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DO OLHAR COMUM PARA A CRIATIVIDADE ÀS EPISTEMOLOGIAS DO SUL: TECENDO ORGANIZAÇÕES MAIS QUE COLABORATIVAS

Os temas da criatividade e da inovação, que desencadeiam geração de valor nas organizações, abrem a presente edição da REAd com dois artigos: Creativity in the management field in Brazil: trajectory and future directions e Fatores associados à adoção de tecnologia no setor agropecuário. Embora indissociadas, na prática, criatividade e inovação trilham origens epistemológicas distintas – a primeira motivada pela disposição e pela inteligência individual, aplicada à solução de problemas complexos, e a segunda induzida por mobilizações de grupos em busca de aplicações que vão da concepção de uma nova ideia até sua materialização em valor de mercado (Rickards, 1991RICKARDS, T. Innovation And Creativity: Woods, Trees And Pathways R&D Management, v. 21, n. 2, p. 97-108, 1991.). Essa distinção, no entanto, dissolve-se nas práticas das organizações à medida que ambas, criatividade e inovação, são expressas como comportamentos direcionados, sustentados por capacidades, motivação e persistência para trazer respostas às demandas organizacionais internas e externas. Há, de acordo com estudos de diversas correntes teóricas neste campo (Richards, 2007RICHARDS, R. Everyday creativity and new views of human nature: Psychological, social, and spiritual perspectives. American Psychology Association. APA Psyc Books, 2007. https://doi.org/10.1037/11595-000.
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; Glăveanu; Sierra, 2015GLĂVEANU, V. P.; SIERRA, Z. Creativity and epistemologies of the South. Culture & Psychology, v. 21, n. 3, p. 340-358, 2015.), uma continuidade da criatividade individual – imbuída de valores e entendida como originalidade – para a criatividade social, que demanda colaboração explícita e implícita entre indivíduos e vem recebendo maior atenção nas últimas duas décadas (Montuori, 2019MONTUORI, A. Creating Social Creativity: Integrative Transdisciplinarity and the Epistemology of Complexity. In: LEBUDA, I, GLĂVEANU, V. P. (eds.) The Palgrave Handbook of Social Creativity Research. Palgrave Studies in Creativity and Culture. Palgrave Macmillan, Cham, 2019. https://doi.org/10.1007/978-3-319-95498-1_25.
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).

É nesse contexto que, em Creativity in the management field in Brazil: trajectory and future directions, Henrique Muzzio, César Turetta, Caroline Marques Cavalcante Cunha e Jean Soares da Silva realizam uma revisão sistemática da literatura sobre criatividade organizacional no Brasil e discutem temas emergentes na área, como sociomaterialidade, inteligência artificial, criatividade distribuída, poliarquismo e ambidestria. Na sequência desta edição, Diego Pierotti Procópio, Erlaine Binotto e Matheus Wemerson Gomes Pereira oferecem uma revisão da literatura acadêmica para emoldurar os Fatores associados à adoção de tecnologia no setor agropecuário, em um contexto multissetorial e interdisciplinar que caracteriza os mais recentes estudos de inovação direcionados à compreensão de como a tekné se entrelaça com a polissemia cultural (Montuori, 2019MONTUORI, A. Creating Social Creativity: Integrative Transdisciplinarity and the Epistemology of Complexity. In: LEBUDA, I, GLĂVEANU, V. P. (eds.) The Palgrave Handbook of Social Creativity Research. Palgrave Studies in Creativity and Culture. Palgrave Macmillan, Cham, 2019. https://doi.org/10.1007/978-3-319-95498-1_25.
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). O artigo sintetiza o processo de adesão (e de abandono) de tecnologias na agropecuária, destacando a necessidade da intensificação sustentável na propriedade rural face ao contexto de mudanças climáticas e ao aumento da demanda mundial por alimentos.

