de definições sobre desastres. A montagem do corpus se baseou em um recorte temporal entre os anos de 2010 e 2022, período em que ocorreram desastres como o do Morro do Bumba (em Niterói, em 2010), da Região Serrana (2011) e de Petrópolis (2012), entre outros. Ela teve base em documentos do processo legislativo hospedados no site da Alerj e se guiou pela menção, nos documentos, de desastres relacionados a deslizamentos de terra e eventos pluviais, tipos de ameaça [hazard] (MATTEDI; BUTZKE, 2001MATTEDI, Marcos Antônio; BUTZKE, Ivani Cristina. “A relação entre o social e o natural nas abordagens de hazards e de desastres”. Ambiente e Sociedade, São Paulo, ano 4, n. 9, pp. 1-22.) recorrentes no estado fluminense (SILVA, 2015SILVA, César Augusto Marques da. “Os desastres no Rio de Janeiro: Conceitos e dados”. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro, n. 8, pp. 55-71, 2015.).1 1 A busca, a seleção e a análise iniciais dos dados entre 2010 e 2018 se deram enquanto procedimento de pesquisa de pós-doutorado do autor por meio da bolsa PNPD-Capes mencionada na nota anterior. Dois trabalhos publicados se utilizaram de dados dentro desse recorte e pontualmente mencionaram a relevância da frequência do termo tragédia em suas análises (MELLO, 2020; MELLO; ROSA, 2018;). Além de reformular aquele enquadramento temporal, o presente artigo se aprofunda nos significados da relação entre esse elemento simbólico e o problema dos desastres. Como apontam Mattedi e Butzke (2001, p.3), a categoria hazards sofre de difícil precisão conceitual. Na presente ocasião me atenho à concepção genérica que a entende relacionada com os efeitos potenciais de eventos físico-materiais em processos de desastre.

Após uma discussão pela literatura interdisciplinar sobre os desastres, a indicação de uma alternativa pragmática como caminho para o desenvolvimento de uma guinada interpretativa à definição daqueles fenômenos será aprofundada na segunda seção. Nela, um quadro de referência teórico é construído com recurso a diferentes alternativas conceituais, pragmatisticamente orientadas. A ele é integrada uma discussão sobre meios e carreiras parlamentares, elementos fundamentais para a compreensão da maneira como a ideia de tragédia é apropriada no corpus descrito.

O alargamento do conceito de preensão [prise] desenvolvido originalmente por Bessy e Chateauraynaud (1995)BESSY, Christian; CHATEAURAYNAUD, Francis. Experts et faussaires: Pour Une Sociologie de la perception. Paris: Métailié, 1995. será decisivo para o estudo mais detido no corpus na quarta seção, que sucede à descrição da montagem do conceito e a algumas observações preliminares no terceiro tópico.2 2 O recurso ao termo preensão, introduzido como opção da língua portuguesa para o conceito de prise na tradução de Diogo Silva Corrêa ao texto “L’Épreuve du tangible” [“A prova do tangível”], de Chateauraynaud (2018), justifica-se por ela captar bem a ideia de uma aderência entre o ator social e o mundo à sua volta. O que se expressa é um gesto de contato por meio do qual o ator participa do mundo ao mesmo tempo em que o mundo opera sobre ele. A análise do material discursivo se beneficia do uso do software Prospéro, elaborado a partir de uma concepção metodológica alinhada à sociologia pragmática. Com auxílio do Prospéro, observaram-se as categorias de entidades e testes [épreuves] mobilizadas nos documentos, o que permitiu identificar, em primeiro lugar, a relevância da ideia de tragédia para a caracterização dos desastres naquele universo e, em segundo lugar, que essa forma trágica de definição tomou duas vias específicas: a nomeação e a narrativa.3 3 Um dos conceitos centrais da sociologia pragmática produzida na França, épreuve tem sido traduzido ao português por meio de termos como prova, provação ou teste. Considero a terceira alternativa mais adequada para afastar a carga negativa de provação e para evitar confusão com outro conceito, preuve (referente às evidências fornecidas pelos atores em situações de teste - ver BOLTANSKI, 1990: p.46), este sim a ser chamado de prova neste artigo. Como pontuado no terceiro tópico, essa análise observa a inclinação pragmática a compreender os termos dos próprios atores, construindo sobre elas interpretações de segundo grau (BOLTANSKI, 1990BOLTANSKI, Luc. L’Amour et la justice comme compétences: Trois essais de sociologie de l’action. Paris: Métailié, 1990.).

As maneiras como diferentes configurações de preensão tomam lugar entre carreiras e meios parlamentares contribui para o entendimento da forma política como essa significação pela tragédia ganha contornos no contexto estudado. Por meio do que chamo de preensões externas, formas individuais de apropriação e participação nos problemas coletivamente debatidos, os parlamentares aderem a uma preensão comum que define os desastres como tragédias ao mesmo tempo em que se colocam diante de tais situações. A significação trágica favorece o posicionamento político dos parlamentares e o exercício de suas críticas em torno de contextos desastrosos. No curso da discussão, a inflexão trágica às preensões sobre o desastre também indica a importância do reconhecimento das faces expressiva e existencial dos debates em torno de problemas públicos pela sociologia pragmática.

Desastres, suas definições e significados

Entre as décadas de 1980 e 2000 o campo interdisciplinar de estudos sobre desastres se dedicou à reflexão concentrada sobre uma questão conceitual desafiante: o que é, propriamente, um desastre? Quais são as características básicas para que uma ocorrência empírica possa receber tal designação? Motivados por essa indagação, vários autores engajaram-se em um diálogo coletivo, disperso entre coletâneas e artigos (OLIVER-SMITH, 1999OLIVER-SMITH, Anthony. “What Is a Disaster?: Anthropological Perspectives on a Persistent Question”. In: OLIVER-SMITH, Anthony; HOFFMAN, Susanna. (org.). The Angry Earth: Disaster in Anthropological Perspective. London; New York: Routledge, 1999. pp. 18-34.; PERRY, 2007PERRY, Ronald. “What is a Disaster?” In: RODRÍGUEZ, Havidán; QUARANTELLI, Enrico; DYNES, Russell (ed.). Handbook of Disaster Research. New York: Springer, 2007. pp. 1-15.; PERRY; QUARANTELLI, 2005PERRY, Ronald; QUARANTELLI, Enrico (ed.). What is a Disaster?: New Answers to Old Questions. Philadelphia: Xlibris, 2005.; QUARANTELLI, 1989QUARANTELLI, Enrico. “Conceptualizing Disasters from a Sociological Perspective”. International Journal of Mass Emergencies and Disasters, Thousand Oaks, CA, vol. 7, n. 3, pp. 243-251, 1989.). Uma das linhas de argumentação apresentadas nesse debate específico merece maior atenção no presente trabalho: o tipo de resposta do pesquisador que se questiona sobre o que é um desastre variará de acordo com a sua postura epistemológica. Apesar da aparente obviedade, essa consideração guarda consequências importantes ao desenvolvimento da pesquisa sobre o tema.

Ela é tratada em maior profundidade por Kroll-Smith e Gunter (1998)KROLL-SMITH, Steve; GUNTER, Valerie Jan. “Legislators, Interpreters, and Disasters: The Importance of How and as Well as What is a Disaster”. In: QUARANTELLI, Enrico (ed.). What Is a Disaster?: Perspectives on the Question. London; New York: Routledge, 1998. pp. 161-177., para quem existiriam duas posturas básicas a serem adotadas por aqueles ocupados com tal tarefa. Os legisladores seriam aqueles analistas que “formulam ideias sobre a sociedade independentes dos significados, esperanças, expectativas e crenças das pessoas ordinárias” (KROLL-SMITH; GUNTER, 1998KROLL-SMITH, Steve; GUNTER, Valerie Jan. “Legislators, Interpreters, and Disasters: The Importance of How and as Well as What is a Disaster”. In: QUARANTELLI, Enrico (ed.). What Is a Disaster?: Perspectives on the Question. London; New York: Routledge, 1998. pp. 161-177., p. 163)4 4 A tradução dessa citação e das demais retiradas de publicações em outras línguas que não o português e presentes neste artigo são do autor do mesmo. . Os dois autores não se referem aqui aos atores políticos representantes do Poder Legislativo (aqueles sobre os quais nos debruçaremos adiante), mas a um tipo de construção de pesquisa que pode ser adotada por estudiosos dos desastres. Em contraste, a postura dos intérpretes seria aquela que opta pelas “experiências locais, pessoais e subjetivas dos desastres” (KROLL-SMITH; GUNTER, 1998KROLL-SMITH, Steve; GUNTER, Valerie Jan. “Legislators, Interpreters, and Disasters: The Importance of How and as Well as What is a Disaster”. In: QUARANTELLI, Enrico (ed.). What Is a Disaster?: Perspectives on the Question. London; New York: Routledge, 1998. pp. 161-177., p. 165), buscando compreender os processos de construção de significado em torno do fenômeno. Desde a consolidação do campo de estudo sobre desastres, a postura legisladora desfrutaria de uma margem de influência muito maior do que a dos intérpretes. Diante de tal prevalência, Kroll-Smith e Gunter (1998KROLL-SMITH, Steve; GUNTER, Valerie Jan. “Legislators, Interpreters, and Disasters: The Importance of How and as Well as What is a Disaster”. In: QUARANTELLI, Enrico (ed.). What Is a Disaster?: Perspectives on the Question. London; New York: Routledge, 1998. pp. 161-177., p. 177) concluem a necessidade de maior investimento em esforços interpretativos. Isso diminuiria a verticalidade do campo, reconfigurando-o, em alguma medida, a partir da voz das experiências daqueles que presenciam os desastres.

O que Kroll-Smith e Gunter diagnosticaram em 1998 não mudou consideravelmente até os dias de hoje. Iniciativas nomológicas, ou forenses, que equalizam a definição do fenômeno com a estipulação de princípios objetivos de categorização continuam a predominar no arcabouço teórico dos estudos sobre desastres. Esse é o caso de correntes como o pressure and release model (PAR) e as forensic investigations of disasters (FORIN), as quais, mesmo abraçando uma concepção complexa da pluricausalidade dos desastres (ao que concorrem fatores naturais, sociais e históricos), não incluem em seus edifícios conceituais uma preocupação acentuada com as perspectivas das pessoas neles envolvidas ou por eles afetadas (OLIVER-SMITH et al., 2016OLIVER-SMITH, Anthony; ALCÁNTARA-AYALA, Irasema; BURTON, Ian; LAVELL, Allan. Forensic Investigations of Disasters: A Conceptual Framework and Guide to Research. Beijing: IRDR, 2016.; WISNER et al., 2004WISNER, Ben; BLAIKIE, Piers; CANNON, Terry; DAVIS, Ian. At Risk: Natural Hazards, People’s Vulnerability and Disasters. 2. ed. London; New York: Routledge, 2004 [1994]. [1994], WISNER; GAILLARD; KELMAN, 2012aWISNER, Ben; GAILLARD, Jean-Christophe; KELMAN, Ilan. “Framing disaster: theories and stories seeking to understand hazards, vulnerability and risk”. In: WISNER, Ben; GAILLARD, Jean-Christophe; KELMAN, Ilan (ed.). The Routledge Handbook of Hazards and Disaster Risk Reduction. London; New York: Routledge, 2012a. pp. 18-33.). Em ambas as abordagens, o elemento social a participar dos processos desastrosos é tratado de forma excessivamente estrutural. Ora, as causas raiz ou pressões dinâmicas inventariadas pelo PAR (WISNER; GAILLARD; KELMAN, 2012aWISNER, Ben; GAILLARD, Jean-Christophe; KELMAN, Ilan. “Framing disaster: theories and stories seeking to understand hazards, vulnerability and risk”. In: WISNER, Ben; GAILLARD, Jean-Christophe; KELMAN, Ilan (ed.). The Routledge Handbook of Hazards and Disaster Risk Reduction. London; New York: Routledge, 2012a. pp. 18-33., p. 22 ss.; WISNER et al., 2004WISNER, Ben; BLAIKIE, Piers; CANNON, Terry; DAVIS, Ian. At Risk: Natural Hazards, People’s Vulnerability and Disasters. 2. ed. London; New York: Routledge, 2004 [1994]. [1994], pp. 48-53), que determinariam as condições de vulnerabilidade distribuídas de modo desigual na sociedade, não moldam direta e irrefreavelmente as ações individuais ou coletivas. Podemos assumir uma concepção sociológica que toma a disposição como algo efetivado por meio da participação ativa dos atores nas relações sociais, na elaboração de suas próprias respostas aos problemas das rotinas coletivas que atravessam (BECKER, 1991BECKER, Howard. Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. New York: The Free Press, 1991 [1963]. [1963], pp. 57-58). Mesmo de forma assimétrica, essas respostas, sejam elas experts ou leigas, participarão da qualificação do desastre ocorrido, da busca por soluções de curto a longo prazo aos problemas por ele despertados e, possivelmente, da elaboração de medidas preventivas voltadas a futuras ocorrências. Ou seja, as maneiras como as pessoas vivenciam e interpretam, elas mesmas, as experiências desastrosas influenciam na construção dos desastres como processos socioambientais.

A reflexividade e a indeterminação relativa (LEMIEUX, 2011LEMIEUX, Cyril “Jugements en action, actions en jugement: Ce Que La Sociologie des épreuves peut apporter à l’étude de la cognition”. In: CLÉMENT, Fabrice; KAUFMANN, Laurence (ed.). La Sociologie cognitive. Paris: Éditions de la Maison des sciences de l’homme, 2011. pp. 249-274. (Cogniprisme)., p. 265) atreladas a essas respostas contribuem para o alto grau de complexidade dos desastres. Por isso, os estudos sobre desastres em geral, e a sociologia dos desastres em particular, não pode renunciar a ferramentas analíticas afinadas às construções de significado que os próprios atores desenvolvem a partir de suas experiências do fenômeno. A presença limitada de tais ferramentas em mapeamentos recentes da literatura aponta para uma disponibilidade insatisfatória de alternativas conceituais e metodológicas sistematizadas oferecidas a elas (MARCHEZINI, 2017MARCHEZINI, Victor. “As ciências sociais nos desastres: Um campo de pesquisa em construção”. Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB), São Paulo, n. 83, pp. 43-71, 2017.; TIERNEY, 2019TIERNEY, Kathleen. Disasters: A Sociological Approach. Cambridge, MA: Polity, 2019.). No restante deste tópico, destaco duas abordagens sociológicas que têm logrado nesse sentido.

