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Ainda sobre fantasmas: temporalidade, arquivo e futuro no romance de Mohamed Mbougar Sarr

Resumo

O artigo explora questões relativas às figurações do tempo em sua relação com modos de elaboração da experiência histórica ao analisar o romance La plus secrète mémoire des hommes de Mohamed Mbougar Sarr. O ensaio refuta categorias analíticas e normativas como sujeito universal e representação histórica em um romance que se utiliza da pesquisa histórica. O artigo também pretende ressaltar que a crítica pós-colonial, ou decolonial, se manifesta de maneira constativa, e não performática, limitando a eficácia do tratamento de temas sensíveis para além da arquitetura conceitual dos estudos traumáticos. Considero que o romance permite maior abertura para o questionamento dos limites do conhecimento histórico frente às críticas provenientes de autores que debatem temporalidade, colonialismo e racismo.

Palavras-chave:
Futuro; Temporalidade; Romance; Racismo; Colonialidade

Abstract

The paper analyses the novel La plus secrète mémoire des hommes focusing on the relationship between the representation of time and historical experience. The novel refutes both the universality of both analytical and normative categories and historical representation through a hybrid novel in which the figure of the archive is emphasized. This article also intends to emphasize that postcolonial, or decolonial, criticism manifests itself in a constative rather than a performative way, limiting the effectiveness of the treatment of sensitive themes beyond the conceptual architecture of traumatic studies. The effectiveness of novels creates a space where the limits of knowledge can be questioned, especially when the concepts of history and modernity are criticized by the contemporary theories of history.

Keywords:
Future; Temporality; Novel; Racism; Coloniality

Por algum tempo, a crítica acompanha a obra, depois a crítica se desvanece e são os leitores que a acompanham. A viagem pode ser comprida ou curta. Depois os leitores morrem um a um, e a obra segue sozinha, muito embora outra crítica e outros leitores pouco a pouco se ajustem à sua singradura. Depois a crítica morre outra vez, os leitores morrem outra vez, e sobre esse rastro de ossos a obra segue sua viagem rumo à solidão. Aproximar-se dela, navegar em sua esteira é um sinal inequívoco de morte segura, mas outra crítica e outros Leitores dela se aproximam, incansáveis e implacáveis, e o tempo e a velocidade os devoram. Finalmente a obra viaja irremediavelmente sozinha na Imensidão. E um dia a obra morre, como morrem todas as coisas, como se extinguirá o Sol e a Terra, o Sistema Solar e a Galáxia, e a mais recôndita memória dos homens. Roberto Bolaño, Os Detetives SelvagensBOLAÑO, Roberto. Os Detetives Selvagens. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

Para além da beleza do trecho, sua presença nesse escrito é fruto de uma dupla motivação: a localização reiterada como epígrafe, pois foi utilizada pelo autor do livro a que este ensaio se dedica a analisar, La plus secrète mémoire des hommes, e também por enlaçar tempo, memória e narrativa ao evocar a volubilidade de todas as coisas do mundo. Caso saiamos da epígrafe e comecemos a nos debruçar na narrativa, o tom se torna um pouco menos altissonante, por vezes beirando o silêncio, permitindo a abertura de espaço para que os fantasmas que assolam a cabeça do narrador estejam expressos ao longo do romance. Fantasmas que também são mencionados em alguns momentos em livros de alguns pesquisadores da história, como Trouillot, onde a mistura de tempos é utilizada para criticar a cronologia enquanto uma das facetas do modo como a perspectiva historicista estabelece a relação de distância irreversível ao passado. Também Trouillot nos relembra o quanto o silêncio é um dado da construção do conhecimento histórico e está presente nas sociedades que buscam lidar com a ferida colonial: existem silêncios e outros que são ainda mais silenciados, uma espécie de silêncio dentro de outro silêncio, como ele deixa indicado. “Hoje sabemos que as narrativas são feitas de silêncios, nem todos deliberados ou perceptíveis como tais no momento em que são produzidos” (TROUILLOT, 2016TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995., p. 243). Também podemos argumentar, seguindo a leitura de Trouillot, o que ele parece ter entendido bem da argumentação proveniente dos pós-estruturalistas. “Silêncios ingressam no processo de produção histórica em quatro momentos cruciais”, afirma ele tentando ser enfático “no momento da criação do fato (na elaboração das fontes); no momento da composição do fato (na elaboração dos arquivos); no momento da recuperação do fato (na elaboração das narrativas); e no momento da significância retroativa (na elaboração da história em última instância)” (TROUILLOT, 2016TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995., p. 57).

