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Antonio Gramsci em Refração: os Usos de Fernando Henrique Cardoso

Antonio Gramsci in Refraction: The Uses of Fernando Henrique Cardoso

Antonio Gramsci en Réfraction: Les Usages de Fernando Henrique Cardoso

Antonio Gramsci en Refracción: Los Usos de Fernando Henrique Cardoso

Resumo

O artigo tem como objetivo investigar um percurso singular de recepção e tradução das ideias de Antonio Gramsci no Brasil. Este trabalho visa reconstruir o pensamento político de Fernando Henrique Cardoso durante a ditadura militar e a transição democrática brasileira (1964-1988) tomando como fio condutor a interpretação e uso que esse autor faz das ideias de Antonio Gramsci ao longo do tempo para a análise da formação do Estado, das classes sociais e da política no Brasil. O texto desenvolve a hipótese da centralidade dos conceitos gramscianos no pensamento de Cardoso em três fases de refração gramsciana: i) entre 1964 e 1974, na tese da hegemonia dependente da burguesia no Brasil, ii) entre 1974 e 1983, na defesa do Estado brasileiro como “Príncipe Moderno” enquanto categoria para análise da coalizão agrário-industrial-militar no pós-1964, e iii) de 1983 a 1988, na formulação do transformismo autoritário-esclarecido como comportamento das elites econômicas e militares brasileiras diante da pressão pela democratização do regime. Os usos dos conceitos gramscianos em Cardoso são criativos em todos esses momentos. Isto é, o pensador brasileiro se inspira nos conceitos gramscianos para criar seu próprio léxico a ser utilizado na análise da política brasileira. O artigo explora, portanto, não apenas a recepção, mas também a tradução das ideias de Gramsci em Fernando Henrique Cardoso.

hegemonia; brasil; gramsci; fernando henrique cardoso; democracia

Abstract

This article aims to investigate a unique path in the reception and translation of Antonio Gramsci’s ideas in Brazil. This work attempts to reconstruct Fernando Henrique Cardoso’s political thought during the Brazilian military dictatorship and democratic transition (1964-1988), focusing on his interpretation and use of Antonio Gramsci’s ideas to analyze state formation, social classes and politics in Brazil. The paper argues that the Gramscian concepts are central to Cardoso’s political thought in three phases of Gramscian refraction: (i) between 1964 and 1974, in the thesis of the Brazilian bourgeoisie’s dependent hegemony; (ii) between 1974 and 1983, in the argument of the Brazilian state as the “Modern Prince” as a concept for the analysis of the agrarian-industrial-military coalition in the post-1964 period; and (iii) from 1983 to 1988, in the definition of the Brazilian economic and military elites’ behavior as a authoritarian-scletortic transformism in the face of the pressures for the democratization of the political regime. Cardoso’s uses of Gramscian concepts are creative at all these moments. That is, the Brazilian thinker draws on Gramscian concepts to create his own lexicon to employ in the analysis of Brazilian politics. The article therefore explores not only the reception, but also the translation of Gramsci’s ideas in Fernando Henrique Cardoso.

hegemony; Brazil; Gramsci; Fernando Henrique Cardoso; democracy

Résumé

L’article vise à étudier un parcours unique de réception et de traduction des idées d’Antonio Gramsci au Brésil. Ce travail vise à reconstruire la pensée politique de Fernando Henrique Cardoso pendant la dictature militaire et la transition démocratique brésilienne (1964-1988), en prenant comme fil conducteur l’interprétation et l’utilisation par l’auteur des idées d’Antonio Gramsci au fil du temps pour analyser la formation de l’État, des classes sociales et de la politique au Brésil. Le texte développe l’hypothèse de la centralité des concepts gramsciens dans la pensée de Cardoso en trois phases de réfraction gramscienne : (i) entre 1964 et 1974, dans la thèse de l’hégémonie dépendante de la bourgeoisie au Brésil, (ii) entre 1974 et 1983, dans la défense de l’État brésilien en tant que « Prince modern » comme catégorie d’analyse de la coalition agraire-industrielle-militaire dans la période post-1964, et (iii) de 1983 à 1988, dans la formulation du transformisme autoritaire-éclairées comme comportement des élites économiques et militaires brésiliennes face à la pression pour la démocratisation du régime. L’utilisation par Cardoso des concepts gramsciens est créative à tous ces moments. En d’autres termes, le penseur brésilien s’inspire des concepts gramsciens pour créer son propre lexique d’analyse de la politique brésilienne. L’article explore donc non seulement la réception, mais aussi la traduction des idées de Gramsci chez Fernando Henrique Cardoso.

hégémonie; Brésil; Gramsci; Fernando Henrique Cardoso; démocratie

Resumen

El artículo pretende investigar una trayectoria singular de recepción y traducción de las ideas de Antonio Gramsci en Brasil. Este artículo pretende reconstruir el pensamiento político de Fernando Henrique Cardoso durante la dictadura militar y la transición democrática brasileña (1964-1988), tomando como hilo conductor la interpretación y el uso que el autor hizo de las ideas de Antonio Gramsci a lo largo del tiempo para analizar la formación del Estado, las clases sociales y la política en Brasil. El texto desarrolla la hipótesis de la centralidad de los conceptos gramscianos en el pensamiento de Cardoso en tres fases de refracción gramsciana: (i) entre 1964 y 1974, en la tesis de la hegemonía dependiente de la burguesía en Brasil, (ii) entre 1974 y 1983, en la defensa del Estado brasileño como “Príncipe Moderno” como categoría de análisis de la coalición agrario-industrial-militar en el período posterior a 1964, y (iii) entre 1983 y 1988, en la formulación del transformismo autoritario-esclarecido como comportamiento de las élites económicas y militares brasileñas frente a la presión por la democratización del régimen. El uso que Cardoso hace de los conceptos gramscianos es creativo en todos estos momentos. En otras palabras, el pensador brasileño se inspira en los conceptos gramscianos para crear su propio léxico de análisis de la política brasileña. El artículo explora, por tanto, no sólo la recepción, sino también la traducción de las ideas de Gramsci en Fernando Henrique Cardoso.

Hegemonía; Brasil; Gramsci; Fernando Henrique Cardoso; Democracia

Introdução

“O mesmo raio luminoso passando por prismas diversos resulta em refrações de luz diversa: se se quer a mesma refração é preciso toda uma série de retificações dos prismas singulares. (…) Encontrar a real identidade sob a aparente diferenciação e contradição, e encontrar a substancial diversidade sob a aparente identidade é a mais delicada, incompreendida e ainda assim essencial qualidade do crítico das ideias e do historiador do desenvolvimento histórico”

Antonio Gramsci

(Q. 24, §3, p. 2268, tradução livre)

Apesar de amplamente reconhecida entre estudiosos do pensamento político brasileiro, a história da circulação e usos das ideias de Antonio Gramsci por intérpretes do Brasil possui, ainda, muito espaço para desenvolvimento por meio da pesquisa empírica documental. As hipóteses de trabalho existentes a respeito da trajetória das ideias gramscianas por aqui normalmente a apresentam dividida em dois momentos: um primeiro, de recepção e circulação espontânea e esporádica, sem um uso teórico-analítico criativo; e outro, de apropriação consciente e substantiva, impulsionado pela edição brasileira dos Cadernos do Cárcere, publicada na segunda metade dos 1960. O primeiro é comumente identificado com a campanha internacional promovida no início dos anos 1930 por anarquistas, socialistas e trotskistas pela libertação de Gramsci do cárcere fascista; e o segundo tem como ponto de partida o ambiente comunista local sob influência da política cultural dos partidos comunistas europeus e soviético, com a tradução e publicação dos volumes temáticos dos escritos carcerários daquele autor, bem como de ensaios de seus principais intérpretes estrangeiros.

O presente artigo contribui para enriquecer e complexificar essas narrativas ao reconstruir um percurso singular de recepção das ideias gramscianas por aqui. Trata-se da presença das ideias de Gramsci nos escritos de Fernando Henrique Cardoso no período 1964-1988, contexto em que o intelectual uspiano emergiu como expoente das análises da formação social e política brasileiras, particularmente da ausência da hegemonia burguesa e do autoritarismo político como resultado do padrão econômico associado-dependente das elites locais. Somado a isso, o cientista político emergiu como liderança político-intelectual liberal-democrática, com presença e circulação no ambiente acadêmico brasileiro, latino-americano, europeu e norte-americano.

Apesar disso, as ideias de Cardoso não são apresentadas na literatura especializada sobre a história do marxismo no Brasil1 1 . É o caso da coleção História do Marxismo no Brasil, publicada em 6 volumes entre 1991 e 2000. Em contraste, ver Um departamento francês de ultramar do filósofo uspiano Paulo Arantes, em que este faz referência a Cardoso como autor do “documento histórico de uma estréia, no caso, do método dialético na interpretação sociológica” da USP, “possivelmente o [autor do] primeiro capítulo do marxismo ocidental uspiano” (Arantes, 1994:p. 285-286), O pontapé do marxismo de Cardoso - Arantes anuncia sem se aprofundar - seria uma eficaz “irradiação” da combinação de “empréstimos lukacsianos” com a crítica de Arthur Gianotti às ideias de Louis Althusser, além de “conceitos dúbios” resultantes de “considerações avulsas sobre alienação, consciência de classe e práxis” (Arantes, 1994:286). , ou naquela dedicada à recepção das ideias de Antonio Gramsci2 2 . Ver Coutinho, Nogueira, 1993[1988]; Simionatto, 1995; Secco, 2002, 2009; Kanoussi, Schirru e Vacca, 2011; mais recentemente Roberts, 2018. . Em geral, predominam reconstruções analíticas sobre o pensamento e escritos de Cardoso se concentram: a) no estudo da relação imediata entre as suas ideias e sua prática política ou; b) em recortes específicos de sua obra acadêmica, como a teoria da dependência, a análise do comportamento político da burguesia industrial dependente ou sua tese sobre o escravismo no Brasil3 3 . Ver Pécaut, 1990; Lahuerta, 1999; Sorj, 2001; Leme, 2015; Ferreira, 2016; Costanzo, Marino, 2022. . Mais recentemente, novos interesses de investigação ganharam espaço, tais como a participação de Cardoso no debate e ambiente político-intelectual marxista4 4 . Ver Rodrigues, 2012; Lima, 2015, 2022; Gonçalves, 2018; Belinelli, 2019b; Lima, Belinelli, Halayel, 2022. , e algumas iniciativas de pesquisa mapearam referências a Gramsci em seus escritos5 5 . Ver Bianchi, 2007, 2011, 2016; Belinelli, 2019a. , abrindo possibilidades para uma agenda de pesquisa em história do pensamento político6 6 . Como é o caso de pesquisas recentes que destacam a recepção das ideias gramscianas entre grupos intelectuais conservadores no Brasil. Ver Puglia, 2018; Burgos, 2019; Bianchi, 2021; Mussi, Bianchi, 2022. .

A reconstrução da presença das ideias de Gramsci nos escritos (livros, artigos acadêmicos, palestras e declarações veiculadas na imprensa) de Cardoso no período assinalado revela uma dinâmica de apropriação frequente, embora nem sempre anunciada, de conceitos e fórmulas − atitude intelectual, aliás, análoga à que se verificou entre intelectuais em outros contextos nacionais no mesmo período7 7 . Especialmente ao contexto francófono e anglófono que, nos anos 1960, assistiu à emergência de grupos intelectuais que mobilizaram (crítica e favoravelmente) as ideias de Gramsci em um esforço de renovação do marxismo e conformação de uma “nova esquerda” (cf. Thomas, 2009). . Em todo caso, embora Cardoso cultivasse simpatias ideológicas pela experiência socialista desde o início dos anos 1960, seus escritos analíticos e vínculos políticos mantiveram uma relação de distanciamento dessas fontes político-intelectuais, particularmente em relação ao comunismo europeu e soviético. De família militar tradicional e influente no Rio de Janeiro, Cardoso se aproximaria do ideário marxista ao frequentar o efervescente ambiente acadêmico uspiano do prédio da Rua Maria Antônia, em São Paulo, então marcado pela tentativa − um tanto provinciana − de autoafirmação científica e de vanguarda, especialmente em relação aos importantes intelectuais nacionalistas progressistas concentrados na antiga capital da República.

O presente artigo evidencia a mobilização ativa de ideias gramscianas por Cardoso nesse contexto, além de demonstrar a força e fôlego que as mesmas adquiriram à medida em que o cientista político converteu o insight analítico presente em seus ensaios sobre a impossibilidade de uma burguesia hegemônica no Brasil em um conjunto de reflexões a respeito das dificuldades de conformação de um sistema partidário local robusto − um “príncipe moderno” − e sua consequente substituição por uma “revolução” autocrático-burocrática do Estado brasileiro no processo de consolidação deste como país associado-dependente em um sistema capitalista internacional em processo acelerado de integração. A pesquisa documental observou que para as análises de Cardoso realizadas a partir de meados dos anos 1970 e início dos 1980 os conceitos gramscianos adquiriram enorme importância: além das reflexões sobre a hegemonia e o Príncipe moderno, foi o caso da inovação do conceito de “transformismo”, mobilizado na interpretação tanto das tentativas de dinamizar o regime político ditatorial como do ambiente político-intelectual da transição para a democracia no Brasil.

Em seus escritos desses anos, Cardoso faz referência e discute explicitamente as possibilidades e limites que os conceitos gramscianos apresentam para um pensamento político capaz de explicar a integração da periferia em um sistema econômico internacional fortemente centralizado. Contudo, não se limita a reproduzir uma interpretação rígida ou formal do texto de Gramsci. Ao contrário, frequentemente realiza a apropriação desse vocabulário de forma criativa e inovadora, sugerindo novas formas e significados aos conceitos à luz dos contextos histórico, social e econômico locais. Daí a noção de refração: Cardoso acompanha os conceitos gramscianos até certo ponto, desviando-os em seguida de sua trajetória original para adaptá-los − e ressignificá-los − à realidade que se propõe a analisar e intervir.