Para a sociologia cultural de Jeffrey Alexander, os discursos construídos em torno da figura do risco de desastres na modernidade contemporânea expressariam uma forma secularizada de proteção do sagrado - a integração sistêmica do grupo - contra o profano - ameaças que assombram a trajetória da sociedade industrial (ALEXANDER; SMITH, 1996ALEXANDER, Jeffrey; SMITH, Phillip. “Social Science and Salvation: Risk Society as Mythical Discourse”. Zeitschrift für Soziologie, Berlin, vol. 25, n. 4, pp. 251-262, 1996.). Para comunicar a extensão dos danos materiais e do sofrimento social e psíquico originados em desastres, assim como para demandar reconhecimento e reparações, os atores sociais precisam transformar um evento traumático em uma robusta instância de profanação (ALEXANDER, 2002ALEXANDER, Jeffrey. “On the Social Construction of Moral Universals: The ‘Holocaust’ from War Crime to Trauma Drama”. European Journal of Social Theory, Thousand Oaks, CA, vol. 5, n. 1, pp. 5-85, 2002., p. 10). Alexander (2004ALEXANDER, Jeffrey. “Cultural Pragmatics: Social Performance between Ritual and Strategy”. Sociological Theory, Thousand Oaks, CA, vol. 22, n. 4, pp. 527-573, 2004., p. 547) estabelece que tal transição depende de uma performance mais ou menos ritualizada, que promova a identificação psicológica e extensão cultural entre seu autor/ator, o texto e a audiência. Para seu sucesso, contam, entre outros fatores, a habilidade performática do ator e a qualidade da narrativa que dá sentido à mensagem veiculada ao público. De tal maneira, para a definição social do desastre, o perfil das ameaças, ou a extensão dos danos sofridos, importa menos do que a força das performances culturais que representam tais elementos como ofensas à dimensão moral coletiva (ALEXANDER, 2004ALEXANDER, Jeffrey. “Cultural Pragmatics: Social Performance between Ritual and Strategy”. Sociological Theory, Thousand Oaks, CA, vol. 22, n. 4, pp. 527-573, 2004.; EYERMAN, 2015EYERMAN, Ron. Is This America?: Katrina as Cultural Trauma. Austin: University of Texas Press, 2015.).

Francis Chateauraynaud também entende que a definição de um desastre passa por construções coletivas que conferem significados a experiências, mas seu modelo de análise segue outros parâmetros. Um dos principais nomes da segunda geração da sociologia pragmática na França, o sociólogo expandiu o compromisso inicial daquela corrente em compreender o senso de justiça dos atores sociais, abarcando também seus sensos de realidade e de conhecimento (CHATEAURAYNAUD; DEBAZ, 2017CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin. Aux Bords de l’irréversible: Sociologie pragmatique des transformations. Paris: PETRA, 2017., p. 135; CORRÊA, 2023CORRÊA, Diogo Silva. Anjos de fuzil: Uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2023., p. 543; MELLO, 2019MELLO, Fabrício Cardoso de. “As transformações de Francis Chateauraynaud: Percepção e reflexividade na segunda onda da sociologia pragmática francesa”. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 1, pp. 159-184, 2019., pp. 168-169). Esse gesto teórico se beneficiou da pesquisa sobre trajetórias de conflitos em torno de desastres e emergências sanitárias na França e alhures (CHATEAURAYNAUD; DEBAZ, 2017CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin. Aux Bords de l’irréversible: Sociologie pragmatique des transformations. Paris: PETRA, 2017.; CHATEAURAYNAUD; TORNY, 2013CHATEAURAYNAUD, Francis; TORNY, Didier. Les Sombres précurseurs: Une Sociologie pragmatique de l’alerte et du risque. Paris: EHESS, 2013 [1999]. [1999]). Tal esforço articulou, em um modelo longitudinal de análise, a tradição interacionista de acompanhamento de problemas públicos à sociologia da percepção por ele inicialmente proposta em parceria com Christian Bessy (BESSY; CHATEAURAYNAUD, 1995BESSY, Christian; CHATEAURAYNAUD, Francis. Experts et faussaires: Pour Une Sociologie de la perception. Paris: Métailié, 1995.). No centro desta, deparamo-nos com o conceito de preensão, que caracteriza o encontro ontoformativo entre dobras e pontos de referência, percepções e representações, e que possibilita tanto o acordo quanto as disputas sobre as propriedades de toda sorte de objetos presentes nas relações sociais (BESSY; CHATEAURAYNAUD, 1995BESSY, Christian; CHATEAURAYNAUD, Francis. Experts et faussaires: Pour Une Sociologie de la perception. Paris: Métailié, 1995., p. 239; CHATEAURAYNAUD; DEBAZ, 2017CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin. Aux Bords de l’irréversible: Sociologie pragmatique des transformations. Paris: PETRA, 2017., pp. 606-607; MELLO, 2019MELLO, Fabrício Cardoso de. “As transformações de Francis Chateauraynaud: Percepção e reflexividade na segunda onda da sociologia pragmática francesa”. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 1, pp. 159-184, 2019., p. 163 ss., 2022, pp. 262-263). Posto de outra forma, as preensões são nexos saturados de sentido e sensibilidade por meio dos quais os atores apreendem parcelas do mundo ao mesmo tempo em que aderem a ele. Ao excederem as situações singulares em que são originadas e frequentarem um espectro ampliado de relações, elas se tornam preensões comuns (BESSY; CHATEAURAYNAUD, 1995BESSY, Christian; CHATEAURAYNAUD, Francis. Experts et faussaires: Pour Une Sociologie de la perception. Paris: Métailié, 1995., p. 252; CHATEAURAYNAUD, 2011CHATEAURAYNAUD, Francis. Argumenter Dans Un Champ de force: Essai de balistique sociologique. Paris: PETRA, 2011. (Pragmatismes)., p. 259) e passam a figurar como apoios evidentes para a caracterização de objetos de natureza variável.

Chateauraynaud adere a uma concepção mesológica de plano de imanência (numa heurística genérica, não deleuziana do termo) a fundar os encontros entre pessoas e objetos (BESSY; CHATEAURAYNAUD, 1995BESSY, Christian; CHATEAURAYNAUD, Francis. Experts et faussaires: Pour Une Sociologie de la perception. Paris: Métailié, 1995., p. 66; CHATEAURAYNAUD, 2011CHATEAURAYNAUD, Francis. Argumenter Dans Un Champ de force: Essai de balistique sociologique. Paris: PETRA, 2011. (Pragmatismes)., p. 299; CHATEAURAYNAUD; DEBAZ, 2017CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin. Aux Bords de l’irréversible: Sociologie pragmatique des transformations. Paris: PETRA, 2017., pp. 601-602; MELLO, 2019MELLO, Fabrício Cardoso de. “As transformações de Francis Chateauraynaud: Percepção e reflexividade na segunda onda da sociologia pragmática francesa”. Sociologia e Antropologia, Rio de Janeiro, vol. 9, n. 1, pp. 159-184, 2019., p. 170). Partindo de tal aporte, o autor vê como característica primária do desastre (ou catástrofe, termo privilegiado pela literatura francesa) a perda de preensões coletivas daqueles que os sofrem (CHATEAURAYNAUD; TORNY, 2013CHATEAURAYNAUD, Francis; TORNY, Didier. Les Sombres précurseurs: Une Sociologie pragmatique de l’alerte et du risque. Paris: EHESS, 2013 [1999]. [1999], p. 27), uma fratura entre eles e os meios [milieux] (CHATEAURAYNAUD, 2011CHATEAURAYNAUD, Francis. Argumenter Dans Un Champ de force: Essai de balistique sociologique. Paris: PETRA, 2011. (Pragmatismes)., pp. 301-304) onde habitam e transitam. As rupturas vivenciadas nessas situações destroem os suportes sensíveis e simbólicos das pessoas que as atravessam, de modo que elas se veem destituídas do manejo que desfrutavam sobre seu lugar no mundo. A perda de preensões é a deixa para o lançamento, nas arenas públicas, de empreendimentos que visam à sua recuperação, ou, ao menos, algum grau de reconfiguração do estado de coisas deixado pelo desastre. Ao lutar para influenciar a preensão publicamente compartilhada sobre o desastre, um determinado ator pode aumentar o horizonte para (re)estabelecer suas próprias preensões afetadas por aquele evento.

A referência a Alexander põe em evidência alguns pontos fortes e problemáticos de Chateauraynaud. Ao contrário do primeiro, para o francês, a construção coletiva de significados sobre os desastres não ocorre, necessariamente, sob o protagonismo de apenas uma dimensão da experiência (a moral), o que lhe permite enxergar com mais clareza a pluralidade e a não linearidade dos processos sociais. Assim, para ele, dinâmicas perceptivas e corpóreas se imiscuem com a produção discursivo-simbólica na categorização dos atores sobre os processos desastrosos. Nas páginas seguintes endereçarei a questão da definição prática dos desastres a partir da sociologia pragmática, inspirado em - mas não limitado a - Chateauraynaud. Contudo, convém notar que o elemento dramático da sociologia cultural lança luz sobre uma deficiência da abordagem desse autor. Ainda que reconheça a comunicação humana como uma atividade discursiva intrincada, sua análise das transformações dos problemas públicos concentra atenção na argumentação enquanto modalidade interativa em detrimento de alternativas igualmente relevantes. Em vista disso, na quarta seção do artigo explorarei características do processo de significação de desastres por representantes legislativos não limitadas ao elemento argumentativo. Para chegarmos em tal ponto, na próxima seção atravessaremos uma reflexão sobre a relação entre desastres, ação discursiva e carreira política.

Os desastres a partir do Legislativo: Carreiras e preensões

Como apontou Perry (2007PERRY, Ronald. “What is a Disaster?” In: RODRÍGUEZ, Havidán; QUARANTELLI, Enrico; DYNES, Russell (ed.). Handbook of Disaster Research. New York: Springer, 2007. pp. 1-15., p. 20), a tarefa de definir o que é um desastre não é um exercício puramente epistemológico, mas também político, visto a necessidade da parte de agentes públicos de uma orientação sobre a natureza do fenômeno para a elaboração de medidas e políticas especializadas. As vias de apreensão desses atores sobre elementos como as origens e causas dos desastres, os tipos de impacto material e imaterial reconhecidos, a população afetada e as formas de interagir com ela influenciam sobejamente na condução política do enfrentamento das crises e emergências5 5 O peso das diferentes interpretações dos agentes públicos na apreciação de objetos presentes em suas atuações não se restringe ao problema dos desastres, como mostram Jesus e Gomes (2021) em discussão sobre o sistema de justiça criminal brasileiro. . No caso brasileiro, Valencio (2014VALENCIO, Norma. “Desastres: Tecnicismo e sofrimento social”. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 19, n. 9, pp. 3631-3644, 2014., pp. 3633-3637) nos mostra como, ao longo de décadas, vem se desenvolvendo entre os órgãos de defesa civil, do nível nacional ao local, um modo interpretativo que encara os desastres a partir de um ponto de vista tecnicista e instrumental. Haveria aqui, portanto, características específicas a esse setor do Estado na gestão de seu objeto principal, relacionadas, entre outros fatores, à associação entre um tipo de formação expert e um paradigma de defesa civil emergente no contexto do pós-Segunda Guerra, o qual, por sua vez, identifica o desastre com um tipo de agressão bélica (VALENCIO, 2014VALENCIO, Norma. “Desastres: Tecnicismo e sofrimento social”. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 19, n. 9, pp. 3631-3644, 2014., pp. 3632-3634).

Com isso em mente, é relevante analisarmos como atores participantes do aparato estatal mobilizam em suas atuações eventos desastrosos ocorridos ou potenciais e como se engajam na contínua elaboração de significados em torno deles. Um ponto fundamental levantado pela consideração acima é a esterilidade em se tomar o Estado, suas agências e órgãos, como entidades abstratas. A partir da mirada pragmática, a clássica definição formal do Estado por Weber enquanto instituição burocrática que detém o monopólio da força e da violência legítimas demandará sempre uma contextualização situacional a ser fornecida pela pesquisa empírica (LINHARDT, 2012LINHARDT, Dominique. “Avant-propos: Épreuves d’Etat”. Quaderni, Paris, vol. 2, n. 78, pp. 5-22, 2012., pp. 6-7). Participante destacado das arenas públicas, o Estado e seus órgãos são continuamente convocados a se manifestar diante de problemas sociais e políticos desenhados no jogo coletivo entre deliberação e conflito, negociação e contestação (CEFAÏ, 2016CEFAÏ, Daniel. “Publics, problèmes publics, arènes publics: Que Nous Apprend Le Pragmatisme?” Questions de communication, Paris, vol. 2, n. 30, pp. 25-64, 2016. Dossiê. Arènes du débat public.; LINHARDT, 2012LINHARDT, Dominique. “Avant-propos: Épreuves d’Etat”. Quaderni, Paris, vol. 2, n. 78, pp. 5-22, 2012., p. 9). A análise da ação estatal, portanto, deve se interessar pela forma como o Estado se manifesta diante de crises, escândalos e controvérsias, pois essas respostas reconfiguram, em medida variável, suas conformações enquanto instituição e núcleo de relações.

Ao enveredarem pela dimensão política dos desastres, os estudos interdisciplinares sobre o tema no Brasil e no mundo têm privilegiado a pesquisa sobre a atuação de agentes ligados ao Poder Executivo, com destaque aos órgãos de defesa civil, como ilustra a referência a Valencio.6 6 O Routledge Handbook of Hazards and Disaster Risk Reduction (WISNER; GAILLARD; KELMAN, 2012b), embora dedique capítulos específicos aos níveis da administração do desastre (internacional, nacional e local), não oferece o mesmo tratamento às diferentes esferas de poder. Isso se justifica pela dianteira mormente assumida por entidades ligadas ao Executivo na resposta à eclosão de crises socioambientais que seguem na esteira de eventos desastrosos, visto serem elas as responsáveis pela implementação imediata das políticas da área de defesa civil. Contudo, a atividade de produção dessas políticas no âmbito Legislativo também merece nossa atenção. Os dispositivos disponíveis atinentes à regulação da gestão de riscos e desastres são revisados e a validade de novos instrumentos é debatida nessa instância, na qual também se faz o controle e fiscalização da ação executiva. Vale ressaltar que aqui não se desconsidera que, devido à configuração constitucional brasileira, várias dessas prerrogativas não são exclusivas do Legislativo estadual (TOMIO; RICCI, 2012TOMIO, Fabrício Ricardo de Limas; RICCI, Paolo. “O governo estadual na experiência política brasileira: Os desempenhos legislativos das assembleias estaduais”. Revista de Sociologia Política, Curitiba, vol. 20, n. 41, pp. 193-217, 2012., p. 200). Essa indicação pondera sua margem de autonomia sem, contudo, nulificar sua importância ao olhar interessado sobre a produção de políticas públicas voltadas aos riscos e os desastres.

Mas essa reflexão não precisa se deter no plano da ação organizacional de entidades ou setores do Estado em sua totalidade. Quando, no curso do enfrentamento desses problemas públicos, olhamos para dentro do Estado e diminuímos a escala de análise ao nível individual, encontramos seus membros seguindo cursos de ação traçados entre o campo político, sua institucionalidade e a construção de percursos pessoais. O conceito de carreira, desenvolvido pelo interacionismo simbólico, capta bem esse tipo de investimento longitudinal, em que “um lado é ligado a questões internas, […] tais como a imagem do self e a identidade de si; o outro lado é ligado a posições oficiais, relações jurídicas e estilo de vida, e é parte de um complexo institucional publicamente acessível” (GOFFMAN, 1961GOFFMAN, Erving. Asylums: Essays on the Social Situations of Mental Patients and Other Inmates. New York: Anchor, 1961., p. 127).