A sincronia entre os conceitos de arquivo, fontes e narrativas, em relação com o fato histórico, permite perceber não apenas como a operação historiográfica pode ser utilizada para o silenciamento, mas especialmente como somos parte da execução dessas ações voltadas a impedir a pluralidade de narrativas. Não se trata de acreditar que seja possível “dar voz aos que nunca a tiveram” ou o que seria mais ingênuo, ser capaz de “ressuscitar os mortos”, mas do autorreconhecimento de nossas ações nos silenciamentos gerados pelo campo da História. Caberia, então, pensar narrativas que valorizam a pluralidade de vozes e a multiplicidade de perspectivas acerca do passado, especialmente aquelas que elaboram críticas ao conceito moderno de história, conforme a pesquisa de Reinhart Koselleck (2013KOSELLECK, Reinhardt. O Conceito de História. Tradução: René E. Gertz. Belo Horizonte: Autêntica, 2013. ). Ao mesmo tempo, cabe reconhecer que, no campo da Teoria da História, no século XX, pouca atenção foi dedicada ao caráter performativo da distinção entre passado, presente e futuro, tomando como certa a ruptura entre passado e presente (BEVERNAGE; LORENZ, 2013BEVERNAGE, Berber; LORENZ, Chris. Negotiating the borders between present, past and future. Storia della Storiografia, Pisa, 63, 1 , p. 31-51, 2013. , p. 33). Há modos variáveis de tratar esse temário, por isso insiro o artigo nessa amplitude de debates, contribuindo para os estudos acerca da temporalidade, enfatizando a relação entre tempo e narrativa.

Esse artigo se dedica a uma leitura de um romance que lida com os fundamentos metodológicos da História disciplinar, especialmente se utilizando da pesquisa histórica e da relação entre documento e arquivo. A fertilidade dessa relação para pensar os campos da História e da Literatura já tinham sido consideradas por Dominick LaCapra, especialmente em seus livros que investem na historicidade do romance na modernidade (LACAPRA, 1987LACAPRA, Dominick. History, Politics and Novel. Ithaca: Cornell University Press, 1987. ). Essa prosa parece estar alinhada àquilo que Hayden White considera como o impulso pós-moderno na ficção: o desejo pela História. Trata-se de entender que o romance pós-moderno não é anti-histórico, mas contrário às balizas pelas quais se erigiram a disciplina acadêmica História (WHITE, 2005WHITE, Hayden. Introduction: Historical Fiction, Fictional History, and Historical Reality. Rethinking History, v. 9, n. 2/3, p. 147-157, Jun./Sept. 2005. DOI: 10.1080/13642520500149061
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). Esse romance, entretanto, se distancia da rubrica pós-moderna. Negar esse termo significa que o romance se vincula ao modernismo tardio, especialmente pela admiração por Proust, e lida com discussões referentes à relação entre colonialidade e produção do conhecimento. Além disso, nega o recurso ao pastiche, considerado por Fredric Jameson como a opção estilística pós-moderna por excelência, ao recolher fragmentos descontextualizados de produções do passado na narrativa.