Como veremos, a hegemonia é interpretada por ele não em seu sentido comum original − como conquista dos grupos subalternos que antecede a tomada do poder -− mas como ausente na atividade política das elites locais − tanto a burguesa industrial, como a estatal-militar e a tradicional-religiosa. Sem exercerem a hegemonia, avança Cardoso, essas elites não conseguem concretizar, no Brasil, o Príncipe moderno gramsciano, ou seja, organizar-se enquanto classe governante no sentido integral e moderno do termo, partidário e parlamentar. À medida em que os partidos políticos não são capazes de cumprir o papel de Estado, conclui, o Estado precisa assumir o papel dos partidos. O conceito de transformismo, por sua vez, representa para Cardoso tanto o “mecanismo de poder” que viabiliza o regime autoritário no pós-1964 como o movimento autoritário-esclarecido das elites quando conscientes de seus próprios limites no contexto da transição para a democracia – uma acepção ampliada do conceito gramsciano, originalmente lido como movimento realizado de baixo para cima pelos representantes dos partidos das classes subalternas.

Cardoso assume como ponto de partida o impulso teórico-analítico de Gramsci, o desagrega e reconstrói buscando conformar um léxico próprio. Trata-se, portanto, não de um mero exercício de recepção das ideias, mas de um processo de circulação criativo e original ou de uma atitude de tradução singular do pensamento gramsciano. Para reconstruí-la, o artigo se divide em três seções, além da introdução e da conclusão. Cada seção corresponde a uma refração identificada. A primeira, entre 1964 a 1974, diz respeito à questão da emergência da hegemonia burguesa associada-dependente no Brasil e de sua viabilização pela via ditatorial militar-burocrática. A segunda, de 1974 a 1983, compreende a análise da função do Estado brasileiro como Príncipe moderno na análise do sistema político que sustenta no poder a coalizão agrário-industrial-militar no pós-64. A terceira, de 1983 a 1988, se debruça sobre a formulação da noção de transformismo autoritário-esclarecido para explicar o comportamento das elites econômicas e militares brasileiras diante da pressão pela democratização do regime.

A análise desse percurso analítico sobre o Brasil permitiu argumentar que Cardoso incorpora e inova progressivamente o léxico gramscista para construir sua interpretação das classes sociais, da política e do Estado no Brasil. O artigo também recupera as situações específicas em que Cardoso escreveu sobre sua relação com o pensamento de Gramsci, demonstrando suas divergências intelectuais com essa fonte, bem como seu permanente interesse e uso político ao longo dos anos.

Primeira refração: a hegemonia como (ausência de) liderança burguesa

quando as ideias de Gramsci começaram a desembarcar no Brasil, nos anos 1950, trazidas na bagagem8 8 . Para uma reconstrução documental desse momento, em particular a chegada das ideias de Gramsci no ambiente paulista e uspiano, ver a pesquisa de Bianchi (2021). Agradecemos ao autor pela autorização para citar seu manuscrito ainda não publicado. de intelectuais brasileiros por meio dos volumes das cartas e escritos carcerários publicados na Itália de maneira temática, sob a coordenação editorial de Palmiro Togliatti e do Partido Comunista Italiano (PCI), e de suas traduções para o francês, o conceito de hegemonia já era amplamente mobilizado por aqui. Em junho de 1948, em um artigo assinado por “J. G.”9 9 . Possivelmente o intelectual comunista brasileiro Jacob Gorender. no primeiro número da revista filocomunista Fundamentos: Revista de Cultura Moderna, o conceito aparece10 10 . Fundada em junho de 1948 por Monteiro Lobato pouco antes de morrer, a revista Fundamentos foi editada até 1955. De inspiração filocomunista, stalinista e togliattiana, em 1952, na edição n. 14, o periódico publicou a tradução do relato biográfico “A vida de Gramsci”, por Umberto Terracini (cf. Terracini, 1950: 24-27). :

Como dizia Lênin, na época do imperialismo não existe uma “muralha” [entre a revolução democrático-burguesa e a revolução socialista]. A transição de uma a outra, com maior ou menor rapidez, depende de uma série de fatores, dentre os quais não é o menos importante a capacidade efetiva de liderança da classe operária. Na época em que o capitalismo atingiu a etapa imperialista, não é possível pensar em revolução democrático-burguesa sem que o proletariado exerça a hegemonia do movimento (J.G, 1948:70; grifos adicionados).

O conceito de hegemonia, nesse contexto, explicitamente inspirado em ideias de Lênin11 11 . Em particular a partir do texto Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática, escrito por Lenin em Genebra em junho-julho de 1905 em seguida ao fracasso de uma tentativa revolucionária na Rússia e rapidamente divulgado pela social-democracia russa no país e pela Europa em várias línguas. O uso do conceito de hegemonia se tornaria bastante comum e diversificado na cultura socialista e revolucionária a partir de então (cf. Schirru, 2008; 2016): “Com este instrumento teórico, os comunistas russos responderam, desde a Revolução de 1905, à necessidade de vincular a luta econômica, de tipo sindical, à luta política, antes associada apenas ao terrorismo de grupos populistas. A noção de hegemonia é relacional: ela opera, por um lado, sobre sujeitos sociais, que se definem no terreno econômico; por outro, é uma relação política entre esses sujeitos, onde um deles dirige e domina os outros” (Schirru, 2016, s/p. tradução livre). como sinônimo de “capacidade efetiva de liderança da classe operária”, foi adaptado ao contexto brasileiro como função que essa classe poderia assumir em uma “revolução democrático-burguesa”. O artigo de J. G. reproduzia a defesa da “unidade nacional” própria da orientação da Internacional Comunista desde 1943, em contraste com o “Manifesto de Janeiro de 1948” lançado por Luís Carlos Prestes no contexto da negação pelo TSE dos direitos do Partido Comunista Brasileiro e cassação de seus mandatos parlamentares conquistados no ano anterior. A orientação de ruptura com o governo e de “luta revolucionária de massas” seria substituída uma década mais tarde, na famosa “Declaração de Março de 1958”. Aqui, a defesa da “conquista da hegemonia pelo proletariado” seria retomada, afirmada agora por meio da fórmula da “direção do proletariado” em uma “coesão da frente única […] das forças anti-imperialista e democrática” (PCB, 1982Partido Comunista Brasileiro (PCB). (1982), "Declaração sobre a Política do PCB". Voz Operária, 22 mar. 1958, in E. Carone. O PCB (1943-1964). São Paulo, Difel, pp.187.).

Foi com o sentido de “direção” e “capacidade de liderança efetiva” que o conceito de hegemonia apareceu pela primeira vez nos escritos de Fernando Henrique Cardoso, em Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico, publicado em abril 1964 como resultado da tese de livre-docência defendida em novembro do ano anterior na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). Nesse texto, Cardoso investigou “a participação dos empreendedores industriais no desenvolvimento econômico do Brasil” por meio de entrevistas para caracterizar “a mentalidade e a ideologia dos empresários”, analisando “condições estruturais que dão sentido às opiniões” dos mesmos (Cardoso, 1964:5-8). O objetivo era identificar a “autoridade”, entendida aqui como a função de “líder”, do capitalista na estrutura de poder no mundo ocidental (Cardoso, 1964Cardoso, Fernando Henrique. (1964), Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil. São Paulo, DIFEL.:16-21). Sua pesquisa levava à conclusão de que as possibilidades da “hegemonia burguesa”, no caso brasileiro, eram limitadas pela combinação entre “o subdesenvolvimento e a sociedade de massas em formação” (Cardoso, 1964Cardoso, Fernando Henrique. (1964), Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil. São Paulo, DIFEL.:175). Ou, ainda, de que o “risco da perda da hegemonia política” pressionava “o setor privado da economia nacional”, impedindo um posicionamento resoluto entre “apoiar os movimentos populares que pressionavam no sentido da estatização dos setores básicos da economia ou associar-se aos capitais estrangeiros para tentar o desenvolvimento nos moldes clássicos” (Cardoso, 1964Cardoso, Fernando Henrique. (1964), Empresário Industrial e Desenvolvimento Econômico no Brasil. São Paulo, DIFEL.:175).

Crítico da perspectiva analítica nacionalista (cf. Cardoso, 2021Cardoso, Fernando Henrique. (2021), Um Intelectual na Política. Memórias. São Paulo, Companhia das Letras.:85), a hegemonia era pensada por Cardoso como função política de uma direção, uma liderança de classe, não necessariamente do proletariado. A hegemonia política burguesa, por sua vez, era apresentada como um projeto inconsistente, abandonado em nome do apoio à “estratégia de reação dos grupos dominantes tradicionais” (Cardoso, 1964:178-186)12 12 . A inspiração gramsciana, aqui, possivelmente descende da tradução francesa que Cardoso possuía de um dos cinco volumes temáticos dos Quaderni del Carcere publicados na Itália pela editora Einaudi como Opere a partir de 1945 e na França como Oeuvres Choisies em 1959. No referido volume, intitulado “Il Risorgimento”, estão reunidos vários parágrafos do Quaderno 19 nos quais Gramsci escreveu, continuando a pesquisa iniciada no ensaio de 1926, “Alcuni temi della Questione Meridionale”, sobre “a forma e os meios” usados pelos grupos moderados italianos para “estabelecerem o aparelho (o mecanismo) de sua hegemonia intelectual, moral e política” (Q19, §24) no contexto da unificação nacional italiana na segunda metade do século XIX. . Essa elaboração apareceria com maior destaque no artigo “Hégémonie Bourgeoise et Indépendance Économique”, publicado por Cardoso em 1967 no dossiê sobre o Brasil realizado para a célebre revista francesa Les Temps Modernes. Aqui, o conceito se referia ao

problema da hegemonia no interior de um sistema de forças determinado pelas novas condições dos novos participantes, que não encontram resposta adequada nos termos pelos quais normalmente se coloca a questão das possibilidades políticas da burguesia nacional e de sua capacidade em definir os próprios interesses (Cardoso, 1967a:678, tradução livre).

Nessa interpretação, frontalmente contrastante com a leitura comunista predominante à época, o tradicional esquema analítico da “alliance pour le développement” [aliança para o desenvolvimento] nacional era visto como superficial e metodologicamente limitado aos termos da economia interna. Por esse motivo, incapaz de colocar com exatidão o problema da “vocation hégémonique” [vocação hegemônica] burguesa no Brasil (Cardoso, 1967a:661). Em outro artigo do mesmo período, publicado na revista América Latina, tratou o mesmo tema no plano latino-americano e apresentou a hegemonia como operação própria das elites políticas, os “few but competent” [poucos, porém eficazes], em um “sistema de alianças entre grupos que possuem como pivôs elites tradicionalmente constituídas” (Cardoso, 1967b:23)13 13 . Este artigo encontraria tradução para espanhol e francês, até ser publicado em português na coletânea Mudanças Sociais na América Latina que reuniu, também, o artigo da Les Temps Modernes. Ver Cardoso (1969). . Apesar de audaciosa, a interpretação proposta por Cardoso para a hegemonia, contudo, carecia de aprofundamento: se a burguesia brasileira não era capaz de alcançar uma vocação hegemônica própria, como explicá-la politicamente?

No artigo publicado um pouco adiante na Revista de Administração de Empresas, “Dependência, desenvolvimento e ideologia”, Cardoso tentou contornar a solução para esse problema baseado na perspectiva da escolha racional e egoísta dos agentes econômicos. Para tal, afirmou a existência de “variáveis estruturais e econômicas que conformam a situação objetiva” dos interesses da burguesia industrial (Cardoso, 1970a:65). A “inexistência de vocação hegemônica” não significaria a ausência de uma política de classe, mas sim a presença de uma “política de interesses divididos com as demais classes dominantes” que produziria um dilema, uma “situação de dependência” (Cardoso, 1970a:65). A atuação política industrial se daria em uma coalizão de interesses na qual existiriam conflitos e oposições que, contudo, se expressariam mais “no nível econômico do que na esfera do poder” (Cardoso, 1970a:65). Embora o léxico gramsciano não fizesse parte da análise empreendida aqui, as conclusões analíticas que levavam Cardoso a propor a tese da situação dependente eram explicitamente derivadas do problema teórico da hegemonia apreendido do contexto linguístico nacionalista e comunista pré-1964:

A acomodação da burguesia industrial à forma particular de dependência em que ela vive não implica em incapacidade histórica para vislumbrar seus verdadeiros objetivos, mas sim no reconhecimento da impossibilidade histórica de uma política hegemônica. A falta de um projeto de dominação somente se revela como carência em comparação com uma suposta necessidade de existência de tal projeto. A análise da situação de dependência mostrou, entretanto, que a estrutura da situação não contém necessariamente um projeto político de hegemonia nacional a ser cumprido pela burguesia industrial (Cardoso, 1970a:68; grifos adicionados).

O conceito de dependência ganhou peso no trabalho intelectual de Cardoso a partir de 1966, quando, trabalhando no Chile, escreveu com Enzo Faletto o esboço do ensaio que viria a ser publicado em 1970 com o título de Dependencia y desarrollo en América Latina: ensayo de interpretación sociológica. Os dois autores propuseram uma análise estratificada capaz de “diferenciar os diversos modos de subdesenvolvimento segundo as relações particulares que esses países mantêm com os centros econômica e politicamente hegemônicos” (Cardoso, Faletto, 2004:38, grifos adicionados). A hegemonia, aqui, apareceu principalmente articulada às noções de “centro” − nação ou potência internacional − e de “grupos” sociais e econômicos (Cardoso, Faletto, 2004:42-183). A “associação de interesses” de classe era descrita como processo no qual

classes e grupos economicamente orientados estabeleçam formas de autoridade e de poder de tal modo que constituam uma “ordem legítima”; e que em torno dessa ordem legítima se obtenham o consentimento e a obediência das classes, grupos e comunidades excluídos do núcleo hegemônico formado pela “associação de interesses” (Cardoso, Faletto, 2004:55).

O conceito de hegemonia foi desenvolvido em termos de “consentimento e obediência” de grupos econômicos ao redor de uma “ordem legítima”. Essa acepção, muito próxima do conceito gramsciano de hegemonia como combinação entre força e consenso, servia para explicar a aliança estabelecida entre grupo moderno (setores exportadores da economia e seus vínculos internacionais) e “oligarquias locais” (Cardoso, Faletto, 2004:61-77). E concluía, seguindo a hipótese de trabalho já desenvolvida em 1964: “a falta de um setor claramente hegemônico dentro da classe dominante conduz a um pacto tácito entre distintos setores agroexportadores” (Cardoso, Faletto, 2004:78).

