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Prevalência e impacto de comorbidades em mulheres com dor pélvica crônica

RESUMO

JUSTIFICATIVA E OBJETIVOS:

A dor pélvica crônica (DPC) é uma condição comum em mulheres e frequentemente há comorbidades associadas. O objetivo deste estudo foi avaliar a prevalência de comorbidades em pacientes de DPC e buscar associações entre comorbidades e as manifestações da dor crônica.

MÉTODOS:

Estudo observacional de caso-controle com informações sociodemográficas, comportamentais e clínicas, incluindo comorbidades, em 246 mulheres, sendo 123 com DPC e 123 sem DPC (grupo controle).

RESULTADOS:

Ansiedade, depressão, enxaqueca e endometriose foram as comorbidades mais frequentes em mulheres com DPC. As comorbidades avaliadas no grupo com DPC não se associaram com o escore de intensidade da dor, com história de aborto, de violência física nem de violência sexual (p>0,05). No grupo de mulheres com DPC e endometriose, a mediana do escore de ansiedade e de depressão foi significativamente menor do que no grupo sem endometriose (14,5; IC 95%: 11,0-14,9) versus (17,0; IC 95%: 14,6-16,7), p=0,012 e (13,0; IC 95%: 11,1-15,9) versus (16,5; IC 95%: 14,5-17,6), p=0,045, respectivamente. Em pacientes com enxaqueca, a mediana do escore de depressão foi maior no grupo de mulheres com DPC em relação ao grupo sem DPC (15,0; IC 95%: 14,1-17,8) versus (10,0; IC 95%: 8,5-12,4), p=0,048.

CONCLUSÃO:

As comorbidades mais prevalentes em mulheres com DPC foram transtornos mentais, enxaqueca e endometriose. As comorbidades não se associaram à intensidade da dor, violência física ou sexual. O diagnóstico de endometriose associou-se a menores escores de ansiedade e de depressão em mulheres com DPC. A sobreposição de enxaqueca e DPC associou-se a um pior escore de depressão.

Descritores:
Comorbidades; Dor crônica; Dor pélvica; Endometriose

ABSTRACT

BACKGROUND AND OBJECTIVES:

Chronic pelvic pain (CPP) is a common condition in women and there are often associated comorbidities. The objective of this study was to evaluate the prevalence of comorbidities in patients with CPP and to seek associations between comorbidities and the manifestations of chronic pain.

METHODS:

Observational case-control study with sociodemographic, behavioral and clinical information, including comorbidities, in 246 women, 123 with CPP and 123 without CPP (control group).

RESULTS:

Anxiety, depression, migraine and endometriosis were the most frequent comorbidities in women with CPP. The comorbidities assessed in the CPP group were not associated with pain intensity score, history of abortion, physical violence or sexual violence (p>0.05). In the group of women with CPP and endometriosis, the median anxiety and depression score was significantly lower than in the group without endometriosis (14.5; 95% CI: 11.0-14.9) versus (17.0; 95% CI: 14.6-16.7), p=0.012 and (13.0; 95%CI: 11.1-15.9) versus (16.5; 95% CI: 14.5-17.6), p= 0.045, respectively. In patients with migraine, the median depression score was higher in the group of women with CPP compared to the group without CPP (15.0; 95% CI: 14.1-17.8) versus (10.0; 95% CI: 8.5-12.4), p=0.048.

CONCLUSION:

The most prevalent comorbidities in women with CPP were mental disorders, migraine and endometriosis. Comorbidities were not related to pain intensity, physical violence or sexual violence. Having a diagnosis of endometriosis is associated with lower anxiety and depression scores in patients with CPP. Overlapping migraine and CPP were associated with a worse depression score.