Esses são temas e opções de escrita presentes em La plus secrète mémoire des hommes, especialmente a impossibilidade de ultrapassar o passado e a busca em arquivos, privados e públicos, de pistas capazes de gerar significância retroativa à narrativa. Como se a intenção autoral fosse elaborar um romance no qual as balizas da operação historiográfica estivessem sendo mobilizadas com a preocupação especial para a relação entre tempo e narrativa, a partir das discussões acerca da colonialidade do poder. Cabe destacar um aspecto: o romance não se mantém apenas na intenção de lidar com o tempo por recursos constativos, mas especialmente performativos, permitindo a ênfase na relação entre tempo e narrativa de modo mais amplo e plural do que as afirmações acerca da indissociabilidade entre poder e colonialidade praticadas por alguns teóricos pós-coloniais e decoloniais. De uma maneira geral, nomes como Mignolo (2017MIGNOLO, Walter. Colonialidade: o lado mais escuro da modernidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 32, n. 94, p. 1-18, jun. 2017. DOI: 10.17666/329402/2017
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) ou Quijano (2009QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura de S. e MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 73-116. ) pouco se detiveram ao tema da temporalidade, mesmo que figuras acerca da impossibilidade de ultrapassar o passado, como os fantasmas, fossem frequentes em narrativas de autores daquilo que convencionamos nomear como Sul global: o Juan Rulfo de Pedro Páramo ou García Márquez em Cem anos de solidãoGARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cem anos de solidão. Tradução: Eliane Zagury. 10. ed. Rio de Janeiro: editora Sabiá, 1971. , no espaço hispano-americano; ou nos livros de escritores provenientes de países da África, como Mia Couto em Terra Sonâmbula, para mencionarmos escritores admirados pelo autor do romance estudado, Mohamed Mbougar Sarr.

Acerca dessa relação entre a história e fantasmas, Ethan Kleinberg considera que ambas possuem como semelhantes o passado, “um passado que não tocamos, mas que ainda assim nos toca” (KLEINBERG, 2017KLEINBERG, Ethan. Haunting History. For a deconstructive approach of the past. Stanford: University Press, 2017. , p. 142). Seu argumento parte de um diálogo com um dos livros mais conhecidos de Derrida pelo público brasileiro, Espectros de Marx (1994DERRIDA, Jacques. Specters of Marx. Translated by Peggy Kamuf. New York: Routledge, 1994.), a filosofia da desconstrução e a história da historiografia.1 1 Caminho sugestivo para o trato com essa proposta é a tese Ramos (2018). A intenção desse artigo, contudo, é seguir outro percurso e optar pela análise do romance destacando a figuração de fantasmas por meio da história e da crítica literárias, onde elementos da operação historiográfica estão sendo mobilizados para tratar do tema da ferida colonial e dos rituais de legitimação do cânone literário. Ao mesmo tempo, o romance de Sarr mobiliza um conjunto de temas levantados pelos pós-coloniais, dentre os quais a relação entre arquivo e violência para pensar o racismo, sendo que essa prosa híbrida convoca o ensaio, a crítica e história literária para pensar as exclusões diárias e o peso da História em paragens não hegemônicas. O romance do autor Sarr critica o tempo histórico linear e evolutivo e a ruptura com o passado historicista reivindicando outros modos de entender tempo, evitando apresentar um futuro redentor, mas que ainda nos encoraje a pensar o futuro, mesmo ante fracassos e ruinarias em uma época de aquecimento global e da consciência do fim da espécie. Acolhe os impasses acerca da noção de fim, um fim de pequenas histórias individuais, fins que podem ser partilhados e que nos levam a pensar a prática historiográfica nesses tempos.

História de fantasmas e fracassos

La plus secrète mémoire des hommes conta a história de um jovem escritor senegalês, Diégane Latyr Faye, que descobre um livro estranho: O Labirinto do Inumano. As singulares questões que o livro levanta e as indagações acerca dos impasses humanos, cativam Diégane e fazem com que ele busque conhecer a sua história: descobre que foi escrito por um autor negro, alçado ao reconhecimento e, logo depois, à ignomínia. O motivo foi a acusação de fraude e de plágio infligida ao autor, T.C. Elimane, nascido no Senegal, morador de Paris quando escreveu o livro que o levaria à desgraça pública. O livro conta a história de um rei sanguinário, disposto a cometer qualquer atrocidade para obter o poder, mesmo que ao longo do livro passe por uma transformação que o torna menos violento aos olhos do leitor. Diégane passa então a seguir os passos deste autor desconhecido T.C. Elimane, seus parentes, seu editor e sua família. Sua busca o levará a encontrar testemunhas da época, uma poetisa negra, críticos literários, mortos, vivos e membros da diáspora literária francófona na Europa. O que temos, a partir daí, são os desvios da memória, os impasses do tempo, testemunhos, os amores imaginados e vivenciados, que os levarão a percorrer setenta anos da história da relação entre o continente europeu, os países africanos e latino-americanos.