O modelo interpretativo de Cardoso e Faletto pressupunha trajetórias nacionais na América Latina marcadas, ainda que com gradações distintas, pela conformação de alianças entre grupos econômicos dominantes no poder e por processos mais ou menos bem sucedidos de “incorporação de setores médios”. Os “limites estruturais” desses processos, notadamente daquilo que Cardoso chamou por Estado-populista, estariam contidos na própria dinâmica de integração econômica internacional e nos seus efeitos concretos sobre a reorganização da “ordem legítima” e da autoridade do Estado. Nesse novo momento, de crise, Cardoso e Faletto descreviam um processo longo de “reorganização das funções do Estado”, com o reforço do caráter dependente das economias latino-americanas no plano internacional e com o dilema da expulsão da oposição para a “margem do esquema”, ou seja, do desalinhamento da hegemonia “para baixo” (Cardoso, Faletto, 2004:170). Em Cardoso, a hegemonia era, agora, interpretada na chave de um “sistema dependente” capaz de redefinir as condições de funcionamento da economia e limitar a capacidade de “algún sector de la clase de ejercer hegemónicamente el rol de unificador político del conjunto” (Cardoso, 1970b:59).

O conceito de dependência já circulava entre analistas do subdesenvolvimento latinoamericano em meados dos anos 1960, particularmente aqueles ligados à Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) (Frank, 1992Frank, Andre Gunder. (1992), "Latin American Development Theories Revisited: A Participant Review". Latin American Perspectives [online], v. 19, n. 2 [07-07-2021], pp. 125-139. Disponível em http://www.jstor.org/stable/2633887.
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:132). Apesar disso, o texto de Cardoso e Faletto parece ter sido o primeiro a usá-lo associado ao conceito de hegemonia. No Post-Scriptum, escrito em 1979 para a tradução de Dependencia y Desarrollo em língua inglesa, as referências à centralidade do conceito de hegemonia e à fonte teórica do mesmo seriam explícitas:

[...] parece-nos que o importante é compreender o miolo da forma atual de contradição entre Estado-povo-nação e desenvolvimento. Nessas relações de oposição, se alguma dimensão cultural existe e é significativa, ela se coloca em termos do que Gramsci chamava de relação de hegemonia: a capacidade de dirigir, propondo modelos culturais próprios que pode ter uma classe com aspirações a exercer a dominação. (Cardoso, Faletto, 2004:226; grifos adicionados).

O conceito de hegemonia consolidava, assim, um sentido analítico amplo e criativo, transitando entre as noções de: capacidade dirigente de um grupo ou classe social; força de um determinado sistema político ou econômico; e, finalmente, peso político ou econômico de uma nação no plano internacional. O uso deliberadamente livre do termo permitia, por um lado, o contraste com as análises nacionalistas e marxistas que reduziam o sentido do conceito ao lugar do proletariado na política nacional no século XX. Além disso, permitia aos dois intelectuais o estabelecimento de formas de diálogo com correntes político-intelectuais que despontavam em universidades da América Latina, Estados Unidos e Europa na segunda metade dos anos 1960. Dependencia y Desarrollo vendeu, apenas em sua primeira tiragem em espanhol, mais de 40 mil exemplares. Em suas memórias escritas décadas mais tarde, Cardoso se referiu ao livro com Faletto como “passaporte para meus contatos universitários internacionais, que se beneficiaram da tradução para o inglês, assim como para catorze outros idiomas” (Cardoso, 2021:118)14 14 . Entre os contatos estabelecidos nessa época, Cardoso se refere especialmente ao cientista político Alfred Stepan, professor em Yale e ao economista Albert Hirschman, de Harvard (Cardoso, 2021:118-119). .

Contudo, apesar de já estar em contato com o texto gramsciano desde a segunda metade da década de 1960, a referência explícita ao pensamento de Gramsci nos textos de Cardoso permaneceu pontual até o início dos anos 1970. Mesmo o uso do conceito de hegemonia parece se prender, ainda, a um quadro conceitual anterior, genericamente associado a uma atualização da leitura leninista das relações imperialistas entre potências internacionais em chave centro-periferia. Cardoso não parece estabelecer ainda um diálogo explícito com o conceito gramsciano de hegemonia, o que acontece nos anos seguintes.

Segunda refração: o estado como “príncipe moderno” no Brasil

“No momento em que pisei fora do avião, vindo de Paris, a luta contra a ditadura pareceu colorir todos os aspectos da minha vida. Sendo um dos primeiros exilados políticos a voltar para casa, me tornei uma espécie de símbolo na USP”

(Cardoso, 2006Cardoso, Fernando Henrique. (2006), The Accidental President of Brazil. A Memoir. New York, Public Affairs.:106, tradução livre).

Sabemos que no exílio em Paris − entre o segundo semestre de 1967 e março de 1968 − Cardoso já tinha contato com os escritos carcerários de Antonio Gramsci (Cardoso, 1971:7). Em outubro deste ano, já de volta ao Brasil, escreveu Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes, para servir como tese do concurso para professor da cadeira de Política na USP, vaga com a aposentadoria de Lourival Gomes Machado15 15 . “Tratei de adaptar a pesquisa que fizera sobre os empresários latino-americanos para, de volta ao Brasil, concorrer à nova cátedra. (...) A verdade é que repliquei na nova tese (...) o procedimento que havia utilizado no trabalho anterior” (Cardoso, 2021:133-136). O texto de Cardoso consistia na apresentação dos resultados da pesquisa de campo realizada entre 1965 e 1966 por meio de entrevistas com empresários no Brasil e na Argentina. Continuidade do trabalho iniciado em 1963, a investigação visava analisar “os aspectos específicos da ideologia política dos empresários”, abrangendo os “problemas mais gerais da formação e comportamento” dessa classe, particularmente o processo de formação das alianças políticas burguesas na periferia do capitalismo (Cardoso, 1971:7). . Na tese de cátedra, Cardoso fez referência ao volume temático dos escritos carcerários gramscianos Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo stato moderno, publicado em 1949 pela Einaudi16 16 . A referência direta a Gramsci aparece uma única vez em uma nota de rodapé com um comentário ao “primeiro ensaio” do autor sardo, o que demonstra a então pouca familiaridade do brasileiro com a história dos escritos carcerários, compostos sob a forma de parágrafos e rubricas temáticas, não de ensaios (Cardoso, 1971:11). Em sua interpretação, Gramsci teria notado a emergência de um “paradigma” capaz de “cindir o que antes aparecera dramaticamente ligado na concepção de Maquiavel”, qual seja, a relação entre paixão política e regras do seu conhecimento, da “ciência da política” (Cardoso, 1971Cardoso, Fernando Henrique. (1971), Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar.:11).

Em suas memórias, Cardoso data o concurso na USP, combinado ao protagonismo na fundação do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), em 1969, como início de uma importante mudança em sua trajetória, sinônimo de “aceitação da necessidade de considerar as instituições em minhas análises, bem como o jogo político e suas ideologias” (Cardoso, 2021Cardoso, Fernando Henrique. (2021), Um Intelectual na Política. Memórias. São Paulo, Companhia das Letras.:158). Com o decreto do Ato Institucional nº 5 pelo regime militar, em dezembro de 1968, a preocupação com o realismo político transbordava o texto acadêmico para se apresentar como problema prático: a aposentadoria compulsória da universidade, a criação do Cebrap a partir da aglutinação de professores da USP e os primeiros vínculos deste centro com a Fundação Ford e a Igreja Católica para captação de recursos internacionais para pesquisa (Cardoso, 2006Cardoso, Fernando Henrique. (2006), The Accidental President of Brazil. A Memoir. New York, Public Affairs.:113; 2021:140). Este período foi marcado, de maneira mais geral, pelo aumento da repressão política aos grupos opositores ao regime, combinado a uma melhora nos índices de crescimento econômico e ampliação das desigualdades sociais. Era o chamado “milagre econômico” que, na leitura de Cardoso, desafiava os intelectuais democráticos a combater uma “batalha de ideias” para desmoralizar a ditadura evidenciando a relação perniciosa entre crescimento e pobreza que fundamentava a aliança política no poder (Cardoso, 2006:115):

O sistema de alianças que vai garantir o predomínio das classes dirigentes na fase de constituição da dependência nacional dessa modalidade de estrutura se baseia num tipo particular de relação entre “grupos modernos” [...] e “grupos tradicionais”, não se desenhando nada semelhante, portanto, às oposições entre uma burguesia revolucionária e um “senhorio rural” (Cardoso, 1971Cardoso, Fernando Henrique. (1971), Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar.:72).

Em Política e Desenvolvimento, Cardoso consolidou uma interpretação da “situação hegemônica” que predomina na América Latina, bem como seus resultados institucionais do “pacto” entre suas tendências modernizadoras e tradicionais (Cardoso, 1971:72). A linguagem gramsciana17 17 . Presente em termos e expressões usados por Cardoso ao longo de todo o texto, tais como hegemonia, hegemonia burguesa, situação hegemônica, polos hegemônicos, posição hegemônica, controle hegemônico, eixo hegemônico, parceiro hegemônico, vocação hegemônica e visão hegemônica. da hegemonia estrutura o argumento como base para a elaboração de “um modelo de análise dos sistemas políticos que seja adequado aos interesses substantivos do cientista político”:

Mais recentemente, os sistemas surgiram como um possível foco de análise (em contraposição à idéia de “ação”, de “decisão”, e de “função”), começando a partir da menor célula do organismo humano concebido como um sistema, e alcançando sistemas cada vez mais abrangentes, como o ser humano como um organismo, a personalidade humana, os pequenos grupos, instituições mais gerais, sociedades, e coligações de sociedades. (Cardoso, 1971Cardoso, Fernando Henrique. (1971), Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar.:27).

Em uma tentativa de combinação analítica, Cardoso notou que o modelo de estudo do processo político então emergente na ciência política norte-americana, em especial nos trabalhos de David Easton, Robert Dahl, Gabriel Almond e Sidney Verba, oferecia uma linguagem interessante para os cientistas políticos em “busca de rigor global”, driblando a desvantagem “maquiaveliana” da politização imediata e irreversível da análise (Cardoso, 1970:42-43). Aqui, a ação política individual deveria ser remetida a uma forma organizativa maior e mais abrangente, “estrutural”, sem necessariamente ser consciente da existência e do funcionamento da mesma18 18 . Em suas memórias autobiográficas publicadas em 2021, Cardoso fez questão de destacar que, apesar de reconhecer os méritos da ciência política institucionalista e da “cultura cívica” praticada nos Estados Unidos, manteve distância crítica de seu conteúdo tendencialmente conservador (Cardoso, 2021:136-138, 158). .

Vista de longe, a reflexão a respeito dessa ciência política em um livro sobre a política e desenvolvimento em “sociedades dependentes” poderia parecer fora do lugar. Contudo, o que Cardoso encontrava nessa literatura era o pressuposto de que ainda que os contextos nacionais assumissem formas muito variadas, eles deveriam possuir, em comum, o “modo característico de funcionamento como sistema político”, ou seja, a “capacidade de distribuir valores à sociedade e assegurar sua aceitação” (Cardoso, 1971:33). Além disso, por meio da análise da hegemonia, propunha como a realidade brasileira, marcada pela “situação de dependência nacional”, encontrava uma solução de equilíbrio nesse sistema internacional estruturado por “solidariedades, alianças entre grupos e sistemas normativos por eles compartidos” (Cardoso, 1971Cardoso, Fernando Henrique. (1971), Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar.:53, 178).

O cientista político identificava na situação dependente dos países latino-americanos a configuração de um modelo de sistema político específico e, ao mesmo tempo, paradoxal. Um sistema marcado por uma dupla referência: “a vocação de autonomia” ou “vocação hegemônica”, produzida pelo esforço de conquista da independência nacional e configuração de elites políticas próprias, e a “necessidade de sujeição” a uma economia internacional na qual esses países seguiam inseridos de maneira marcadamente subordinada. O equilíbrio de tal situação, por sua vez, na fórmula do desenvolvimento dependente seria resultante do mito de um “desenvolvimento originário”, ou seja, da efetividade da força ideológica da ideia de “mercado livre e nacional”. Esta força contribuiria para que “grupos e classes que propiciam a independência encontrem meios para mitigar e mistificar a ambiguidade de sua situação, vendo no liberalismo a justificação de sua sujeição econômica” (Cardoso, 1971Cardoso, Fernando Henrique. (1971), Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar.:71).

Na análise histórica das diferentes formações estatais latino-americanas, contudo, o equilíbrio da situação de dependência encontraria mais dificuldades em condições nacionais nas quais a subordinação externa fosse aguda a ponto de configurar a formação de “enclaves externos”. Nestes casos, o sistema político seria substituído por um “anel de força”, responsável por assegurar, “pela exploração quase diretamente ou diretamente sócio-política das classes dominadas, os recursos, as rendas, os meios de vida dos grupos dominantes” (Cardoso, 1971Cardoso, Fernando Henrique. (1971), Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar.:74). Cardoso indicava, em contextos deste tipo, uma redução drástica da capacidade do sistema político em “distribuir valores à sociedade e assegurar sua aceitação” e sua redução ao funcionamento coercitivo e estamental do “anel de força”. Como é possível perceber, o equilíbrio entre coerção e consenso nos sistemas políticos, aspecto fundamental do conceito gramsciano de hegemonia, era fundamental para Cardoso e latente em suas interpretações dos casos latino-americanos.

