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O labirinto ou a lógica do tempo sem sentido em Alexandre Koyré

The labyrinth or the logic of time without direction in Alexandre Koyré

Resumo

A França do entreguerras foi frequentemente caracterizada por seus contemporâneos como um período de profundas crises. Para os historiadores que viveram nessa época, havia uma “crise da história”. Essa crise era identificada ao desmoronamento das noções de determinismo e de sentido histórico. O futuro e, com ele, a temporalidade histórica tornavam-se incertos, imprevisíveis. A posição de A. Koyré, no contexto dessa problematização, merece destaque na medida em que ele buscava inscrever em uma nova historiografia das ciências esse tempo histórico indeterminado e sem direção prévia, mas, concomitantemente, extrair dele sua nova filosofia. De um lado, ele assimilava o tempo histórico à imagem do labirinto, uma figura importante que circulou intensamente nesse período por diversos domínios, transitando entre as vanguardas artística e epistemológica. De outro, procurava definir, nos termos de uma filosofia da história, a natureza dessa nova temporalidade histórica. Daí seu interesse pela filosofia da história, pelo existencialismo e por autores como Hegel e Heidegger. Pretendo mostrar como há em Koyré, nesse período, uma tentativa de compreender filosoficamente a lógica do tempo aberto e sem sentido e como essa compreensão se encarna em seus trabalhos de história do pensamento.

Palavras-chave:
Temporalidade histórica; Filosofia da história; Sentido histórico

Abstract

French contemporaries of the inter-wars period often characterized it as one of profound crisis. For the historians living through that period there was a ‘crisis of history’ and it was associated with the collapse of notions of determinism and historical direction. The future, and with it, historical temporality, became uncertain and unforeseeable. A. Koyré’s position in the context of that problematization is interesting insofar as he endeavored to inscribe that indeterminate and directionless historical temporality in a new historiography of science and to extract its new philosophy. On the one hand he associated historical time to the image of a labyrinth, an important symbol that circulated intensely in various domains at that time, transiting between artistic and epistemological vanguards. On the other, he sought to define the nature of that new historical temporality in the terms of a philosophy of history, hence his interest in the philosophy of history, in existentialism and in authors like Hegel and Heidegger. It was necessary to attempt to understand the logic of a time that was open and devoid of direction.

Keywords:
Historical temporality; Philosophy of history; Historical direction

Introdução

O nascimento de novas matrizes historiográficas, por volta das décadas de 1920 e 1930, foi indissociável de uma nova compreensão epistemológica e filosófica do tempo. A constituição de uma nova história econômica e social, de uma nova história das ciências e mesmo de uma nova filosofia da história tornam-se plenamente compreensíveis quando relacionadas a uma transformação do próprio tempo que constituía a matéria dessas histórias. Desde o final do século XIX e ao longo das primeiras décadas do século XX, a concepção mecanicista da natureza encontrava-se em questão (RASMUSSEN, 1996RASMUSSEN, A. « Critique du progrès, « crise de la science » : débats et répresentations du tournant du siècle ». Mil neuf cent, Paris, v. 14, p. 89-113, 1996. https://www.persee.fr/doc/mcm_1146-1225_1996_num_14_1_1152 Acesso: 10 de outubro de 2014
https://www.persee.fr/doc/mcm_1146-1225_...
). Do lado da reflexão filosófica, o racionalismo cientificista era criticado pelo convencionalismo epistemológico e pelo bergsonismo. No interior da atividade científica, a probabilística, a microfísica e a teoria dos quanta abalavam os pilares de uma ideia de ciência. Não se trata aqui de analisar todos os aspectos dessa transformação que os homens desse período compreenderam como uma profunda “mutação” de seu modo de pensar, como uma nova “revolução copernicana” na história do pensamento (BACHELARD, 1968BACHELARD, Gaston. O novo espírito científico. Tradução de Juvenal Hahne Júnior. Rio de Janeiro: Tempo Universitário, 1968 [1934]., p. 136; 151),1 1 Para o autor de O novo espírito científico, as novas ciências físicas (Relatividade, Teoria dos quanta etc.) implicavam um novo mundo, uma nova realidade e solicitavam um novo espírito, uma nova razão apta a conhecê-los, uma nova perspectiva ou modo de ver que transformavam radicalmente o conhecimento científico. Essas transformações marcavam, a seu ver, uma revolução copernicana no empirismo tradicional. mas de destacar que essa mudança implicava a destruição de uma compreensão determinista e causalista do tempo.

Ao longo do século XIX, a história quis fundar-se como ciência recorrendo ao modelo epistemológico da física. A noção de causalidade e a teoria do determinismo constituíam, como apontava Lucien Febvre, a estrutura ontológica da história. “A antiga ideia de causalidade - e, portanto, a teoria do determinismo, esse fundamento incontestado de todas as ciências positivas -, esse pilar inabalável da velha história clássica”, era posto em questão pelas novas ciências (FEBVRE, 2009FEBVRE, Lucien. De 1892 à 1933. Examen de conscience d’une histoire et d’un historien. In: FEBVRE, Lucien. Vivre l’histoire. Edição estabelecida por Brigitte Mazon. Paris: Lafont; A. Colin, 2009 [1934]. p. 21-35. [1943], p. 31). Clio perdia, portanto, seu fundamento. Não havia mais bases seguras nas quais se apoiar. Por essa razão, Febvre falava igualmente em uma “falência da história” (FEBVRE 2009 FEBVRE, Lucien. De 1892 à 1933. Examen de conscience d’une histoire et d’un historien. In: FEBVRE, Lucien. Vivre l’histoire. Edição estabelecida por Brigitte Mazon. Paris: Lafont; A. Colin, 2009 [1934]. p. 21-35.[1934], p. 16), ecoando o diagnóstico epistemológico de L. Brunschvicg.2 2 A fórmula “falência da ciência” [faillite de la Science] foi lançada no final do século XIX por F. Brunetière no quadro de uma reação conservadora, antiprogressista e frequentemente monarquista contra o cientificismo que marcou o início da III República (RASMUSSEN, 1996). Ela se valia de toda uma série de críticas filosóficas e epistemológicas ao entusiasmo e ao otimismo racionalista que caracterizou as gerações de Taine, Berthelot, Renan e Renouvier (mesmo que estes dois últimos tenham mais tarde mudado radicalmente de posição). Essa fórmula passou a circular, a partir de então, no mundo literário e na opinião pública, com o intuito ideológico de caracterizar o que se denominava de “crise”. Em uma conferência pronunciada em 1930, Brunschvicg esclarecia que a faillite de la Science de que se falava em periódicos de grande circulação não tinha nenhuma relação com a “crise” da ciência de que ele próprio tratava: não era a ciência em si que desmoronava, mas uma certa concepção ou “filosofia da ciência”. O diagnóstico de Febvre me parece muito próximo daquele do racionalismo brunschviguiano: não se tratava de uma bancarrota da ciência histórica, mas da concepção ou filosofia da ciência histórica dos seus professores do final do século XIX (BRUNSCHVICG, 1954, p. 75). Daí seu reconhecimento, desde o início da década de 1930, de que a ciência histórica se encontrava “em plena crise” (FEBVRE, 2009 FEBVRE, Lucien. De 1892 à 1933. Examen de conscience d’une histoire et d’un historien. In: FEBVRE, Lucien. Vivre l’histoire. Edição estabelecida por Brigitte Mazon. Paris: Lafont; A. Colin, 2009 [1934]. p. 21-35.[1934], p. 16; FEBVRE, 2009FEBVRE, Lucien. Propos d’initiation: vivre l’histoire. In: FEBVRE, Lucien. Vivre l’histoire. Edição estabelecida por Brigitte Mazon. Paris: Lafont; A. Colin , 2009 [1943]. p. 9-21., [1943] p. 27; 29; 33). Era preciso “reconstruí-la”, sem dúvida, “mas sobre qual fundamento?”, inquietava-se o autor dos Combates pela história (2009 [1934], p. 17). O tempo histórico não era mais linear, progressivo, rigidamente estruturado na escala cronológica, cujos fatos eram encadeados por meio de causas e cuja direção poderia ser traduzida através de leis. Eis aí ao menos uma das razões pelas quais, durante esse período, as filosofias da história e a noção de progresso foram duramente criticadas e as noções de anacronismo e de precursor se tornaram um problema.

Nessa época, Georges Friedmann (1935FRIEDMANN, Georges. La crise du progrès. Paris: Gallimard , 1935. ) anunciava La crise du progrès e mesmo o seu “colapso” [effondrement]. O determinismo histórico se tornava um problema. Mas ele deixava um vácuo atrás de si, pois, abandonando-o, o tempo histórico tornava-se incerto, indeterminado. Todo e qualquer discurso legal sobre o porvir era, doravante, inscrito na rubrica teológica das previsões proféticas ou no registro astrológico dos leitores de horóscopo. O presente deixava de ser o desenlace da história, o cume que prolongava um processo previamente determinado. O futuro, da mesma forma, deixava de ser o telos em que se realizaria aquilo que no presente era adiado, visto que as condições de sua realização ainda não estavam totalmente preenchidas. “O futuro”, afirmava Paul Valéry em 1931, “não é mais o que era”. Para ele, não se sabia “mais pensar nele com alguma confiança”, pois “nós perdemos nossos meios tradicionais de pensar nele e de prevê-lo” (VALÉRY, 1957VALÉRY, Paul. Variété. In: VALÉRY, Paul. Oeuvres. Edição estabelecida e anotada por Jean Hytier. Tomo I. Paris: Pléiade , 1957. p. 427-1512. [1931], p. 1062]. Havia uma “crise do imprevisto” (VALÉRY, 1957 [1931], p. 1065). Até então, o imprevisto era “limitado”; embora “nossos pais” soubessem do peso do “acaso” na história, o imprevisto era “imaginável”, logo, era possível “decretar leis duráveis” (VALÉRY, 1957 VALÉRY, Paul. Regards sur le monde actuel et autres essais. In: VALÉRY, Paul. Oeuvres. Edição estabelecida e anotada por Jean Hytier. Tomo I. Paris: Pléiade, 1957 [1931]. p. 911-1158.[1931], 1066). O imprevisto, entretanto, havia se tornado “ilimitado”, e qualquer capacidade preditiva, “precária”. Por essa razão, “nós entramos no futuro andando de costas” (VALÉRY, 1957 VALÉRY, Paul. Variété. In: VALÉRY, Paul. Oeuvres. Edição estabelecida e anotada por Jean Hytier. Tomo I. Paris: Pléiade , 1957. p. 427-1512.[1931], p. 1064) e não mais face ao vento. A imprevisibilidade ilimitada modificou “em nós todo o sistema de nossas expectativas, toda a rede das extremidades sensíveis que nos dá a ilusão de futuro, todas as formas de nossas esperanças e de nossos temores” (VALÉRY, 1957 VALÉRY, Paul. Regards sur le monde actuel et autres essais. In: VALÉRY, Paul. Oeuvres. Edição estabelecida e anotada por Jean Hytier. Tomo I. Paris: Pléiade, 1957 [1931]. p. 911-1158.[1931], p. 1065)