As carreiras são percursos ao mesmo tempo biográficos e institucionais que os indivíduos trilham ao assumirem papéis específicos em diferentes contextos sociais. A elas estão atrelados padrões de comportamento relativamente flexíveis que orientam tanto o indivíduo na ocupação de seu papel quanto as expectativas de terceiros sobre sua conduta. Mas as carreiras são moldadas na prática pela participação dos atores nas questões problemáticas a elas endereçadas. Em sua clássica discussão sobre o conceito, Becker (1991BECKER, Howard. Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. New York: The Free Press, 1991 [1963]. [1963], p. 102) estabelece que “as linhas de carreira específicas de uma ocupação ganham forma a partir dos problemas peculiares àquela ocupação”. Sem embargo, autores como Goffman e o próprio Becker nos lembram que não são apenas as questões coletivas que apresentam desafios práticos ou, como conceitualiza a sociologia pragmática francesa (BOLTANSKI, 1990BOLTANSKI, Luc. L’Amour et la justice comme compétences: Trois essais de sociologie de l’action. Paris: Métailié, 1990., p. 96 ss.; CHATEAURAYNAUD, 1991CHATEAURAYNAUD, Francis. La Faute professionelle: Une Sociologie des conflits de responsabilité. Paris: Métailié, 1991., p. 165 ss., 2011, cap. 6), testes aos atores.7 7 Becker (1991 [1963], pp. 111-112) acena nessa direção ao abordar as autoinvestigações de músicos despertadas por dilemas que encontram em suas carreiras. As carreiras são eixos permeados por pontos de conversão entre problemas da vida em grupo (por meio dos tipos de papel ou ocupação que as definem) e problemas da vida individual, que não apenas se comunicam, mas que podem transitar de um lado a outro dos limites subjetivos intrapessoais. Encaro, portanto, o aspecto subjetivo das carreiras não simplesmente como interpretações predispostas por experiências passadas (STEBBINS, 1970STEBBINS, Robert A. “Career: The Subjective Approach”. The Sociological Quarterly, London, vol. 11, n. 1, pp. 32-49, 1970., pp. 34-35), mas como a passagem a uma ecologia íntima de problemas simétrica à arena pública (CORRÊA, 2023CORRÊA, Diogo Silva. Anjos de fuzil: Uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2023.).

Considerando isso, elas oferecem um suporte privilegiado para o desdobramento do conceito de preensão de Chateauraynaud além do gradiente singular/geral, que originalmente baliza a formação de preensões comuns. Podemos, assim, dar-lhe inclinação existencial ao falarmos em preensões internas, que entram em pauta quando os indivíduos buscam responder aos seus problemas intrassubjetivos, e preensões externas, que eles apresentam quando lançam suas próprias perspectivas em um esforço de preensão comum com as outras entidades em seu meio (MELLO, 2022MELLO, Fabrício Cardoso de. “On the Material Supports of Subjectivity: Mead, the Self, and the New Mastery of Nature”. Social Science Information, Thousand Oaks, CA, vol. 61, n. 2-3, pp. 245-270, 2022., p. 263 ss.).8 8 A primeira distinção entre preensões internas e externas tem como referência uma discussão sobre coletividades (MELLO, 2017). Na presente ocasião dou continuidade ao desenvolvimento dos conceitos enquanto ferramentas para análise no âmbito individual (MELLO, 2020, 2022), sistematizando seu elo com elementos biográficos e existenciais e sua relação com as preensões comuns. Em Mello (2022) é indicado que a distinção analítica entre preensões internas e externas é referencial. Suas noções de interioridade e externalidade tomam como parâmetro o ator a quem elas são empregadas. Ainda que no presente artigo a mobilização desses conceitos esteja concentrada em diálogo com Chateauraynaud, aquele outro trabalho explicita a influência recebida de Mead em suas diferentes faces (jamesiana, deweyana e whiteheadiana). Nesse caso, a ação toma lugar no gradiente íntimo/manifesto. Assim como deve ser impensável remover as referências e suportes sociais que informam a elaboração de preensões internas, não devemos contemplar a eliminação dos traços de subjetividade que as preensões externas de um indivíduo aportam ao coletivo. Dessa forma, quando ingressa em uma carreira, uma pessoa estará renovando o arranjo de problemas e preensões internas que constituem sua subjetividade, assim como estará contribuindo e aderindo à construção de uma ordem coletiva.

O Diagrama 1 expressa imageticamente a relação entre as carreiras e os diferentes tipos de preensões citados. Uma primeira observação é que, a partir de uma visão relacional, assume-se certo grau de continuidade ontológica entre o indivíduo e seu meio. Preensões internas ocorrem no domínio interior do indivíduo, envolvendo o self, a autopercepção e tomando como objeto a(s) própria(s) noção(ões) de si do sujeito (MELLO, 2022MELLO, Fabrício Cardoso de. “On the Material Supports of Subjectivity: Mead, the Self, and the New Mastery of Nature”. Social Science Information, Thousand Oaks, CA, vol. 61, n. 2-3, pp. 245-270, 2022., p. 263). Com base em Mead (1972MEAD, George Herbert. The Philosophy of the Act. Chicago: The University of Chicago Press, 1972 [1938]. [1938], pp. 103 ss., 183-185, 548) e Simondon (2017SIMONDON, Gilbert. L’Individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: Millon, 2017 [2005]. [2005], pp. 23-36), entende-se que toda individualidade abriga uma multitude de perspectivas, de maneira que a preensão interna estabelece uma metaestabilidade mais ou menos durável nos arranjos entre elas, suportando assim a noção de si de uma pessoa no fluxo das relações sociais. Preensões externas são construídas na relação direta entre o indivíduo e o meio; são a forma como o primeiro participa e se apropria dos problemas que transitam entre si e outras entidades humanas ou não humanas. Seus objetos não alcançam, a princípio, as noções de si no núcleo íntimo do ator. Nem sempre estão atreladas a carreiras (o leitor pode imaginar o diagrama sem as linhas que formam a coluna central), mas comumente assim ocorre em ambientes institucionalizados. Em tais espaços, as carreiras promovem uma distribuição especializada de problemas e objetos a serem trabalhados pela preensão externa. Por fim, preensões comuns estabelecem um senso compartilhado coletivamente sobre determinado objeto (BESSY; CHATEAURAYNAUD, 2014BESSY, Christian; CHATEAURAYNAUD, Francis. “L’Attention aux choses: Chemins pragmatiques de l’authenticité”. In: BESSY, Christian; CHATEAURAYNAUD, Francis. Experts et faussaires: Pour une sociologie de la perception. 2. ed. Paris: Pétra, 2014. pp. 431-499. (Pragmatismes)., p. 434), um quadro classificatório relativamente bem difundido em um meio que serve como parâmetro para a ontologia prática de definir o que algo é ou não é (mas que além de referências ontológicas abarca também elementos epistemológicos, morais, expressivos e existenciais - como veremos à frente). A metaestabilidade de preensões comuns se (re)forma via fricção, amálgama e encapsulamento entre as preensões trazidas à vida coletiva pelas diferentes entidades que habitam e transitam nos meios.

Diagrama 1
Relação entre carreiras, preensões e meios9 9 O diagrama reconfigura a dinâmica entre preensões internas e externas apresentada em Mello (2017, p. 200).

Pela natureza do problema central deste trabalho, é sobre o deslocamento de políticos entre preensões externas e preensões comuns no exercício de suas carreiras que nos concentraremos em primeiro plano. Assim sendo, é importante pontuar algumas características específicas da carreira do representante político no Estado, em especial aquela no Legislativo. Retomo no restante desta seção, sob nova luz, alguns aspectos por mim já apontados outrora (MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., pp.150-158). Um dos testes mais importantes para o sucesso nesse tipo de carreira é a tríplice mediação que o representante precisa realizar, a partir das ações em seu cargo, entre os complexos normativos institucionais que regem os ambientes ritualizados da política estatal, as demandas e expectativas de outros atores do campo político e da população e os próprios objetivos do percurso individual que se esforça por construir (BAYLEY, 2004BAYLEY, Paul. “Introduction: The Whys and Wherefores of Analyzing Parliamentary Discourse”. In: BAYLEY, Paul (ed.). Cross-Cultural Perspectives in Parliamentary Discourse. John Benjamins: Amsterdam; Philadelphia, 2004. pp. 1-44., p. 14; KUSCHNIR, 2000aKUSCHNIR, Karina. Eleições e representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000a., p. 11, 2000b, p. 55 ss.; MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., pp. 154-157; MELLO; ROSA, 2018MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva. Desastres relacionados a deslizamentos de terra nos discursos do Legislativo fluminense, 2011-2018. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 42., 2018, Caxambu, MG. Anais […]. São Paulo: ANPOCS, 2018., pp. 12-13).

As casas legislativas fornecem contextos altamente disciplinados para a atuação dos parlamentares, que precisam observar as instruções legais e normativas de dispositivos, que vão das constituições federal e estaduais aos regimentos internos de cada assembleia (BAYLEY, 2004BAYLEY, Paul. “Introduction: The Whys and Wherefores of Analyzing Parliamentary Discourse”. In: BAYLEY, Paul (ed.). Cross-Cultural Perspectives in Parliamentary Discourse. John Benjamins: Amsterdam; Philadelphia, 2004. pp. 1-44., p. 14; MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., pp. 154-155; MELLO; ROSA, 2018MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva. Desastres relacionados a deslizamentos de terra nos discursos do Legislativo fluminense, 2011-2018. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 42., 2018, Caxambu, MG. Anais […]. São Paulo: ANPOCS, 2018., p. 12). Ao mesmo tempo, o parlamentar está inserido em malhas de alianças e oposições tecidas com os colegas do Legislativo, atores do Executivo, partidos políticos, sindicatos, movimentos sociais, empresas, entre outros agrupamentos na arena pública (MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., pp. 155-156). A aliança com o eleitorado, ou a “base”, desses representantes figura entre aquelas mais importantes, uma vez que é este grupo que, em última instância, chancela a continuidade da carreira política ao longo dos sucessivos ciclos eleitorais (ANASTASIA; CORREA; NUNES, 2012ANASTASIA, Fátima; CORREA, Izabela; NUNES, Felipe “Caminhos, veredas e atalhos: Legislativos estaduais e trajetórias políticas”. In: MENEGUELLO, Rachel (org.) O legislativo brasileiro: Funcionamento, composição e opinião pública. Brasília, DF: Senado Federal, 2012. pp. 95-122., p. 109; BEZERRA, 1999BEZERRA, Marcos Otávio. Em nome das “bases”: Política, favor e dependência pessoal. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999.; KUSCHNIR, 2000bKUSCHNIR, Karina. O cotidiano da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000b., p. 55). Essa série de atores, compromissos e alianças faz o meio político em geral, e Legislativo em específico, ser altamente contingente, característica que é refletida nos percursos das carreiras parlamentares (KUSCHNIR, 2000bKUSCHNIR, Karina. O cotidiano da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000b., pp. 59-60).

Um último aspecto a ser sublinhado com respeito à carreira política é o tipo de motivação ocupacional favorecido por ela. Em análise sobre o Legislativo estadual brasileiro, Anastasia, Correa e Nunes (2012ANASTASIA, Fátima; CORREA, Izabela; NUNES, Felipe “Caminhos, veredas e atalhos: Legislativos estaduais e trajetórias políticas”. In: MENEGUELLO, Rachel (org.) O legislativo brasileiro: Funcionamento, composição e opinião pública. Brasília, DF: Senado Federal, 2012. pp. 95-122., pp. 110-117) propõem que a ambição de, no mínimo, manter as posições e recursos políticos presentes, mas, preferencialmente, ascender a posições de maiores prestígio, projeção de imagem e alcance de poder seria o que move, em primeiro plano, um parlamentar. Embora o argumento da ambição parlamentar não deva ser ignorado, ele se torna sociologicamente produtivo se conciliado com as considerações de Kuschnir (2000aKUSCHNIR, Karina. Eleições e representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000a., 2000bKUSCHNIR, Karina. O cotidiano da política. Rio de Janeiro: Zahar, 2000b.). Ao discutir os diferentes perfis de vereadores na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, a antropóloga enfatiza a importância da relação de pertencimento construída entre eleitores e candidatos por meio da qual se estabelecem laços de afinidade simbólica entre as duas partes (KUSCHNIR, 2000aKUSCHNIR, Karina. Eleições e representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000a., p. 31). Essa região da tríplice mediação em tela é a que mais favorece o contato entre a administração da carreira política e as preensões internas de seu ocupante. Portanto, em vista do que é mencionado, problemas de teor mais ou menos subjetivo ou público se apresentam ao parlamentar em sua carreira, sejam eles originados em matéria mais propriamente parlamentar, associados às estruturas normativas e procedimentais das casas legislativas, em questões eleitorais, partidárias, político-ideológicas e de grande ressonância na arena pública ou ainda em expectativas pessoais direcionadas aos rumos de seu percurso enquanto político (MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., pp. 156-157). Eles podem frequentar, de diferentes modos, as três configurações preensivas aqui discutidas.

O interesse deste artigo pelas formas como atores políticos definem os desastres não se dirige àquilo que a literatura da ciência política chama de produção legislativa, isto é, ao teor propositivo dos produtos legislados (RICCI, 2003RICCI, Paolo. “O conteúdo da produção legislativa brasileira: Leis nacionais ou políticas paroquiais?” Dados, Rio de Janeiro, vol. 46, n. 4, pp. 699-734, 2003.).10 10 Um estudo sobre produção legislativa estadual no contexto de desastre é oferecido por Resende e Amaral (2019). No lugar de privilegiar as decisões, a atenção é aqui dirigida à produção do discurso parlamentar enquanto ação discursiva interativa, contextualizada e que se perfaz a partir de um sujeito enunciador (MAINGUENEAU, 2016MAINGUENEAU, Dominique. Analyser Les Textes de communication. Paris: Armand Colin, 2016., pp. 46-49). Para bem considerarmos as especificidades do discurso político parlamentar é preciso levar em consideração a discussão anterior sobre a carreira e o meio associados a essa atividade. Devido às normas e procedimentos formais que pesam sobre ela, a ação discursiva nos parlamentos é em geral autorreferente, remetendo-se constantemente às orientações e à prática do próprio processo legislativo (MELLO; ROSA, 2018MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva. Desastres relacionados a deslizamentos de terra nos discursos do Legislativo fluminense, 2011-2018. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 42., 2018, Caxambu, MG. Anais […]. São Paulo: ANPOCS, 2018.: p. 25). Isso não impede que os deputados se valham desses mesmos instrumentos disciplinadores de maneira agencial, apropriando-os para fazer avançar pautas, encaminhamentos e decisões favoráveis a seus grupos e às suas carreiras (BAYLEY, 2004BAYLEY, Paul. “Introduction: The Whys and Wherefores of Analyzing Parliamentary Discourse”. In: BAYLEY, Paul (ed.). Cross-Cultural Perspectives in Parliamentary Discourse. John Benjamins: Amsterdam; Philadelphia, 2004. pp. 1-44., pp. 18-20; KUSCHNIR, 2000aKUSCHNIR, Karina. Eleições e representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000a., p. 55; MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., p. 156). No espaço parlamentar os deputados interagem para “fazer costuras”, tomar posições, mas também para participar de confrontos e denúncias (KUSCHNIR, 2000aKUSCHNIR, Karina. Eleições e representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000a., pp. 52-60). Tratando sobre o discurso em plenário, autores como Kuschnir (2000aKUSCHNIR, Karina. Eleições e representação no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000a., p. 61) e Miguel e Máximo (2015MIGUEL, Luis Felipe; MÁXIMO, Helena. “Ecos da mídia no discurso parlamentar”. Revista Sul-Americana de Ciência Política, Pelotas, RS, vol. 3, n. 1, pp. 1-19, 2015., pp. 1-2) apontam que ele se comunica também com a população, disseminando representações que criam ou reforçam laços com o público (ou partes dele) a partir dos temas selecionados e de seus enfoques.