Esses argumentos foram desenvolvidos em uma análise subsequente, “O modelo político brasileiro”, publicada em coletânea de mesmo título que reuniu, majoritariamente, textos de intervenção em diversos eventos acadêmicos internacionais dos quais Cardoso participou entre 1969 e 1973 (Cardoso, 1973Cardoso, Fernando Henrique. (1973), O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São Paulo, Difusão Européia do Livro.)19 19 . O texto foi escrito para participação em um seminário realizado por intelectuais europeus, norte-americano e brasileiros na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, em abril de 1971. Na primeira versão, publicada pelo periódico Estudos CEBRAP, Cardoso deu a ele o título “O regime político brasileiro” (Cardoso, 1972), com o qual foi traduzido para o espanhol e publicado pela revista Aportes em 1972. No ano seguinte, o texto de Cardoso foi traduzido para o inglês sob o título “Associated-Dependent Development: Theoretical and Practical implications” e publicado na coletânea Authoritarian Brazil: origins, policies and future organizada por Alfred Stepan para reunir as contribuições ao seminário de 1971 (cf. Stepan, 1973). Cardoso via esses intelectuais de maneira simbólica, como influentes sobre os novos grupos de cientistas políticos com formação nos Estados Unidos que, no Brasil, se concentravam em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte e disputavam, entre si, a hegemonia analítica da política brasileira na época (Cardoso, 2021:138-139). . Apresentado como contribuição ao seminário realizado nos Estados Unidos, o artigo foi redigido inicialmente como comentário ao livro The Military in Politics: Changing Patterns in Brazil, publicado pouco antes pelo brasilianista recém-doutor e jovem professor de Yale, Alfred Stepan (1971)Stepan, Alfred. (1971), The Military in Politics: Changing Patterns in Brazil. Princeton, Princeton University Press.. No comentário, Cardoso partiu da ideia, presente na tese de Stepan, da existência de um “modelo moderador” para explicar o papel dos militares no Brasil, ou seja, da combinação entre um razoável padrão de profissionalização e algum nível de politização das forças armadas nacionais. O modelo identificado na pesquisa do brasilianista permitia a Cardoso avançar algumas hipóteses a respeito do “tipo de regime” implantado no Brasil no pós-1964 e das condições que explicariam sua estabilidade (Cardoso, 1973Cardoso, Fernando Henrique. (1973), O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São Paulo, Difusão Européia do Livro.:50).

Para Cardoso, em polêmica com as análises de Celso Furtado, Hélio Jaguaribe e Cândido Mendes, o golpe militar havia cumprido o papel de “desarticulação dos instrumentos de pressão e defesa das classes populares” no Brasil (Cardoso, 1973:55-6)20 20 . Diferentemente do que ocorreu nos países europeus e do que se esperava que fosse reproduzido em terras brasileiras, o empresariado não se aliou ao proletariado e às massas urbanas para liderar o desenvolvimento nacional — entendido como a modernização econômica, mas também político-social. Aqui, a modernização econômica ocorreu em detrimento do desenvolvimento social e da democracia: “ao contrário das revoluções burguesas clássicas, portanto, aqui ela teria acontecido contra os trabalhadores e não com base neles” (Singer, 2022:6). . Essa tarefa, em alguma medida incômoda à própria burguesia local, era fundamental para inserção subordinada do país em uma nova divisão internacional do trabalho em desenvolvimento “pela qual parte do sistema industrial dos países hegemônicos é transferida, sobre o controle das corporações internacionais, para as economias periféricas que lograram alcançar previamente certo avanço no desenvolvimento” (Cardoso, 1973Cardoso, Fernando Henrique. (1973), O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São Paulo, Difusão Européia do Livro.:64). Essa reflexão atualizava o artigo de 1967 sobre hegemonia burguesa no Brasil levando adiante uma ideia então apenas sinalizada: nesta aliança política a burguesia industrial teria aberto mão de sua vocação hegemônica ao apoiar o golpe militar – recuando um passo para trás, para garantir a ordem.

O regime militar, por sua vez, teria possibilitado a “revolução” burguesa por meio da implementação vertical de um novo padrão de desenvolvimento econômico, um processo no qual a burguesia nacional teria optado por manter-se dominante sem ser dirigente. A novidade, apontava Cardoso, estava no esforço do regime em construir consensos para governar. Por um lado, a “pátria” cumpria o papel de definição de finalidade e simbologia do novo modelo político. De outro, o êxito econômico possibilitava o investimento público que passava a ser usado como meio de cooptação e legitimação do sistema. Assim, percebia que o regime ditatorial, embora baseado em um “modelo de dominação burocrático-militar”, mantinha alguma capacidade de implementação política e mobilização simbólica, tanto em sua base social (burguesia internacionalizada, militares, classes médias ascendentes) como entre setores populares favorecidos por ciclos de crescimento econômico e por mecanismos de “reconciliação” entre elites e massas (Cardoso, 1973:78-80).

Essas reflexões seriam retomadas no artigo “A Questão do Estado no Brasil”, escrito em abril de 1974 e publicado em seguida na revista DADOS (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974])21 21 . Em seguida, reunido e publicado, em 1975, como capítulo da coletânea Autoritarismo e democratização com textos escritos e publicados entre 1972 e 1974 (cf. Cardoso, 1975). Em entrevista autobiográfica publicada em 2006, Cardoso mencionou ter descoberto pela imprensa duas décadas depois, quando já era presidente do Brasil, a existência de processo investigativo secreto impulsionado sob a pressão de “certos ideólogos do regime” ditatorial por ocasião da publicação da coletânea para tentar bani-la e prender seu autor (Cardoso, 2006:124). . A ditadura militar completava sua primeira década no Brasil e era agora também uma violenta realidade no Chile. Em sua reflexão sobre o Estado no Brasil, o autor expandiu a interpretação sobre o comportamento das frações dominantes e dirigentes sob o regime militar, assim como a discussão em torno de sua caracterização, isto é, se o regime seria em alguma medida legítimo e como poderia ser definido. Para enfrentar o debate teórico emergente na ciência política sobre a legitimidade do regime militar no Brasil pós-1964, mais uma vez Cardoso se apoiou em Gramsci para seu argumento em torno da produção do consenso. Contudo, o fez criticando a “interpretação liberal”22 22 . Bianchi (2007) sugere que Cardoso poderia estar se referindo a Oliveiros Ferreira ao tratar dessa “interpretação liberal”. do conceito gramsciano de hegemonia como simples sinônimo de consenso, já que em Gramsci toda situação política seria, também, correspondente a uma “relação de força” (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:194).

Citando novamente o volume temático Note sul Machiavelli, sulla politica e sullo Stato moderno (edição Einaudi de 1966), o texto apresentou uma interpretação da hegemonia a coerção exercida pelo Estado não constitui um impedimento necessário à construção de sua legitimidade − com a conclusão: “a própria coerção exercida para resolver problemas de um dado grupo (ou da sociedade) gera, ao resolvê-los [...], as condições de existência dos valores, símbolos, conteúdos morais etc. que passam a integrar a ordem dominante” (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:195, grifos no original). O exercício da hegemonia em Gramsci se equivaleria, então, à capacidade de formular e sustentar regras de exclusão social e política − contemplando, neste sentido, a esfera da coerção. Neste sentido − e divergindo das análises da legitimidade − concluiu que o regime militar exerce sua hegemonia tanto na coerção quanto no convencimento, produzindo para tal uma ordem simbólica própria.

Superado esse ponto, o autor se propunha a analisar “a quem [o regime] exclui e a quem atrai com este uso [da força e da ideologia] e quais os recursos reais dos que são atraídos e dos que são excluídos” (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:194). Tratava-se, portanto, da investigação das classes que compõem o “bloco de poder” – composto pelas frações dirigentes e dominantes – e os meios adotados para “exercer” sua hegemonia sobre as classes dominadas (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:195). Visando o convencimento e, portanto, o consenso, o regime militar garantia retribuições materiais para as classes dominantes por meio do crescimento econômico e da promoção de canais controlados de diálogo. Esses últimos Cardoso chamou de “anéis burocráticos” − recuperando a ideia do “anel de força” − e destacando-os como “mecanismos mais flexíveis de incorporação e cooptação política” das classes médias na burocracia estatal (Cardoso, 1975[1974]:204). A partir deles as classes dominantes, porém não frações dirigentes – título esse exclusivo dos militares e burocratas – poderiam “ser partícipes das decisões do Estado” (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:204). Até certo ponto, portanto, os “anéis” estatais substituiriam o papel exercido pelos partidos de responder às pressões sociais, mesmo que de forma desigual e controlada (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]: 204, 208).

Contudo, se dessa forma as classes dominantes alcançariam certa participação no Estado, a relação entre Estado-classes dominadas se daria de outra forma. Ao contrário dos regimes populistas anteriores, o regime pós-1964 se caracterizaria pela exclusão das classes dominadas do “pacto de dominação”. O regime não possuía uma “ideologia de massa” para ligar as massas ao Estado; ao contrário, cultivava uma visão do Estado anti-participativa, que “supõe a desarticulação ideológica da massa” e não sua mobilização (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:214). Uma “ideologia de Estado” anti-massa que funcionava, paradoxalmente, como principal “cimento simbólico” do regime. Tendo em vista essa configuração, ao analisar mais detidamente o governo do ditador Castello Branco, Cardoso apresentou uma reinterpretação da noção gramsciana do “Príncipe moderno”23 23 . Em Gramsci, o moderno príncipe representaria “um elemento de sociedade complexo no qual já se iniciou a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação”, ou seja, o partido político (Q 13, §1:1558, tradução livre). : no Brasil seria o próprio Estado − e não um partido revolucionário ou popular − que possuiria um projeto de reformulação política:

O resultado foi que o Príncipe se substantivou no seu predicado, no Estado, e este ficou sem sujeito aparente, como logo se viu com a eleição de Costa e Silva. Uma máquina que passou a crescer e a ser auto-gerida, baseada na força da aliança entre o monopólio estatal e as multinacionais; [...]. Neste contexto nasceu a interpretação da ‘falta de legitimidade’ e crise de hegemonia. Não viram os analistas que o Príncipe moderno, no caso brasileiro, não é o Partido, como na aspiração gramsciana, mas é o próprio Estado, com todas as implicações teóricas e práticas que esta situação coloca. (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221. [1974]:199; grifos adicionados).

O Estado assumiria “funções puramente políticas; é agência ideológica e tem que espelhar o interesse coletivo” (Cardoso 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:218). Além disso, os interesses de classe se enfrentariam dentro do Estado, o grande regulador dos partidos políticos. O Estado seria o

locus privilegiado no qual se dá a articulação política entre as classes e se estrutura primariamente a ideologia. [...] Ele ao mesmo tempo que consolida interesses e molda políticas específicas que delineiam o perfil dos vencedores, elabora também o retrato transfigurado dos vencidos (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:196).

A partir dessa discussão, o autor se inseriu no debate acadêmico a respeito da caracterização do regime político em voga. Concordando até certo ponto com as análises de Juan Linz (1973)Linz, Juan. (1973), "The Future of an Authoritarian Situation or the Institutionalization of an Authoritarian Regime: The Case of Brazil", in A. Stepan (org.), The Military in Politics: Changing Patterns in Brazil. Princeton, Princeton University Press. e Bolívar Lamounier (1974)Lamounier, Bolívar. (1974), "Ideologia em Regimes Autoritários: Uma Crítica a Juan J. Linz". Novos Estudos - CEBRAP, n. 7., Cardoso concluía que o regime militar não poderia ser considerado fascista ou totalitário, pela ausência de mobilização de massas (Estado = Sociedade Civil). Entretanto, e aqui propunha sua inovação, não poderia ser tido como exclusivamente autoritário, mas sim um regime autoritário-burocrático (Estado = anéis burocráticos), hegemônico ao suprir “as funções de cimento simbólico do bloco de poder, bem como as de compatibilizar a crença dos membros do aparelho do Estado de que suas funções são gerais” (Cardoso, 1975[1974]:216). Mesmo apontando a existência de “tendências” totalitárias pelo regime ditatorial − tais como o uso de símbolos nacionais-integrados a fim de mobilizar as massas urbanas −, Cardoso afirmou não se tratar “de um modelo de mobilização participatória de estilo peronista” (Cardoso, 1977a:80), marcado pela “ausência de um partido mobilizador” (Cardoso, 1973Cardoso, Fernando Henrique. (1973), O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São Paulo, Difusão Européia do Livro.:80).

Essa caracterização analítica, contudo, permanece instável em seu pensamento, já que Cardoso enxergava na crise econômica latente um desafio à hegemonia conquistada pelo regime militar. O crescimento econômico garantia retribuições econômicas às classes dominantes e, em menor grau, às dominadas. Entretanto, a partir do momento em que o cenário se tornasse desfavorável, o regime se veria diante de uma “crise de condução política” que ameaçaria o seu “predomínio no seio das próprias classes dominantes” (Cardoso 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:202; grifos no original). Sem o ganho econômico e marcado pelo aprofundamento das desigualdades, restaria ao regime ampliar a repressão e buscar fortalecer a ideologia estatal. Frente às insatisfações das classes dominadas, contudo, a repressão teria que ser redobrada, já que não existiria ideologia capaz de absorvê-las no Estado. A aposta na repressão consequentemente danificaria a imagem “legal” construída pelo regime até então, e que era parte central da ideologia da aliança no poder. Diante disso, o regime teria poucas opções: se apoiar na coerção, reorientar as políticas econômicas ou buscar reinventar suas alianças.