Keywords:
Chronic pain; Comorbidity; Endometriosis; Pelvic pain

INTRODUÇÃO

A dor pélvica crônica (DPC) é mais frequentemente definida como sendo uma condição de saúde caracterizada por dor pélvica não cíclica com duração maior de seis meses. A DPC pode estar associada a consequências cognitivas, comportamentais, sexuais e emocionais11 Arnold MJ, Osgood At, Aust A. Chronic pelvic pain in women: ACOG Updates Recommendations. Am Fam Physician 2021;103(3):186-8.. Entre 5,7% e 26,6% das mulheres em idade reprodutiva, no mundo, são afetadas pela doença22 Ahangari A. Prevalence of chronic pelvic pain among women: an updated review. Pain Physician. 2014;17(2):E141-7.. Dados epidemiológicos brasileiros são similares aos mundiais com prevalência de DPC em 19% das mulheres brasileiras com idade entre 14 e 60 anos33 Coelho LS, Brito LM, Chein MB, Mascarenhas TS, Costa J P, Nogueira AA, Poli-Neto OB. Prevalence and conditions associated with chronic pelvic pain in women from São Luís, Brazil. Braz J Med Biol Res. 2014;47(9):818-25..

Nos últimos anos, a compreensão da etiologia da DPC tem avançado consideravelmente, havendo cada vez mais consciência de sua natureza complexa e multifatorial, envolvendo fatores predisponentes, como a catastrofização da dor, a ocorrência de eventos adversos na infância e a associação com ansiedade e depressão44 Vincent K, Evans E. An update on the management of chronic pelvic pain in women. Anaesthesia. 2021;76(S4):96-107.. A literatura atual indica que a DPC é uma síndrome de dor crônica que combina mau funcionamento dos músculos do assoalho pélvico e disfunção da percepção da dor ligada a fatores psicológicos e cognitivos envolvidos, por exemplo, no processamento da dor55 Grinberg K, Sela Y, Nissanholtz-Gannot R. New Insights about chronic pelvic pain syndrome (CPPS). Int J Environ Res Public Health. 2020;17(9):3005..

A relação entre determinadas comorbidades e a DPC costuma influenciar o seu diagnóstico e o tratamento. Nessa perspectiva, compreende-se que a etiologia e a perpetuação da DPC estão intimamente relacionadas às comorbidades dolorosas crônicas. Estruturas viscerais, tais como útero, intestino e bexiga, e estruturas somáticas como pele, músculos, fáscias e ossos compartilham caminhos neurais, que tornam os sintomas similares, difíceis de serem diferenciados (convergência viscero-visceral e viscero-somática). O papel do sistema nervoso central na modulação da dor torna a coexistência de condições pélvicas e não pélvicas ainda mais desafiadora no contexto clínico66 Lamvu G, Carrillo J, Ouyang C, Rapkin A. Chronic pelvic pain in women: a review. JAMA. 2021;325(23):2381.. Comorbidades como endometriose, síndrome do intestino irritável (SII), cistite intersticial (CI), entre outras, estão associadas à um terço dos casos de DPC77 Howard FM. The role of laparoscopy in the chronic pelvic pain patient. Clin Obstet Gynecol. 2003;46(4):749-66.,88 Williams RE, Hartmann KE, Sandler RS, Miller WC, Steege J F. Prevalence and characteristics of irritable bowel syndrome among women with chronic pelvic pain. Obstet Gynecol. 2004;104(3):452-8.,99 Cheng C, Rosamilia A, Healey M. Diagnosis of interstitial cystitis/bladder pain syndrome in women with chronic pelvic pain: a prospective observational study. Int Urogynecol J 2012;23(10):1361-6..

Ressalta-se uma carência de estudos randomizados e controlados voltados para a terapêutica da DPC. Estudos observacionais e relato de experiências de especialistas descrevem que o tratamento visa primeiramente o controle álgico, e estimulam a investigação da causa da dor para realizar um melhor direcionamento. Desta forma, investigar a frequência de comorbidades em mulheres com DPC, sua associação com a intensidade da dor, com violência física ou sexual e com a saúde mental, representa dados que podem auxiliar na lacuna da compreensão e integralidade do tratamento dessa condição de saúde.