A ruína dessa concepção de história não significou, todavia, que os historiadores abandonassem o esforço de constituir uma nova noção de tempo ou novas formas de temporalização da história. Ela era tecida, sem dúvida, em novas práticas da história. Certamente, tinha-se consciência de que não era mais possível erguê-la em bases rígidas ou definitivas. “Sabemos muito bem hoje”, escrevia Koyré em 1946KOYRÉ, Alexandre. Cours dactyloraphié corrigé sur Galillé du 9 abril 1946 donné au Lycée Louis-le-Grand. Centre Alexandre Koyré, Fonds Alexandre Koyré, manus. CAK Koyré AP.c 7 d 2 [1946]., que o ideal newtoniano de ciência “é irrealizável, mesmo na física”: “o Newton - ou o Einstein - da história está ainda por nascer” (KOYRÉ, 2010KOYRÉ, Alexandre. Filosofia da história. In: SALOMON, Marlon (org.). Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2010. p. 6-72. [1946], p. 58). Daí boa parte dos pessimismos daquele período, mas também dos otimismos de diferentes discursos que pretendiam reformar a disciplina.

Se a História não possuía mais um sentido (direção prévia e significado), era preciso estabelecer uma definição mínima do que era esse tempo histórico sem direção. Se nada mais era perpétuo ou necessário, se tudo se tornava cambiante e mutável, a história precisava se tornar a ciência da mudança. Apenas a mudança se tornava perpétua. Lucien Febvre e Marc Bloch insistiram com certa frequência nesses termos: a História é “a ciência da mudança perpétua das sociedades humanas” (FEBVRE, 2009FEBVRE, Lucien. Propos d’initiation: vivre l’histoire. In: FEBVRE, Lucien. Vivre l’histoire. Edição estabelecida por Brigitte Mazon. Paris: Lafont; A. Colin , 2009 [1943]. p. 9-21. [1943], p. 33). Por essa razão, defendia Alexandre Koyré, só havia história lá onde havia mudança: a espessura do tempo apenas se revelava por meio dela (KOYRÉ, 2010KOYRÉ, Alexandre. Filosofia da história. In: SALOMON, Marlon (org.). Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2010. p. 6-72., p. 60). O tempo não se revelava mais na realização de uma direção previamente determinada, mas nas próprias mudanças imprevisíveis de direção. Se eles encontravam aí, por vias diferentes, a reflexão bergsoniana sobre a duração e o movimento, isso não deve, portanto, surpreender (GATTINARA, 1998GATTINARA, Enrico Castelli. Les inquiétudes de la raison. Paris: Vrin; EHESS, 1998.). E era porque a história se tornava mudança que sua direção se tornava indefinível, incognoscível. Ela se tornava duvidosa, imprevisível. O presente se tornava um estado “provisório”, como queria Gaston Bachelard, na medida em que a “modernidade da ciência” assumia um “caráter efêmero” (BACHELARD, 1972BACHELARD, Gaston. L’actualité de l’histoire de Science. In: BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste. Paris: PUF, 1972 [1951]. p. 137-152., p. 144); um estado transitório de um tempo que não era mais fechado, mas que se tornava uma abertura infinita. A concepção fechada do tempo que orientava as filosofias da história do século XIX dava lugar a uma concepção aberta em que buscavam se fundar as novas concepções de história. A história tornava-se sinônimo de incerteza.

Os fundadores dos Annales, todavia, paravam por aí suas especulações sobre o que constituía a história e esforçavam-se em definir o passado como diferença em relação ao presente, que deveria ser reconstituído, no entanto, em sua totalidade. Não todo o passado e nem tudo o que se passou, mas aquele de uma determinada época a partir de princípios que, do seu interior, configuravam uma unidade homogênea. Para eles, o tempo não podia deixar de ser totalidade sem que a história deixasse de ser ciência (SALOMON, 2018SALOMON, Marlon. Temporalidade histórica em Lucien Febvre e Alexandre Koyré. In: SALOMON, Marlon. (org.). Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Ricochete , 2018. p. 142-166.). Alexandre Koyré, ao contrário, inscrevia essa nova ideia de história no modo como buscava reconstituir a ciência ou a filosofia em seu próprio devir. Por isso, ela se tornava movimento. A história (quase) imóvel dos Annales é contemporânea da história móvel de Alexandre Koyré.

Abertura

Se a História não possuía mais um significado sobre o qual caberia à filosofia especular, se ela se tornava imponderável, era preciso deslocar qualquer consideração sobre ela dos termos em que tradicionalmente se inscreveu sua reflexão. As noções de origem e de fim, que delimitavam as especulações filosóficas sobre o devir, traduziam a concepção de um tempo determinista e bloqueavam a possibilidade de transformar o incerto em dimensão constitutiva da temporalidade histórica. Pensando-a como movimento, Alexandre Koyré podia inscrever na história a imprevisibilidade e romper com o circuito fechado no qual ela até então se encontrava presa. Era o movimento, o presente móvel, escorregadio, o meio e não mais as extremidades que permitiam pensar uma nova ideia de temporalidade histórica. Não eram mais os limites, as raias, as bordas que forneciam a chave para a compreensão da história, mas o intervalo.

O que se tornava, então, problema era saber o que constituía esse meio e como traduzi-lo em uma imagem temporal. Essa foi uma questão que se colocou de uma maneira geral ao pensamento histórico à época. E embora discuti-la em toda sua extensão não seja aqui o meu objetivo, poderia lembrar que os fundadores dos Annales, evocando a duração bergsoniana, traduziram essa noção em termos geográficos. Clima, atmosfera, ar, ambiente, etc., foram noções por meio das quais Marc Bloch e Lucien Febvre foram conduzidos a geograficizar a temporalidade histórica (SALOMON, 2018SALOMON, Marlon. Temporalidade histórica em Lucien Febvre e Alexandre Koyré. In: SALOMON, Marlon. (org.). Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Ricochete , 2018. p. 142-166.).3 3 Empreguei o neologismo “geograficizar” (ao invés de “geografizar”) para me referir a esse processo na medida em que ele remete à geograficidade, guardando, portanto, relação com a noção de historicidade (Cf. SALOMON, 2018). Essa geograficização do tempo permite compreender como os Annales foram levados a imobilizar a temporalidade histórica. E se em seguida, na época do estruturalismo, Fernand Braudel, até como forma de afirmar o rigor da história perante as ciências humanas e reafirmar sua cientificidade, traduziria essas noções em termos estruturais, ele reafirmava, no mesmo golpe, sua imobilidade.4 4 Meu objetivo aqui não é explorar as semelhanças e diferenças que podem ser traçadas entre as perspectivas historiográficas de Koyré, Febvre, Bloch ou mesmo Bachelard. Procurei explorá-las em outros trabalhos (SALOMON, 2015a; 2015b; 2018). Recentemente, P. Redondi (2016) trouxe à tona novos documentos que permitem pensar as relações entre Koyré e os Annales (Braudel aí incluso) sob novos prismas. Gostaria apenas de apontar rapidamente como eles se deslocam em um solo comum e como seus trabalhos podem ser analisados como reações diferentes a um conjunto comum de problemas. E foi porque Alexandre Koyré não apenas advinha da história da filosofia, mas mais precisamente porque, ao longo da década de 1920, havia nutrido seu interesse pela reflexão epistemológica e passado à história das ciências através da leitura e da frequência pessoal e intelectual de Émile Meyerson, que podia colocar esse problema em outros termos no início da década de 1930.

Inspirado, sem dúvida, no autor de Du cheminement de la pensée - obra cuja publicação, vale a pena lembrar, data de 1931 -, Alexandre Koyré definia a história das ciências como uma atividade caracterizada por possuir uma finalidade.5 5 Não pretendo apresentar aqui uma análise de todos os aspectos da concepção koyreana de história nem restituir o conjunto de referências que permitiria explicitá-la. Interessa-me mais precisamente considerar um aspecto negligenciado nas análises sobre essa concepção e que diz respeito às suas reflexões sobre a natureza de uma nova concepção de temporalidade nos termos de uma filosofia da história. Por essa razão, valorizo aqui a referência a Meyerson, à sua compreensão dinâmica da razão e à concepção móvel da história que ela implica. Ela me parece importante para o que pretendo apontar a seguir. Sobre a concepção koyreana de história, cf. Jorland (1981), Redondi (2016), Zambelli (2021), Condé e Salomon (2015) e mais recentemente o estudo de Machado (2021). Ela é a história de uma busca. “Ela nos revela o espírito humano no que ele tem de mais alto, em sua busca incessante, sempre insatisfeita e sempre renovada, de um objetivo que sempre lhe escapa: a busca da verdade, itinerarium mentis in veritatem” (KOYRÉ, 1982KOYRÉ, Alexandre. Perspectivas da história das ciências. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense , 1982 [1963]. p. 370-379., p. 377). Ele não está descrevendo nessa passagem uma disciplina, mas o próprio devir do pensamento científico: as ciências têm uma história, porque a finalidade, o objetivo que orienta a atividade científica permanece sempre em aberto. Não há mais, assim, como fundar o conhecimento senão na história, logo, no incerto. O tempo não é mais o lugar em que a verdade se desvela pouco a pouco, muitas vezes por meio da palavra heroica de precursores desprezados pela medíocre ignorância de seus contemporâneos, em que a eternidade se desdobra pouco a pouco até ser anunciada em toda sua transparência. Não há mais desvelamento definitivo da verdade. Mas, o mais importante aqui é observar o aspecto filosófico dessa definição da história. O tempo histórico é uma abertura para o infinito, na medida em que a ciência se orienta por um objetivo que não encontra termo, visto que permanece indefinidamente aberto. O que determina se algo ou uma atividade possuem ou não história - e a verdade e a ciência o possuem - é o fato de estar inscrita nesse horizonte aberto e indefinido.