Atento a essa potencial reconfiguração no bloco de poder, Cardoso identificava uma janela de oportunidade para a construção política de uma oposição, ou o que chamou − usando a linguagem gramsciana − por “desafio aberto aos ‘intelectuais orgânicos’ da oposição” para propor “o debate e as práticas políticas [...] ao nível de uma ação que conduza efetivamente à hegemonia” (Cardoso, 1975[1974]: 221). Autoidentificado intelectual orgânico da oposição24 24 . Como nota Belinelli (2019a:203), foi justamente em 1974 que Cardoso e o Cebrap se aproximam de Ulysses Guimarães, então liderança do partido de oposição Movimento Democrático Brasileiro (MDB) em busca de apoio para elaboração de um novo programa político-partidário para a oposição interna ao regime. , Cardoso passou a elaborar a respeito da emergência de uma nova sociedade industrial de massas, com demandas que não eram mais facilmente digeridas pelos militares, e sobre os setores sociais que “não estão cooptados nem se sentem representados no Pacto de Dominação” imposto em 1964 (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:220). Em sua visão, começavam a se impor as condições para a criação de uma oposição encabeçada por um futuro “Partido dos Assalariados”, constituído pela sociedade industrial não cooptada pelo regime em aliança com os “deserdados”25 25 . Sobre esse período, Cardoso escreveu em suas memórias: “A noção de que as economias da região eram dependentes e por isso havia marginalização social, entretanto, predominou nos círculos intelectuais, em especial nos progressistas e católicos. [...] Haveria sobra de mão de obra, mais do que a sobra necessária para contar os salários dos trabalhadores. Misturavam-se, assim, os ‘deserdados da terra’, como diria Frantz Fanon” (Cardoso, 2021:121). . Caberia aos intelectuais orgânicos identificarem as questões e ideologias capazes de mobilizar esses setores até então excluídos da arena política e propor um “outro tipo de Estado” (Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.[1974]:221).26 26 . É interessante pincelar aqui uma discussão que será retomada na terceira refração. Neste artigo de 1974, Cardoso alerta para o perigo da cooptação de setores da oposição pelo Estado a favor de uma “modernização conservadora”, que mantenha suas bases sociais. Essa possibilidade de “cooptação pela cúpula” é advertida também em A questão da democracia, artigo publicado no mesmo ano (Gonçalves, 2018:154). Veremos que é justamente isso que Cardoso sugere que ocorre na transição democrática, em que o regime reconquista o empresariado, até então simpático à campanha liberalizante, e coloca em curso o processo de “transformismo autoritário-esclarecido”.

A discussão gramsciana sobre hegemonia, Estado e sociedade civil do texto de 1974 seria ainda desenvolvida em dois textos publicados em 1977 − um como capítulo de livro e outro como artigo em periódico científico (Cardoso, 1977b; 1977c). Meses antes, entre novembro e dezembro de 1976, o historiador Perry Anderson publicara “The Antinomies of Antonio Gramsci” na revista marxista inglesa New Left Review, o que causou enorme impressão no cientista político brasileiro, que o classificou como um “penetrante ensaio” (Cardoso, 1977c:13). Nele, Anderson reconhecia positivamente a complexidade do conceito gramsciano de hegemonia em apresentar o “grau de consenso” das classes exploradas em seu processo de subordinação passiva (Anderson, 1976:79). Apesar disso, considerava os escritos carcerários de Gramsci marcados por contradições internas e ambiguidades, sendo que o conceito de hegemonia tornava absoluto o papel das instituições culturais e do dinamismo da hegemonia burguesa, o que produzia um impasse analítico e político (Anderson, 1976Anderson, Perry. (1976), "The Antinomies of Antonio Gramsci". New Left Review, n. 100, pp. 6-80.:80).

Cardoso comentou com entusiasmo o texto de Anderson no artigo “Estado Capitalista e Marxismo”, publicado na revista Estudos Cebrap (Cardoso, 1977c), pois via aí a confirmação de algumas das hipóteses interpretativas com as quais já trabalhava:

[Gramsci] não se limitou a aplicar a noção de hegemonia para explicar a capacidade de direção da classe operária frente a seus aliados na luta antiburguesa, mas extrapolou-a para enfatizar o ‘momento de consenso’, de ‘direção cultural’ da burguesia italiana frente às classes subalternas na época do Risorgimento. (Cardoso, 1977c:13).

As citações de passagens do texto de Gramsci perfeitamente sobrepostas27 27 . Nesse artigo, Cardoso replicou o texto Anderson citando Gramsci a partir da Selections from the Prison Notebooks, tradução para o inglês de Quintin Hoare and Geoffrey Nowell Smith publicada pela Lawrence & Wishart em 1971. no artigo de Cardoso às do artigo de Anderson permitem avançar a hipótese de que o texto original foi, nesse caso, lido e citado pelo brasileiro por meio do artigo do historiador inglês (Cardoso, 1977c:11-14; Anderson, 1976Anderson, Perry. (1976), "The Antinomies of Antonio Gramsci". New Left Review, n. 100, pp. 6-80.:13-35)28 28 . Um efeito prático dessa leitura indireta foi a tradução da ideia gramsciana, presente no Q13 §18, (p. 1589), de que “nella realtà effettuale società civile e Stato si identificano” [na realidade efetiva sociedade civil e Estado se identificam], por “in actual reality civil society and State are one and the same” na edição de Hoare e Smith citada por Anderson para evidenciar as contradições gramscianas, depois traduzida por Cardoso como “na realidade, a Sociedade Civil e o Estado são a mesma coisa” (Gramsci, 1971: 160; Anderson, 1976:13; Cardoso, 1977c:13). . Ao reconstruir a história do predomínio burguês na Itália, afirmou Cardoso, Gramsci fora obrigado a confrontar uma noção “mais pobre e difundida de que o poder do Estado se explicaria pelo puro exercício da violência” e a “propor sua teoria a respeito do papel dos intelectuais”, e isso explicaria algumas de suas debilidades teóricas (Cardoso, 1977c:13). Contudo, ao contrário de Anderson − para quem o pensamento de Gramsci era ameaçado pelo “fantasma do reformismo” − Cardoso via nos “esforços teórico-práticos” do intelectual sardo um “enorme avanço para equacionar a política revolucionária em países nos quais a formação da Sociedade Civil se afasta muito do que ocorreu nas democracias ocidentais” (Cardoso, 1977c:30). Para Cardoso, a análise gramsciana possivelmente seria mais “útil” para a “análise da política nas sociedades dependentes” do que nas “industriais anglo-saxãs” e “europeias ocidentais em geral” devido ao “papel maior do Estado” ocupado nas primeiras (Cardoso, 1977c:30).

Esse raciocínio justificava a combinação entre aspectos da ciência política de abordagem sistêmica e institucionalista norte-americana e a análise gramsciana da hegemonia. No outro texto do mesmo ano, no capítulo intitulado “O Estado na América Latina”, publicado em coletânea de mesmo nome organizada por Paulo Sérgio Pinheiro, Cardoso escreveu sobre a importância das ideias de Gramsci, definindo-o como um dos autores contemporâneos “que mais iluminaram alguns dos aspectos importantes da relação política que constitui o Estado” (Cardoso, 1977b:82). Voltando mais uma vez ao conceito de hegemonia, destacou o fato de Gramsci não tomá-lo nem como simples coerção, nem como sinônimo de legitimidade, de pura busca por “consenso de certos grupos”, mas como “capacidade de transformar valores em valores do conjunto da nação” (Cardoso, 1977b:82). Em outras palavras, um processo no qual o controle do Estado requer “a existência de formas culturais e de expressão ao nível ideológico” tanto quanto estas últimas precisam da coerção estatal para triunfarem. Em seguida, apresentou uma curiosa e embaraçosa questão de pesquisa sobre a pertinência do próprio conceito de Estado para explicar a política na América Latina, já que essa ferramenta teórica pressupunha algum grau de independência e autonomia de iniciativa pelos grupos sociais dominantes:

A questão que eu proponho é a de saber se é possível pensar em Estado nos casos em que a sua existência depende do reconhecimento externo mais que do interno, ou em que os setores burocráticos que o controlam não são capazes de impor-se hegemonicamente, ou seja, de cimentar a relação de dominação através de um conjunto de valores que propõe aquilo que é particular como se fosse o todo (Cardoso, 1977b:82)

Fortalecido pela interpretação de Anderson a respeito das “antinomias gramscianas”, Cardoso criticou aspectos do que considerava ser a “teoria” de Gramsci para relação entre Estado e Sociedade Civil: o pressuposto de que, no “Ocidente”, a Sociedade Civil necessariamente predominaria sobre o Estado; a ideia do equilíbrio das funções hegemônicas na relação entre Sociedade Civil e o Estado; e, por fim, o conceito gramsciano de Estado que abrangeria também a Sociedade Civil. Para Cardoso, existiria uma “indeterminação teórica” no pensamento de Gramsci ao desconsiderar as condições de exploração e as mediações necessárias através das instituições políticas em cada caso nacional. Além disso, concluía, supor o equilíbrio entre Estado e Sociedade seria desconsiderar o poder da coerção estatal, de modo a menosprezar a significativa distinção entre lei e costume (Cardoso, 1977c:14).

Para Cardoso, por fim, “a abordagem gramsciana [do Estado] colocaria, no plano teórico, mais problemas do que pode resolver” (Cardoso, 1977c:14). Neste caso, seria mais vantajoso contar com abordagens analíticas que colocassem o monopólio da força e a centralidade da sociedade política como os elementos teóricos determinantes. Independente da precisão interpretativa dos textos e conceitos gramscianos originais, essa era uma constatação não apenas teórica ou analítica, mas também política em um ambiente no qual finalmente a transição para a democracia passava a ganhar destaque, assim como os “intelectuais da oposição” (Cardoso, 1973Cardoso, Fernando Henrique. (1973), O Modelo Político Brasileiro e Outros Ensaios. São Paulo, Difusão Européia do Livro.:175).

Terceira refração: o transformismo autoritário-esclarecido das elites

“A gente não quer mais cacique,

a gente não quer mais feitor,

a gente agora está no pique,

Fernando Henrique pra senador!”

Jingle da campanha de 197829

As eleições de novembro 1978 para o Congresso Nacional brasileiro foram decisivas para a entrada de Cardoso na vida política parlamentar como candidato ao Senado pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), a convite de Ulysses Guimarães, processo ao final do qual conquistou a suplência, atrás de Franco Montoro, e mais de 1,2 milhão de votos (Cardoso, 2006: 125-129). Sua candidatura, de perfil socialdemocrático, era apoiada por expoentes da classe artística, intelectuais e também por Luiz Inácio da Silva, o Lula − então emergente dirigente sindical, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo −, e tinha em vista conquistar “o voto da classe média” de São Paulo em uma estratégia do MDB de partido omnibus, ou seja, de conformação de uma aliança eleitoral mais ampla com setores de oposição ao regime (Cardoso, 2006Cardoso, Fernando Henrique. (2006), The Accidental President of Brazil. A Memoir. New York, Public Affairs.:128).

A candidatura de Cardoso ocupava um importante espaço no meio universitário e já se ensaiara um ano antes em uma agitada participação na mesa de encerramento da 29ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), realizada em julho de 1977 em São Paulo. No evento, grupos estudantis pressionavam para a aprovação de uma moção de apoio à convocatória de uma nova assembleia constituinte no Brasil, o que levou o então presidente da associação, o físico Oscar Sala, a encerrar abruptamente a mesma30 30 . “No encerramento, SBPC evita debate político”. O Estado de São Paulo, 14 jul. 1977, p. 10. Acesso em 13/04/2023. . Cardoso, em sua explanação, declarou que “não basta proclamar que existem valores universais que resguardam a liberdade, a intangibilidade dos direitos humanos, a ordem jurídica. É preciso verificar como isto ocorre em condições concretas”31 31 . “Proposta democracia sem revides”. O Estado de São Paulo, 14 jul. 1977, p. 10. Acesso em 13/04/2023. . Em seguida, depois de criticar os “estudantes, que são as elites de hoje e, generosamente, atuam por delegação autodeferida em nome dos trabalhadores e do povo”, defendeu que

para caminhar na direção de uma democracia substantiva, não basta gritar contra o Estado e propor o melhor dos mundos. É preciso buscar o princípio de realidade política e este, democraticamente, não pode ser outro que o das forças sociais existentes32 32 . Idem, p. 10. Acesso em 13/04/2023. .

Em agosto de 1978, a poucos meses da eleição e com a candidatura de Cardoso aprovada pelo TSE, o presidente regional da Arena e candidato da situação ao Senado em São Paulo, Claudio Lembo, declarou à imprensa que Cardoso, apesar de respeitável, se mostrava “mais príncipe do que homem do dia a dia” por pregar a “desobediência à lei”33 33 . “Lembo quer rever lista de candidatos”. O Estado de São Paulo, 10 ago. 1978, p. 7. Acesso em 13/04/2023. . Em 4 de novembro, Lembo retoma o apelido diante de declarações do oposicionista de que poderia ganhar as eleições se tivesse espaço em programas de rádio e televisão: “a vaidade é própria dos príncipes e ele é tido como o príncipe dos sociólogos”, “é um elitista que está distanciado do povo”34 34 . “Lembo critica previsões de Cardoso. O Estado de São Paulo, 4 nov. 1978, p. 4. Acesso em 13/04/2023 . Em 12 de novembro, às vésperas da eleição, um certo Ruy V. M. de Abreu escreve na seção “Dos Leitores”, de O Estado de São Paulo: Cardoso gosta de ser chamado por “Príncipe da Sociologia”, pois é um candidato “que recebe apoio de toda elite paulista e cuja campanha está sendo mantida por lautos jantares oferecidos nas mansões do Jardim América Morumbi”, comícios “que se faz acompanhar de famosas estrelas de televisão”, além de “vergonhosamente ocultar o fato de que seu pai era militar”35 35 . “O terceiro candidato”. O Estado de São Paulo, 12 nov. 1978, p. 2. Acesso em 13/04/2023. . Em 14 de novembro, último dia de campanha, o comício final de apoio a Cardoso contou, entre lideranças do MDB, militares, intelectuais e artistas, com a presença de Lula, que declarou: “A classe trabalhadora não nasceu para ser mandada, nasceu para mandar, não nasceu para servir, mas para ser servida”, em discurso ao final do qual “defendeu a criação de um partido dos [e] para os trabalhadores”36 36 . “Campanha termina, MDB ataca o governo”. O Estado de São Paulo, 14 nov. 1978, p. 5. Acesso em 13/04/2023. .