MÉTODOS

Conduziu-se um estudo observacional de caso-controle entre maio de 2018 e agosto de 2021 nos ambulatórios de DPC e de planejamento familiar do Hospital Universitário da Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. Este estudo se deriva de um estudo maior, em que se avaliou o estilo parental, a saúde mental e a catastrofização da dor em mulheres com DPC1010 Siqueira-Campos VM, Fernandes LJH, de Deus JM, Conde DM. Parenting Styles, Mental Health, and Catastrophizing in Women with Chronic Pelvic Pain: A Case-Control Study. Int J Environ Res Public Health. 2022;19(20):13347..

Todos os procedimentos realizados atenderam aos requisitos estabelecidos na Declaração de Helsinki. A Comissão Interna de Ética do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás revisou e aprovou o protocolo do estudo sob o número de referência 2631464 e CAAE 66461217.5.0000.5078. Todas as participantes assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

Tamanho da amostra

O cálculo do tamanho amostral foi realizado para o estudo que envolveu a avaliação do vínculo parental, catastrofização e saúde mental em mulheres com DPC1010 Siqueira-Campos VM, Fernandes LJH, de Deus JM, Conde DM. Parenting Styles, Mental Health, and Catastrophizing in Women with Chronic Pelvic Pain: A Case-Control Study. Int J Environ Res Public Health. 2022;19(20):13347.. Foi baseado nos seguintes parâmetros: nível de significância 0,05 (α=0,05), poder estatístico de 0,80 (β=0,20), proporção de casos para controles de 1 (k=1), odds ratio de 2,5 (OR = 2,5), e uma proporção esperada de estilo parental disfuncional de 54,4% em mulheres com DPC. O número mínimo de mulheres necessário para a amostra total foi estimado em 202, sendo 101 mulheres com DPC e 101 controles sem dor.

Procedimentos

Entrevistas individuais foram realizadas para obterem-se informações sociodemográficas, comportamentais e clínicas. Instrumentos específicos foram usados para avaliar ansiedade e depressão. As entrevistas foram conduzidas em salas privativas para garantir privacidade às participantes. Além da informação espontânea das participantes sobre serem portadoras de endometriose, realizou-se uma verificação nos prontuários das 246 participantes da pesquisa em busca de sinais de endometriose ao exame físico e em exames de imagem (ultrassonografia transvaginal/parede ou/e abdominal ou/e ressonância magnética de pelve ou/e procedimentos cirúrgicos).

Dados sociodemográficos, comportamentais e clínicos

As seguintes características sociodemográficas, comportamentais e clínicas foram investigadas em ambos os grupos: idade, anos de estudo (<12 anos/≥12 anos), fumante (sim/não), consumo de álcool nos últimos três meses (sim/não). Mulheres que atualmente fumam ou que pararam de fumar no ano anterior foram consideradas fumantes, enquanto aquelas que nunca fumaram ou que pararam de fumar há mais de um ano foram consideradas não fumantes. A violência física foi investigada a partir da pergunta: “Você já sofreu violência física?” (sim/não). A violência sexual foi investigada, perguntando-se: “Você já sofreu violência sexual?” (sim/não).

A dificuldade em relacionar-se com os outros foi avaliada a partir das respostas à pergunta: “Você está tendo dificuldades de relacionamento com alguém ou você está em conflito com alguém?” (sim/não). Investigou-se o histórico de cirurgia abdominal e/ou pélvica com respostas do tipo sim/não. A intensidade da dor foi avaliada por meio de uma escala numérica de dor (0-10) onde 0 significava ausência de dor e 10, a pior dor já sentida. Histórico de doenças crônicas foi investigado com base nas respostas à seguinte pergunta: “Você tem alguma dessas doenças crônicas aqui relacionadas? Hipertensão arterial (pressão alta), diabetes, hipotireoidismo, enxaqueca, fibromialgia, síndrome do intestino irritável, cistite intersticial (sim/não) ou alguma outra doença crônica?” (sim/não), e, se sim, qual a doença”?