Tomando o que foi discutido até o momento, entende-se que a definição política dos desastres no meio parlamentar é constituída no jogo entre as preensões internas e externas dos deputados no curso da construção de suas carreiras políticas e a preensão comum coletivamente produzida pelas casas legislativas. Enquanto preensões comuns são moldadas pelos entrelaçamentos mais ou menos cooperativos ou conflituais de preensões externas, essas também se apoiam sobre construções coletivas para oferecerem suas contribuições individuais. Por meio de suas ações discursivas, os parlamentares apresentam argumentos e justificações, elementos representacionais e expressivos que visam fortalecer suas próprias preensões sobre os problemas em discussão e influenciar as decisões arrematadas pela assembleia.11 11 Não afirmo que os discursos parlamentares publicamente acessíveis esgotam as vias de construção preensiva no meio parlamentar, no qual as interações cotidianas não registradas oficialmente também fazem parte da dinâmica política.

Construção de um corpus textual a partir da ação discursiva política na Alerj

O estado do Rio de Janeiro tem sido o cenário de alguns dos desastres relacionados com eventos pluviais de maior repercussão pública no Brasil (PINHEIRO, 2017PINHEIRO, Marta de Araújo. “O sentido das catástrofes naturais na mídia: Da prevenção à adaptação”. Disertaciones, Armenia, vol. 10, n. 2, pp. 39-55, 2017.; SILVA, 2015SILVA, César Augusto Marques da. “Os desastres no Rio de Janeiro: Conceitos e dados”. Cadernos do Desenvolvimento Fluminense, Rio de Janeiro, n. 8, pp. 55-71, 2015.), o que nos leva a selecionar seu parlamento estadual como caso de estudo da discussão aqui encetada. Segundo dados oficiais do governo federal compilados no Atlas digital de desastres no Brasil, o estado, entre 2010 e 2021, somou 633 ocorrências de movimento de massa (termo geotécnico para deslizamento de terra), alagamentos, enxurradas, inundações e chuvas intensas, que juntas foram responsáveis por 1.187 óbitos, 268.259 desabrigados e desalojados e 2,83 milhões de afetados totais (BRASIL, 2022BRASIL. Atlas digital de desastres no Brasil. Brasília, DF: MDR, 2022. Disponível em: http://atlasdigital.mdr.gov.br/paginas/mapa-interativo.xhtml. Acesso em: 20 jun. 2023.
http://atlasdigital.mdr.gov.br/paginas/m...
). Convém notar que as efetivações de tais ameaças muitas vezes interagem na produção de desastres. O que ficou conhecido como Desastre da Região Serrana de 2011, ocorrido com as fortes chuvas em janeiro daquele ano, envolveu deslizamentos, enxurradas e enchentes, provocando quase mil óbitos12 12 O Anuário brasileiro de desastres naturais: 2011 enumera 912 mortes nesse desastre (BRASIL, 2012, p. 63), Freitas et al (2012, p. 1581) mencionam 918 óbitos e o Banco Mundial (2012, p.18) coloca esse número em 905, admitindo a possibilidade dele ser maior. . Esse caso recebeu atenção da mídia, que pouco antes dera destaque ao deslizamento acontecido em abril de 2010 no Morro do Bumba, em Niterói (PINHEIRO, 2017PINHEIRO, Marta de Araújo. “O sentido das catástrofes naturais na mídia: Da prevenção à adaptação”. Disertaciones, Armenia, vol. 10, n. 2, pp. 39-55, 2017., p. 47 ss.), e que, depois, voltou sua atenção ao desastre concentrado em Petrópolis em março de 2022 (com uma configuração de ameaças semelhante à de 2011 e rememorando a destruição então ocorrida).

Além do elemento pluvial, o deslizamento foi o fator comum usualmente retido nas discussões públicas sobre esses três desastres de grandes proporções e de outros, como o de Angra do Reis na passagem do ano de 2009 para o de 2010. Com base nisso, utilizou-se a combinação de deslizamentos e eventos pluviais como recorte para a formação de um corpus textual a partir da ação discursiva parlamentar na Alerj. O período temporal abarcado tem início em 2010, quando ocorreram os desastres do Morro do Bumba e de Angra do Reis, e finaliza em 2022. A busca e seleção textual se valeram do acesso público aos documentos do processo legislativo da Alerj hospedados em seu site. Com o auxílio de seus mecanismos de busca, foram acessados nas divisões “discursos e votações” (com notas taquigráficas das sessões da Casa) e “processo legislativo” (separada por períodos) documentos que contivessem os termos sinônimos “deslizamento” e/ou “escorregamento” (formas singular e plural)13 13 Ver http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=57 (acesso em: 20 jul. 2023). A seção “discursos e votações” possibilita a busca de notas taquigráficas de discursos, pronunciamentos pela ordem e votações nas sessões da Assembleia a partir de 2011. Para buscas do mesmo tipo de material no ano de 2010, ver http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj2006.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/$searchForm?SearchView (acesso em: 20 jul. 2023). Sobre a dinâmica do processo legislativo na Alerj, menciona-se que, entre março de 2020 e maio de 2022, as sessões da Casa ocorreram nos formatos remoto e híbrido devido à pandemia da covid-19. . Além das notas taquigráficas de discursos individuais dos deputados em plenário (que, por vezes, incluem um ou mais apartes de outros legisladores) e de pronunciamentos pela ordem, a busca também abarcou: notas taquigráficas de discussões e votações sobre projetos de lei e emendas constitucionais; propostas e notas taquigráficas de discussões de indicações; propostas de requerimentos. Todos esses elementos são aqui considerados como manifestações da ação discursiva política debatida na seção anterior. A montagem do corpus buscou então se nutrir da discursividade de diferentes tipos de atividade parlamentar, abarcando a pluralidade com que esse tipo de ação se manifesta em seu ambiente político. A partir do retorno obtido, fez-se uma triagem manual para reter só aqueles documentos que de fato mencionavam deslizamentos de alguma forma associados a eventos pluviais.14 14 Documentos referentes a discussões e votações em geral excedem o volume médio de um discurso individual em plenário. Em favor da coesão contextual com o tema do corpus, tais tipos de documento não foram inclusos quando sua menção a deslizamentos e eventos pluviais estivesse restrita a uma, ou pouco mais de uma, frase e sua matéria central não estivesse relacionada satisfatoriamente às questões como desastres, defesa civil, gestão urbana ou habitação. Isto é, os eventos pluviais, enquanto tipo de ameaça, serviram à construção do corpus como variável qualificante da ameaça “deslizamentos”. Apenas um texto foi mantido no caso de documentos do mesmo autor referentes a situações diferentes, mas com conteúdo discursivo muito semelhante. Em sua composição final, o que chamaremos de corpus “deslizamentos” contém 98 itens.

O estudo do corpus se beneficiou do software de análise textual Prospéro, cujo desenvolvimento remonta à década de 1990, projeto encabeçado por Francis Chateauraynaud e pelo programador Jean-Michel Charriau. Sua principal diferença dos outros programas de análise discursiva utilizados nas ciências sociais é que ele foi construído a partir de preceitos metodológicos fundantes da sociologia pragmática contemporânea e, mais especificamente, da pragmática das transformações de Chateauraynaud, o que é refletido nas próprias ferramentas centrais que oferece ao pesquisador. O cerne de seu funcionamento está na travessia dos textos que compõem um corpus por duas listas lexicais: 1) os dicionários de base operam uma classificação sintática primária e distribuem palavras e termos encontradas nos textos entre, fundamentalmente, entidades (substantivos), testes (verbos), qualidades (adjetivos) e marcadores (advérbios ou locuções adverbiais); 2) os dicionários de conceito geram agrupamentos dessas palavras e termos por semelhança de significado, ou afinidade temática, e são divididos em seres fictícios (agrupamentos de entidades), categorias (de entidades, testes, qualidades e marcadores) e coleções (taxonomia de termos de fundo histórico). Ambas as listas são editáveis e servem de base para operações de aproximações e checagens cruzadas por parte do usuário (CHATEAURAYNAUD, 2003CHATEAURAYNAUD, Francis. Prospéro: Une Technologie littéraire pour les sciences humaines. Paris: CNRS, 2003., p. 179; GOUVEIA, 2016GOUVEIA, Flávia. Controvérsias sobre a sustentabilidade do etanol combustível no Brasil: Panorama e investigação socioinformática dos jornais on-line de amplo alcance. 2016. Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2016., pp. 92-93; MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., p. 161).15 15 A adaptação do Prospéro ao português brasileiro traduziu épreuves, derivada do conceito pragmático, como provas. Com o intuito de manter a coerência conceitual do artigo, manterei o termo testes para me referir também às épreuves prospérianas. Sobre a adaptação do programa ao português brasileiro, ver Gouveia (2016). Neste artigo, o apoio do Prospéro foi importante para a interpretação e a comparação de categorias de entidade e de teste, como veremos em maior detalhe na próxima seção.

O Prospéro tem como intuito primário servir à análise de amplíssimos corpora textuais de controvérsias e affaires públicos multissituados e de longo alcance temporal. Logo, o presente trabalho adaptou seu uso a um corpus com um volume textual pequeno, bem mais localizado e encerrado no contexto parlamentar. Essa forma adaptativa de uso do programa não é inédita, e nem problemática, se bem compreendidos seus propósitos e pilares metodológicos (TRABAL, 2005TRABAL, Patrick. “Le Logiciel Prospéro à l’épreuve d’un corpus de résumés sociologiques”. Bulletin de méthodologie sociologique, Paris, n. 85, pp. 10-43, 2005.). Ainda assim, é preciso deixar claro a limitação do escopo de alcance do corpus do presente artigo, pois, ao adotar um recorte temporal e terminológico em sua busca, ele não esgota o volume de dados disponíveis no contexto da Alerj sobre o tipo de desastre estudado. O conjunto de documentos nele reunidos oferece uma visão sobre as discussões naquele meio parlamentar sobre problemas de deslizamentos de terra associados a eventos pluviais entre 2010 e 2022 a partir de coordenadas de busca delimitadas e centradas sobre a combinação dessas duas ameaças.

Outra indicação metodológica importante é que a análise aqui desenvolvida busca se ater ao procedimento consolidado na sociologia pragmatiscamente orientada de “seguir da forma mais próxima possível os atores em seu trabalho interpretativo, abrindo caminho através dos relatos que eles [próprios] constituíram” (BOLTANSKI, 1990BOLTANSKI, Luc. L’Amour et la justice comme compétences: Trois essais de sociologie de l’action. Paris: Métailié, 1990., p. 57). A ideia, portanto, é interpretar as interpretações dos atores. Esse caminho é especialmente profícuo quando o propósito está na observação da produção perspectiva da ação. Centrada referencialmente na construção reflexiva de cada ator, a pesquisa sobre as diferentes formas de preensão se beneficia então da atenção dirigida às informações que eles próprios produzem sobre si e sobre a forma como veem o mundo.

Uma primeira característica marcante do corpus “deslizamentos” está na distribuição temporal dos discursos por ele abarcados (Gráfico 1). Pouco mais da metade deles está concentrado em 2010 (24 itens), 2011 (doze itens) e em 2022 (dezesseis itens), anos em que ocorreram os recém citados desastres do Morro do Bumba, da Região Serrana e de Petrópolis, respectivamente. A leitura dos textos nos mostra que cada um desses três desastres influenciou de modo decisivo a forma como deslizamentos associados a eventos pluviais foram discutidos na Alerj. Não apenas eles foram os principais objetos de discussão no universo do corpus nos anos em que ocorreram como, no caso dos desastres do Bumba e da Região Serrana, também repercutiram nos discursos dos deputados pelos anos seguintes. Outros acontecimentos receberam menor destaque, como é o caso do desastre de Angra dos Reis de 2009-2010 (cuja frequência em 2010 não se compara com a do desastre em Niterói) e de problemas relacionados às chuvas em Petrópolis e algumas áreas da Baixada Fluminense em 2013.

Gráfico 1
Distribuição anual dos textos no corpus “deslizamentos”

Com essa distribuição observamos um padrão que, à primeira vista, parece ir a favor da tese de Birkland (1997BIRKLAND, Thomas. After Disaster: Agenda Setting, Public Policy, and Focusing Events. Washington, DC: Georgetown University Press, 1997., cap. 5) sobre a relevância da irrupção de eventos focais [focusing events] na resposta política aos desastres. Contudo, a recorrência do mesmo tipo de desastre no período analisado escapa à discussão do autor, que inclui a raridade como um dos elementos de formulação conceitual de tais eventos (BIRKLAND, 1997BIRKLAND, Thomas. After Disaster: Agenda Setting, Public Policy, and Focusing Events. Washington, DC: Georgetown University Press, 1997., p. 3). Mais preciso é falar que a dinâmica interna do corpus é influenciada por uma lógica do acontecimento marcante, em que as perturbações de ordem material e simbólica provocadas por fenômenos tangíveis são introduzidas pelos atores como provas [preuves] de um problema em aberto que demanda preensões adequadas (CHATEAURAYNAUD, 2011CHATEAURAYNAUD, Francis. Argumenter Dans Un Champ de force: Essai de balistique sociologique. Paris: PETRA, 2011. (Pragmatismes)., pp. 265-268; MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., p. 168). Esse tipo de prova lança uma sombra de urgência sobre aqueles ocupados com o problema, a quem são endereçadas expectativas de resposta que contribuam com o (re)direcionamento de um contexto cingido por danos e incertezas. Em sua pragmática das transformações, Chateauraynaud (2011CHATEAURAYNAUD, Francis. Argumenter Dans Un Champ de force: Essai de balistique sociologique. Paris: PETRA, 2011. (Pragmatismes)., p. 259) entende que os atores fazem frente a situações como essa ao transigirem entre “representações coletivas e percepções no sensível, espaços de cálculo e instâncias de julgamento”. Para o autor, o bom ajuste de preensões deve atender a um imperativo alargado de factualidade que abarca percepções, dispositivos e princípios morais. Mas a urgência dos acontecimentos marcantes seria bem apreendida somente por tais referências? No restante do artigo, mostro como o corpus “deslizamentos” põe em evidência outros aspectos do jogo entre preensões individuais e comuns que visam estabelecer significados sobre os desastres.