O ambiente político começava a mudar e, com o advento do processo de redemocratização brasileira, as questões da hegemonia e do “Príncipe moderno” colocaram-se novamente em pauta. Em suas análises sobre “O papel dos empresários no processo de transição”37 37 . Texto escrito para apresentação na conferência Transitions from Authoritarianism and Prospects for Democracy in Latin America and Southern Europe, realizada em junho de 1981 em Washington, Estados Unidos, pelo Latin American Program do Woodrow Wilson Center. Publicado em 1983 pela revista Dados: Revista de Ciências Sociais, versão citada aqui (cf. Cardoso, 1983). Em 1993, o texto foi publicado finalmente como capítulo da coletânea A Construção da Democracia: Estudos sobre Política, que reuniu escritos de períodos diversos (cf. Cardoso, 1993). , Cardoso manteve a tese da impossibilidade de hegemonia burguesa no processo de abertura política, apontando três grandes razões: i) a falta de pioneirismo entre os empresários na reivindicação da abertura política impossibilitava que assumissem uma função dirigente no processo que se iniciava; ii) o apoio dessas elites a uma “ideia abstrata de abertura política” não resistiria diante das pressão dos setores populares; iii) o empresariado industrial − reagindo ao fortalecimento da classe trabalhadora nesse contexto − privilegiaria um projeto de transição proposto pelo próprio governo militar em um movimento de “transformismo autoritário-esclarecido” (Cardoso, 1983). O eco, em Cardoso, da interpretação e conceitos gramscianos usados para pensar a revolução passiva na Itália do século XIX era evidente.

Pelo fato das decisões governamentais passarem a serem tomadas com maior distância do empresariado, a exemplo da política industrializadora do governo Geisel, Cardoso notara que essas elites econômicas adotavam uma postura mais crítica, primeiro, à política econômica, e, logo em seguida, ao próprio regime ditatorial. No entanto, antes que esse setor pudesse se consolidar no bloco oposicionista, emergia um entendimento governista em relação à transição, uma sinalização da intenção de promover uma “distensão”. Os empresários haviam contribuído para a repercussão da movimentação democrática da Sociedade Civil, mas não eram capazes de assumir a direção política do processo em curso, o que tornava sua participação no bloco oposicionista paradoxal. As contradições, concluía, eram resultantes do tradicional discurso liberal que negava a própria vinculação orgânica do empresariado ao bloco organizado no Estado “como se este não expressasse uma dominação que se articula na própria sociedade” (Cardoso, 1983:23).

Na leitura de Cardoso, a adesão abstrata de parte das elites empresariais e militares ao discurso oposicionista se extinguiria no momento em que estas se deparassem com uma classe trabalhadora fortalecida, autônoma e demandante de direitos trabalhistas por meio de greves e protestos, como de fato ocorria. Como em 1964, diante da ameaça aos seus interesses econômico-corporativos, o empresariado abriria mão de sua hegemonia de classe. Em suma, “este arabesque que ia da crítica abstrata ao apoio concreto, do horror do Estado à súplica de uma definição estatal, do discurso ideológico oposicionista ao posicionamento favorável à ‘abertura do João Figueiredo’ [...]” (Cardoso, 1983Cardoso, Fernando Henrique. (1983), "O Papel dos Empresários no Processo de Transição: O Caso Brasileiro". DADOS - Revista de Ciências Sociais, v. 26, n. 1, p. 9-27.:20; grifos no original).

Retomando temas gramscianos que via como problemas sem respostas, Cardoso propôs como solução a conquista de certo equilíbrio entre o Estado e a Sociedade Civil, no qual o Estado não se enfraquece o suficiente para desfazer-se, nem a Sociedade Civil se organiza e fortalece o suficiente para “o desenvolvimento de uma estratégia de assalto ao núcleo do poder” (Cardoso, 1983:26). Por um lado, ampliar as reivindicações político-partidárias, aproximando setores que antes vinculavam-se ao autoritarismo. Por outro, a abertura de espaços pelo regime para que grupos sociais até então excluídos passassem a integrar o sistema decisório, a fim de cooptá-los. Neste processo, os grupos empresariais fariam e refariam seu sistema de alianças, politizando-se por meio do que Cardoso chamou de “mecanismo de pinças”. Diante dele, por fim, paulatinamente “coloca-se para o empresariado industrial um problema que, em linguagem gramsciana, seria o equivalente de uma tentativa de superação da crise orgânica do Estado pela busca de novas formas de hegemonia burguesa” (Cardoso, 1983Cardoso, Fernando Henrique. (1983), "O Papel dos Empresários no Processo de Transição: O Caso Brasileiro". DADOS - Revista de Ciências Sociais, v. 26, n. 1, p. 9-27.:11; grifos adicionados).

Para Cardoso, existiriam duas opções para a superação da crise orgânica aberta no contexto da crise do regime militar. A primeira delas seria o rompimento com o autoritarismo e a restauração da democracia através da transformação das bases sociais do Estado. A segunda alternativa − escolhida pelo empresariado − seria a da aceleração do “transformismo autoritário-esclarecido” do Estado38 38 . Nesse sentido, Cardoso (1981:11) argumenta que “a proposta [de abertura política de] Figueiredo [...] é − que ninguém se iluda − o momento da busca da hegemonia. Não a liberal-burguesa, do consenso dos partidos. Mas a oligopólico-autoritária que se funda no Estado e dá à sociedade a ilusão da participação”. , estimulando a ampliação das “alianças de classe constitutivas do sistema de dominação” e promovendo transformações restritas o suficiente para manter

[...] o controle do Estado pelo núcleo autoritário ancorado nas Forças Armadas e, em especial, na chamada “comunidade de informações”, ambos plenamente convencidos de que segurança nacional só existirá com desenvolvimento econômico e este só é possível através das grandes unidades de produção, estatais e privadas, associadas às empresas multinacionais. (Cardoso, 1983Cardoso, Fernando Henrique. (1983), "O Papel dos Empresários no Processo de Transição: O Caso Brasileiro". DADOS - Revista de Ciências Sociais, v. 26, n. 1, p. 9-27.:26).

Dentre os “modelos” de interpretação que mapeou para pensar o processo de transição democrática brasileira e sua relação com as mudanças sociais − o estratégico-conservador, o estrutural-crítico, o liberal-democrática e o da crise da hegemonia − Cardoso privilegiava esse último, o modelo gramsciano39 39 . Tema desenvolvido em artigo publicado na Revista de Cultura e Política em 1981 e inserido na coletânea A Construção da Democracia, “Regime Político e Mudança Social: A Transição para a Democracia”, onde os modelos propostos são detalhados (cf. Cardoso, 1993 [1981]:258-263). . Para o autor, a variante da crise de hegemonia seria a mais completa de todas: não cairia no mecanicismo das análises crítico-estruturais, apesar de tratar mesmo dos condicionamentos estruturais da dominação de classe; ao analisar a legitimidade do regime não se limitaria, tal como a variante liberal-democrática, à dominação extrainstitucional, combinando as instâncias do consentimento e da coerção.

Dentre as várias leituras desse período, Cardoso dedicou-se a desconstruir especialmente aquela que afirmava a emergência de poder hegemônico popular como decisivo para a transição para a democracia. Nesse sentido, criticou aqueles que sobrevalorizavam e idealizavam a política extrainstitucional40 40 . Cardoso defende aqui que deve-se “criticar a recusa de pensar o Estado, que existe implícita na atitude ‘basista’ e na valorização absoluta dos movimentos sociais frente aos partidos como se o povo, a ‘base’, [...], a periferia do poder, fossem não apenas ‘puros e bons’, mas capazes de implementar soluções sociais, econômicas e políticas que dispensassem uma ‘visão do todo’” (Cardoso, 1993 [1981]:264-265). Em entrevista ao pesquisador Pedro Luiz Lima (2015), Cardoso retomou essa argumentação, referenciando-se novamente em Gramsci. Ao ser perguntado sobre sua crítica à “fetichização” da sociedade civil nos anos 1980, Cardoso responde: “Aqui no Brasil, quando a ideia de sociedade civil renasceu, na época do autoritarismo, parecia que ela era boa, e o Estado era o negativo. Mas vamos voltar um pouco, sobretudo, a Gramsci: vamos ver que a hegemonia se forma na sociedade civil e desemboca no Estado. E o Estado tem que ser poroso para absorver o que está em ebulição na sociedade civil. Então, o que eu estava pensando nessa época era: “vocês estão fetichizando, cuidado...”. E o que os movimentos sociais faziam aqui? Acabavam reivindicando o que eles desejavam a um burocrata do Estado. E eu achava: “vocês não estão fazendo política. A política implica você entender o Estado também”. Se a sociedade civil não se engancha na política, e você não vai ao Estado, ela fica uma instância menor; era essa a minha ideia” (Lima, 2015:213). e, ao mesmo tempo, se recusavam a pensar o Estado no Brasil. Seu argumento era de que a democratização da vida social seria insuficiente para apresentar uma alternativa à crise: “a hegemonia e o momento da liberdade (as ideias, os intelectuais, as grandes instituições reguladoras) não podem ser pensados separadamente da sociedade política” (Cardoso, 1988Cardoso, Fernando Henrique. (1988), "Dependência e Democracia", in D. Fleischer (Org.). Da Distensão à Abertura: As Eleições de 1982. Brasília, Editora da Universidade de Brasília.:53). É interessante, aí, retomar o caminho político tomado por Cardoso. Ao rememorar o momento em que decidiu não participar da criação de um Partido dos Trabalhadores, argumenta que a opção teria sido feita por considerar que era preciso criar um partido “mais amplo”:

O PT nasceu, portanto, como um movimento de sindicatos, de alguns intelectuais e da Igreja, que abriu espaço para o novo partido nas comunidades eclesiais de base, que àquela altura pareciam muito fortes. Fiquei no MDB até a transição final para a democracia. [...] O PSDB foi fundado mais tarde, em 1988, quando um grupo expressivo, ao qual eu pertencia, tomou a decisão de se afastar definitivamente do PMDB. [...] O PT foi um partido que nasceu mais na Igreja e no sindicato, não no meio político. E eu estava mais ligado ao meio político. (Cardoso, 2021Cardoso, Fernando Henrique. (2021), Um Intelectual na Política. Memórias. São Paulo, Companhia das Letras.:183-185).

O projeto para a oposição, de 1974, de um “Partido dos Assalariados”, aparece, nos 1980, reconsiderado, corrigido para se afastar da perspectiva “basista” e “extrainstitucional”, tida como ingênua. Cardoso parece aguardar uma reorganização “pelo alto”, capaz, em sua visão, de disputar o Estado brasileiro de maneira eficaz. O espaço político a ser ocupado é da democracia liberal reconhecida em termos institucionais: “a questão atual não é apenas a de garantir a autonomia da sociedade civil, [e sim] a de recolocar a questão do controle democrático do Estado” (Cardoso, 1993 [1981]:264-265). Os conceitos gramscianos assumem, mais uma vez, a forma da linguagem por meio da qual o problema se desenvolve: no cenário em que a crise é incapaz de ser solucionada em suas “bases sociais”, a hegemonia emerge como capacidade de interferir na direção dos processos políticos, ou seja, de mover-se em um quadro de forças em que “as mudanças ocorridas no plano político (...) repercutem no plano social” criando condições favoráveis (Cardoso, 1993Cardoso, Fernando Henrique. (1993), A Construção da Democracia: Estudos sobre Política. São Paulo, Siciliano. [1981]:261-263).

Na tentativa de identificar os desafios da “emergência de um novo bloco hegemônico”, Cardoso sugere, sem desenvolver, que o processo de abertura brasileira, feito pelos de cima por meio de espaços controlados, possuiria uma maleabilidade e determinaria um código hegemônico novo:

O “partido hegemônico” do capitalismo oligopólico, especialmente nas situações de dependência, é o Estado como burocracia, como produtor associado às multinacionais ou às empresas locais e como governo, em última ratio, de base militar (Cardoso, 1993Cardoso, Fernando Henrique. (1993), A Construção da Democracia: Estudos sobre Política. São Paulo, Siciliano. [1981]:269).

Essa formulação parece estar em construção em seu pensamento. Cardoso questiona se o conceito gramsciano de hegemonia − “que possui alto grau de sensibilidade para a questão do convencimento e direção” − ainda poderia ser usado, já que o parlamentarismo liberal-democrático deixava de existir como princípio legitimador nas sociedades avançadas: “não estaria a noção de Gramsci contraposta, mas presa ao horizonte do liberalismo?” (Cardoso, 1993 [1981]:269n). E, como que pensando em voz alta, sugere que o novo código hegemônico seria “manipulador” e não liberador, assim como “a hegemonia burguesa clássica tampouco era liberadora” (Cardoso, 1993Cardoso, Fernando Henrique. (1993), A Construção da Democracia: Estudos sobre Política. São Paulo, Siciliano. [1981]:269).

Partindo dessas considerações, Cardoso apontou como especificidade da transição para a democracia a formação de um Estado-Panopticon, que em tudo “vigia, pune, insinua abundância e manipula a discórdia no seio dos dominados e dependentes” (Cardoso, 1993Cardoso, Fernando Henrique. (1993), A Construção da Democracia: Estudos sobre Política. São Paulo, Siciliano. [1981]:270). Um Estado feito para uma sociedade-espetáculo na qual é capaz de antecipar as demandas da Sociedade Civil, criando uma “distensão” por meio da “desmoralização cotidiana do político” combinada ao controle dos espaços “legítimos” de protesto (Cardoso, 1993Cardoso, Fernando Henrique. (1993), A Construção da Democracia: Estudos sobre Política. São Paulo, Siciliano. [1981]:270). A situação vislumbrada era a de um beco sem saída: o Estado aparentava ser mais permeável aos interesses populares, ao mesmo tempo em que esvaziava o poder da representação política − em especial os partidos − criando uma separação entre a esfera do político e a esfera do social. Frente a isso, as forças sociais poderiam tomar dois caminhos: contentar-se com a democratização oferecida e aproveitar as liberdades dos espaços extrainstitucionais e vazios oferecidos pelo regime, tal como os movimentos basistas estariam propondo, ou, em sentido oposto, poderiam “criar mecanismos para, ao mesmo tempo, revitalizar a base e dispor de instrumentos eficazes de ação e representação para pressionar e controlar os núcleos de decisão e de poder” (Cardoso, 1993Cardoso, Fernando Henrique. (1993), A Construção da Democracia: Estudos sobre Política. São Paulo, Siciliano. [1981]:266).