Escrever a história do pensamento científico significava reconstituir esse tempo no horizonte dessa indefinição. A história, assim, deixava de ser linear. “O itinerarium mentis in veritatem não é uma linha reta; e é preciso percorrê-lo em todos os seus desvios e labirintos, se engajar em seus impasses, se enganar de rota e retornar o caminho” (KOYRÉ, 1961KOYRÉ, Alexandre. La révolution astronomique. Copernic, Kepler, Borelli. Paris: Hermann , 1961. , p. 11), pois ele dá voltas, faz desvios, entra em becos sem saída, dá marcha ré. Koyré traduzia o tempo histórico sem direção por um percurso labiríntico. Não há mais uma via da verdade: na medida em que a verdade que se busca, no interior de cada atividade científica, é singular, essa via não é direta e nem tampouco exclusiva. “E nem mesmo é uma via, mas várias. A do matemático não é a do químico, nem a do biólogo, nem mesmo a do físico... Assim, é preciso que sigamos todas essas vias em sua realidade concreta, isto é, em sua separação historicamente produzida, e que nos resignemos a escrever histórias das ciências antes de poder escrever a história da ciência” (KOYRÉ, 1982KOYRÉ, Alexandre. Perspectivas da história das ciências. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense , 1982 [1963]. p. 370-379., p. 377). O conhecimento não se ordenava mais de forma arborescente. Ele não tinha mais uma direção virtualmente inscrita desde sua origem; apenas múltiplas direções desprovidas de um eixo central. Não havia mais um único curso da história. O tempo histórico estava fora dos trilhos e com ele descarrilhavam os evolucionismos e uma concepção progressiva e cumulativa da história. Doravante Teseu vagava em um labirinto sem o fio que lhe determinava o caminho a seguir. A história se tornava um emaranhado de sendas sinuosas. O tempo histórico se tornava labiríntico. Cronos assumia a imagem de Dédalo. As ciências não rodavam mais nos trilhos seguros do progresso, mas se moviam em veredas incertas de diferentes labirintos.

Movimento labiríntico

Desde o fim da Grande Guerra, o labirinto se tornou uma figura que circulou de forma intensa e recorrente em inúmeros domínios: nas artes plásticas, na poesia, na literatura, na filosofia, mas também nos movimentos vanguardistas - lembre-se de Minotaure, revista criada por A. Skira e Thériade, em 1933, a partir de um título sugerido por Georges Bataille, e que trouxe estampada na capa de seu primeiro número a gravura de Picasso Minotauro com punhal. Não seria exagero caracterizar o período entreguerras, como o fez Enrico Castelli Gattinara (1998GATTINARA, Enrico Castelli. Les inquiétudes de la raison. Paris: Vrin; EHESS, 1998.) ao retomar a expressão de Louis AragonARAGON, Louis. Le paysan de Paris. Paris: Gallimard, 1926., como um “labirinto sem Minotauro”, uma época que os contemporâneos compreenderam como aquela de instabilidades, perda de referências e de desorientação.

Em Alexandre Koyré, essa imagem não traduzia nenhum pessimismo ou nostalgia em relação ao tempo perdido. Ao contrário, ela remetia ao que deveria doravante definir o esforço e ao mesmo tempo a dificuldade de reconstituir um pensamento científico sem fundamento a priori. A história das ciências deixava de ser caracterizada por uma evolução lógica e necessária. Ela perdia o fio condutor de Ariadne, a segurança de uma lei a seguir. “Os caminhos do pensamento humano são curiosos, imprevisíveis, ilógicos. À via direta, parecem preferir os desvios, a sinuosidade” (KOYRÉ, 1982KOYRÉ, Alexandre. A contribuição científica da Renascença. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense, 1982 [1951]. p. 46-55., p. 270). As imagens que ele evocava em suas reconstituições dos caminhos do pensamento remetiam à experiência do labirinto: “ciladas”, “perigos”, “esforço”, “coragem”, “audácia”, “risco”. A busca da verdade se tornava uma experiência labiríntica. Como historiador, era preciso adentrar esse labirinto e refazer as pegadas do pensamento científico. O movimento labiríntico, a viagem, tornavam-se o fundamento movediço do pensamento científico. Isso explica por que ele recorria à história e não à lógica em sua análise do pensamento científico. “A lógica busca, com efeito, a segurança absoluta do raciocínio”. Mas “a segurança absoluta torna o movimento impossível” (KOYRÉ, 1933KOYRÉ, Alexandre. Resenha de Du cheminement de la pensée, de Émile Meyerson. Journal de psychologie de la France et de l’étranger, Paris, v. 116, n. 7-8, 1933, p. 647-655., p. 650-651). Essa afirmação nos faz lembrar não apenas que a história do pensamento científico de Alexandre Koyré era contemporânea do Manifesto Neopositivista, mas que no fundo ambos se encontravam, então, diante do mesmo tipo problema (MACHADO, 2019MACHADO, Hallhane. Da crise da razão à razão na crise. Goiânia: EdUFG, 2019.). Ela também nos permite compreender as implicações das diferentes respostas perante ele. Na história koyreana do pensamento científico há o mesmo tipo de recusa do logicismo que se observava à época em surrealistas como Breton.

Em Koyré, o tempo no qual se encontra o pensamento científico, cuja história ele busca reconstruir, assume a forma de um labirinto. A forma do labirinto fornecia uma figura que permitia descrever com mais precisão o meio em que se movia o pensamento científico ou, para ser ainda mais preciso, o traçado que ele perfazia em busca da verdade. Como Alexandre Koyré, de sua parte, pretendia reconstituir esse movimento do pensamento, o que ele acabava descrevendo, ao cabo de sua reconstituição, era um labirinto. Essa figura, portanto, era indissociável de seu esforço em pensar nos termos de uma história móvel. Dédalo se tornava o lugar em que era possível pensar o movimento.

Essa concepção de história não poderia ser dissociada de um problema filosófico. “A história do pensamento científico, tal como a entendo e me esforço por praticar, visa a dominar a trajetória [cheminement] desse pensamento no próprio movimento de sua atividade criadora” (KOYRÉ, 1982KOYRÉ, Alexandre. Atitude estética e pensamento científico. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense , 1982 [1955]. p. 259-270., p. 13). Para o autor de Du cheminement de la pensée, a análise filosófica do pensamento não poderia mais ser direta, baseada na introspecção. Era preciso estudá-lo em “seus produtos”, “suas encarnações”. Mas, ao contrário de Aristóteles ou de Kant, que partilhavam dessa mesma premissa, não se tratava de analisá-lo em uma de suas encarnações, a linguagem ou uma teoria científica ou filosófica. De certa forma, o pensamento aí já se encontrava “petrificado”. Portanto, “imobilizado”. Apenas no “devir histórico”, em sua própria trajetória, era possível apreender a razão em seu “exercício real”. Pois o pensamento, para ele, “caminha”, “marcha”. “Ele é, em sua essência, dinamismo” (KOYRÉ, 1933KOYRÉ, Alexandre. Paracelse. In: KOYRÉ, Alexandre. Mystiques, spirituels, alchimistes du XVIe allemand. 2ª. ed. Paris: Gallimard , 1971 [1933]. p. 75-129., p. 648). No entanto, o objetivo de É. Meyerson, a partir daí, era mostrar a identidade da estrutura do pensamento, sua tendência invariável de explicar o diverso pelo idêntico, a reduzir o múltiplo ao uno, a substituir o complexo pelo simples, isto é, a encontrar o mecanismo estável e permanente de produção de fenômenos cambiantes. A razão buscaria, assim, estabelecer identidades. Koyré retomou de É. Meyerson, conforme mostrou G. Jorland (1981JORLAND, Gérard. La Science dans la philosophie: les recherches épistémologiques d’Alexandre Koyré. Paris: Gallimard , 1981. ), essa noção de uma razão inquieta, dinâmica e móvel, abandonando, no entanto, a ideia de invariabilidade. Em seu esforço em explicar e compreender o real, em definir os mecanismos que produzem os fenômenos, muitas vezes, a razão é conduzida a transformar-se a si mesma, a destruir seus próprios fundamentos de modo a poder continuar sua marcha.

Koyré também retomava essa concepção dinâmica da razão do filósofo italiano da ciência Federico Enriques, para quem “o valor da ciência se encontra em seu dinamismo que não deixa nada imóvel e no lugar; e apenas o estudo desse esforço do pensamento humano em sua luta para conhecer o real pode nos esclarecer sobre o sentido mesmo de seu dinamismo, sobre o sentido das noções fundamentais que ele emprega” (KOYRÉ, 1934-1935KOYRÉ, Alexandre. Resenha de Signification de l’histoire de la pensée scientifique, de Federico Enriques. Recherches philosophiques, Paris, volume. V, 1934-1935, p. 522., p. 522). Koyré justificava, por essa razão, a temporalização ou a virada histórica da filosofia das ciências de que ele e Bachelard foram os principais promotores a partir do entreguerras.

A história do pensamento científico tornava-se, assim, o trabalho de reconstituição dos itinerários, percursos e caminhos da ciência. Apreender o pensamento em movimento significava desfazer a imagem fixa, sempre idêntica a si mesma, em que o tempo e a posteridade costumam inscrevê-lo e que a tradição de certa história da filosofia costuma reafirmar. Significava reintroduzir movimento em um pensamento que o desenvolvimento posterior da atividade científica imobilizou no passado. Não se trata, portanto, da noção oriunda da mecânica clássica, segundo a qual o movimento é o deslocamento entre dois pontos situados no espaço. Não se trata de uma translação, porque o pensamento não se desloca de um ponto original em direção a outro previamente definido mantendo-se idêntico a si durante o percurso. “A ciência não anda de verdades definitivamente adquiridas a outras descobertas definitivas” (KOYRÉ, 1934-1935KOYRÉ, Alexandre. Resenha de Signification de l’histoire de la pensée scientifique, de Federico Enriques. Recherches philosophiques, Paris, volume. V, 1934-1935, p. 522., p. 522). O labirinto koyreano não possui centro, referências ou marcos de orientação geográfica. O pensamento produz um percurso na medida mesma em que se move. “Poder seguir passo a passo”: esta exigência traduz uma imagem temporal e não espacial do movimento. No labirinto obscuro e sinuoso, a marcha do pensamento remete ao presente incerto e sem destino de seu movimento, ao presente móvel do movimento. Escrever a história do pensamento copernicano significa “reconstruir o desenvolvimento do pensamento copernicano, poder seguir passo a passo sua trajetória” [cheminement] (KOYRÉ, 1961KOYRÉ, Alexandre. La révolution astronomique. Copernic, Kepler, Borelli. Paris: Hermann , 1961. , p. 18). Isso não quer dizer senão que o historiador deve se lançar, deve se engajar no tempo desse movimento, quer dizer, tomá-lo na abertura de seu próprio devir. Pois “caminhar” refere-se a uma atividade que é sempre presente e desprovida de futuro e que não pode ser confundida com o caminho percorrido, que é um espaço passado. Não se pode, portanto, substituir “o caminho percorrido pelo móvel pelo movimento do móvel, sem levar em consideração a sua heterogeneidade radical” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Observações sobre os paradoxos de Zenão. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1922]. p. 1-22., p. 7). É esta operação que destitui o pensamento copernicano de um lugar imóvel dado no passado. Não se trata da história do pensamento de Copérnico através de um tempo ou em um tempo. Trata-se do movimento como construção do próprio tempo e não como deslocamento no espaço. Não é um comentário sobre a concepção antiga e medieval de cosmos ou uma síntese da noção moderna de Universo o que lhe interessa, mas essa fissura, esse meio, esse entre, esse percurso que conduziu o pensamento Do Mundo Fechado ao Universo Infinito.