Nomear, narrar, preender

A relevância da tragédia

Para tanto, nesta última seção, volto-me às categorias analisadas com o Prospéro para compreender como são construídos os significados dos desastres no corpus. Por meio de tais categorias, a ferramenta e sua metodologia pragmática facilitam a identificação de constelações de sentido nos corpora de modo a, como diz sinestesicamente Chateauraynaud (2003CHATEAURAYNAUD, Francis. Prospéro: Une Technologie littéraire pour les sciences humaines. Paris: CNRS, 2003., p. 251), “colorir os textos” com diferentes matizes, de acordo com saturações, neles encontradas, de teor representacional, probatório, classificatório ou de modelização de discurso. Por meio de edições e adições, o pesquisador deve ajustar a configuração das categorias a partir das propriedades temáticas e conceituais dos corpora analisados.16 16 A elaboração de categorias no Prospéro é colaborativa e cumulativa. Mesmo ajustando-as às propriedades de sua pesquisa, o usuário herda o trabalho acumulado de construção que a comunidade de usuários do programa desenvolveu a partir do estudo de várias temáticas diferentes. Ele é, contudo, soberano: é a sua decisão que prevalece quando decide aproveitar parcial ou integralmente categorias construídas em outras pesquisas ou por outros pesquisadores. Sua interpretação é elemento central nesse processo, de modo que não há modelo rígido ou acabado para lidar com as categorias (MELLO, 2020, p. 161). Enfim, com a ajuda delas, podemos acompanhar “o que as pessoas são capazes de fazer” (BOLTANSKI, 1990BOLTANSKI, Luc. L’Amour et la justice comme compétences: Trois essais de sociologie de l’action. Paris: Métailié, 1990., p. 13 ss.), e efetivamente fazem, discursivamente.

Aqui, o foco da análise estará centrado sobre as categorias de entidades e de testes. No Quadro 1 observamos quais são as cinco categorias mais frequentes no corpus em cada uma dessas modalidades.17 17 Algumas das categorias de entidades aqui analisadas já foram observadas em trabalhos prévios em que este autor lidou com a ação discursiva no Legislativo fluminense (MELLO, 2020, pp. 161-171; MELLO; ROSA, 2018, pp. 21-24). Começaremos a discussão pelas entidades. Esse tipo de categoria agrupa por afinidade temática palavras e termos com função textual substantiva, o que serve como um mapa representacional das concepções, ideias e seres, humanos ou não, que povoam os discursos englobados no corpus (CHATEAURAYNAUD, 2003CHATEAURAYNAUD, Francis. Prospéro: Une Technologie littéraire pour les sciences humaines. Paris: CNRS, 2003., pp. 230-231; MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., p. 161). As categorias de entidade que dominam o corpus “deslizamentos” são Processo-legislativo, em primeiro lugar, e Estado/Governo, em segundo. Ambas estão relacionadas com um espaço de representações da política estatal; a primeira reúne elementos que se atém à atividade legislativa conduzida na Assembleia (com termos como “Deputado”, “Parlamento”, “Comissão”…) e a segunda abarca elementos da política formalizada e do estado não específicos ao meio parlamentar (“Governador”, “Prefeito”, “União”…). Não entrarei em detalhes quantitativos dos scores de todas as categorias, mas cabe mencionar, neste caso, que cada uma dessas duas tem mais do dobro das ocorrências (mais de 4 mil e de 2,3 mil, respectivamente) da terceira mais frequente, Catastrofismo (com mais de mil ocorrências). Essa predominância evidencia a já mencionada autorreferência do discurso parlamentar, centrada na linguagem e nos procedimentos típicos daquele meio, em primeiro plano, e em sua extensão ao restante do mundo político.

Quadro 1
Cinco categorias de entidades e testes mais frequentes no corpus “deslizamentos”

Catastrofismo e a quarta categoria de entidade, Risco/Alerta direcionam nossa atenção para outra área representacional, na qual a questão dos riscos e dos desastres está no centro. A primeira é composta por termos que expressam a irreversibilidade de experiências desastrosas, assim enfatizando a extensão e a intensidade do impacto do dano sobre constituições físicas, sociais e psicossociais (“deslizamentos”, “catástrofe”, “calamidade”…). Já a segunda é identificada mais com a figura do risco, projetando em um futuro mais ou menos próximo a ocorrência/recorrência de um desastre, destacando a possibilidade de mitigação e prevenção desse tipo de evento mediante ações concretas no presente (“áreas de risco”, “responsabilidade”, “prevenção”…). Finalmente, a categoria na quinta posição, Habitação-e-políticas-urbanas, evidencia a importância das questões da habitação e da ocupação urbana na maneira como as falas parlamentares no corpus abordam o problema de desastres associados a deslizamentos e eventos pluviais. Essa categoria reúne termos como “casas”, “aluguel social”, “plano diretor”, entre outros. Estendida para além do corpus, ela aponta para o elo entre habitação, risco e sofrimento social.18 18 Sobre a relação entre habitação urbana, remoções e sofrimento social no contexto carioca, ver Petti (2020).

São Catastrofismo e Risco/Alerta, portanto, as categorias mais próximas ao tema central deste trabalho. De fato, se olharmos mais de perto para a primeira delas, encontraremos uma pista valiosa para a compreensão da significação política dos desastres. Nela, o termo mais frequente é “tragédia”, com mais de duzentas ocorrências se somadas todas suas formas e grafias (singular e plural, sem ou com maiúsculas, se categorizada isoladamente ou como termo composto - “tragédia ambiental”, por exemplo). Ele excede sobremaneira termos afins, como “catástrofe”, “calamidade”, “desastre”, “deslizamento” e “escorregamento”, que não superam cem ocorrências cada (sempre em todas as grafias possíveis). Menções à “tragédia” não alcançam a totalidade dos textos no corpus, o que é o caso de “deslizamento” e “escorregamento” se tomados juntos (visto serem os termos de busca para sua construção). Ainda assim, estão presentes em 48 dos 98 itens e ausentes apenas nos anos 2014, 2017 e 2018.

Importante também é reparar como o termo é mobilizado discursivamente. O Quadro 2 reúne alguns excertos de discursos, restritos a uma frase cada, em que “tragédia”, em suas grafias possíveis, é mencionada (eles foram extraídos do subcorpus descrito adiante). Como pode ser constatado, não se trata de um termo genérico que casualmente se repete: com a exceção de B, em que ele aparece como forma qualificativa de um cenário testemunhado, o emprego de “tragédia” substitui diretamente a palavra desastre, ou qualquer outro sinônimo presente no léxico comum aos dispositivos legais e à literatura acadêmica sobre o tema. O que vemos nesse quadro também é conferido no contexto mais geral no qual os excertos foram extraídos. O termo tragédia é a forma nominal principal pela qual, no corpus, os deputados se referem a desastres de forma generalizada, sem menção às ameaças associadas a eles. É possível afirmar que, no universo discursivo sob análise, a nomeação dos desastres como tragédias é elemento incontornável de sua significação.

Quadro 2
Seleção de excertos contendo a palavra “tragédia”19 19 Para preservar a fidelidade aos textos, optou-se por manter a grafia original dos documentos sem sinalização de erros na escrita ou padronização editorial. Os excertos não representam a totalidade da visão de seus respectivos discursantes no corpus, tampouco uma síntese do conteúdo deste.

Sentidos da nomeação

Segundo o que nos diz Anselm Strauss (1959STRAUSS, Anselm. Mirrors and Masks: The Search for Identity. New York: The Free Press, 1959., p. 15) sobre o processo de nomeação, “qualquer nome é um recipiente; depositadas nele estão as avaliações conscientes ou involuntárias de quem o nomeou”. O sociólogo não se remete aqui a um dualismo entre forma e conteúdo. Seguindo a lógica interacionista, ele rejeita a mera determinação unilateral do sujeito sobre o objeto tanto quanto a afirmação de uma substância inerente a este. As avaliações de quem designa um nome, ou classificação, são construídas, assim como seus consequentes significados, através das relações estabelecidas com um objeto e suas respostas experimentalmente conferidas (MEAD 1972MEAD, George Herbert. The Philosophy of the Act. Chicago: The University of Chicago Press, 1972 [1938]. [1938]; STRAUSS, 1959STRAUSS, Anselm. Mirrors and Masks: The Search for Identity. New York: The Free Press, 1959., pp. 23-24). Dessa forma, podemos reformular o que dissera Becker (1991BECKER, Howard. Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. New York: The Free Press, 1991 [1963]. [1963], p. 11) para afirmar que o significado de um nome, ou definição, depende do modo como as pessoas reagem à entidade que o porta. Em alguns casos, os atos de nomeação se amparam em avaliações de destacado teor moral. As discussões sobre a rotulação [labelling] abordam as reprovações valorativas que atitudes classificadas como estigmatizadas ou desviantes (BECKER, 1991BECKER, Howard. Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. New York: The Free Press, 1991 [1963]. [1963]; GOFFMAN, 1963GOFFMAN, Erving. Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1963.) podem despertar naqueles considerados normais em um determinado grupo. Ainda que os estudos clássicos sobre a rotulação não abriguem, em seu centro, uma reflexão sobre o papel da emoção, tal elemento aparece implicitamente entrelaçado às avaliações morais em discussões sobre reações, como a vergonha e a repulsa em torno do estigma (GOFFMAN, 1963GOFFMAN, Erving. Stigma: Notes on the Management of Spoiled Identity. Englewood Cliffs, NJ: Prentice Hall, 1963.).

A nomeação de uma situação como tragédia também está associada a uma avaliação que integra valores morais e emotividade (MELLO; ROSA, 2018MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva. Desastres relacionados a deslizamentos de terra nos discursos do Legislativo fluminense, 2011-2018. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 42., 2018, Caxambu, MG. Anais […]. São Paulo: ANPOCS, 2018., p. 24), mas sua diferença à questão do desvio vai além da natureza do problema que a desperta: há, em sua manifestação discursiva uma incontornável expressividade. Ao nomear deslizamentos e outros desastres como tragédia, uma pessoa não está confundindo um fenômeno social e ambiental com um gênero literário. Com base nas duas formas básicas de construção de significado propostas por Burke (1941)BURKE, Kenneth. “Semantic and Poetic Meaning”. In: BURKE, Kenneth. The Philosophy of Literary Form: Studies in Symbolic Action. Baton Rouge: Louisiania State University Press, 1941. pp. 138-167., o que está em jogo nessa definição não é um sentido semântico, que visa à descrição objetiva de um objeto a partir de suas características discretas. Em vez disso, observamos a operação de um significado poético, carregado de “valores emocionais” e que acena com uma atitude a envolver o discursante naquilo que é enunciado (BURKE, 1941BURKE, Kenneth. “Semantic and Poetic Meaning”. In: BURKE, Kenneth. The Philosophy of Literary Form: Studies in Symbolic Action. Baton Rouge: Louisiania State University Press, 1941. pp. 138-167., p. 143). Ou seja, a referência à tragédia no caso em tela busca na clássica forma estética elementos simbólicos que permitam expressar avaliações a um só tempo morais e emocionais sobre eventos de desastres que termos comparativamente mais identificados com um ideal semântico, como a palavra deslizamento, não suportam (ou, pelo menos, não com a mesma intensidade).

Mas quais elementos seriam estes? Não estou em posição para enveredar por uma discussão de fôlego sobre a noção de tragédia, tema em pauta há milênios e que atravessa diferentes áreas do conhecimento. Aqui, tratarei a tragédia de modo pragmático, como um apoio convencional à ação (DODIER, 1993DODIER, Nicolas. “Les Appuis conventionnels de l’action: Éléments de pragmatique sociologique”. Réseaux, Paris, vol. 11, n. 62, pp. 63-85, 1993.), que, mesmo tendo origem em um modo de enredo tipicamente estético (WHITE, 1973WHITE, Hayden. Meta-History: Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973.), é também apropriado em diferentes contextos quer da vida cotidiana, quer da política, para dar sentido a experiências práticas (FORCHTNER, 2016FORCHTNER, Bernhard. Lessons from the Past?: Memory, Narrativity and Subjectivity. London: Palgrave Macmillan, 2016., p. 101 ss.; WAGNER-PACIFICI, 1986WAGNER-PACIFICI, Robin Erika. The Moro Morality Play: Terrorism as Social Drama. Chicago: The University of Chicago Press, 1986., p. 231-232). Buscando uma definição mínima de tragédia entre diferentes interpretações ao longo da história, Raymond Williams (2006WILLIAMS, Raymond. Modern Tragedy. Edited by Pamela McCallum. Ontario: Broadview, 2006., p. 76) chega à seguinte constatação: “Tudo o que é comum, nas obras que chamamos de tragédia, é a dramatização de uma desordem particular e dolorosa e a sua resolução”. Segundo Forchtner (2016FORCHTNER, Bernhard. Lessons from the Past?: Memory, Narrativity and Subjectivity. London: Palgrave Macmillan, 2016., pp. 101-102), o significado de tragédia difundido contemporaneamente e apropriado no cotidiano converge à ideia de eventos que provocam a derrocada de uma ordem estabelecida e a queda de entidades outrora legitimadas, o que produz um sentimento generalizado de tristeza. Esse súbito desarranjo provocado pelo infortúnio, peripécia trágica por excelência, nubla as outrora nítidas fronteiras morais entre o louvável e o reprovável, lançando assim o contexto afetado em situação de ambiguidade e incerteza.