Nesse terceiro momento de refração gramsciana, portanto, Cardoso se debruçou sobre a relação entre Estado e Sociedade Civil em dois momentos. No primeiro, da transição, evidenciou a costura de um projeto de “transformismo autoritário-esclarecido” pelas elites militares e econômicas que, incapazes de suprimir as pressões da sociedade civil, teriam cedido em alguns aspectos, contribuindo para uma imagem de “liberalização”, mas mantido seu controle e expandido a aliança no âmbito das classes dominantes. No segundo, que diz respeito ao outro lado da equação, a saber, da Sociedade Civil, a aposta de Cardoso era por uma saída produzida a partir do “meio político”, na qual seja possível evitar o pecado da excessiva valorização das “bases” e do “extrainstitucional” com a consequente perda de visão do Estado e dos “donos do poder”41 41 . Em palestra proferida aos funcionários do Metrô de São Paulo em janeiro de 1983, Cardoso provocou: “Qual o problema que enfrentamos hoje no Brasil? É a autonomia democratizante. Nós, eles, não sei quem, o país está democratizando-se. Que se vai entender por esse processo? [...] Seria ilusão dizer: tudo isso é normal, o que se precisa, realmente, é uma participação direta, da massa manifestar-se. [...] A atitude basista é tão forte que bloqueia as lideranças. [...] Em geral, chocam-se princípios de autoridade rígida com uma vontade democratizadora vaga. No primeiro momento de eclosão, parece que tudo vai mudar. No dia seguinte, não muda nada e as forças de continuidade se sustentam” (Cardoso, 1985:56). .

Conclusão

Neste artigo, buscou-se contribuir para história de circulação, tradução e usos dos conceitos gramscianos por intérpretes brasileiros por meio do estudo do pensamento de Fernando Henrique Cardoso. Procurou-se argumentar que há um movimento de apropriação conceitual inicialmente pragmática e pontual, mas que torna-se progressivamente sistemática e criativa. A pesquisa propõe compreender essa trajetória por meio da ideia de refração em três momentos: primeiro, dos diferentes usos do conceito de hegemonia; o segundo, da tese de o Estado como Príncipe moderno; e terceiro, da transição democrática como processo de transformismo autoritário-esclarecido. No primeiro período, nos anos 1960, tem-se um Cardoso “gramscista”, em que está presente um uso retórico e livre de conceitos de Gramsci, sem referências aos textos originais. Entretanto, a partir dos anos 1970, a investigação identificou momentos que chamamos de segunda e terceira refrações, onde o autor desenvolve de maneira persistente questões gramscianas, e, inclusive, se posiciona em relação às interpretações das ideias de Gramsci.

Progressivamente, as interpretações da política brasileira que Cardoso elabora com base nas ideias de Gramsci ganham relevância. A identificação da falta de hegemonia da elite econômica por questões estruturais, e não por mera “falta” de consciência de classe, abre o questionamento − central em seu pensamento − a respeito de que grupo social exerceria a hegemonia no Brasil. A tese do Estado como Príncipe moderno, apresentada no início dos anos 1970, é decisiva nesse sentido, assim como, na década seguinte, a ideia de que, diante de uma crise orgânica − em que nem a sociedade civil nem o Estado são fortes o suficiente para realizar seus projetos − o regime militar, com apoio burguês, coloque em marcha o transformismo autoritário-esclarecido, abrindo espaços controlados para o novo mas mantendo o velho no poder.

Os usos das ideias gramscianas, especialmente nestes últimos dois períodos, revelam uma relação de absorção conflituosa, isto é: ao mesmo tempo em que Cardoso segue incorporando conceitos gramscianos em sua análise, reage mais frontalmente a essas formulações buscando reformá-las sistematicamente. Isso parece se dever à centralidade conferida por Cardoso ao elemento da coerção em sua conceituação da hegemonia, o que permite uma análise homogênea da estabilidade do governo ditatorial − compatível inclusive com o desenvolvimento econômico. No momento seguinte, contudo, em que a crise do regime autoritário recoloca a produção e organização do consenso no centro da análise, a relação de Cardoso com o pensamento de Gramsci se revela mais difícil e refratária.

De todo modo, a incorporação criativa do léxico gramsciano compõe peça central no trabalho deste importante pensador e político brasileiro, em sua interpretação específica sobre o comportamento político da burguesia, da formação do Estado no Brasil e da ação dos sujeitos envolvidos tanto na implantação da ditadura como na reconstrução da democracia brasileira. O estudo das refrações gramscianas de Cardoso apresenta-se, por conseguinte, como peça relevante no quebra-cabeça do próprio lugar político no qual esse intelectual tenta se situar nas diversas conjunturas. Os usos de Gramsci por Cardoso são, portanto, parte de uma estratégia de diferenciação político-intelectual ao mesmo tempo em que funcionam como fonte direta (embora nem sempre revelada) de suas teses fundamentais desenvolvidas ao longo de duas décadas.

Por fim, indicamos algumas questões em aberto, que poderiam contribuir para o avanço dessa nova agenda de pesquisa. Optamos por nos aprofundar nos usos dos conceitos gramscianos de hegemonia, Príncipe moderno e transformismo em Fernando Henrique Cardoso. Contudo, o autor também faz referência a outras ideias que compõem o léxico gramsciano que merecem maior investigação, como “bloco de poder”, “intelectuais orgânicos”, “grupos marginalizados” e “crise orgânica”. Além disso, resta explorar mais detidamente a recepção e circulação dessas inovações conceituais propostas por Cardoso nos diversos meios intelectuais e políticos nos quais se inseriu.

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  • Thomas, Peter. (2009), The Gramscian Moment: Philosophy, Hegemony, and Marxism. Boston, Brill.