Avaliação da ansiedade

Os sintomas de ansiedade foram investigados utilizando-se a versão da escala Generalized Anxiety Disorder-7 (GAD-7), traduzida e validada para o português brasileiro1111 Moreno AL, Sousa DA, Souza AMFLP, Manfro GG, Salum GA, Koller SH, Osório FL, Crippa JAS. Factor structure, reliability, and item parameters of the Brazilian-Portuguese version of the GAD-7 questionnaire. Temas Psicol. 2016;24:367-76.. Trata-se de um questionário de autorrelato com sete itens, referente às duas últimas semanas, com perguntas como: “Preocupar-se muito com diversas coisas?” ou “Ficar facilmente aborrecido/a ou irritado/a?”. As pontuações variam de 0 a 3 para cada item (0 = nenhuma; 1 = vários dias; 2 = mais da metade dos dias; e 3 = quase todos os dias). A pontuação total varia de 0 a 21, com ≥10/21 sendo a pontuação de corte para ansiedade1212 Patient Health Questionnaire (PHQ) Screeners. Available online: http://www.phqscreeners.com/ (accessed on 5 May 2018).
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Avaliação da depressão

O Questionário de Saúde do Paciente de 9 itens (PHQ-9), traduzido e validado para o português do Brasil, foi usado para identificar sintomas de depressão nas últimas duas semanas1313 Santos IS, Tavares B F, Munhoz TN, Almeida LS, Silva NT, Tams BD, Patella AM, Matijasevich A. Sensibilidade e especificidade do Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9) entre adultos da população geral [Sensitivity and specificity of the Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9) among adults from the general population]. Cad Saude Publica. 2013;29(8):1533-43.. Este questionário autoaplicável é baseado nos critérios diagnósticos para depressão maior descritos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, quarta edição (DSM-IV) e inclui a pergunta: “Durante as últimas duas semanas, com que frequência você foi incomodada por qualquer um dos seguintes problemas abaixo?”, por exemplo, “se sentir cansado/a ou com pouca energia”. As pontuações variam de 0 a 3 para cada item, sendo que 0 significa “nenhuma vez”; 1 “vários dias; 2 “mais da metade dos dias” e 3 “quase todos os dias”. Uma pontuação ≥10/27 é considerada indicativo de depressão1212 Patient Health Questionnaire (PHQ) Screeners. Available online: http://www.phqscreeners.com/ (accessed on 5 May 2018).
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Análise estatística

Na análise descritiva foram calculadas as frequências absolutas e relativas para as variáveis qualitativas ou categóricas, e calculados médias e desvios padrão (DP) para as variáveis quantitativas contínuas. O teste Exato de Fisher foi utilizado para comparar frequências absolutas e relativas. O teste de Mann-Whitney foi utilizado para comparar a idade entre os grupos com e sem DPC, bem como verificar possíveis associações entre as medianas dos escores de ansiedade e de depressão em mulheres com DPC com e sem comorbidades crônicas não mentais. A análise de regressão logística (não ajustada e ajustada) foi utilizada para comparar os escores de ansiedade e de depressão em mulheres com enxaqueca nos grupos com e sem DPC. O software SPSS, versão 20, foi utilizado em toda a análise estatística. O nível de significância foi definido em 0,05.

RESULTADOS

Foram incluídas 246 mulheres, sendo 123 com DPC e 123 sem DPC. A média de idade das participantes foi 37,0± 6,9 anos no grupo com DPC e 31,9±7,2 anos no grupo sem DPC (p<0,001). A tabela 1 mostra outras características das participantes.

Tabela 1
Características das participantes do estudo, n (%).

A tabela 2 mostra a prevalência de comorbidades crônicas em ambos os grupos com e sem DPC. Ansiedade, depressão e enxaqueca foram as comorbidades mais frequentes nos dois grupos. Endometriose, CI e SII apareceram apenas no grupo com DPC. Averiguou-se que outras comorbidades não constantes na tabela 2 e menos frequentes, como lombalgia, doenças reumatológicas, alergias respiratórias, epilepsia, entre outras, tiveram distribuição similar nos dois grupos (p=0,226). A presença das comorbidades avaliadas nas 123 mulheres com DPC não se associou significativamente à intensidade da dor, violência física ou à violência sexual (dados não apresentados).