Estamos muito próximos a esse significado mínimo de tragédia quando olhamos com atenção para afirmações como a do excerto A, que diz que “cada vez mais estamos a lamentar e a chorar os nossos mortos” (RIO DE JANEIRO, 2010aRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente final proferido por Luiz Paulo (deputado). Sessão ordinária de 7 de abril de 2010. Rio de Janeiro: Alerj, 7 abr. 2010a. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=58&url=L3RhcWFsZXJqMjAwNi5uc2YvNWQ1MGQzOWJkOTc2MzkxYjgzMjU2NTM2MDA2YTI1MDIvMzhkMmU2NWU1MGFjN2UyZjgzMjU3YjZiMDA2YjA2Y2I/T3BlbkRvY3VtZW50JkV4cGFuZFNlY3Rpb249MSNfU2VjdGlvbjE=. Acesso em: 19 jul. 2022
http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/...
) por causa da recorrência de desastres. Ao mencionar choro e lamento como desdobramentos frequentes de um encadeamento de desastres que se estende do passado ao presente, o trecho aponta para uma reação básica de sofrimento associada ao discurso trágico. Algo semelhante está presente no excerto B, em que o deputado relata um “cenário de desespero, de tragédia e de sofrimento” (RIO DE JANEIRO, 2010bRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente final proferido por Rodrigo Neves (deputado). Sessão ordinária de 14 de abril de 2010. Rio de Janeiro: Alerj, 14 abr. 2010b. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=58&url=L3RhcWFsZXJqMjAwNi5uc2YvNWQ1MGQzOWJkOTc2MzkxYjgzMjU2NTM2MDA2YTI1MDIvNDkyODJlNTIwMDQ0ZjQzYjgzMjU3YjZiMDA2YjA3NTM/T3BlbkRvY3VtZW50JkV4cGFuZFNlY3Rpb249MSNfU2VjdGlvbjE=. Acesso em: 19 jul. 2023.
http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/...
) encontrado por ele no Morro do Bumba, em 2010. Essa descrição reforça o peso da constatação direta das provas fulgurantes (CHATEAURAYNAUD, 2011CHATEAURAYNAUD, Francis. Argumenter Dans Un Champ de force: Essai de balistique sociologique. Paris: PETRA, 2011. (Pragmatismes)., p. 267), materiais e simbólicas, das consequências do desastre e põe em relevo o elo entre afetividade e emotividade na percepção (SIMONDON, 2017SIMONDON, Gilbert. L’Individuation à la lumière des notions de forme et d’information. Grenoble: Millon, 2017 [2005]. [2005], pp. 247-249). O excerto C também se remete a imagens de sofrimento. Nele a prova é indireta: uma reportagem de jornal em cujas informações o deputado se baseia para enfatizar a permanência, meses a fio, da “humilhação” das pessoas afetadas, algumas delas então ainda desaparecidas “debaixo do monte de entulho” (RIO DE JANEIRO, 2010cRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente inicial proferido por Caetano Amado (deputado). Sessão ordinária de 16 de junho de 2010. Rio de Janeiro: Alerj, 16 jun. 2010c. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=58&url=L3RhcWFsZXJqMjAwNi5uc2YvNWQ1MGQzOWJkOTc2MzkxYjgzMjU2NTM2MDA2YTI1MDIvNDVkMDEzNzFkZjliNjg5MTgzMjU3YjZiMDA2YjA5NjY/T3BlbkRvY3VtZW50JkV4cGFuZFNlY3Rpb249MSNfU2VjdGlvbjE=. Acesso em: 19 jul. 2023.
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).

A frase que encontramos no excerto H, contudo, expressa de maneira ainda mais explícita esse significado de tragédia a que nos remetemos. Ao se referir aos danos deixados pelo desastre de 2022 na cidade de Petrópolis, a deputada acentua não apenas o volume e o alcance “humano e material” da destruição, mas o fato dela ter atingido uma entidade virtuosa, “tão rica de cultura e beleza” (RIO DE JANEIRO, 2022RIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Indicação legislativa nº 542/2022. Solicita ao Excelentíssimo senhor governador do estado do Rio de Janeiro, dr. Cláudio Castro, a isenção de cobrança de pedágio para entrega de mantimentos à população de Petrópolis. Autoria Martha Rocha (deputada). Rio de Janeiro: Alerj, 16 fev. 2022. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1923.nsf/0c5bf5cde95601f903256caa0023131b/f23e98f6deb66602032587eb00600b58?OpenDocument&Highlight=0,deslizamento. Acesso em: 19 jul. 2023.
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro192...
). A especificação dessa riqueza fica evidente em outra passagem do mesmo documento, que enfatiza o arrasamento proveniente da “danificação de habitações populares, da perda de vidas, [de] estruturas de lojas da Rua Teresa, [d]o complexo de hotéis e de museus que permeiam todo o centro histórico” (RIO DE JANEIRO, 2022RIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Indicação legislativa nº 542/2022. Solicita ao Excelentíssimo senhor governador do estado do Rio de Janeiro, dr. Cláudio Castro, a isenção de cobrança de pedágio para entrega de mantimentos à população de Petrópolis. Autoria Martha Rocha (deputada). Rio de Janeiro: Alerj, 16 fev. 2022. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro1923.nsf/0c5bf5cde95601f903256caa0023131b/f23e98f6deb66602032587eb00600b58?OpenDocument&Highlight=0,deslizamento. Acesso em: 19 jul. 2023.
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). Isto é, deixando escombros por onde passa, a devastação corrompe um estado de coisas anterior positivamente afirmado em termos sociais, culturais e econômicos.

Falas como essas nos apontam que o sentimento da catástrofe, vivenciado na experiência de “um acontecimento decisivo que perturba a ordem do mundo”, não perdeu inteiramente sua força poética no período pós-bombardeios atômicos de 1945, como defende Le Brun (2016LE BRUN, Annie. O sentimento da catástrofe: Entre o real e o imaginário. São Paulo: Iluminuras, 2016 [2011]. [2011], pp. 40, 59-72). Se é verdade que um aparato técnico-burocrático foi, a partir de então, erguido em torno do risco e do desastre, a sensação de urgência difusa na região representacional recoberta pelas categorias Catastrofismo e Risco/Alerta ainda encontra uma expressividade de tipo poético na preensão sobre tais fenômenos a partir de uma perspectiva trágica.

Narrativa e preensão trágica

Mas não é somente por meio da força metafórica ou metonímica da nomeação dos desastres enquanto tragédias que essa preensão trágica é construída. Na concepção mínima de tragédia, como já indicado, a irrupção do evento devastador suscita respostas de quem a testemunha que irão, por sua vez, encerrar aquele arco de acontecimento com algum tipo de resolução. Esse apoio convencional oferece, portanto, um tipo de desenvolvimento narrativo que não pode ser ignorado.20 20 Smith (2019) oferece uma relevante discussão sobre a narrativa a partir do uso da funcionalidade de fórmulas do Prospéro. Aqui, refiro-me à narrativa como “a representação de um evento ou série de eventos” em que os próprios acontecimentos narrados estabelecem uma ordem temporal (ABBOTT, 2002ABBOTT, Horace Porter. The Cambridge Introduction to Narrative. Cambridge: Cambridge University Press, 2002., p. 12, ênfase do autor, ver também pp. 3-4). Devido à ambiguidade que a atravessa, a narrativa trágica pode traçar dois caminhos resolutivos diferentes. A desmobilização perante a devastação é um deles, quando a avaliação de inevitabilidade do infortúnio se assenta nas formas de apatia e estagnação (FORCHTNER, 2016FORCHTNER, Bernhard. Lessons from the Past?: Memory, Narrativity and Subjectivity. London: Palgrave Macmillan, 2016., p. 101-102; KENNY, 2006KENNY, Robert Wade. “The Phenomenology of Disaster: Toward a Rhetoric of Tragedy”. Philosophy and Rhetoric, University Park, PA, vol. 39, n. 2, pp. 97-124, 2006., p. 109). Sociologicamente, essa rota parece associada com o regime traumático desperto em situações de catástrofe (CORRÊA; TALONE, 2021CORRÊA, Diogo Silva; TALONE, Vittorio da Gamma. “An Outline of a Pragmatist Theory on Reflexivity: Exploring the Pathways of the Concept through Social Theory”. Sociedade e Estado, Brasília, DF, vol. 36, n. 2, pp. 407-431, 2021., p. 423 ss.) que pode envolver os atores em diferentes configurações de estado de choque. Ela nos leva a pensar que a implicação existencial da ideia chateauraynaudiana da catástrofe como uma perda de preensão é que a aderência do ator a si próprio, à sua constituição subjetiva, é comprometida com a perda de aderência ao meio em situações desastrosas. A alternativa é o “ganho de consciência” proporcionado pelo aprendizado com a experiência do desastre (FORCHTNER, 2016FORCHTNER, Bernhard. Lessons from the Past?: Memory, Narrativity and Subjectivity. London: Palgrave Macmillan, 2016., pp. 102-105; WAGNER-PACIFICI, 1986WAGNER-PACIFICI, Robin Erika. The Moro Morality Play: Terrorism as Social Drama. Chicago: The University of Chicago Press, 1986., p. 283; WHITE, 1973WHITE, Hayden. Meta-History: Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973., p. 9). Com ele, espera-se uma irresignação atrelada à inspeção reflexiva dos atores individuais e coletivos diante dos erros conducentes à queda trágica. Tal alternativa é relevante para o estudo da ação discursiva política em resposta à catástrofe por favorecer o exercício de apropriações críticas do problema que poderão tanto apontar as responsabilidades quanto avaliar a suficiência de medidas tomadas em combate à crise e, assim, fixar no horizonte a prevenção contra uma nova queda (FORCHTNER, 2016FORCHTNER, Bernhard. Lessons from the Past?: Memory, Narrativity and Subjectivity. London: Palgrave Macmillan, 2016., pp. 102-105; KENNY, 2006KENNY, Robert Wade. “The Phenomenology of Disaster: Toward a Rhetoric of Tragedy”. Philosophy and Rhetoric, University Park, PA, vol. 39, n. 2, pp. 97-124, 2006., pp. 109-113).21 21 Tal característica da noção de tragédia foi observada preliminarmente, e sem referência ao debate narrativo aqui referenciado, em Mello e Rosa (2018, p. 24).

Vamos analisar essa face narrativa em dois momentos. O primeiro, visando uma observação panorâmica do corpus, passa a dar maior peso às categorias de teste. Na sociologia pragmática os testes estão voltados aos limiares de mudança que os atores atravessam na experiência concreta de acontecimentos (CHATEAURAYNAUD, 1991CHATEAURAYNAUD, Francis. La Faute professionelle: Une Sociologie des conflits de responsabilité. Paris: Métailié, 1991., pp. 165-166). Por meio deles, organiza-se, metaestavelmente, a relação entre os atores e seus meios em contextos situacionais. De tal sorte, é possível falar de uma variedade de testes com afinidades à narrativa trágica porque auxiliam à expressão da mensagem fatídica em sua ordenação entre tempo e acontecimento. No Quadro 1, duas categorias apresentam tais traços: Afetar/Atingir e Construir/Produzir. A primeira delas reúne atividades probatórias mais diretamente relacionadas com a intensidade e a causalidade de um acontecimento (termos como “acontece”, “ocorreu”, “atingiu”, “sofreu”…) e enfatizam o impacto de eventos concretos sobre a organização dos meios e a vida das pessoas. A segunda agrupa testes que se aproximam da resolução irresignada mencionada antes e se volta à necessidade de recuperação pós-queda (“construir”, “trabalhando”, “criou”, “avançar”…).

A alta frequência delas no corpus, respectivamente a segunda e a quarta posições entre as categorias de entidade, indica sua relevância no conjunto geral dos textos. Contudo, para avaliarmos a relação entre a nomeação e a narrativa trágicas na preensão sobre os desastres, uma operação analítica complementar foi utilizada. Montou-se um subcorpus centrado no termo “tragédia” e suas variantes gráficas a partir do mesmo universo textual do corpus “deslizamentos”. Para tanto, selecionaram-se só aqueles 48 documentos em que tais entidades efetivamente estão presentes. Em uma segunda seleção, foram retidos, em cada um destes textos, só as frases em que “tragédia” e suas variações constavam. Com o subcorpus montado, acionou-se o Prospéro e se comparou o novo quadro de categorias de entidades e de testes com aquele do corpus como um todo. De início, encontramos a categoria catastrofismo ultrapassando Estado/Governo e Processo-legislativo (agora em segunda e terceira posições, respectivamente), enquanto Risco/Alerta e Habitação-e-políticas-urbanas continuam nas mesmas posições.

Já no quadro dos testes a alteração é maior, e categorias com afinidade à narrativa trágica são mais numerosas entre as cinco mais frequentes. Afetar/Atingir passa ao primeiro lugar, seguida por Destruir/Desfazer (que reúne testes que remetem à destruição deixada pelos desastres, como “destruindo”, “perder”, “desabar”…) e Construir/Produzir, respectivamente. Na quinta posição, Repetir/Recorrer (com testes ligados à ideia de manutenção seja das crises desastrosas, seja das estruturas para suportá-las) toma o lugar de Conhecer/Saber, associada a conhecimento e informação. Das duas categorias de testes mais ligadas à atividade político-parlamentar no Quadro 1, só Comunicar/Informar (que tem afinidade com a atividade discursiva do parlamento) permanece entre as cinco mais frequentes, agora em quarto lugar. Caiu para a sexta posição a categoria com testes típicos do processo legislativo, Legislar/Decidir. Em suma, isso nos mostra que a redução do corpus somente às passagens em que os desastres são nomeados como tragédia dá maior destaque não apenas às representações catastróficas, mas, sobretudo, a categorias de testes com maior inclinação à narrativa trágica.

Destarte, parece ter base a ideia de que, no corpus, há uma preensão comum que define os desastres como tragédias por meio de uma articulação entre, de um lado, um certo modo de nomear seus eventos e suas consequências e, de outro, elementos de uma narrativa trágica para relatá-los. Essa construção comum fornece não apenas pontos de referência representacional específicos, mas também a aderência a certa sensibilidade afetiva e emotiva para a abordagem do problema. A convergência das preensões externas dos deputados a essa articulação parece ter a ver com dois fatores mencionados antes. O primeiro é a postura crítica, inconformada, que a retórica trágica oferece à ação discursiva e que faz sinergia com a atividade política do parlamentar. O segundo é o envolvimento entre a crítica e o crítico possibilitada pela significação poética da tragédia, que oportuniza o posicionamento do político diante do problema a partir de sua carreira. Retornaremos aos excertos do Quadro 2 para olhar para isso mais de perto nesse segundo momento de aproximação ao elemento narrativo.

O excerto D é retirado de um aparte em que o discursante original, correligionário do então governador Sérgio Cabral no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), comentava positivamente sobre o desempenho do governo na administração de problemas em Duque de Caxias resultantes de chuvas que vinham afetando diferentes regiões do estado. O deputado a quem ele concede o aparte era filiado ao Partido Popular Socialista (PPS) - o qual, nas eleições de 2010, apoiara Fernando Gabeira como candidato a governador - e contrapôs a tal avaliação o que julgava um desempenho negativo do governo e do governador à frente dos problemas decorrentes das mesmas chuvas, mas em Petrópolis. Amparando-se na memória de desastres na Região Serrana no excerto D, esse segundo deputado expressa sua crítica em um comentário sobre a presença do governador no município: “O Governador parece que vai para lá fazer cara para bater retrato” (RIO DE JANEIRO, 2013aRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Aparte de Comte Bittencourt (deputado) durante discurso de expediente inicial proferido por Rosenverg Reis (deputado). Sessão ordinária de 19 de março de 2013. Rio de Janeiro: Alerj, 19 mar. 2013a. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=57&url=L3RhcWFsZXJqLm5zZi81ZDUwZDM5YmQ5NzYzOTFiODMyNTY1MzYwMDZhMjUwMi85MWRlYTE0NWQxNjM4ZjhiODMyNTdiMzMwMDczOGQxMT9PcGVuRG9jdW1lbnQmRXhwYW5kU2VjdGlvbj0xI19TZWN0aW9uMQ==. Acesso em: 23 jul. 2023.
http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/...
).