Notas

  • 1
    . É o caso da coleção História do Marxismo no Brasil, publicada em 6 volumes entre 1991 e 2000. Em contraste, ver Um departamento francês de ultramar do filósofo uspiano Paulo Arantes, em que este faz referência a Cardoso como autor do “documento histórico de uma estréia, no caso, do método dialético na interpretação sociológica” da USP, “possivelmente o [autor do] primeiro capítulo do marxismo ocidental uspiano” (Arantes, 1994:p. 285-286), O pontapé do marxismo de Cardoso - Arantes anuncia sem se aprofundar - seria uma eficaz “irradiação” da combinação de “empréstimos lukacsianos” com a crítica de Arthur Gianotti às ideias de Louis Althusser, além de “conceitos dúbios” resultantes de “considerações avulsas sobre alienação, consciência de classe e práxis” (Arantes, 1994:286).
  • 2
    . Ver Coutinho, Nogueira, 1993[1988]; Simionatto, 1995Simionatto, Ivete. (1995), Gramsci: Sua Teoria, Incidência no Brasil, Influência no Serviço Social. São Paulo, Cortez Editora.; Secco, 2002Secco, Lincoln. (2002), Gramsci e o Brasil: Recepção e Difusão de suas Ideias. São Paulo, Cortez Editora., 2009Secco, Lincoln. (2009), "A Historiografia Brasileira e as Ideias de Gramsci", in M. Del Roio (org.), Aspectos de Gramsci. Marília, Oficina Universitária.; Kanoussi, Schirru e Vacca, 2011; mais recentemente Roberts, 2018Roberts, Philip. (2018), Gramsci in Brazil: From the PCB to the MST. Thesis Eleven, v. 147, n. 1, pp. 62-75..
  • 3
    . Ver Pécaut, 1990Pécaut, Daniel. (1990), Os Intelectuais e a Política no Brasil: Entre o Povo e a Nação. São Paulo, Ática.; Lahuerta, 1999Lahuerta, Milton. (1999), Intelectuais e Transição: Entre a Política e a Profissão. Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; Sorj, 2001Sorj, Bernardo. (2001), A Construção Intelectual do Brasil Contemporâneo. Rio de Janeiro, Zahar.; Leme, 2015Leme, Alessandro André. (2015), "Desenvolvimento e Dependência na Interpretação Sociológica de Fernando Henrique Cardoso". Análise Social, v. 216, n. 3, pp. 632-652.; Ferreira, 2016Ferreira, Rafael Leite. (2016), "Não Esqueçam o que Ele Escreveu: O Sociólogo Fernando Henrique Cardoso e a (Prática da) Teoria da Dependência". Temporalidades, v. 8, n. 1, pp. 469-486.; Costanzo, Marino, 2022.
  • 4
    . Ver Rodrigues, 2012Rodrigues, Lidiane Soares. (2012), A Produção Social do Marxismo Universitário em São Paulo: Mestres, Discípulos e "Um Seminário" (1958-1978). Tese de Doutorado em História Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; Lima, 2015Lima, Pedro Luiz. (2015), As Desventuras do Marxismo: Fernando Henrique Cardoso, Antagonismo e Reconciliação (1955-1968). Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil., 2022Lima, Pedro Luiz. (2022), "A Parte Maldita: Fernando Henrique Cardoso e as Histórias do Marxismo no Brasil". Novos Estudos - CEBRAP, v. 4, n. 2, pp. 231-250.; Gonçalves, 2018Gonçalves, Rodrigo Santaella. (2018), Teoria e Prática em Fernando Henrique Cardoso: Da Nacionalização do Marxismo ao Pragmatismo Político (1958-1994). Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.; Belinelli, 2019b; Lima, Belinelli, Halayel, 2022.
  • 5
    . Ver Bianchi, 2007Bianchi, Alvaro. (2007), "Apresentac¸a~o - Dossie^ 'Gramsci e a Poli´tica'". Sociologia e Poli´tica, n. 29, pp. 7-13., 2011Bianchi, Alvaro. (2011), "Gramsci in Brasile", in D. Kanoussi; G. Schirru; G. Vacca. Studi gramsciani nel mondo. Gramsci in America Latina. Bologna: Mulino, 2016Bianchi, Alvaro. (2016), "O Brasil dos Gramscianos". Crítica Marxista, n. 43, pp. 117-132.; Belinelli, 2019a.
  • 6
    . Como é o caso de pesquisas recentes que destacam a recepção das ideias gramscianas entre grupos intelectuais conservadores no Brasil. Ver Puglia, 2018Puglia, Leonardo Seabra. (2018), "Gramsci e os Intelectuais de Direita no Brasil Contemporâneo". Teoria e Cultura [online], v. 13, n. 2. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/teoriaecultura/article/view/12432.
    https://periodicos.ufjf.br/index.php/teo...
    ; Burgos, 2019Burgos, Raúl. (2019), "El Concepto de Objetividad en Gramsci". Tempo Social, v. 31, n. 2, pp. 95-121.; Bianchi, 2021Bianchi, Alvaro. (2021), "Inesperado Leitor: Oliveiros Ferreira e a Circulação das Ideias Gramscianas no Brasil", manuscrito não publicado.; Mussi, Bianchi, 2022.
  • 7
    . Especialmente ao contexto francófono e anglófono que, nos anos 1960, assistiu à emergência de grupos intelectuais que mobilizaram (crítica e favoravelmente) as ideias de Gramsci em um esforço de renovação do marxismo e conformação de uma “nova esquerda” (cf. Thomas, 2009Thomas, Peter. (2009), The Gramscian Moment: Philosophy, Hegemony, and Marxism. Boston, Brill.).
  • 8
    . Para uma reconstrução documental desse momento, em particular a chegada das ideias de Gramsci no ambiente paulista e uspiano, ver a pesquisa de Bianchi (2021)Bianchi, Alvaro. (2021), "Inesperado Leitor: Oliveiros Ferreira e a Circulação das Ideias Gramscianas no Brasil", manuscrito não publicado.. Agradecemos ao autor pela autorização para citar seu manuscrito ainda não publicado.
  • 9
    . Possivelmente o intelectual comunista brasileiro Jacob Gorender.
  • 10
    . Fundada em junho de 1948 por Monteiro Lobato pouco antes de morrer, a revista Fundamentos foi editada até 1955. De inspiração filocomunista, stalinista e togliattiana, em 1952, na edição n. 14, o periódico publicou a tradução do relato biográfico “A vida de Gramsci”, por Umberto Terracini (cf. Terracini, 1950: 24-27).
  • 11
    . Em particular a partir do texto Duas Táticas da Social-Democracia na Revolução Democrática, escrito por Lenin em Genebra em junho-julho de 1905 em seguida ao fracasso de uma tentativa revolucionária na Rússia e rapidamente divulgado pela social-democracia russa no país e pela Europa em várias línguas. O uso do conceito de hegemonia se tornaria bastante comum e diversificado na cultura socialista e revolucionária a partir de então (cf. Schirru, 2008Schirru, Giancarlo. (2008), "La Categoria di Egemonia e il Pensiero Linguistico di Antonio Gramsci", in A. D'orsi (org.), Egemonie. Napoli, Dante & Descartes.; 2016): “Com este instrumento teórico, os comunistas russos responderam, desde a Revolução de 1905, à necessidade de vincular a luta econômica, de tipo sindical, à luta política, antes associada apenas ao terrorismo de grupos populistas. A noção de hegemonia é relacional: ela opera, por um lado, sobre sujeitos sociais, que se definem no terreno econômico; por outro, é uma relação política entre esses sujeitos, onde um deles dirige e domina os outros” (Schirru, 2016Schirru, Giancarlo. (2016), "l'égémonie de Gramsci entre la Sphère Politique et la Sphère Symbolique", Mélanges de l'École Française de Rome - Italie et Méditerranée Modernes et Contemporaines [online], n. 128, v. 2. Disponível em: https://doi.org/10.4000/mefrim.2967
    https://doi.org/10.4000/mefrim.2967...
    , s/p. tradução livre).
  • 12
    . A inspiração gramsciana, aqui, possivelmente descende da tradução francesa que Cardoso possuía de um dos cinco volumes temáticos dos Quaderni del Carcere publicados na Itália pela editora Einaudi como Opere a partir de 1945 e na França como Oeuvres Choisies em 1959. No referido volume, intitulado “Il Risorgimento”, estão reunidos vários parágrafos do Quaderno 19 nos quais Gramsci escreveu, continuando a pesquisa iniciada no ensaio de 1926, “Alcuni temi della Questione Meridionale”, sobre “a forma e os meios” usados pelos grupos moderados italianos para “estabelecerem o aparelho (o mecanismo) de sua hegemonia intelectual, moral e política” (Q19, §24) no contexto da unificação nacional italiana na segunda metade do século XIX.
  • 13
    . Este artigo encontraria tradução para espanhol e francês, até ser publicado em português na coletânea Mudanças Sociais na América Latina que reuniu, também, o artigo da Les Temps Modernes. Ver Cardoso (1969)Cardoso, Fernando Henrique. (1969), Mudanças Sociais na América Latina. São Paulo, DIFEL..
  • 14
    . Entre os contatos estabelecidos nessa época, Cardoso se refere especialmente ao cientista político Alfred Stepan, professor em Yale e ao economista Albert Hirschman, de Harvard (Cardoso, 2021:118-119).
  • 15
    . “Tratei de adaptar a pesquisa que fizera sobre os empresários latino-americanos para, de volta ao Brasil, concorrer à nova cátedra. (...) A verdade é que repliquei na nova tese (...) o procedimento que havia utilizado no trabalho anterior” (Cardoso, 2021Cardoso, Fernando Henrique. (2021), Um Intelectual na Política. Memórias. São Paulo, Companhia das Letras.:133-136). O texto de Cardoso consistia na apresentação dos resultados da pesquisa de campo realizada entre 1965 e 1966 por meio de entrevistas com empresários no Brasil e na Argentina. Continuidade do trabalho iniciado em 1963, a investigação visava analisar “os aspectos específicos da ideologia política dos empresários”, abrangendo os “problemas mais gerais da formação e comportamento” dessa classe, particularmente o processo de formação das alianças políticas burguesas na periferia do capitalismo (Cardoso, 1971Cardoso, Fernando Henrique. (1971), Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar.:7).
  • 16
    . A referência direta a Gramsci aparece uma única vez em uma nota de rodapé com um comentário ao “primeiro ensaio” do autor sardo, o que demonstra a então pouca familiaridade do brasileiro com a história dos escritos carcerários, compostos sob a forma de parágrafos e rubricas temáticas, não de ensaios (Cardoso, 1971Cardoso, Fernando Henrique. (1971), Política e Desenvolvimento em Sociedades Dependentes: Ideologias do Empresariado Industrial Argentino e Brasileiro. Rio de Janeiro, Zahar.:11).
  • 17
    . Presente em termos e expressões usados por Cardoso ao longo de todo o texto, tais como hegemonia, hegemonia burguesa, situação hegemônica, polos hegemônicos, posição hegemônica, controle hegemônico, eixo hegemônico, parceiro hegemônico, vocação hegemônica e visão hegemônica.
  • 18
    . Em suas memórias autobiográficas publicadas em 2021, Cardoso fez questão de destacar que, apesar de reconhecer os méritos da ciência política institucionalista e da “cultura cívica” praticada nos Estados Unidos, manteve distância crítica de seu conteúdo tendencialmente conservador (Cardoso, 2021:136-138, 158).
  • 19
    . O texto foi escrito para participação em um seminário realizado por intelectuais europeus, norte-americano e brasileiros na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, em abril de 1971. Na primeira versão, publicada pelo periódico Estudos CEBRAP, Cardoso deu a ele o título “O regime político brasileiro” (Cardoso, 1972), com o qual foi traduzido para o espanhol e publicado pela revista Aportes em 1972. No ano seguinte, o texto de Cardoso foi traduzido para o inglês sob o título “Associated-Dependent Development: Theoretical and Practical implications” e publicado na coletânea Authoritarian Brazil: origins, policies and future organizada por Alfred Stepan para reunir as contribuições ao seminário de 1971 (cf. Stepan, 1973Stepan, Alfred. (1973), Authoritarian Brazil: Origins, Policies and Future. New Haven/London, Yale University Press.). Cardoso via esses intelectuais de maneira simbólica, como influentes sobre os novos grupos de cientistas políticos com formação nos Estados Unidos que, no Brasil, se concentravam em São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte e disputavam, entre si, a hegemonia analítica da política brasileira na época (Cardoso, 2021:138-139).
  • 20
    . Diferentemente do que ocorreu nos países europeus e do que se esperava que fosse reproduzido em terras brasileiras, o empresariado não se aliou ao proletariado e às massas urbanas para liderar o desenvolvimento nacional — entendido como a modernização econômica, mas também político-social. Aqui, a modernização econômica ocorreu em detrimento do desenvolvimento social e da democracia: “ao contrário das revoluções burguesas clássicas, portanto, aqui ela teria acontecido contra os trabalhadores e não com base neles” (Singer, 2022:6).
  • 21
    . Em seguida, reunido e publicado, em 1975, como capítulo da coletânea Autoritarismo e democratização com textos escritos e publicados entre 1972 e 1974 (cf. Cardoso, 1975Cardoso, Fernando Henrique. (1975 [1974]), "A Questão do Estado no Brasil", in F. F. Cardoso, Autoritarismo e democratização, Rio de Janeiro, Paz e Terra, pp. 187-221.). Em entrevista autobiográfica publicada em 2006, Cardoso mencionou ter descoberto pela imprensa duas décadas depois, quando já era presidente do Brasil, a existência de processo investigativo secreto impulsionado sob a pressão de “certos ideólogos do regime” ditatorial por ocasião da publicação da coletânea para tentar bani-la e prender seu autor (Cardoso, 2006:124).
  • 22
    . Bianchi (2007)Bianchi, Alvaro. (2007), "Apresentac¸a~o - Dossie^ 'Gramsci e a Poli´tica'". Sociologia e Poli´tica, n. 29, pp. 7-13. sugere que Cardoso poderia estar se referindo a Oliveiros Ferreira ao tratar dessa “interpretação liberal”.
  • 23
    . Em Gramsci, o moderno príncipe representaria “um elemento de sociedade complexo no qual já se iniciou a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação”, ou seja, o partido político (Q 13, §1:1558, tradução livre).
  • 24
    . Como nota Belinelli (2019a:203), foi justamente em 1974 que Cardoso e o Cebrap se aproximam de Ulysses Guimarães, então liderança do partido de oposição Movimento Democrático Brasileiro (MDB) em busca de apoio para elaboração de um novo programa político-partidário para a oposição interna ao regime.
  • 25
    . Sobre esse período, Cardoso escreveu em suas memórias: “A noção de que as economias da região eram dependentes e por isso havia marginalização social, entretanto, predominou nos círculos intelectuais, em especial nos progressistas e católicos. [...] Haveria sobra de mão de obra, mais do que a sobra necessária para contar os salários dos trabalhadores. Misturavam-se, assim, os ‘deserdados da terra’, como diria Frantz Fanon” (Cardoso, 2021:121).
  • 26
    . É interessante pincelar aqui uma discussão que será retomada na terceira refração. Neste artigo de 1974, Cardoso alerta para o perigo da cooptação de setores da oposição pelo Estado a favor de uma “modernização conservadora”, que mantenha suas bases sociais. Essa possibilidade de “cooptação pela cúpula” é advertida também em A questão da democracia, artigo publicado no mesmo ano (Gonçalves, 2018Gonçalves, Rodrigo Santaella. (2018), Teoria e Prática em Fernando Henrique Cardoso: Da Nacionalização do Marxismo ao Pragmatismo Político (1958-1994). Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.:154). Veremos que é justamente isso que Cardoso sugere que ocorre na transição democrática, em que o regime reconquista o empresariado, até então simpático à campanha liberalizante, e coloca em curso o processo de “transformismo autoritário-esclarecido”.
  • 27
    . Nesse artigo, Cardoso replicou o texto Anderson citando Gramsci a partir da Selections from the Prison Notebooks, tradução para o inglês de Quintin Hoare and Geoffrey Nowell Smith publicada pela Lawrence & Wishart em 1971.
  • 28
    . Um efeito prático dessa leitura indireta foi a tradução da ideia gramsciana, presente no Q13 §18, (p. 1589), de que “nella realtà effettuale società civile e Stato si identificano” [na realidade efetiva sociedade civil e Estado se identificam], por “in actual reality civil society and State are one and the same” na edição de Hoare e Smith citada por Anderson para evidenciar as contradições gramscianas, depois traduzida por Cardoso como “na realidade, a Sociedade Civil e o Estado são a mesma coisa” (Gramsci, 1971: 160; Anderson, 1976Anderson, Perry. (1976), "The Antinomies of Antonio Gramsci". New Left Review, n. 100, pp. 6-80.:13; Cardoso, 1977c:13).
  • 29
    . Jingle composto de letra de Chico Buarque para a marchinha “Maria Bonita”. Ver “Cardoso convocado pelo MDB”. O Estado de São Paulo, 16 nov. 1978, p. 5. Acesso em 13/04/2023.
  • 30
    . “No encerramento, SBPC evita debate político”. O Estado de São Paulo, 14 jul. 1977, p. 10. Acesso em 13/04/2023.
  • 31
    . “Proposta democracia sem revides”. O Estado de São Paulo, 14 jul. 1977, p. 10. Acesso em 13/04/2023.
  • 32
    . Idem, p. 10. Acesso em 13/04/2023.
  • 33
    . “Lembo quer rever lista de candidatos”. O Estado de São Paulo, 10 ago. 1978, p. 7. Acesso em 13/04/2023.
  • 34
    . “Lembo critica previsões de Cardoso. O Estado de São Paulo, 4 nov. 1978, p. 4. Acesso em 13/04/2023
  • 35
    . “O terceiro candidato”. O Estado de São Paulo, 12 nov. 1978, p. 2. Acesso em 13/04/2023.
  • 36
    . “Campanha termina, MDB ataca o governo”. O Estado de São Paulo, 14 nov. 1978, p. 5. Acesso em 13/04/2023.
  • 37
    . Texto escrito para apresentação na conferência Transitions from Authoritarianism and Prospects for Democracy in Latin America and Southern Europe, realizada em junho de 1981 em Washington, Estados Unidos, pelo Latin American Program do Woodrow Wilson Center. Publicado em 1983 pela revista Dados: Revista de Ciências Sociais, versão citada aqui (cf. Cardoso, 1983)Cardoso, Fernando Henrique. (1983), "O Papel dos Empresários no Processo de Transição: O Caso Brasileiro". DADOS - Revista de Ciências Sociais, v. 26, n. 1, p. 9-27.. Em 1993, o texto foi publicado finalmente como capítulo da coletânea A Construção da Democracia: Estudos sobre Política, que reuniu escritos de períodos diversos (cf. Cardoso, 1993)Cardoso, Fernando Henrique. (1993), A Construção da Democracia: Estudos sobre Política. São Paulo, Siciliano..
  • 38
    . Nesse sentido, Cardoso (1981Cardoso, Fernando Henrique. (1981), "Os Anos Figueiredo". Novos Estudos Cebrap, v. 1, n. 1, pp. 4-11.:11) argumenta que “a proposta [de abertura política de] Figueiredo [...] é − que ninguém se iluda − o momento da busca da hegemonia. Não a liberal-burguesa, do consenso dos partidos. Mas a oligopólico-autoritária que se funda no Estado e dá à sociedade a ilusão da participação”.
  • 39
    . Tema desenvolvido em artigo publicado na Revista de Cultura e Política em 1981 e inserido na coletânea A Construção da Democracia, “Regime Político e Mudança Social: A Transição para a Democracia”, onde os modelos propostos são detalhados (cf. Cardoso, 1993Cardoso, Fernando Henrique. (1993), A Construção da Democracia: Estudos sobre Política. São Paulo, Siciliano. [1981]:258-263).
  • 40
    . Cardoso defende aqui que deve-se “criticar a recusa de pensar o Estado, que existe implícita na atitude ‘basista’ e na valorização absoluta dos movimentos sociais frente aos partidos como se o povo, a ‘base’, [...], a periferia do poder, fossem não apenas ‘puros e bons’, mas capazes de implementar soluções sociais, econômicas e políticas que dispensassem uma ‘visão do todo’” (Cardoso, 1993 [1981]:264-265). Em entrevista ao pesquisador Pedro Luiz Lima (2015)Lima, Pedro Luiz. (2015), As Desventuras do Marxismo: Fernando Henrique Cardoso, Antagonismo e Reconciliação (1955-1968). Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil., Cardoso retomou essa argumentação, referenciando-se novamente em Gramsci. Ao ser perguntado sobre sua crítica à “fetichização” da sociedade civil nos anos 1980, Cardoso responde: “Aqui no Brasil, quando a ideia de sociedade civil renasceu, na época do autoritarismo, parecia que ela era boa, e o Estado era o negativo. Mas vamos voltar um pouco, sobretudo, a Gramsci: vamos ver que a hegemonia se forma na sociedade civil e desemboca no Estado. E o Estado tem que ser poroso para absorver o que está em ebulição na sociedade civil. Então, o que eu estava pensando nessa época era: “vocês estão fetichizando, cuidado...”. E o que os movimentos sociais faziam aqui? Acabavam reivindicando o que eles desejavam a um burocrata do Estado. E eu achava: “vocês não estão fazendo política. A política implica você entender o Estado também”. Se a sociedade civil não se engancha na política, e você não vai ao Estado, ela fica uma instância menor; era essa a minha ideia” (Lima, 2015Lima, Pedro Luiz. (2015), As Desventuras do Marxismo: Fernando Henrique Cardoso, Antagonismo e Reconciliação (1955-1968). Tese de Doutorado em Ciência Política, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.:213).
  • 41
    . Em palestra proferida aos funcionários do Metrô de São Paulo em janeiro de 1983, Cardoso provocou: “Qual o problema que enfrentamos hoje no Brasil? É a autonomia democratizante. Nós, eles, não sei quem, o país está democratizando-se. Que se vai entender por esse processo? [...] Seria ilusão dizer: tudo isso é normal, o que se precisa, realmente, é uma participação direta, da massa manifestar-se. [...] A atitude basista é tão forte que bloqueia as lideranças. [...] Em geral, chocam-se princípios de autoridade rígida com uma vontade democratizadora vaga. No primeiro momento de eclosão, parece que tudo vai mudar. No dia seguinte, não muda nada e as forças de continuidade se sustentam” (Cardoso, 1985:56).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Abr 2025

Histórico

  • Recebido
    16 Jan 2023
  • Recebido
    17 Abr 2023
  • Aceito
    26 Maio 2023
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