A área de Marketing está representada, nesta edição, com dois trabalhos. O primeiro, The appeal of novelty: the effect of price tag presentation on the purchase intention of new products, assinado por Francine Zanin Bagatini, Rafael Luís Wagner e Eduardo Rech, mostra e discute resultados de experimentos sobre a influência da apresentação de etiquetas com informações sobre novidade e preço de um produto. Os achados atestam que a intenção de compra dos consumidores é maior, perante produtos com apelo de novidade, quando também é apresentada a etiqueta de preço. Assim, a existência ou não de informações adicionais à visualização do produto abre novas perspectivas de compreensão do comportamento do consumidor. O segundo artigo de Marketing, O papel da interação em serviços na identificação do consumidor-empresa: uma abordagem no contexto de ensino superior, tem autoria de Ricardo Saraiva Frio, Clécio Falcão Araujo e Felipe Prestes Kolosque. Os autores exploram o boca a boca na interação em serviços entre estudantes universitários e funcionários de instituições de ensino superior. A principal implicação gerencial desse estudo é alertar os gestores das organizações de ensino superior quanto à importância de preparar seus funcionários para interações positivas com estudantes.

É interessante trazer luz às questões comportamentais e ao olhar das organizações como grupos em evolução, pois tais fatores permeiam os artigos da presente edição. Em O uso de estratégias de legitimidade: um estudo nos três maiores frigoríficos brasileiros, José Alexandre dos Santos, Denise Barros de Azevedo, Fernando Faleiros de Oliveira e Vinícius Soares de Oliveira analisam 17 relatórios de sustentabilidade de três grandes frigoríficos abrangendo um período total de 2011 a 2021, com base na teoria da legitimidade. Ancorando-se principalmente em Suchman (1995)SUCHMAN, M. C. Managing Legitimacy: Strategic And Institutional Approaches. Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 571-610, 1995., para quem as organizações buscam alinhar suas condutas aos valores aceitos pela sociedade, os autores desse estudo concluíram que os grandes frigoríficos brasileiros dedicam a maior parte de sua atenção à tarefa de ganhar legitimidade moral, sendo esta especialmente direcionada aos stakeholders. Verificam, desta forma, dissonâncias entre o discurso e as práticas de responsabilidade social de tais empresas, constantemente julgadas pelos elevados impactos ambientais negativos causados por suas operações.

Esta edição ainda contempla os leitores com três artigos sobre estudos organizacionais: Abordagens de(s)coloniais na gestão e nas organizações, de Elisabeth Cavalcante dos Santos; Shirley Anne Tate e sua perspectiva feminista negra decolonial: contribuições para os estudos organizacionais, de Mariana Luísa da Costa Lage; e Reflexões sobre as cotas de gênero à luz da teoria crítica feminista de Nancy Fraser, ensaio assinado por Thais Fernandes, Danilo Andretta e Heliani Berlato. É preciso destacar, aqui, a importância do olhar atento a esses trabalhos, que versam sobre a subversão à lógica gerencialista e, em um patamar distinto das perspectivas de criatividade e inovação convencionais, propõem leituras variadas das Epistemologias do Sul (Santos; Meneses, 2010SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Perdizes (SP), Ed. Cortez, 2010.), visibilisando saberes, práticas e conhecimentos historicamente ignorados ou deslocados de seu protagonismo pelo pensamento colonialista e neoliberal. É nesse diapasão que Elisabeth Santos oferece uma análise de duas abordagens de(s)coloniais recentes, as quais têm trazido subsídios para a gestão organizacional: as abordagens Decoloniais Latino-Americanas e as Epistemologias do Sul. Nessa análise, ela aprofunda os temas gestão ambiental, ensino de gestão, gestão em organizações não empresariais, pesquisa relativa à gestão e às organizações; e gestão internacional e sugere ações decolonizadoras capazes de contribuir para novos entendimentos, inclusive de inovação.