Figuras clássicas do labirinto

Podemos observar claramente como essa concepção de temporalidade histórica se estrutura recuperando ao menos três topoi clássicos do labirinto. 1) Ao contrário do positivismo, para o qual todas as diferentes ciências percorreriam um curso único em direção à verdade, o labirinto koyreano é formado por uma multiplicidade de vias. A história é multiplicidade temporal. Essa multiplicidade remete a uma pluralidade de possíveis, que os conduzem na maioria das vezes a fracassos, a erros. Mas “é através dos erros”, escreve Koyré, “que o espírito se dirige em direção à verdade” (KOYRÉ, 1961KOYRÉ, Alexandre. La révolution astronomique. Copernic, Kepler, Borelli. Paris: Hermann , 1961. , p. 140). 2) A ideia de que no labirinto se trata de uma busca. Na tradição ocidental, as narrativas do labirinto são sempre relatos de uma busca. Os caminhos do pensamento científico são obscuros, são caminhos de sombra ou mesmo subterrâneos. Vemos porque não há verdade ou evidência dada: num mundo de sombras, as evidências enganam. A verdade não se encontra no centro do labirinto à espera de seu desvelamento. A recherche de la vérité é um trabalho de intelecção do real: ela emerge ao cabo de estudos, investigações e raciocínios. É a travessia do labirinto o que aí importa. Pois “a ciência é”, escreve Koyré, “verdadeiramente uma aventura, e a mais apaixonante, do espírito humano” (KOYRÉ, 1954KOYRÉ, Alexandre. Resenha de The Scientific adventure, de Herbert Dingle. Archives internationales d’histoire des sciences, Paris, v. VII, nº. 28-29, 1954, p. 349-351. https://www.brepols.net/series/ARIHS Acesso: 10 de fevereiro de 2013.
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, p. 349). 3) Sua história, portanto, deve ser escrita, como ele afirma, “como história de uma aventura extraordinária” (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. L’âge de la raison: de Bacon à Voltaire. In: KOYRÉ, Alexandre. De la mystique à la Science: Cours, conférences et documents, 1922-1962. Nouvelle édition revue et augmentée par Pietro Redondi. Paris: EHESS , 2016 [1944]. p. 118-170., p. 200]. Assim, cruzar um labirinto não é realizar o curso tranquilo de uma viagem, é lançar-se em uma aventura. E “a aventura espiritual é uma grande aventura perigosa” (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. Message d’Alexandre Koyré à l’occasion du centenaire de la naissance d’Émile Meyerson. In: KOYRÉ, Alexandre. De la mystique à la Science. Cours, conférences et documents, 1922-1962. Nouvelle édition revue et augmentée par Pietro Redondi. Paris: EHESS , 2016 [1961]. p. 199-201., p. 121). A história deixa de ser uma corrida, um curso a seguir nos trilhos seguros do progresso, para se tornar uma aventura. A imagem mecânica de uma temporalidade história seguindo a direção lógica e em busca de um destino pré-determinado pelos trilhos do progresso cedia lugar à imagem humana da história como aventura imprevisível constituída de desvios, caminhos sinuosos, ilógicos e sem direção.

Essa concepção conduzia o autor dos Estudos Galilaicos a atribuir um novo estatuto ao livro da ciência, em tudo distinto daquele que os cientistas de sua época atribuíam a ele. Esse novo estatuto decorria do próprio modo como Koyré o abordava. Na prática historiográfica, era preciso evitar transformar o livro de um Copérnico, de um Galileu ou de um Newton na exposição de uma teoria imóvel, em um pensamento que se encontraria inscrito em um objeto petrificado, enterrado em um mausoléu de teorias proscritas. Se era preciso apreender o pensamento no próprio movimento de sua elaboração, segui-lo passo a passo no emaranhado sinuoso de seu percurso, o próprio livro da ciência se tornava um labirinto. Daí um procedimento metodológico que permite a Koyré apreender um pensamento em movimento. Eis, por exemplo, como ele abordava o livro A Astronomia Nova, de Kepler, em seu estudo sobre a revolução astronômica: esse livro “é, em grande parte, um diário de viagem escrito à medida dos progressos do pensamento kepleriano e apenas revisado após concluído” (KOYRÉ, 1961KOYRÉ, Alexandre. La révolution astronomique. Copernic, Kepler, Borelli. Paris: Hermann , 1961. , p. 391). Daí também a importância histórico-filosófica de se estudar a sua correspondência ou os manuscritos de Newton ou as várias edições dos Principia - todo um conjunto arquivístico que os filósofos haviam até então negligenciado (KOYRÉ, 1968KOYRÉ, Alexandre. Études newtoniennes. Paris: Gallimard , 1968.) -, daí sua ideia do arquivo como materialização do tempo aberto. Esses materiais registram as pegadas de um pensamento, arquivam os traços de um movimento. Era assim que o movimento como produção do próprio tempo poderia ser reconstituído. Entretanto, todas essas considerações indissociavelmente relacionadas ao sentido da história nos permitiriam falar em uma filosofia labiríntica da história em Koyré?

Filosofia da história e o problema do sentido da história

Em dois importantes textos publicados em 1946, Koyré voltava-se a questões relativas à filosofia da história e buscava definir a história por meio de referências, a meu ver, reveladoras. No primeiro deles, explicitamente intitulado “Filosofia da história”, ele analisava um longo artigo de Robert Lenoble publicado em 1945 (Les nouvelles conceptions de l’histoire), os livros de Eric Dardel (L’histoire, Science du concret) e Louis Halphen (Introduction à l’histoire) publicados em 1946 e os dois livros de Raymond Aron lançados em 1938 (Essai sur la théorie de l’histoire dans l’Allemagne contemporaine e Introduction à la philosophie de l’histoire).6 6 Nessa resenha, Koyré foi bastante econômico em seu comentário sobre os dois livros de Aron, de modo que é muito difícil, apenas por meio dela, saber com alguma segurança qual era sua avaliação desses trabalhos. A historiadora Hallhane Machado lançou recentemente algumas luzes sobre essa questão ao exumar uma carta enviada por Koyré a Aron. Por meio dela, podemos saber que Aron, que nutria profunda admiração e respeito pelo historiador francês de origem russa, enviou seu trabalho a ele. Por meio dessa missiva, é possível conhecer suas impressões sobre o livro La philosophie critique de l’histoire. Koyré afirma ter gostado de todos os seus quatro capítulos (sobre Dilthey, Rickert, Simmel e Weber). “E, no entanto, eu devo te dizer? Lendo seu livro, senti se dissolver minha admiração por Weber. E desaparecer definitivamente aquela que eu ainda tinha por Dilthey” (KOYRÉ s/d apud MACHADO, 2020, p. 131). Entretanto, entre o “realismo histórico” de Dilthey e o nominalismo de Weber, Koyré admitia: “é Dilthey que me parece ter razão, e não Weber” (KOYRÉ s/d apud MACHADO, 2020, p. 131). O artigo de Hallhane Machado ainda permite esclarecer uma passagem importante da resenha de Koyré e que citei acima sobre o Newton ou o Einstein da história. Koyré afirma que Weber acreditava que Kant era “o Newton da história” e esse era o seu “erro inicial” (KOYRÉ s/d apud MACHADO, 2020, p. 131). Machado demonstra como a sugestão de E. Coumet, segunda a qual haveria uma fusão de Dilthey e Weber em Koyré (e mesmo em Aron), é equivocada. Em um primeiro momento, Koyré reformulava a distinção latina por meio da qual tradicionalmente se definiu a história na Europa ocidental: “a história é, quase sempre se não sempre, historia calamitatum et rerum gestarum” (KOYRÉ, 2010KOYRÉ, Alexandre. Filosofia da história. In: SALOMON, Marlon (org.). Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2010. p. 6-72., p. 52). A referência ao livro de Pedro Abelardo, tradicionalmente traduzido em francês por Histoire des mes malheurs (infortúnios, desventuras), é explícita. O res gestae cedia lugar à historia calamitatum. Isso não queria dizer que Koyré eliminasse da história os fatos ou simplesmente a realidade histórica - “em história”, ele escrevia, “é impossível eliminar o fato” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Os filósofos e a máquina. In: Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1948]. p. 243-270., p. 267) -, mas que a história em si, com um sentido próprio, portadora de um significado e com uma finalidade, independente de um lugar e de um tempo em que seja escrita, não existe. Daí o problema das “filosofias da história” que buscavam formular um sentido ou “teoria unitária e global da evolução histórica”, sejam aquelas de Santo Agostinho ou Bossuet, de Condorcet ou Herder, de Hegel, Comte ou Marx: “não eram mais que meta-histórias, teodiceias ou antropodiceias” (KOYRÉ, 2010KOYRÉ, Alexandre. Filosofia da história. In: SALOMON, Marlon (org.). Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2010. p. 6-72., p. 57]. E, em um segundo momento, em nota que se seguia à citação que acabo de fazer, Koyré acrescentava: “Não é fácil reconhecer que a história da humanidade seja uma absurd story... told by an idiot, signifying nothing e que se resume em três frases: ‘eles viveram; eles sofreram; e eles morreram’”; essa nota se encerrava, então, dessa maneira: “também a filosofia, se isso nos serve de consolo, procura um sentido, um fim para nossa existência, uma justificação para nossos sofrimentos” (KOYRÉ 2010KOYRÉ, Alexandre. Filosofia da história. In: SALOMON, Marlon (org.). Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2010. p. 6-72., p. 61, nota 12].