O relato que encontramos no excerto G narra a coexistência de dois acontecimentos, uma “tragédia” associada a outra (RIO DE JANEIRO, 2015aRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente final proferido por Waldeck Carneiro (deputado). Sessão ordinária de 8 de abril de 2015. Rio de Janeiro: Alerj, 8 abr. 2015a. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/4751b5e12cd8930083257e210078b4da?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1. Acesso em: 19 jul. 2023.
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). Quando contextualizado no discurso de onde foi retirado, sabemos que um dos referidos eventos se trata do desastre do Morro do Bumba e que o outro, ligado a ele, teria sido causado pelo tipo de resposta do Executivo municipal de Niterói à época. Isso fica claro na frase imediatamente anterior àquela que consta no Quadro 2, que afirma que “o governo municipal anterior teve uma enorme dificuldade de atuar, de agir, de se fazer presente diante da tragédia, ficou por assim dizer, paralisado” (RIO DE JANEIRO, 2015aRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente final proferido por Waldeck Carneiro (deputado). Sessão ordinária de 8 de abril de 2015. Rio de Janeiro: Alerj, 8 abr. 2015a. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/4751b5e12cd8930083257e210078b4da?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1. Acesso em: 19 jul. 2023.
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). Tanto esse último trecho quanto o excerto G ilustram uma ação discursiva de responsabilização a partir de uma experiência de desastre. Com carreira política iniciada em Niterói e integrando, naquela conjuntura, um grupo político crítico ao legado da gestão municipal anterior, o deputado discursante é direto em sua avaliação da atuação desta no caso do Bumba. Além dos danos do desastre, a tragédia estaria também na “inação”, “ausência” e “omissão” da prefeitura (RIO DE JANEIRO, 2015aRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente final proferido por Waldeck Carneiro (deputado). Sessão ordinária de 8 de abril de 2015. Rio de Janeiro: Alerj, 8 abr. 2015a. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/4751b5e12cd8930083257e210078b4da?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1. Acesso em: 19 jul. 2023.
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), posturas que remetem ao desdobramento apático da narrativa trágica apontado acima.

As construções críticas nos excertos A, E e F se voltam ao futuro. O primeiro deles, já abordado, é marcado pela presença de dois testes fortemente associados à narrativa trágica: lamentar e chorar (ambos pertencentes à categoria Sofrer/Desesperar no Prospéro). Mas, no presente momento do artigo, o que mais chama atenção é a forma como o deputado se coloca (“A minha preocupação”) (RIO DE JANEIRO, 2010aRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente final proferido por Luiz Paulo (deputado). Sessão ordinária de 7 de abril de 2010. Rio de Janeiro: Alerj, 7 abr. 2010a. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=58&url=L3RhcWFsZXJqMjAwNi5uc2YvNWQ1MGQzOWJkOTc2MzkxYjgzMjU2NTM2MDA2YTI1MDIvMzhkMmU2NWU1MGFjN2UyZjgzMjU3YjZiMDA2YjA2Y2I/T3BlbkRvY3VtZW50JkV4cGFuZFNlY3Rpb249MSNfU2VjdGlvbjE=. Acesso em: 19 jul. 2022
http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/...
) na projeção de um cenário vindouro. Ao enfatizar a necessidade de ações para “minimizar esses trágicos acontecimentos em futuro próximo” (RIO DE JANEIRO, 2010aRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente final proferido por Luiz Paulo (deputado). Sessão ordinária de 7 de abril de 2010. Rio de Janeiro: Alerj, 7 abr. 2010a. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=58&url=L3RhcWFsZXJqMjAwNi5uc2YvNWQ1MGQzOWJkOTc2MzkxYjgzMjU2NTM2MDA2YTI1MDIvMzhkMmU2NWU1MGFjN2UyZjgzMjU3YjZiMDA2YjA2Y2I/T3BlbkRvY3VtZW50JkV4cGFuZFNlY3Rpb249MSNfU2VjdGlvbjE=. Acesso em: 19 jul. 2022
http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/...
), ele aponta para a possibilidade de que a série de tragédias narrada não esteja, de fato, encerrada. Retirado de uma indicação que reivindica ao governo do estado a instalação de sirenes de alerta em Petrópolis, o excerto E também salienta a importância de medidas para a proteção contra desastres futuros. Nele, assim como em A, a crítica faz um movimento reflexivo: algumas coisas estariam fora do alcance do Estado (evitar chuvas), outras (como aquilo que é requisitado) seriam de responsabilidade da ação política. O que está em tela no excerto F não é tanto o apontamento da necessidade de resposta ao desastre, mas a visão que o deputado expressa sobre dois cursos de ação possíveis a serem assumidos pelo Executivo estadual. Reconhecendo a importância de uma solução técnica (desenvolvimento de “dispositivos de alerta”), ele sobressalta a “responsabilidade ético-política” de “retomar […] a discussão e a atualização de um programa habitacional de interesse social para o nosso Estado” (RIO DE JANEIRO, 2015bRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discussão do Projeto de Lei nº 498/2011. Sessão extraordinária de 24 de fevereiro de 2015. Rio de Janeiro: Alerj, 24 fev. 2015b. Disponível em: http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/2e63390c22f5129c83257df60046688d?OpenDocument&ExpandSection=1#_Section1. Acesso em: 19 jul. 2023.
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), algo que se coaduna com a proposta de uma reforma urbana presente no programa de seu partido, o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), quando de sua fundação (PSOL, 2004PSOL - PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE. Programa. Brasília, DF: PSOL, 2004. Disponível em: https://psol50.org.br/partido/programa/. Acesso em: 19 jul. 2023.
https://psol50.org.br/partido/programa/...
).

Em cada um dos excertos, A, D, E, F e G, os discursantes se apoiam sobre a definição dos desastres como tragédias para se posicionarem em narrativas críticas. Os alvos delas variam: adversários (D e G), a ordem de prioridade a possíveis soluções aos desastres (F), ou mesmo uma eventual negligência da necessidade de resposta política a eles (A e E). De qualquer forma, a inclinação poética desse tipo de significação faz com que cada discursante se coloque incluído na lida com o problema, quer demarcando-o, quer apontando responsabilidades ou saídas. Assim, vemos que a preensão comum que interpreta os desastres tragicamente possibilita também apropriações individuais. Dada a configuração do meio parlamentar e o teste de mediação tríplice apresentado na segunda seção do texto, essa forma de engajamento atitudinal se dá através das carreiras de cada discursante, sobretudo das preensões externas construídas a partir delas. Nos excertos, quando um deputado se posiciona e elabora uma crítica ao problema dos desastres, ele está exercitando sua preensão externa sobre aquela questão (mesmo se, em grande medida, ela reproduzir elementos de preensão comum). Em alguns casos, como nos excertos D, F e G, traços das posições dos deputados no campo político e elementos de seus percursos nele são mais evidentes nessas preensões externas. Tal consideração pode ser estendida ao excerto E ao observarmos que o deputado que solicita as sirenes de alerta em Petrópolis tem sua carreira política atrelada àquele município, nele elegendo-se prefeito em 2016. Isso nos faz lembrar da inseparabilidade entre elementos institucionais e biográficos na carreira político-parlamentar.

Sobre esse último ponto, vale retornarmos ao excerto B, advindo de um discurso proferido alguns dias após a ocorrência dos deslizamentos no Morro do Bumba. Com ele temos um deslocamento que atravessa todo o gradiente íntimo/manifesto introduzido antes, uma vez que vemos o deputado discursante alinhar características de preensões externa e interna em sua fala. O discurso é veiculado publicamente no espaço da Casa Legislativa e se dirige a um problema vivido em uma das mais importantes cidades da Região Metropolitana fluminense. Por outro lado, a narrativa é bastante pessoal (“vivi a pior semana da minha vida, os piores dias”), de modo que o deputado se identifica na “tragédia” (RIO DE JANEIRO, 2010bRIO DE JANEIRO (Estado). Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj). Discurso de expediente final proferido por Rodrigo Neves (deputado). Sessão ordinária de 14 de abril de 2010. Rio de Janeiro: Alerj, 14 abr. 2010b. Disponível em: http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=58&url=L3RhcWFsZXJqMjAwNi5uc2YvNWQ1MGQzOWJkOTc2MzkxYjgzMjU2NTM2MDA2YTI1MDIvNDkyODJlNTIwMDQ0ZjQzYjgzMjU3YjZiMDA2YjA3NTM/T3BlbkRvY3VtZW50JkV4cGFuZFNlY3Rpb249MSNfU2VjdGlvbjE=. Acesso em: 19 jul. 2023.
http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/...
) que descreve em Niterói, onde está enraizada sua carreira política. Também nesse caso, o deputado se tornou prefeito da cidade, eleito em 2012 e reeleito em 2016. De tal maneira, vemos ser ultrapassado, nesse excerto, o limite do sofrimento distante discutido por Boltanski (1993BOLTANSKI, Luc. La Souffrance à distance: Morale humanitaire, médias et politique. Paris: Métailié, 1993., p. 15 ss.) em situações de crise moral a afetar a figura do outro. Mas, é evidente, não no sentido de uma busca dessingularizada por justiça, forma de crítica social que aquele sociólogo colocou no centro da sociologia pragmática pioneira (BOLTANSKI, 1990BOLTANSKI, Luc. L’Amour et la justice comme compétences: Trois essais de sociologie de l’action. Paris: Métailié, 1990.). Ao contrário, na mensagem veiculada pelo referido trecho, o sofrimento da cidade e de suas comunidades é compartilhado em primeira pessoa, de modo que um problema externo parece ser convertido em problema interno, vivo na subjetividade do discursante, e de lá retornar ao público. Em sua denúncia encontramos o tipo de vinculação afetiva que, em vez de bloquear a objetividade da informação veiculada, explicita o seu ponto de partida (ROUX; CHARVOLIN; DUMAIN, 2013ROUX, Jacques; CHARVOLIN, Florian; DUMAIN, Aurélie. “Quand La Passion s’en mêle…: La Partialité comme principe d’objectivité”. In: ROUX, Jacques; CHARVOLIN, Florian; DUMAIN, Aurélie (ed.). Passions cognitives: L’Objectivité à l’épreuve du sensible. Paris: Éditions des Archives Contemporaines, 2013. pp.1-16., pp. 6-11). O trecho ilumina, portanto, a intensidade que fatores biográficos e seus mais subjetivos componentes podem assumir na fala política sobre desastres, especialmente por meio de entrelaçamentos morais e emotivos propiciados pela imaginação trágica.

Antes de passarmos ao encerramento do texto, é necessário um retorno crítico sobre a abordagem discursiva de Chateauraynaud. Como já pontuado, seu modelo de transformações admite a expressão discursiva envolvida em problemas públicos como uma atividade complexa, em que diferentes modalidades comunicacionais, entre elas a narrativa, alinham-se à argumentação (CHATEAURAYNAUD, 2003CHATEAURAYNAUD, Francis. Prospéro: Une Technologie littéraire pour les sciences humaines. Paris: CNRS, 2003., pp. 82-83). Não obstante, é o fator argumentativo que ocupa o centro de sua obra e que lhe serve como paradigma de ação crítica. Construindo seu entendimento sobre a questão sob a influência de autores como Alban Bouvier e Christian Plantin, Chateauraynaud (2011CHATEAURAYNAUD, Francis. Argumenter Dans Un Champ de force: Essai de balistique sociologique. Paris: PETRA, 2011. (Pragmatismes)., p. 103) enxerga a ação argumentativa como operando no confronto de ideias e propostas contraditoriamente orientadas a um mesmo problema e balizadas por parâmetros ontológicos, epistêmicos e axiológicos. Esse quadro precisa ser problematizado em, pelo menos, dois sentidos. Em primeiro lugar, uma teoria pragmática da argumentação não dá conta de toda a ação discursiva que atravessa, engendra e transforma problemas sociais e políticos. Evidencia isso toda a discussão acima sobre o papel da narrativa e de uma atividade discursiva ainda mais basilar, a nomeação, na definição dos desastres na política parlamentar fluminense. Momentos narrativos ou classificatórios como aqueles nos excertos B e G não são redutíveis ao paradigma argumentativo em questão, que encontramos com maior clareza, por exemplo, no trecho E.

Em consequência, e essa é a segunda observação, é preciso alargar os planos de referência da produção discursiva para além dos três mencionados, abarcando, pelo menos, o expressivo e o existencial.22 22 Ver em Domingues (2004 [2002], pp. 100-102) uma compreensão multidimensional do conceito de reflexividade que abrange o plano expressivo, reinterpretado como “ontológico-expressivo” em Mello (2017, p. 180). Neste artigo opto por manter separadas as diferentes dimensões analíticas da ação preensiva. Com inspiração em Burke (1941BURKE, Kenneth. “Semantic and Poetic Meaning”. In: BURKE, Kenneth. The Philosophy of Literary Form: Studies in Symbolic Action. Baton Rouge: Louisiania State University Press, 1941. pp. 138-167., pp. 144-146), o que podemos chamar de tangibilidade poética não se dá por questões de fato, conhecimento ou apenas de valores, mas pelo acúmulo de fatores emocionais por meio de sua sobreposição e contraposição: de forma não excludente, um significado poético é tão melhor quanto mais seu escopo emotivo der sentido à experiência vivida. Como os demais planos, com esse gesto a estética também ganha independência relativa da moral, ao qual está subsumida em Alexander. Já quanto ao elemento existencial, Chateauraynaud (2020CHATEAURAYNAUD, Francis. Alertes et lanceurs d’alerte. Paris: Que-sais je?, 2020., pp. 105-108) tem dado indicações preliminares da forma como o intrassubjetivo se encaixa em sua sociologia. Contudo, até o momento, elas apontam para uma discussão subordinada às suas teses principais sobre o público. O que a relação entre preensões interna, externa e comum sugere é que essa interioridade é inseparável do fluxo coletivo de problemas sem ser a ele redutível. Por isso a necessidade de admissão de um plano existencial que se diferencia do ontológico, estando voltado ao mais subjetivo senso de interioridade dos atores (CORRÊA, 2023CORRÊA, Diogo Silva. Anjos de fuzil: Uma etnografia das relações entre pentecostalismo e vida do crime na favela Cidade de Deus. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2023., p. 550). Como vimos, mesmo em ambientes altamente institucionalizados da política, o plano existencial pode adquirir destaque, estabelecendo assim algum grau de alinhamento entre preensões internas e externas.