A centralidade temática do livro gira em torno da questão da invenção de livros e da narrativa por escritores que não são provenientes dos grandes centros europeus ou norte-americanos. Especialmente a situação do escritor africano e latino-americano, assombrado pela escrita, entre escrever ou se calar definitivamente, no qual se debate também a relação entre personagens, livros, história e literatura. Manifestando admiração por Bolaño e seu Os Detetives Selvagens, e com trechos de escrita inspirada por outros autores, como Yambo Ouologuem, malinense, e Ken Bugul, senegalesa, o livro aparece como um elogio ao ato de escrever realizado por não europeus, assim como as possibilidades de reconhecimento da diferença entre aqueles que transitam pelo mundo2 2 Uma leitura sugestiva desse romance de Sarr associando-o ao tema do mal-estar civilizacional com o aporte teórico de Freud e Franz Fanon para pensar a questão da curadoria não-ocidental pode ser encontrado em Thuin (2022). . Para que esse objetivo se efetue, considero que essa prosa de ficção apresenta uma singular perspectiva de figuração do tempo e da história da segunda metade do século XX. Enfatizo que o livro propõe a politização do tempo enquanto parte indissociável da relação entre colonialismo e poder, intensificada pelas variáveis estratégias para a sua figuração, afastando-o dos modos de execução dos pós-coloniais ou decoloniais.

O livro começa com uma data, como se fosse um diário, assim como Os Detetives Selvagens, e a afirmação “de um escritor e de sua obra, podemos ao menos saber o seguinte: um e o outro andam juntos no labirinto mais perfeito que possamos imaginar, uma longa estrada circular, em que seu destino se confunde com sua origem: a solidão” (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 12, tradução nossa). A circularidade apontada no trecho parece ser aquela que de algum modo se remete frontalmente ao livro admirado, mas também ao narrador e personagem principal Diégane Latyr Faye, que nos apresenta o livro que o assombra, Le Labyrinthe de l’inhumain, livro fictício, que tem como referência verídica o livro Le devoir de la violence, de Yambo Ouologuem. Não somente o livro, poderíamos dizer, mas também a história segue as ocorrência com Ouologuem que, após acusações de plágio, desapareceu em 1968, depois de ter sido o primeiro romancista africano coroado com um prêmio literário, o Renaudot, por Le devoir de la violence. Após a acusação de impostura, ele desaparece da cena literária, refugiando-se em sua terra natal, em total anonimato. Mohamed Mbougar Sarr lida com a história desse escritor esquecido e, simultaneamente, levanta questões sobre a relação entre cópia/original, processo/veredito, utilizando-se especialmente de obras de outros escritores que indagaram essas tensões, como o “Pierre Menard” de Borges (BORGES, 2007BORGES, Jorge Luis. Pierre Menard, autor do Quixote. In: BORGES, Jorge Luis. Ficções. Tradução de Davi Arrigucci Jr. São Paulo: Companhia das Letras , 2007. p. 34-45.).

É a história de um livro comentado e amaldiçoado por sua trajetória, com uma sequência que jamais existiu, nunca publicada. De encontro em encontro, do Senegal aos quatro cantos da França, de Amsterdã a Buenos Aires, Diégane vai descobrindo aspectos da vida do fantasma que se tornou T.C. Elimane. Ao transitar por diversas paragens, o livro percorre a História Ocidental: do final do século XIX a 2018, da colonização aos dias atuais, da violência no Senegal à Shoah, da ditadura argentina às revoltas do século XXI na África, uma série de personagens emerge de documentos coletados e artigos de imprensa. Ao contrário de seu irmão, que viveu toda a vida no Senegal, foi sua paixão pela cultura francesa que permitiu que T.C. Elimane viesse provocar a burguesia francesa nas universidades francesas, como descobriu Diégane. Considerado exótico, não reconhecido por seu talento, ele se dedica ao que deve ser o trabalho de sua vida, a escrita, rejeitando todos os cursos superiores.