Em um segundo texto publicado nesse mesmo ano, dessa vez, uma análise aguda do estatuto de Von Wesen der Wahrheit na trajetória filosófica de Martin Heidegger e que permitia compreender por que o projeto de lançamento do segundo volume de Ser e Tempo fora abandonado, Koyré retomava essa passagem do Macbeth de Shakespeare (Ato V, Cena V), incluindo o famoso trecho que no texto anterior havia sido substituído pelas reticências:

pois, se, efetivamente, existe uma história - mesmo que ela seja apenas uma absurd story, full of sound and fury, told by an idiot, signifying nothing [Shakespeare, na verdade, escreveu: it is a tale told by an idiot, full of sound and fury, signifying nothing] -, não poderemos nós concluir daí que não é no silêncio, mas no diálogo, que se realiza a autenticidade do Dasein? O que talvez, em última análise, explique o fracasso do Sr. Heidegger (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Os filósofos e a máquina. In: Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1948]. p. 243-270. p. 236).

Paradoxalmente, “uma filosofia tão anti-histórica como a de Platão” apreendeu melhor “a essência da história” do que a filosofia heideggeriana da historicidade. Porque a história (em Macbeth, a vida, essa walking shadow), embora desprovida de sentido ou significado e mesmo absurda ou ilógica, não é silêncio; a história é diálogo. Ela é dialógica; é conversação, comunicação entre os seres. A autenticidade do Dasein não se realiza no silêncio de sua existência para a morte, na palavra ou mesmo na poesia, mas na experiência do diálogo e no comércio humano da palavra. E essa experiência, para Koyré, é sempre coletiva, contato humano, coexistência, Mit-sein7 7 “[...] Nada pode ser mais individualista que a filosofia do Sr. Heidegger. Pois, ainda que vivamos com outros homens, morremos sozinhos. Em outros termos, é apenas no plano da existência inautêntica que o Da-sein se encontra engajado num Mit-sein. No plano da autenticidade, pelo contrário, na sua existência ‘para a morte’, ele está absolutamente só; tão só que nenhuma ausência vem mais romper sua solidão essencial. No autêntico, não existe mais contato humano; ou, o que quer dizer a mesma coisa, não existe mais comércio autêntico entre os ek-sistentes. [...] Pois a palavra da existência autêntica [para Heidegger] é silêncio” (KOYRÉ, 1991, p. 235). (REDONDI, 1997REDONDI, Pietro. Henri Berr, Hélène Metzger et Alexandre Koyré: la religion d’Henri Berr. In: BIARD, A.; BOUREL, D.; BRIAN, E. Henri Berr et la culture du XXe siècle. Paris: Albin Michel, 1997. p. 139-155.).

Não pretendo analisar detalhadamente essas resenhas de 1946 que se dedicavam à filosofia da história ou a definir a essência da história e que se desdobravam criticamente em toda uma série de aspectos acerca dessas publicações. Importa destacar que nesse segundo texto Koyré (1991KOYRÉ, Alexandre. Os filósofos e a máquina. In: Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1948]. p. 243-270., p. 230-232) evocava, mais de uma vez , a imagem do labirinto com o objetivo de se contrapor ao estatuto que lhe atribuía o filósofo alemão. “Pode ser que o Sr. Heidegger tenha razão. E que o homem esteja eternamente condenado a ‘vagar’ no labirinto, capaz, quando muito, de se dar conta de sua miséria, capaz, por isso mesmo, de conceber a ideia da verdade, mas incapaz de algum dia atingi-la” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Os filósofos e a máquina. In: Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1948]. p. 243-270., p. 232). Ora, essa concepção se chocava frontalmente com a koyreana, segundo a qual, por meio da ciência, do pensamento ou da razão, era sempre possível sair do labirinto da incerteza. E não porque a ciência busque a certeza; quem a busca é o “animal crédulo”; a ciência ou “o animal pensante busca a intelecção” (KOYRÉ, 2004KOYRÉ, Alexandre. Réflexions sur le mensonge. Paris: Allia, 2004 [1943]., p. 38).

Essa posição de Koyré era, então, uma clara reação à onda existencialista em curso na França. Ela remonta ao menos a meados da década de 1930. Graças aos importantes trabalhos de Paola Zambelli, sabemos que Koyré havia mobilizado Georges Bataille contra a concepção existencialista de labirinto. Um dos mais importantes órgãos de renovação do pensamento filosófico do entreguerras, Recherches Philosophiques foi um periódico criado em 1931 por Koyré, Puech e Spaier e que, após a morte deste último, passou também a contar com a participação de Bachelard, Soriau e Wahl na condição de editores. Seu Tomo V, publicado no ano acadêmico de 1935-1936KOYRÉ, Alexandre. Resenha de Zum Grundlegung der Ontologie, de N. Hartmann. Recherches philosophiques, Paris, v. V, 1935-1936, p. 422-424., trouxe três dossiês. O primeiro e maior deles, que ocupou quase metade do volume, intitulava-se “Meditações sobre o tempo”; o segundo, “Do ser e do saber”; e o terceiro, “Da existência e do ser”. O texto de Bataille intitulado Labyrinthe saiu nesse último acompanhado de artigos de J. Noqué, E. Levinas e K. Löwith.

Nesse artigo, Bataille mobilizava a imagem do labirinto para caracterizar a própria existência humana. Para ele, “a base da vida humana” é determinada por “um princípio de insuficiência” (BATAILLE, 1935-1936BATAILLE, Georges. Le Labyrinthe. Recherches philosophiques, Paris, Tomo V, 1935-1936, p. 365-372., p. 365). Os seres são sempre “insuficientes”, incompletos. Por essa razão, o ser é sempre um “ser em relação” (BATAILLE, 1935-1936BATAILLE, Georges. Le Labyrinthe. Recherches philosophiques, Paris, Tomo V, 1935-1936, p. 365-372., p. 367); ele não é nunca um ser isolado ou fechado sobre si mesmo, mas aberto em relação aos outros. Essa insuficiência, de saída, coloca-o em uma situação de desorientação, e essa abertura em relação aos outros, em seguida, lança-o numa multiplicidade de caminhos possíveis, indeterminados e imprevistos. Por isso, Bataille fala em “estrutura labiríntica do ser humano” (BATAILLE, 1935-1936BATAILLE, Georges. Le Labyrinthe. Recherches philosophiques, Paris, Tomo V, 1935-1936, p. 365-372., p. 367). Ele cita a linguagem como exemplo dessa dupla desorientação. O ser, portanto, revela-se “por meio das palavras” e a linguagem, por sua vez, mostra como não há ser autossuficiente.

Essas relações, entretanto, são sempre insuficientes e instáveis, o que acaba por sugerir aos seres humanos a noção de autossuficiência (BATAILLE, 1935-1936BATAILLE, Georges. Le Labyrinthe. Recherches philosophiques, Paris, Tomo V, 1935-1936, p. 365-372., p. 368). É essa estrutura instável do labirinto que conduz à criação de “conjuntos relativamente estáveis cujo centro é [primitivamente] uma cidade” no coração da qual encontram-se protegidos um soberano e um deus (BATAILLE, 1935-1936BATAILLE, Georges. Le Labyrinthe. Recherches philosophiques, Paris, Tomo V, 1935-1936, p. 365-372., p. 369). Essa estrutura pode evoluir ao longo do tempo. Quando várias cidades “abdicam de sua função de centro em proveito de uma só, um império se forma em torno de uma capital na qual se concentram a soberania e os deuses” (Ibidem, p. 369). Esse movimento de composição de conjuntos cêntricos estáveis pode se complexificar cada vez mais e dar lugar à ideia de que há uma universalidade cujo centro ou cume é Deus. Assim, as relações entre os seres são estabilizadas e ordenadas em torno de um eixo capaz de orientá-los por caminhos previsíveis. Com esse centro, sobretudo quando se trata de um Deus, não há mais insuficiência e desorientação. Apesar dessa axialização do labirinto, esses conjuntos não são definitivos e permanecem expostos à “decomposição” (BATAILLE, 1935-1936BATAILLE, Georges. Le Labyrinthe. Recherches philosophiques, Paris, Tomo V, 1935-1936, p. 365-372., p. 369; ver também: NOYS, 2000NOYS, Benjamin. Georges Bataille: a critical introduction. Londres: Pluto Press, 2000.).

Com a apresentação dessa estrutura labiríntica por meio da qual definia o ser humano, Bataille criticava a possibilidade de fundá-lo filosoficamente em um isolamento absoluto e fechado sobre si mesmo, tal como parecia sugerir que fosse o caso heideggeriano, sem jamais, é verdade, indicar que se tratava dele em sua crítica. Não seria exagero, a meu ver, identificar aí a temática koyreana da abertura, da imprevisibilidade, da indeterminação e da coexistência como centrais na compreensão do homem (a ideia de que o ser se revele apenas pelas palavras, quer dizer, por meio do diálogo com o outro); mas, ao mesmo tempo, da “insatisfação” com as verdades adquiridas que seria responsável por renovar constantemente seu esforço pela busca da verdade. O texto de Bataille acabou, todavia, por passar despercebido por seus adversários. Graças a Paola Zambelli também sabemos que em 1936, em carta enviada ao seu amigo Henry Corbin, Koyré afirmava que organizava um “contra-ataque” ao existencialismo (ZAMBELLI, 2021ZAMBELLI, Paola. Alexandre Koyré, un juive errant? Florença: Museo Galileo, 2021., p. 201).8 8 Além de figuras que se tornariam importantes e conhecidas depois da Segunda Guerra, tais como Alexandre Kojèvé, Henry Corbin e Raymond Queneau, Georges Bataille também seguia os cursos de Alexandre Koyré na École Pratique des Hautes Études (EPHE). Bataille era ligado aos surrealistas e Queneau, recorde-se, havia acabado de romper com eles. Observe-se que a análise feita por Koyré em 1946 da trajetória filosófica de Heidegger, não por acaso, foi publicada em duas partes nos primeiro e segundo números da revista Critique, recém-fundada por Bataille. Já o orientalista Henry Corbin foi responsável pela tradução da primeira publicação em francês de um texto do filósofo alemão (Qu’est-ce que la métaphysique?) Ele foi publicado na revista surrealista Bifur. Essa tradução foi precedida de uma “Introdução” entusiasmada e bastante positiva escrita por Alexandre Koyré (1931). Finalmente, apenas a título de informação, registre-se que Henry Corbin era cunhado de Eric Dardel, autor da teoria existencialista da história que Alexandre Koyré, na resenha supracitada de 1946, classificou como um “produto típico de um entusiasmo desvairado - esperemos que apenas juvenil - pela filosofia existencialista”. Koyré não o poupou em nenhum momento: “Nada é mais curioso que os arrebatamentos periódicos do pensamento francês pela filosofia alemã. Nada é mais deplorável” (KOYRÉ, 2010, p. 53). Sua esperança acabou por se revelar frustrada se lembrarmos que Dardel, apenas alguns anos depois, publicaria uma teoria existencialista da geografia.