Tabela 2
Avaliação da frequência de comorbidades crônicas em 246 mulheres, n (%).

Na tabela 3 nota-se que, nas participantes com DPC, a mediana do escore de ansiedade de mulheres com endometriose (mediana: 14,5; IC95%: 11,0-14,9) foi significativamente menor do que em mulheres sem endometriose (mediana: 17,0; IC 95%: 14,6-16,7), p=0,012.

Tabela 3
Escore de ansiedade e comorbidades crônicas não mentais em 123 mulheres com dor pélvica crônica.

Na tabela 4 observa-se que, em mulheres com DPC, a mediana do escore de depressão foi significativamente menor em mulheres com endometriose (mediana: 13,0; IC 95%: 11,1-15,9) do que em mulheres sem endometriose (mediana: 16,5; IC 95%: 14,5-17,6), p= 0,045.

Tabela 4
Escore de depressão e comorbidades crônicas não mentais em 123 mulheres com dor pélvica crônica

Ao estudar as pacientes que relataram enxaqueca, nota-se que o escore de depressão foi maior e estatisticamente significante no grupo de mulheres com DPC quando comparado ao grupo de mulheres sem DPC, conforme mostrado na tabela 5.

Tabela 5
Escores de ansiedade e de depressão em mulheres que referiram enxaqueca, sendo 58 mulheres com dor pélvica crônica (DPC) e 41 mulheres sem DPC.

DISCUSSÃO

As comorbidades mais prevalentes em mulheres com DPC foram ansiedade, depressão, enxaqueca, endometriose, HAS e fibromialgia. A presente análise mostrou uma frequência significativamente maior de ansiedade, depressão, enxaqueca, endometriose e cistite intersticial no grupo de mulheres com DPC em comparação ao grupo controle.

Vários relatos da literatura documentaram a alta prevalência de comprometimento da saúde mental em mulheres com DPC, especialmente de ansiedade1212 Patient Health Questionnaire (PHQ) Screeners. Available online: http://www.phqscreeners.com/ (accessed on 5 May 2018).
http://www.phqscreeners.com/...
,1313 Santos IS, Tavares B F, Munhoz TN, Almeida LS, Silva NT, Tams BD, Patella AM, Matijasevich A. Sensibilidade e especificidade do Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9) entre adultos da população geral [Sensitivity and specificity of the Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9) among adults from the general population]. Cad Saude Publica. 2013;29(8):1533-43., o que corrobora os achados deste estudo. A ansiedade é uma comorbidade muito importante em mulheres com DPC e deve ser diagnosticada e tratada, conforme também recomendado em outros estudos em mulheres com DPC11 Arnold MJ, Osgood At, Aust A. Chronic pelvic pain in women: ACOG Updates Recommendations. Am Fam Physician 2021;103(3):186-8.,66 Lamvu G, Carrillo J, Ouyang C, Rapkin A. Chronic pelvic pain in women: a review. JAMA. 2021;325(23):2381.,1414 Romão A P, Gorayeb R, Romão GS, Poli-Neto OB, dos Reis FJ, Rosa-e-Silva JC, Nogueira AA. High levels of anxiety and depression have a negative effect on quality of life of women with chronic pelvic pain. Int J Clin Pract. 2009;63(5):707-11.. A depressão tem sido observada com elevada prevalência em mulheres com DPC e coexistiu com a ansiedade em 54% dessas mulheres em um estudo anterior1515 Siqueira-Campos VME, Da Luz RA, de Deus JM, Martinez EZ, Conde DM. Anxiety and depression in women with and without chronic pelvic pain: prevalence and associated factors. J Pain Res. 2019;12:1223-33.. No estudo atual, a ansiedade e a depressão acometeram cerca de três em cada quatro pacientes, o que sugere a importância do diagnóstico na consulta inicial a fim de oferecer um tratamento mais adequado a estas mulheres.