Conclusão

O que é dito acima parte de um estudo sobre a forma como um problema público ressoa no interior de um dos participantes institucionais das arenas públicas. Ainda assim, considero que sua validade pode ser estendida a outros agentes e àquelas arenas como um todo. Quanto à questão mais específica da definição política dos desastres, este trabalho ressaltou, em primeiro lugar, a importância da análise do modo como eles são interpretados e apreendidos na prática pelos atores sociais. A maneira como esses participam da construção do desastre enquanto um problema influencia a dinâmica do próprio fenômeno, que não se desenvolve em separado de seu campo de experiências. No caso do meio político, e do parlamentar, em específico, as apropriações dos desastres serão atravessadas não apenas por características institucionais, mas também pelos aportes trazidos à questão pelas configurações objetivas e subjetivas das carreiras dos agentes. É imprescindível, portanto, que a análise dos desastres observe não apenas seus aspectos sociais, mas também os processos políticos e biográficos que concorrem ao seu objeto.

Com atenção voltada a essas coordenadas, o trabalho se deparou com a ideia de tragédia como destacado apoio convencional a sustentar a significação de desastres no corpus montado a partir da menção a deslizamentos associados a eventos pluviais na ação discursiva na Alerj entre 2010 e 2022. Com a observação de elementos de nomeação e narrativa, encontrou-se, nesse universo discursivo, uma preensão comum que toma tais fenômenos como tragédias vividas pelas populações, cidades e regiões onde eles ocorrem. Essa forma de preensão trágica confere aos eventos desastrosos elementos estéticos e expressivos que favorecem a tomada de posição por parte dos discursantes. Os parlamentares então se envolvem criticamente nos desdobramentos problemáticos dos desastres e buscam propor respostas à crise. O alargamento do conceito de preensão contribuiu nesta tarefa. Vimos como a interpretação trágica dos desastres na Alerj é construída, com destaque, na relação entre a preensão comum construída na Casa e as preensões externas individuais dos deputados. A atenção à expressividade desse processo acabou também por nos mostrar sua característica existencial. Observamos que, por vezes, elementos mais subjetivos, ligados às preensões internas daqueles atores, podem participar nas discussões coletivas.

Notas

  • *
    A pesquisa apresentada neste artigo se beneficiou da bolsa Programa Nacional de Pós-Doutorado da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (PNPD-Capes) no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Vila Velha (UVV) (número de processo 88882.317013/2019-01).
  • 1
    A busca, a seleção e a análise iniciais dos dados entre 2010 e 2018 se deram enquanto procedimento de pesquisa de pós-doutorado do autor por meio da bolsa PNPD-Capes mencionada na nota anterior. Dois trabalhos publicados se utilizaram de dados dentro desse recorte e pontualmente mencionaram a relevância da frequência do termo tragédia em suas análises (MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175.; MELLO; ROSA, 2018MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva. Desastres relacionados a deslizamentos de terra nos discursos do Legislativo fluminense, 2011-2018. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 42., 2018, Caxambu, MG. Anais […]. São Paulo: ANPOCS, 2018.;). Além de reformular aquele enquadramento temporal, o presente artigo se aprofunda nos significados da relação entre esse elemento simbólico e o problema dos desastres. Como apontam Mattedi e Butzke (2001MATTEDI, Marcos Antônio; BUTZKE, Ivani Cristina. “A relação entre o social e o natural nas abordagens de hazards e de desastres”. Ambiente e Sociedade, São Paulo, ano 4, n. 9, pp. 1-22., p.3), a categoria hazards sofre de difícil precisão conceitual. Na presente ocasião me atenho à concepção genérica que a entende relacionada com os efeitos potenciais de eventos físico-materiais em processos de desastre.
  • 2
    O recurso ao termo preensão, introduzido como opção da língua portuguesa para o conceito de prise na tradução de Diogo Silva Corrêa ao texto “L’Épreuve du tangible” [“A prova do tangível”], de Chateauraynaud (2018)CHATEAURAYNAUD, Francis. “A prova do tangível: Experiências de investigação e o surgimento da prova (Parte 1)”. Blog do Labemus, Brasil, 12 jul. 2018. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2018/07/12/a-prova-do-tangivel-experiencias-de-investigacao-e-o-surgimento-da-prova-parte-1-por-francis-chateauraynaud/. Acesso em 15 ago. 2023.
    https://blogdolabemus.com/2018/07/12/a-p...
    , justifica-se por ela captar bem a ideia de uma aderência entre o ator social e o mundo à sua volta. O que se expressa é um gesto de contato por meio do qual o ator participa do mundo ao mesmo tempo em que o mundo opera sobre ele.
  • 3
    Um dos conceitos centrais da sociologia pragmática produzida na França, épreuve tem sido traduzido ao português por meio de termos como prova, provação ou teste. Considero a terceira alternativa mais adequada para afastar a carga negativa de provação e para evitar confusão com outro conceito, preuve (referente às evidências fornecidas pelos atores em situações de teste - ver BOLTANSKI, 1990BOLTANSKI, Luc. L’Amour et la justice comme compétences: Trois essais de sociologie de l’action. Paris: Métailié, 1990.: p.46), este sim a ser chamado de prova neste artigo.
  • 4
    A tradução dessa citação e das demais retiradas de publicações em outras línguas que não o português e presentes neste artigo são do autor do mesmo.
  • 5
    O peso das diferentes interpretações dos agentes públicos na apreciação de objetos presentes em suas atuações não se restringe ao problema dos desastres, como mostram Jesus e Gomes (2021)JESUS, Maria Gorete Marques de; GOMES, Mayara de Souza. “Nem tudo é o que parece: A disputa semântica sobre a tortura no sistema de justiça criminal”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 14, n. 2, pp. 361-378, 2021. em discussão sobre o sistema de justiça criminal brasileiro.
  • 6
    O Routledge Handbook of Hazards and Disaster Risk Reduction (WISNER; GAILLARD; KELMAN, 2012bWISNER, Ben; GAILLARD, Jean-Christophe; KELMAN, Ilan (ed.). The Routledge Handbook of Hazards and Disaster Risk Reduction. London; New York: Routledge, 2012b.), embora dedique capítulos específicos aos níveis da administração do desastre (internacional, nacional e local), não oferece o mesmo tratamento às diferentes esferas de poder.
  • 7
    Becker (1991BECKER, Howard. Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. New York: The Free Press, 1991 [1963]. [1963], pp. 111-112) acena nessa direção ao abordar as autoinvestigações de músicos despertadas por dilemas que encontram em suas carreiras.
  • 8
    A primeira distinção entre preensões internas e externas tem como referência uma discussão sobre coletividades (MELLO, 2017MELLO, Fabrício Cardoso de. Assimetria e contestação: Uma sociologia pragmatista das subjetividades coletivas. 2017. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.). Na presente ocasião dou continuidade ao desenvolvimento dos conceitos enquanto ferramentas para análise no âmbito individual (MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., 2022MELLO, Fabrício Cardoso de. “On the Material Supports of Subjectivity: Mead, the Self, and the New Mastery of Nature”. Social Science Information, Thousand Oaks, CA, vol. 61, n. 2-3, pp. 245-270, 2022.), sistematizando seu elo com elementos biográficos e existenciais e sua relação com as preensões comuns. Em Mello (2022)MELLO, Fabrício Cardoso de. “On the Material Supports of Subjectivity: Mead, the Self, and the New Mastery of Nature”. Social Science Information, Thousand Oaks, CA, vol. 61, n. 2-3, pp. 245-270, 2022. é indicado que a distinção analítica entre preensões internas e externas é referencial. Suas noções de interioridade e externalidade tomam como parâmetro o ator a quem elas são empregadas. Ainda que no presente artigo a mobilização desses conceitos esteja concentrada em diálogo com Chateauraynaud, aquele outro trabalho explicita a influência recebida de Mead em suas diferentes faces (jamesiana, deweyana e whiteheadiana).
  • 9
    O diagrama reconfigura a dinâmica entre preensões internas e externas apresentada em Mello (2017MELLO, Fabrício Cardoso de. Assimetria e contestação: Uma sociologia pragmatista das subjetividades coletivas. 2017. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017., p. 200).
  • 10
    Um estudo sobre produção legislativa estadual no contexto de desastre é oferecido por Resende e Amaral (2019)RESENDE, Roberta Carnelos; AMARAL, Igor. “Comportamento legislativo e financiamento eleitoral: O caso do desastre da Samarco”. Revista Psicologia Política, Florianópolis, vol. 19, n. spe., pp.44-61, 2019..
  • 11
    Não afirmo que os discursos parlamentares publicamente acessíveis esgotam as vias de construção preensiva no meio parlamentar, no qual as interações cotidianas não registradas oficialmente também fazem parte da dinâmica política.
  • 12
    O Anuário brasileiro de desastres naturais: 2011 enumera 912 mortes nesse desastre (BRASIL, 2012BRASIL. Anuário brasileiro de desastres naturais: 2011. Brasília, DF: MI, 2012., p. 63), Freitas et al (2012FREITAS, Carlos Machado de; CARVALHO, Mauren Lopes de; XIMENES, Elisa Francioli; ARRAES, Eduardo Fonseca; GOMES, José Orlando. “Vulnerabilidade socioambiental, redução de riscos de desastres e construção da resiliência: Lições do terremoto do Haiti e das chuvas fortes na Região Serrana, Brasil”. Ciência e Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, vol. 17, n. 6, pp. 1577-1586., p. 1581) mencionam 918 óbitos e o Banco Mundial (2012BANCO MUNDIAL. Avaliação de perdas e danos: Inundações e deslizamentos na Região Serrana do Rio de Janeiro - Janeiro de 2011. Brasília, DF: Banco Mundial, 2012., p.18) coloca esse número em 905, admitindo a possibilidade dele ser maior.
  • 13
    Ver http://www3.alerj.rj.gov.br/lotus_notes/default.asp?id=57 (acesso em: 20 jul. 2023). A seção “discursos e votações” possibilita a busca de notas taquigráficas de discursos, pronunciamentos pela ordem e votações nas sessões da Assembleia a partir de 2011. Para buscas do mesmo tipo de material no ano de 2010, ver http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/taqalerj2006.nsf/5d50d39bd976391b83256536006a2502/$searchForm?SearchView (acesso em: 20 jul. 2023). Sobre a dinâmica do processo legislativo na Alerj, menciona-se que, entre março de 2020 e maio de 2022, as sessões da Casa ocorreram nos formatos remoto e híbrido devido à pandemia da covid-19.
  • 14
    Documentos referentes a discussões e votações em geral excedem o volume médio de um discurso individual em plenário. Em favor da coesão contextual com o tema do corpus, tais tipos de documento não foram inclusos quando sua menção a deslizamentos e eventos pluviais estivesse restrita a uma, ou pouco mais de uma, frase e sua matéria central não estivesse relacionada satisfatoriamente às questões como desastres, defesa civil, gestão urbana ou habitação.
  • 15
    A adaptação do Prospéro ao português brasileiro traduziu épreuves, derivada do conceito pragmático, como provas. Com o intuito de manter a coerência conceitual do artigo, manterei o termo testes para me referir também às épreuves prospérianas. Sobre a adaptação do programa ao português brasileiro, ver Gouveia (2016)GOUVEIA, Flávia. Controvérsias sobre a sustentabilidade do etanol combustível no Brasil: Panorama e investigação socioinformática dos jornais on-line de amplo alcance. 2016. Tese (Doutorado em Política Científica e Tecnológica) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2016..
  • 16
    A elaboração de categorias no Prospéro é colaborativa e cumulativa. Mesmo ajustando-as às propriedades de sua pesquisa, o usuário herda o trabalho acumulado de construção que a comunidade de usuários do programa desenvolveu a partir do estudo de várias temáticas diferentes. Ele é, contudo, soberano: é a sua decisão que prevalece quando decide aproveitar parcial ou integralmente categorias construídas em outras pesquisas ou por outros pesquisadores. Sua interpretação é elemento central nesse processo, de modo que não há modelo rígido ou acabado para lidar com as categorias (MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., p. 161).
  • 17
    Algumas das categorias de entidades aqui analisadas já foram observadas em trabalhos prévios em que este autor lidou com a ação discursiva no Legislativo fluminense (MELLO, 2020MELLO, Fabrício Cardoso de. “Desastre, política e dinâmica discursiva: Elementos para uma hermenêutica pragmática a partir de discursos nos Legislativos estaduais de Rio de Janeiro e Espírito Santo”. In: MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva; MENDONÇA, Marcos Barreto de; CHATEAURAYNAUD, Francis; DEBAZ, Josquin (org.). Sociologia pragmática das transformações em diálogo: Riscos e desastres no Brasil Contemporâneo. Vitória: Milfontes, 2020. pp. 145-175., pp. 161-171; MELLO; ROSA, 2018MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva. Desastres relacionados a deslizamentos de terra nos discursos do Legislativo fluminense, 2011-2018. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 42., 2018, Caxambu, MG. Anais […]. São Paulo: ANPOCS, 2018., pp. 21-24).
  • 18
    Sobre a relação entre habitação urbana, remoções e sofrimento social no contexto carioca, ver Petti (2020)PETTI, Daniela. “Da resistência ao poder: Governos da vida, sofrimento social e a violência da remoção”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, Rio de Janeiro, vol. 13, n. 2, pp. 533-550, 2020..
  • 19
    Para preservar a fidelidade aos textos, optou-se por manter a grafia original dos documentos sem sinalização de erros na escrita ou padronização editorial. Os excertos não representam a totalidade da visão de seus respectivos discursantes no corpus, tampouco uma síntese do conteúdo deste.
  • 20
    Smith (2019)SMITH, Simon. “Narrativity Discovered and Narrativity Uncovered: Narration and Narrativization in Related Political Discourse”. Slovo a Slovesnot, Prague, vol. 80, n. 2, pp. 83-104, 2019. oferece uma relevante discussão sobre a narrativa a partir do uso da funcionalidade de fórmulas do Prospéro.
  • 21
    Tal característica da noção de tragédia foi observada preliminarmente, e sem referência ao debate narrativo aqui referenciado, em Mello e Rosa (2018MELLO, Fabrício Cardoso de; ROSA, Teresa da Silva. Desastres relacionados a deslizamentos de terra nos discursos do Legislativo fluminense, 2011-2018. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS, 42., 2018, Caxambu, MG. Anais […]. São Paulo: ANPOCS, 2018., p. 24).
  • 22
    Ver em Domingues (2004DOMINGUES, José Maurício. “Reflexividade, individualismo e modernidade”. In: Ensaios de Sociologia: Teoria e pesquisa. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2004 [2002]. pp. 85-110. [2002], pp. 100-102) uma compreensão multidimensional do conceito de reflexividade que abrange o plano expressivo, reinterpretado como “ontológico-expressivo” em Mello (2017MELLO, Fabrício Cardoso de. Assimetria e contestação: Uma sociologia pragmatista das subjetividades coletivas. 2017. Tese (Doutorado em Sociologia) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017., p. 180). Neste artigo opto por manter separadas as diferentes dimensões analíticas da ação preensiva.

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Editor responsável: Michel Misse

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Jul 2023
  • Aceito
    22 Set 2023
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