Pronunciadas no início de 1937 na capital do Egito, suas conferências elaboradas no contexto das comemorações do tricentenário do Discurso do método se inscrevem, a meu ver, no quadro desse contra-ataque e era provavelmente a elas que Koyré se referira meses antes em carta a Corbin. Como aquela do entreguerras, a época de Descartes foi uma época de “crise”. A crise cuja história Descartes contava no início desse livro não era pessoal; “tratava-se de uma crise da cultura” (KOYRÉ, 1992KOYRÉ, Alexandre. Considerações sobre Descartes. Tradução de Hélder Godinho. 4ª. ed. Lisboa: Presença, 1992 [1937]. , p. 31). Duas palavras poderiam resumir “o mal do seu tempo, essa situação existencial: incerteza e desorientação [désarroi]” (Ibidem, p. 18). Mas, para Koyré, essa situação existencial se explicava por razões propriamente históricas. O século XVI, que “tudo abalou, tudo destruiu” (Ibidem, p. 19), tornou “O mundo incerto” (Capítulo I). A síntese aristotélica ou a concepção antiga e medieval de Cosmo, a lógica e a física antigas eram inteiramente destruídas por Descartes (“O cosmo desaparecido”, Capítulo II). O Discurso foi o esforço de criação de uma nova síntese ou concepção de Universo, de uma nova lógica, de uma nova física e, sobretudo, de uma metafísica renovada (Ibidem, p. 34). Com ele, por meio de uma nova filosofia, o “Universo [era] redescoberto” (Capítulo III).

Três séculos depois de Descartes, o mundo havia se tornado novamente incerto e a concepção moderna de Universo ruía desde o início do século XX. Daí que se falasse novamente em “crise” para caracterizar esse período; mas daí também que se qualificasse essa época por meio de uma série de noções sensitivas: mal-estar, angústia, náusea, desassossego, inquietude... No primeiro romance de Albert Camus, publicado em 1942, o mundo se transformava em absurdo e nele o homem se tornava um eterno Estrangeiro. A Segunda Guerra vinha apenas reforçar esse sentimento. No segundo número do seu Labyrinthe, Albert Skira justificava a retomada de seu projeto interrompido pela Guerra, a partir de então, sob outro título. Labyrinthe propunha ser uma “brecha de luz” diante da “tempestade”, do “tempo surdo e cego”, do “nevoeiro” no qual os homens então se “encontravam perdidos” (Cf. SKIRA, 1944SKIRA, Albert. Pourquoi le Labyrinthe. Labyrinthe: Journal mensuel des lettres et des arts, Genebra, n. 2, 15 de novembro de 1944, p. 1, p. 10).

Boa parte dos princípios centrais que aparecem nas conferências egipcianas são claramente observados no curso que ele ministrou sobre o existencialismo em Nova York em 1946 (ou 1950), já na qualidade de professor-visitante, em seu retorno à New School for Social Research (KOYRÉ, 1998KOYRÉ, Alexandre. [1946/1950]. Present Trends of French Philosophical Thought. Edition and introduction by Paola Zambelli. Journal of the History of Ideas, Philadelphia, v. 59, n. 3, jul. 1998, p. 521-548. https://muse.jhu.edu/issue/898 Acesso: 15 de agosto de 2012.
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). No final da Segunda Guerra, o existencialismo havia reconfigurado a paisagem filosófica francesa da década de 1930; de uma tendência, ele havia se tornado uma “inundação” (Ibidem, p. 533) e, muito em função dos textos literários e teatrais, um assunto socialmente importante na vida intelectual francesa, reconfigurando a posição pública e social do que havia sido a filosofia até então; como escrevia Henri Mougin em 1946, Heidegger havia se tornado uma espécie de “Deus na França” (ZAMBELLI, 2021ZAMBELLI, Paola. Alexandre Koyré, un juive errant? Florença: Museo Galileo, 2021., p. 202). O mundo não cabia mais nas categorias das filosofias idealistas e otimistas de Bergson e Brunschvicg, fortemente orientadas para a reflexão teórica; a práxis se tornava mais importante para as novas gerações e uma visão pessimista e nihilista de mundo como a de Sartre (“o mundo é absurdo e desprovido de significado”) se impunha (KOYRÉ, 1998KOYRÉ, Alexandre. [1946/1950]. Present Trends of French Philosophical Thought. Edition and introduction by Paola Zambelli. Journal of the History of Ideas, Philadelphia, v. 59, n. 3, jul. 1998, p. 521-548. https://muse.jhu.edu/issue/898 Acesso: 15 de agosto de 2012.
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, p. 534-535). Para Koyré, essa concepção existencialista do mundo, “esse sentimento e essa análise da vida humana e do ser” estavam de acordo com “nossa época” e o ser nada mais era “do que uma auto interpretação do homem moderno” (Ibidem, p. 535). Portanto, era esse contexto intelectual, epistemológico e filosófico que permitia compreender o ressurgimento e o incrível ganho de interesse do existencialismo durante aqueles anos e, ao mesmo tempo, as razões que levaram à promoção do labirinto como imagem do mundo. Mas “a Irre (trevas, extravio, confusão, alienação)” não era, como queria Heidegger, “invencível”, e o “γνῶθι σεαυτόν [Gnothi Seauton], esse velho sonho da filosofia”, não se tornava inacessível (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. A evolução filosófica de Martin Heidegger. In: Estudos de história do pensamento filosófico. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1946]. p. 215-242., p. 233-234).

Voltados aparentemente para questões e autores assaz distantes entre si, os textos koyreanos que acabo de analisar brevemente (e por meio dos quais se tecia a problemática do labirinto) tratavam de maneiras diferentes do mesmo problema: do tempo da história em uma época em que Clio perdia seu sentido. Esse parece ter sido um dos problemas centrais no trabalho do filósofo francês de origem russa durante aquele período. Não me refiro apenas ao fato de, para além desses textos, ele ter ministrado, em 1938 e 1944, cursos sobre o tempo que permaneceram inéditos até hoje; ou ao fato de ele ter insistido de uma maneira bastante original, no trabalho mais importante que publicou durante a década de 1930, que o novo conceito de movimento que se constitui com Galileu no início do século XVII - e que, essa era sua tese, sustentou a criação de uma nova concepção de ciência - implicava uma nova noção do tempo (KOYRÉ, 1966KOYRÉ, Alexandre. Études galiléennes. 2ª ed. Paris: Hermann , 1966 [1939].); ou ainda ao espaço reservado em sua Recherches Philosophiques para artigos e dossiês sobre o tempo (dois em seis tomos); nem tampouco à sua análise feita em 1944 do Esquisse de Condorcet que pretendia mostrar como a concepção de história das Luzes implicava uma preponderância do futuro sobre o passado e o presente em contraposição à concepção romântica e germânica da história que, de sua parte, implicava uma preponderância do passado sobre o presente e o futuro (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Condorcet. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1948]. p. 79-98.). Refiro-me ao papel central que ele desempenhou na reintrodução ou no “renascimento” de Hegel na França por meio de seus textos, mas, sobretudo, por meio de seus cursos ministrados na École Pratique des Hautes Études desde a década de 1920 (KOYRÉ, 2016KOYRÉ, Alexandre. De la mystique à la Science. Cours, conférences et documents, 1922-1962. Nouvelle édition revue et augmentée par Pietro Redondi. 2ª ed. Paris: EHESS, 2016.). E essa importância tem a ver com o fato - esquecido em nossos dias - de que a interpretação de Koyré foi responsável não apenas por pôr em relevo “a importância da história e do tempo na economia do sistema hegeliano” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. A evolução filosófica de Martin Heidegger. In: Estudos de história do pensamento filosófico. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1946]. p. 215-242., p. 162), mas por transformar a filosofia hegeliana em uma filosofia do tempo. “A filosofia de Hegel bem parece, nas suas intuições mais profundas, ter sido uma filosofia do tempo” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Hegel em Iena. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1934]. p. 115-149., p. 124). Como afirmou Andrea Bellantone, graças a Alexandre Koyré, “a noção de tempo se tornou [...] o centro do pensamento hegeliano” e conduziu a uma “revolução” no modo de compreender sua filosofia (BELLANTONE, 2011BELLANTONE, Andrea. Hegel en France: de Vera à Hyppolite. Tradução de Virginie Gaugey. Volume 2. Paris: Hermann, 2011. , p. 213). Ora, essa temporalização da interpretação de sua filosofia é indissociável do problema ou do esforço filosófico de se pensar a “lógica do não-lógico” (Ibidem, p. 211), isto é, a lógica de um tempo aberto, indeterminado, sem direção prévia ou significado.

De um lado, Koyré definia a filosofia hegeliana da história como uma fenomenologia no sentido husserliano e heideggeriano (daí sua compreensão da dialética como um esforço de compreensão da estrutura da historicidade humana e de sua finitude); de outro, indicava a centralidade do futuro em sua lógica do devir. Em Hegel, “a primeira categoria da consciência ‘histórica’ não é a lembrança; é a expectativa [attente], é o anúncio, é a promessa” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Os filósofos e a máquina. In: Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1948]. p. 243-270., p. 143, nota 44). O futuro, portanto, assumia não apenas uma preponderância em sua filosofia da história, mas se tornava a própria fonte do tempo. Mas o porvir, para Koyré, permanecia essencialmente aberto e imprevisível: essa é a condição de possibilidade da própria história. A meu ver, Koyré retomava essa compreensão do devir em sua filosofia da história das ciências. É isso que permite compreender por que, para ele, a história das ciências era um Itinerarium mentis in veritatem, uma recherche de la vérité, um chéminement, a história de uma busca inquieta, de um esforço, de uma aventura; a verdade constitui o horizonte de expectativa das ciências que são, por essa razão, orientadas por ela; a busca da verdade ou o esforço permanente de resolução de problemas científicos é a fonte do tempo dessa atividade; é por meio dessa busca que a atividade científica se temporaliza na medida em que introduz, no seio dessa atividade, a mudança ou a negação das verdades correntes. A negação é uma atividade criadora, porque a criação é sempre a destruição das verdades em curso. É isso o que define e caracteriza as ciências como um domínio e uma atividade específica. A história pode, portanto, encontrar aí um sentido, nesse esforço de intelecção e de realização da verdade, e que transforma a ciência em uma atividade essencialmente humana. Não se trata, portanto, do tempo Providencial, mecânico, fechado e teleológico das filosofias da história tradicionais, mas de uma temporalidade antropológica, pois o porvir permanece inacabado, porque a busca da verdade é um objetivo que sempre escapa aos homens.