Outras comorbidades nesta população têm sido pouco estudadas. A presença de endometriose, nesta pesquisa, em 31,7% das portadoras de DPC é muito próxima do achado de um estudo77 Howard FM. The role of laparoscopy in the chronic pelvic pain patient. Clin Obstet Gynecol. 2003;46(4):749-66., que encontrou 33% de endometriose em 1524 mulheres com DPC submetidas à laparoscopia77 Howard FM. The role of laparoscopy in the chronic pelvic pain patient. Clin Obstet Gynecol. 2003;46(4):749-66.. A endometriose é, sem dúvida, a comorbidade mais importante associada à DPC, após a ansiedade e a depressão. A endometriose tem sido considerada a causa da dor, quando presente em mulheres com DPC1616 Stratton P, Berkley KJ. Chronic pelvic pain and endometriosis: translational evidence of the relationship and implications. Hum Reprod Update. 2011;17(3):327-46.,1717 Jarrell JF, Vilos GA, Allaire C, Burgess S, Fortin C, Gerwin R, Lapensee L, Lea RH, Leyland NA, Martyn P, Shenassa H, Taenzer P. No. 164-Consensus Guidelines for the Management of Chronic Pelvic Pain. J Obstet Gynaecol Can. 2018;40(11):e747-e787., mas o fato de muitas mulheres com endometriose não sentirem dor e a gravidade da endometriose não ter correlação com a intensidade da dor continuam intrigantes. A piora catamenial da dor em mulheres com DPC é um indicativo da necessidade da indução de amenorreia, independentemente da presença de endometriose1717 Jarrell JF, Vilos GA, Allaire C, Burgess S, Fortin C, Gerwin R, Lapensee L, Lea RH, Leyland NA, Martyn P, Shenassa H, Taenzer P. No. 164-Consensus Guidelines for the Management of Chronic Pelvic Pain. J Obstet Gynaecol Can. 2018;40(11):e747-e787.,1818 Siqueira-Campos VM, de Deus MSC, Poli-Neto OB, Rosa-E-Silva JC, de Deus JM, Conde DM. Current challenges in the management of chronic pelvic pain in women: from bench to bedside. Int J Womens Health. 2022;14:225-44..

No entanto, esse diagnóstico parece influenciar positivamente no grau de ansiedade e depressão, uma vez que a presença da doença associou-se a menores escores dessas comorbidades. Supõe-se que a ausência de um diagnóstico seja um fator estressor para as pacientes com DPC. Apesar disso, realizar laparoscopia não tem sido efetivo para solucionar o quadro doloroso manifestado nestas pacientes a longo prazo e, por isso, tem sido cada vez menos indicada1818 Siqueira-Campos VM, de Deus MSC, Poli-Neto OB, Rosa-E-Silva JC, de Deus JM, Conde DM. Current challenges in the management of chronic pelvic pain in women: from bench to bedside. Int J Womens Health. 2022;14:225-44.,1919 Aredo JV, Heyrana KJ, Karp BI, Shah JP, Stratton P. Relating chronic pelvic pain and endometriosis to signs of sensitization and myofascial pain and dysfunction. Semin Reprod Med. 2017;35(1):88-97.. Já o diagnóstico de endometriose através do exame físico e de exames não invasivos como a ultrassonografia transvaginal ou/e a ressonância magnética da pelve podem auxiliar no diagnóstico e tratamento, seja contribuindo para reduzir os escores de ansiedade e de depressão, seja direcionando uma melhor terapêutica.