O artigo de Mariana Lage nos adverte que há poucas contribuições da visão feminista negra decolonial para os estudos organizacionais. Assim, a autora incursiona pela obra de Shirley Tate, particularmente na interseccionalidade entre feminismo e teoria racial, mostrando como a academia reproduz o racismo institucional e interpessoal, o que muitas vezes passa despercebido nas microagressões sob forma de exclusões e da manutenção da “inocência branca”. De certa forma, os trabalhos de Elisabeth dos Santos e de Mariana Lage conversam entre si ao reforçarem a necessidade de atenção às epistemologias negras latino-americanas e caribenhas nos estudos organizacionais. Finalmente, mas não menos relevante, damos espaço ao ensaio de Fernandes, Andretta e Berlato, o qual questiona a efetividade pessoal, profissional e organizacional das cotas de gênero para a melhoria das condições de vida e de trabalho da mulher. Se, por um lado, essas cotas foram eficazes para aumentar a representatividade das mulheres nos conselhos administrativos, por força de lei, por outro lado, não aumentaram a percepção sobre diversidade nas organizações e não tornaram as organizações que adotaram o sistema de cotas mais atrativas para quem busca emprego. Essa análise, embasada na perspectiva de emancipação feminina de Nancy Fraser, leva a questionamentos sobre a apropriação da adoção de sistemas de cotas de gênero pelas organizações com intuito meramente instrumental de cumprir requisitos de leis. Ao final, os autores concluem que a mulher, em vez de ter a chance de exercer uma autenticidade de liderança feminina, acaba oprimida por apenas se encaixar em papéis delineados pela mentalidade machista, performando com o mesmo direcionamento produtivista da sociedade patriarcal. Isso nos leva a uma reflexão sobre como os estudos desta edição se entrelaçam: começamos com a questão da criatividade e da inovação e terminamos com constatações do feminismo ainda lutando por romper amarras.

Podemos ilustrar esse percurso com a história da bicicleta, uma das inovações mais importantes no contexto de velocidade característica da sociedade industrial masculina, que acabou por beneficiar pessoas menos favorecidas e ter versões adaptadas ao uso feminino. Em 1889, quando o design da bicicleta ainda passava por rudimentares alterações funcionais e visuais, uma ciclista inglesa fez uma parada num café em seu tour pelo país. Por pedalar vestindo uma knicker bocker (aquele tipo de calça larga com afunilamento nos tornozelos, usada por jogadores de golfe da época), foi barrada pelo dono do estabelecimento. O caso, relatado por Bijiker (1997)BIJIKER, W. E. Of Bicycles, Bakelites, and Bulbs. Toward a Theory of Sociotechnical Change. MIT Press, Cambridge, Massachusetts. London, England, 1997., acabou na justiça e ilustra bem como a inovação da tekné não anda órfã, mas espalha seus efeitos para práticas sociais que, muitas vezes, expressam aversão e subversão àquilo que repudia o desejo de liberdade que não é enxergado. E, assim, podemos dizer que a criatividade e a inovação, em seu atual status interdisciplinar na academia, anseiam por ser mais que transdisciplinares e fruto de organizações colaborativas: querem postular um espaço em novas epistemologias (Santos; Meneses, 2010SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Perdizes (SP), Ed. Cortez, 2010.).

Para fechar este editorial, reforçamos nosso comunicado de que, no ano que antecede a comemoração de seu trigésimo aniversário, a REAd traz ao seu público a chamada do dossiê Escravização contemporânea no trabalho, concebido e organizado pela editora Julice Salvagni e disponível em https://seer.ufrgs.br/index.php/read/announcement/view/1824. A todos, uma excelente leitura!

REFERÊNCIAS

  • BIJIKER, W. E. Of Bicycles, Bakelites, and Bulbs Toward a Theory of Sociotechnical Change. MIT Press, Cambridge, Massachusetts. London, England, 1997.
  • GLĂVEANU, V. P.; SIERRA, Z. Creativity and epistemologies of the South. Culture & Psychology, v. 21, n. 3, p. 340-358, 2015.
  • MONTUORI, A. Creating Social Creativity: Integrative Transdisciplinarity and the Epistemology of Complexity. In: LEBUDA, I, GLĂVEANU, V. P. (eds.) The Palgrave Handbook of Social Creativity Research Palgrave Studies in Creativity and Culture. Palgrave Macmillan, Cham, 2019. https://doi.org/10.1007/978-3-319-95498-1_25
    » https://doi.org/10.1007/978-3-319-95498-1_25
  • RICKARDS, T. Innovation And Creativity: Woods, Trees And Pathways R&D Management, v. 21, n. 2, p. 97-108, 1991.
  • RICHARDS, R. Everyday creativity and new views of human nature: Psychological, social, and spiritual perspectives. American Psychology Association. APA Psyc Books, 2007. https://doi.org/10.1037/11595-000
    » https://doi.org/10.1037/11595-000
  • SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul Perdizes (SP), Ed. Cortez, 2010.
  • SUCHMAN, M. C. Managing Legitimacy: Strategic And Institutional Approaches. Academy of Management Review, v. 20, n. 3, p. 571-610, 1995.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024
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