Era aí que Koyré se afastava de Hegel e apontava uma aporia em sua filosofia da história que dizia respeito ao sentido histórico. “Pois se o tempo é dialético e se ele se constrói a partir do porvir, ele é - diga o que disser Hegel - eternamente inacabado” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Os filósofos e a máquina. In: Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1948]. p. 243-270., p. 138). Daí a identificação de uma contradição irresolúvel na filosofia hegeliana da história na temática do fim da história que o próprio Koyré então trazia à tona:

pois a filosofia da história, queiramos ou não, é uma parada [arrêt] da história. Não se pode prever o porvir, e a dialética hegeliana não nos permite isso, já que a dialética, expressão do papel criador da negação, exprime ao mesmo tempo a liberdade dela. A síntese é imprevisível: não podemos construí-la; só podemos analisá-la. A filosofia da história - e por isso mesmo a filosofia hegeliana, o “sistema” - só seriam possíveis se a história tivesse terminado; se não existisse mais porvir; se o tempo pudesse parar (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Hegel em Iena. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1934]. p. 115-149.,, p. 138-139).

Se não se pode prever ou construir a síntese, pode-se analisá-la. Não era isso o que buscavam seus trabalhos? É o que indicam, entre outras, suas análises sobre a importância do Renascimento para a destruição da “síntese aristotélica” ou a “grande e vasta síntese do século XVII”, construída sobre “a base da física galileana e de sua interpretação cartesiana”, e “que foi realizada por Newton” (KOYRÉ, 1982KOYRÉ, Alexandre. Orientação e Projetos de Pesquisa. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: Forense , 1982 [1951]. p. 10-14., p. 55). O fim da história, sua parada, encerramento ou o fechamento do futuro, mostrava Koyré de maneira eloquente, tinha simplesmente por consequência a destruição da própria fonte do tempo, a anulação do papel do porvir na própria história, uma flagrante contradição com a sua dialética do tempo. Por isso, a filosofia hegeliana da história apenas seria possível se se admitisse “que a história já estivesse efetivamente terminada” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. Nota sobre a língua e a terminologia hegelianas. In: KOYRÉ, Alexandre. Estudos de história do pensamento filosófico . Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1931]. p. 150-177., p. 139). Talvez Hegel, concluía Koyré, acreditasse nisso e tenha, por essa razão, podido realizá-la. Mas e se a história tivesse de fato alcançado um termo? Ora, era exatamente desse ponto, transformando a aporia identificada por Koyré em uma hipótese de trabalho, que partia Alexandre Kojève (2002KOJÈVÉ, Alexandre. Introdução à leitura de Hegel. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002 [1947].) em sua leitura de Hegel durante os anos 1930 sobre o fim da história, leitura essa que deixaria profundas marcas na cultura filosófica e intelectual francesa do pós-Guerra e em sua compreensão da temporalidade histórica.

Era possível reencontrar um fim para ela e restituir o seu sentido. O labirinto era apenas uma ilusão. Em 1963, em um dos volumes de suas memórias, Simone de Beauvoir relembrava de uma conversa sobre o “fim da história” com Raymond Queneau, ocorrida por volta do final da Segunda Guerra no jardim da residência dos Gallimard. Esse era, ela escrevia, “o tema que retornava com frequência às conversas”. Parte importante da geração existencialista voltava-se a partir de então para Hegel (e para Marx). “Havíamos descoberto a realidade histórica e seu peso: nos interrogávamos sobre seu sentido” (BEAUVOIR, 2009BEAUVOIR, Simone. A força das coisas. 2ª ed. Tradução de Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009 [1963]., p. 48). Essa descoberta permite pensar, por exemplo, no importante deslocamento operado a partir de então na trajetória filosófica de um Sartre (sem, evidentemente, desconsiderar aí a importância do marxismo) ocorrido entre L’Être et le Néant e a Critique de la raison dialectique e no abandono de noções fundamentais que alimentaram sua obra ficcional e reflexão filosófica, tais como as de absurdo, impossibilidade de diálogo, de comunicação e de compreensão entre os seres, em favor do reconhecimento de que a história e a existência humana inserida nela possuíam um sentido. As reações a essa concepção não tardariam a aparecer: o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss em La pensée sauvage, em 1962, e arqueologia das ciências humanas de Michel Foucault, quatro anos mais tarde. Ainda em 1966, no famoso dossiê da revista L’Arc, apareceria o contra-ataque de Sartre contra “a recusa da história” (SARTRE, 1966SARTRE, Jean-Paul. Jean-Paul Sartre répond. L’Arc: Sartre aujourd’hui, Paris, n. 30, p. 87-96, 1966., p. 87) dos “estruturalistas”.

Considerações finais

O mundo intelectual francês das décadas de 1940 e 1950 foi caracterizado pelo que se convencionou chamar de Génération 3 H (DESCOMBES, 1979DESCOMBES, Vincent. Le même et l’autre. Paris: Minuit, 1979.) em função da centralidade que as obras de Husserl, Hegel e Heidegger adquiriram em seu horizonte filosófico. Eu não gostaria de concluir este ensaio simplesmente recordando o fato de que o germanista Alexandre Koyré esteve, de alguma maneira, na origem da introdução ou da reintrodução de cada de um desses filósofos alemães em solo francês. Importa, todavia, destacar que sua interpretação desses autores e sua preocupação filosófica durante o entreguerras foram profundamente marcadas pelo problema do que era o tempo histórico no quadro da “crise da história”. Essa crise parecia conduzir o racionalismo das filosofias da história do tempo fechado à ruína. O sentido do tempo tornava-se um problema. O tempo se tornava imprevisível, incerto, indeterminado. “O trabalho mental de previsão”, como afirmava Paul Valéry nessa época, “é uma das bases essenciais da civilização” ocidental (VALÉRY, 1957VALÉRY, Paul. Variété. In: VALÉRY, Paul. Oeuvres. Edição estabelecida e anotada por Jean Hytier. Tomo I. Paris: Pléiade , 1957. p. 427-1512., p. 1025). O abalo era profundo. Mas Koyré não era pessimista como Valéry. Sua aposta era outra. Se o tempo histórico se tornava absurdo ou sem sentido, era preciso radicalizar essa compreensão e buscar extrair dele sua filosofia. Uma concepção de filosofia da história certamente desmoronava, mas isso não queria dizer que se devia renunciar a pensá-la filosoficamente ou a compreender filosoficamente a concepção de tempo que tornava possível uma nova noção e prática da história. Era preciso pensar em uma filosofia não teleológica da história. E essa reflexão não se fazia mais, como no século XIX, em um domínio oposto ao da prática ou do trabalho do historiador, o que mostrava como Fustel de Coulanges deixava de ser um espectro a assombrar o inconsciente dos historiadores franceses. Era exatamente nesse domínio, em suas pesquisas sobre a história do pensamento religioso, filosófico e científico, que Koyré evocava amiúde a figura do labirinto para traduzir em uma imagem certa concepção do tempo histórico. A temporalização do labirinto pretendia pensar a lógica do tempo aberto e sem sentido e definir um pensamento historiográfico aberto.

No início deste artigo, insisti sobre o problema da crise da história e do sentido histórico. Para concluir, não deixa de ser interessante retomar o modo como Koyré compreendia e definia a noção de crise. Para ele, as crises nunca eram epistemológicas; elas eram sempre filosóficas. “As grandes crises do pensamento científico, a grande crise do século XVII e a grande crise que vivemos hoje, são antes de tudo e em última análise crises do pensamento filosófico” (KOYRÉ, 1946KOYRÉ, Alexandre. Cours dactyloraphié corrigé sur Galillé du 9 abril 1946 donné au Lycée Louis-le-Grand. Centre Alexandre Koyré, Fonds Alexandre Koyré, manus. CAK Koyré AP.c 7 d 2 [1946]., f. 3). Isso me permite pensar que a crise da história, então, estava relacionada à indefinição filosófica ou teórica do que era a natureza do tempo da história. Se Alexandre Koyré se dedicou, de maneira insistente e renovada, a tratar e a problematizar o tempo da história, transformando-o em uma das questões fundamentais de seu trabalho, creio que isso se explique pela forma como ele compreendia a própria tarefa da filosofia. Apenas uma nova filosofia da história, uma revisão de suas categorias lógicas, uma redefinição da natureza do tempo imprevisível e sem um significado imanente, poderia retirar a história dessa crise e reencontrar o tempo perdido. É nesse sentido que se pode dizer que o pós-Guerra foi a época do tempo redescoberto. E Alexandre Koyré desempenhou aí um papel fundamental.