Essa não é uma busca solitária de Diégane. A assombração dos fantasmas se une ao trajeto de outros personagens no livro. Para que essa inserção seja bem efetivada, Sarr investe na multiplicidade de vozes a partir da utilização de recursos variados, dentre os quais articulações interessantes entre documentos, pautando-se na relação entre ficção e não ficção, e a incorporação de outros autores e trechos de livros. A escrita se modifica de acordo com quem tem a palavra, Elimane, Siga, Musimbwa, Diégane, todos ganham voz em algum momento, exemplificando a questão que permeia o livro, o assombro pelo ato de escrever. A África, aqui, entra como uma pluralidade de possibilidades e de passados ao não se fechar enquanto continente, mas se abrir a partir de suas querelas, fazendo-nos questionar também pelo que é a América Latina, Brasil, e as limitações do uso destes conceitos. Como em Le devoir de la violence, de Ouologuem, presente desde a dedicatória, são invocados outros livros, outras vozes, que emergem das páginas como se fossem apropriados para ressaltar as incongruências das relações entre colonialismo e poder, especialmente ao lidarmos com a elaboração de cânones literários.

A força motriz da narrativa é a busca pela solução do enigma, por Diégane Fay,e dos motivos da acusação de plágio recebidas pelo livro Le Labyrinthe de l’inhumain, o silêncio perpétuo de T. C. Elimane, e o sistema de poder que gera processos jurídicos contra alguns autores e outros não. A discussão acerca da relação entre original/cópia, e os desdobramentos possíveis acerca da volubilidade do que é o plágio, propiciam a aproximação do romance de Sarr com escritores que produziram na circunstância América Latina. Dentre as variadas cenas acerca do debate referente à propriedade privada de um texto literário, uma merece destaque pela reutilização de ensaios anteriores que debatem escrita e autoria. O narrador, ao chegar em casa, diz

então abri meu computador e comecei a digitar Le Labyrinthe de l’inhumain. Acompanhei as palavras, como um cão de caça, um detetive, um ciumento. Meu assombro ocorreu no coração da frase de Elimane. Eu não copiei este texto. Eu o escrevi; Eu sou seu autor, como Pierre Ménard de Borges foi o autor de Quixote. Quatro horas depois eu tinha acabado. Enviei o arquivo por e-mail para Musimbwa com estas palavras: “pour la route”. Ele respondeu imediatamente: “Você está louco, cara, mas obrigado”. Fui então comer no restaurante africano. O koriste tocava hits da moda. Isso me entristeceu e me surpreendi, enquanto comia meu mafé, lamentando a velha e monótona balada mandinga (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 101, tradução nossa).

Não é por qualquer motivo que ele faz uso do Pierre Menard associando-o à discussão acerca da composição artística para legitimar a reescrita do livro que tanto o comove. Essa cena será capital para o romance, visto que uma das principais acusações sofridas por Elimane é de que sua ignomínia teria sido causada por plágio. A inserção dessa cena será a primeira que atuará para o desmonte do argumento de que Elimane seria corrupto por ter se apropriado de um romance de algum autor conhecido europeu. Retoma-se toda a discussão acerca da invenção em países não hegemônicos, assim como da relação entre o escritor e a tradição, porém agora inserindo também o racismo como uma das motivações das perseguições e acusações de plágio, expressando a novidade dessa empreitada de Sarr.

Considero, além disso, outro ingrediente: o romance permite argumentar que as acusações relacionadas ao plágio estão também vinculadas à temporalidade moderna e ao modo específico de lidar com as categorias passado, presente e futuro. O racismo que impede ao escritor africano - ou latino-americano como Sarr insiste - fazer seus escritos circularem sem que eles passem por centros de poder europeus teve também como alicerce as categorias gestadas na modernidade ocidental. Dessa maneira, o desmonte deve ocorrer por meio do ataque a um de seus pilares: a temporalidade do relato. A composição de um relato de fantasmas, como quer Sarr, indica que o passado não foi ultrapassado e que ainda vivemos assolados pela violência de outros tempos. O fantasmático do passado pode surgir enquanto efeitos de presença, possibilitando maior abertura para lidar com os mortos, retomando uma das definições mais categóricas para a História.