A DPC e a enxaqueca são dores crônicas consideradas síndromes somatofuncionais2020 Warren JW, Morozov V, Howard FM. Could chronic pelvic pain be a functional somatic syndrome? Am J Obstet Gynecol. 2011;205(3):199.e1-5.. Portanto, a coexistência dessas duas morbidades observada em grande parte das mulheres do presente estudo não é surpresa. O estudo atual encontrou uma prevalência de enxaqueca em mulheres com DPC ainda maior anteriormente33 Coelho LS, Brito LM, Chein MB, Mascarenhas TS, Costa J P, Nogueira AA, Poli-Neto OB. Prevalence and conditions associated with chronic pelvic pain in women from São Luís, Brazil. Braz J Med Biol Res. 2014;47(9):818-25., mas ambos relatam uma frequência significativamente maior de enxaqueca no grupo com DPC quando comparado ao grupo controle. Ainda, a comorbidade da enxaqueca junto à DPC associou-se a piores escores de depressão. Isso corrobora a descrição da existência de circuitos neuronais e de neurotransmissores que promovem uma associação bidirecional entre depressão e dor crônica1010 Siqueira-Campos VM, Fernandes LJH, de Deus JM, Conde DM. Parenting Styles, Mental Health, and Catastrophizing in Women with Chronic Pelvic Pain: A Case-Control Study. Int J Environ Res Public Health. 2022;19(20):13347.. Portanto, a presença da comorbidade da enxaqueca torna ainda mais relevante o olhar atento para a saúde mental das mulheres com DPC.

A SII e a CI têm sido frequentemente relacionadas à DPC88 Williams RE, Hartmann KE, Sandler RS, Miller WC, Steege J F. Prevalence and characteristics of irritable bowel syndrome among women with chronic pelvic pain. Obstet Gynecol. 2004;104(3):452-8.,99 Cheng C, Rosamilia A, Healey M. Diagnosis of interstitial cystitis/bladder pain syndrome in women with chronic pelvic pain: a prospective observational study. Int Urogynecol J 2012;23(10):1361-6.. Neste estudo, a frequência encontrada foi menor do que o esperado. Provavelmente a falta de um instrumento específico de diagnóstico para caracterizá-las contribuiu para a menor frequência observada, uma vez que as participantes foram perguntadas se apresentavam estes diagnósticos. No entanto, mesmo não tendo sido feita uma pergunta diretamente sobre endometriose, como aconteceu com a CI e a SII, ela teve frequência elevada e que foi muito semelhante ao encontrado em relevante publicação da literatura77 Howard FM. The role of laparoscopy in the chronic pelvic pain patient. Clin Obstet Gynecol. 2003;46(4):749-66.. Provavelmente a SII e a CI são mesmo menos frequentes nesta amostra e na região do estudo. Ainda assim, para a CI houve diferença significativa em relação ao grupo controle, o que não se verificou em relação à SII, o que provavelmente teria ocorrido se a amostra de participantes do estudo fosse maior.

Ao analisar o presente estudo, é necessário ter em mente determinadas limitações. Deve considerar-se a diferença envolvida no estudo e a população geral, uma vez que a pesquisa foi realizada com pacientes de um hospital terciário. Até mesmo as mulheres que compunham o grupo sem DPC, por serem acompanhadas em um serviço de referência altamente especializado provavelmente não estão isentas de comorbidades, tornando-o um grupo relativamente menos representativo da população geral. Também houve limitações inerentes à própria metodologia de estudos observacionais do tipo caso-controle, uma vez que não é possível estabelecer relação de causa e efeito entre a DPC e as comorbidades.

Os destaques deste estudo consistem no tamanho considerável da amostra de uma população de mulheres com DPC em acompanhamento clínico, além do grupo controle em seguimento em um ambulatório de planejamento familiar, grupo tido como mais “normal” dentro de um hospital terciário. Até onde se sabe, este é o maior estudo observacional em que se investigou a frequência de comorbidades em mulheres com DPC em comparação a um grupo controle sem DPC.

CONCLUSÃO

A ansiedade, depressão, enxaqueca e a endometriose foram as comorbidades mais prevalentes em mulheres com DPC. As comorbidades não se associaram à intensidade da dor, violência física ou sexual. O diagnóstico de endometriose associou-se a menores escores de ansiedade e de depressão em mulheres com DPC. A sobreposição de enxaqueca e DPC foi associada a um pior escore de depressão.

  • Fontes de fomento: não há.

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Editado por

Editor associado responsável: Luciana Buin https://orcid.org/0000-0002-1824-5749

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Jan 2024
  • Aceito
    23 Mar 2024
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