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  • VALÉRY, Paul. Variété. In: VALÉRY, Paul. Oeuvres. Edição estabelecida e anotada por Jean Hytier. Tomo I. Paris: Pléiade , 1957. p. 427-1512.
  • ZAMBELLI, Paola. Alexandre Koyré, un juive errant? Florença: Museo Galileo, 2021.
  • 1
    Para o autor de O novo espírito científico, as novas ciências físicas (Relatividade, Teoria dos quanta etc.) implicavam um novo mundo, uma nova realidade e solicitavam um novo espírito, uma nova razão apta a conhecê-los, uma nova perspectiva ou modo de ver que transformavam radicalmente o conhecimento científico. Essas transformações marcavam, a seu ver, uma revolução copernicana no empirismo tradicional.
  • 2
    A fórmula “falência da ciência” [faillite de la Science] foi lançada no final do século XIX por F. Brunetière no quadro de uma reação conservadora, antiprogressista e frequentemente monarquista contra o cientificismo que marcou o início da III República (RASMUSSEN, 1996RASMUSSEN, A. « Critique du progrès, « crise de la science » : débats et répresentations du tournant du siècle ». Mil neuf cent, Paris, v. 14, p. 89-113, 1996. https://www.persee.fr/doc/mcm_1146-1225_1996_num_14_1_1152 Acesso: 10 de outubro de 2014
    https://www.persee.fr/doc/mcm_1146-1225_...
    ). Ela se valia de toda uma série de críticas filosóficas e epistemológicas ao entusiasmo e ao otimismo racionalista que caracterizou as gerações de Taine, Berthelot, Renan e Renouvier (mesmo que estes dois últimos tenham mais tarde mudado radicalmente de posição). Essa fórmula passou a circular, a partir de então, no mundo literário e na opinião pública, com o intuito ideológico de caracterizar o que se denominava de “crise”. Em uma conferência pronunciada em 1930, Brunschvicg esclarecia que a faillite de la Science de que se falava em periódicos de grande circulação não tinha nenhuma relação com a “crise” da ciência de que ele próprio tratava: não era a ciência em si que desmoronava, mas uma certa concepção ou “filosofia da ciência”. O diagnóstico de Febvre me parece muito próximo daquele do racionalismo brunschviguiano: não se tratava de uma bancarrota da ciência histórica, mas da concepção ou filosofia da ciência histórica dos seus professores do final do século XIX (BRUNSCHVICG, 1954BRUNSCHVICG, Léon. Entre savants et philosophes. In: Écrits philosophiques. Textes réunis et annotés par A.-R. Weill-Brunschvicg et Claude Lehec. Tomo III. Paris: PUF , 1954. [1930]. p. 67-78., p. 75).
  • 3
    Empreguei o neologismo “geograficizar” (ao invés de “geografizar”) para me referir a esse processo na medida em que ele remete à geograficidade, guardando, portanto, relação com a noção de historicidade (Cf. SALOMON, 2018SALOMON, Marlon. Temporalidade histórica em Lucien Febvre e Alexandre Koyré. In: SALOMON, Marlon. (org.). Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Ricochete , 2018. p. 142-166.).
  • 4
    Meu objetivo aqui não é explorar as semelhanças e diferenças que podem ser traçadas entre as perspectivas historiográficas de Koyré, Febvre, Bloch ou mesmo Bachelard. Procurei explorá-las em outros trabalhos (SALOMON, 2015aSALOMON, Marlon. Entre história das ciências e das religiões: o problema da temporalidade histórica em Lucien Febvre e Alexandre Koyré no entreguerras. História da Historiografia, Ouro Preto, v. 8, n. 19, p. 107-123, 2015a.; 2015bSALOMON, Marlon. Figuras da atualidade e formas do pensamento em Alexandre Koyré. In: CONDÉ, Mauro; SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências. Belo Horizonte: Fino Traço , 2015b. p. 43-70.; 2018SALOMON, Marlon. Temporalidade histórica em Lucien Febvre e Alexandre Koyré. In: SALOMON, Marlon. (org.). Heterocronias: estudos sobre a multiplicidade dos tempos históricos. Goiânia: Ricochete , 2018. p. 142-166.). Recentemente, P. Redondi (2016REDONDI, Pietro (ed.). De la mystique à la science. Paris: EHESS , 2016.) trouxe à tona novos documentos que permitem pensar as relações entre Koyré e os Annales (Braudel aí incluso) sob novos prismas. Gostaria apenas de apontar rapidamente como eles se deslocam em um solo comum e como seus trabalhos podem ser analisados como reações diferentes a um conjunto comum de problemas.
  • 5
    Não pretendo apresentar aqui uma análise de todos os aspectos da concepção koyreana de história nem restituir o conjunto de referências que permitiria explicitá-la. Interessa-me mais precisamente considerar um aspecto negligenciado nas análises sobre essa concepção e que diz respeito às suas reflexões sobre a natureza de uma nova concepção de temporalidade nos termos de uma filosofia da história. Por essa razão, valorizo aqui a referência a Meyerson, à sua compreensão dinâmica da razão e à concepção móvel da história que ela implica. Ela me parece importante para o que pretendo apontar a seguir. Sobre a concepção koyreana de história, cf. Jorland (1981JORLAND, Gérard. La Science dans la philosophie: les recherches épistémologiques d’Alexandre Koyré. Paris: Gallimard , 1981. ), Redondi (2016REDONDI, Pietro (ed.). De la mystique à la science. Paris: EHESS , 2016.), Zambelli (2021ZAMBELLI, Paola. Alexandre Koyré, un juive errant? Florença: Museo Galileo, 2021.), Condé e Salomon (2015CONDÉ, Mauro; SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré: história e filosofia das ciências. Belo Horizonte: Fino Traço, 2015.) e mais recentemente o estudo de Machado (2021MACHADO, Hallhane. A liberdade de pensamento: estudo sobre o fundo místico da história de Alexandre Koyré. 2021. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2021.).
  • 6
    Nessa resenha, Koyré foi bastante econômico em seu comentário sobre os dois livros de Aron, de modo que é muito difícil, apenas por meio dela, saber com alguma segurança qual era sua avaliação desses trabalhos. A historiadora Hallhane Machado lançou recentemente algumas luzes sobre essa questão ao exumar uma carta enviada por Koyré a Aron. Por meio dela, podemos saber que Aron, que nutria profunda admiração e respeito pelo historiador francês de origem russa, enviou seu trabalho a ele. Por meio dessa missiva, é possível conhecer suas impressões sobre o livro La philosophie critique de l’histoire. Koyré afirma ter gostado de todos os seus quatro capítulos (sobre Dilthey, Rickert, Simmel e Weber). “E, no entanto, eu devo te dizer? Lendo seu livro, senti se dissolver minha admiração por Weber. E desaparecer definitivamente aquela que eu ainda tinha por Dilthey” (KOYRÉ s/d apud MACHADO, 2020MACHADO, Hallhane. Science in History: Why Ernest Coumet [did not] Free us from Alexandre Koyré’s Heritage. Transversal: International Journal for the Historiography of Science, n. 8 (June), p. 125-133, 2020. https://periodicos.ufmg.br/index.php/transversal/article/view/35043 Acesso: 30 de janeiro de 2023.
    https://periodicos.ufmg.br/index.php/tra...
    , p. 131). Entretanto, entre o “realismo histórico” de Dilthey e o nominalismo de Weber, Koyré admitia: “é Dilthey que me parece ter razão, e não Weber” (KOYRÉ s/d apud MACHADO, 2020MACHADO, Hallhane. Science in History: Why Ernest Coumet [did not] Free us from Alexandre Koyré’s Heritage. Transversal: International Journal for the Historiography of Science, n. 8 (June), p. 125-133, 2020. https://periodicos.ufmg.br/index.php/transversal/article/view/35043 Acesso: 30 de janeiro de 2023.
    https://periodicos.ufmg.br/index.php/tra...
    , p. 131). O artigo de Hallhane Machado ainda permite esclarecer uma passagem importante da resenha de Koyré e que citei acima sobre o Newton ou o Einstein da história. Koyré afirma que Weber acreditava que Kant era “o Newton da história” e esse era o seu “erro inicial” (KOYRÉ s/d apud MACHADO, 2020MACHADO, Hallhane. Science in History: Why Ernest Coumet [did not] Free us from Alexandre Koyré’s Heritage. Transversal: International Journal for the Historiography of Science, n. 8 (June), p. 125-133, 2020. https://periodicos.ufmg.br/index.php/transversal/article/view/35043 Acesso: 30 de janeiro de 2023.
    https://periodicos.ufmg.br/index.php/tra...
    , p. 131). Machado demonstra como a sugestão de E. Coumet, segunda a qual haveria uma fusão de Dilthey e Weber em Koyré (e mesmo em Aron), é equivocada.
  • 7
    “[...] Nada pode ser mais individualista que a filosofia do Sr. Heidegger. Pois, ainda que vivamos com outros homens, morremos sozinhos. Em outros termos, é apenas no plano da existência inautêntica que o Da-sein se encontra engajado num Mit-sein. No plano da autenticidade, pelo contrário, na sua existência ‘para a morte’, ele está absolutamente só; tão só que nenhuma ausência vem mais romper sua solidão essencial. No autêntico, não existe mais contato humano; ou, o que quer dizer a mesma coisa, não existe mais comércio autêntico entre os ek-sistentes. [...] Pois a palavra da existência autêntica [para Heidegger] é silêncio” (KOYRÉ, 1991KOYRÉ, Alexandre. A evolução filosófica de Martin Heidegger. In: Estudos de história do pensamento filosófico. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária , 1991 [1946]. p. 215-242., p. 235).
  • 8
    Além de figuras que se tornariam importantes e conhecidas depois da Segunda Guerra, tais como Alexandre Kojèvé, Henry Corbin e Raymond Queneau, Georges Bataille também seguia os cursos de Alexandre Koyré na École Pratique des Hautes Études (EPHE). Bataille era ligado aos surrealistas e Queneau, recorde-se, havia acabado de romper com eles. Observe-se que a análise feita por Koyré em 1946 da trajetória filosófica de Heidegger, não por acaso, foi publicada em duas partes nos primeiro e segundo números da revista Critique, recém-fundada por Bataille. Já o orientalista Henry Corbin foi responsável pela tradução da primeira publicação em francês de um texto do filósofo alemão (Qu’est-ce que la métaphysique?) Ele foi publicado na revista surrealista Bifur. Essa tradução foi precedida de uma “Introdução” entusiasmada e bastante positiva escrita por Alexandre Koyré (1931KOYRÉ, Alexandre. Introduction à Qu’est-ce que la métaphysique? de Martin Heidegger. Bifur, Paris, Tomo VIII, 1931, p. 5-8.). Finalmente, apenas a título de informação, registre-se que Henry Corbin era cunhado de Eric Dardel, autor da teoria existencialista da história que Alexandre Koyré, na resenha supracitada de 1946, classificou como um “produto típico de um entusiasmo desvairado - esperemos que apenas juvenil - pela filosofia existencialista”. Koyré não o poupou em nenhum momento: “Nada é mais curioso que os arrebatamentos periódicos do pensamento francês pela filosofia alemã. Nada é mais deplorável” (KOYRÉ, 2010KOYRÉ, Alexandre. Filosofia da história. In: SALOMON, Marlon (org.). Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Tradução de Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2010. p. 6-72., p. 53). Sua esperança acabou por se revelar frustrada se lembrarmos que Dardel, apenas alguns anos depois, publicaria uma teoria existencialista da geografia.

INFORMAÇÕES ADICIONAIS

  • Endereço para correspondência

    Marlon Salomon Universidade Federal de Goiás - UFG, Faculdade de História Avenida Esperança s/n, Campus Samambaia. Goiânia - Goiás - Brasil. CEP 74690-900
  • Financiamento

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
  • Contexto da pesquisa

    Este artigo é resultado de projeto de pesquisa sobre a temporalidade histórica no entreguerras francês e é financiado pelo CNPq por meio de uma bolsa de produtividade em pesquisa.
  • Modalidade de avaliação

    Duplo-cega por pares.
  • Aprovação no comitê de ética

    Não se aplica.
  • Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais

    Os conteúdos subjacentes ao artigo estão nele contidos.

Editado por

Editores responsáveis

Flávia Varella - Editora-chefe Fábio Duarte Joly - Editor executivo

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Mar 2023
  • Revisado
    09 Maio 2023
  • Aceito
    15 Maio 2023
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