Ao mesmo tempo, perceber a composição da narrativa enquanto uma história de fantasmas possibilita ampliar as associações que o autor, e por muitas vezes o narrador, faz com a produção latino-americana. Um romance singular na bibliografia de romances hispano-americanos é Pedro Páramo de Juan Rulfo. “Vai ver o senhor encontra algum ser vivente” (RULFO, 2008RULFO, Juan. Pedro Páramo. Tradução: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: BestBooks, 2008. , p. 18), uma frase desse romance de Rulfo que coloca a questão da espectralidade do passado enquanto o mote central do argumento. O romance se inicia quando Dolores, já em seu leito de morte, pede ao filho, Juan Preciado, que regresse até a cidade de Comala para conhecer seu pai, Pedro Páramo, que os abandonou. “A única coisa que faz com que a gente mova os pés é a esperança de que ao morrer nos levem de um lugar a outro” (RULFO, 2008RULFO, Juan. Pedro Páramo. Tradução: Eric Nepomuceno. Rio de Janeiro: BestBooks, 2008. , p. 53). Essa citação de Juan Rulfo encontra acolhida também na intenção do personagem Diégane de reler o livro escrito por Elimane. No caso da proposta de Sarr, trata-se de captar os impasses de um acontecimento histórico, o ocaso de Ouologuem devido acusações de plágio por Le devoir de la violence, e retirá-lo do ostracismo debatendo colonialismo e escrita.

A presença de fantasmas ao longo do livro de Sarr cumpre o intento de afirmar que o passado não pode ser ultrapassado e de que a violência utilizada na política atua sobre a elaboração de cânones literários, assim como também conforma nossa percepção da História, ela, com H maiúsculo, enquanto uma história de ruinarias. Elimane e seu livro maldito são apenas um dos muitos fantasmas que assolam todo o romance e reiteram a escolha de Sarr por passados disruptivos que desafiam a estabilidade do presente e o avanço da História em sua historicidade moderna. Sugere que esses fantasmas saiam das tumbas ao evocar uma história que serviu de referente para o autor, Ouologuem, expressando a vulnerabilidade daqueles que foram esquecidos e sufocados por opressões, especialmente os provenientes de países que padeceram do processo histórico da escravidão. Narrar uma história esquecida por meio do jogo entre ficção e não-ficção, enfatizar o voluntarismo na elaboração de critérios de avaliação artísticos, partir de um relato no qual o fracasso é sua força motriz, associado ao temário do fantasmático e à presença indesejada do passado, alicerçam a crítica ao conceito moderno de História. Acreditar em um futuro fruto do progresso é corroborar o silêncio imputado a alguns e narrar fantasmas impacta no modo como percebemos o encadeamento entre as categorias temporais de presente, passado e futuro.

A experiência de um mundo sem lógica e em catástrofe apresentado no romance, além de fraturá-lo, traz à narrativa a participação de vozes pautadas por uma visão periférica, as quais são sempre confrontadas com vazios deixados por esse processo histórico de ruinarias e pelos silenciamentos gerados por seus critérios de valor pautados na suposta autonomia da arte. Utilizar, por algumas vezes, o conto Pierre Menard de Borges serve ao questionamento do que é o autor e das questões envolvidas na relação entre originalidade/cópia, assim como serve ao propósito de enfatizar a historicidade do romance em sua circunstância de não hegemonia. O autor elabora um romance onde o hibridismo narrativo e a pesquisa histórica estão a serviço de um enredo pautado no enigma, ao proporcionar o desvendamento de uma história esquecida pelos espaços centrais. Explicita a relação entre colonialidade e poder não de maneira constativa, como fazem os pós-coloniais como Mignolo e Quijano, mas por meio de um enredo em que a potencialidade performática está a serviço da apresentação complexa da temporalidade. Acredito, também, que a superação desses impasses nos permite caminhar, ir adiante, em novas possibilidades de superar aquilo que ainda nos prende ao conceito de História em si.

Pode-se argumentar que a produção dos pós-coloniais e, especialmente, decoloniais é multifacetada, mesmo que a maioria tenha se expressado utilizando enunciados constativos. Algumas produções do século XXI apostam em relativizar esse investimento, como podemos perceber pelas publicações de Paul Giroy (2001GILROY, Paul. O Atlántico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34; Rio de janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.), Saidiya Hartman (2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Tradução: José Luiz Pereira da Costa. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.) e Grada Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. ). Gilroy, ao descrever a obra e a vida de Frederick Douglas, pondera acerca do uso singular da autobiografia como processo de autoemancipação onde a relação estabelecida entre localidade e corpo dão a força testemunhal do relato. Nos livros de Saidiya Hartman, a opção pelo autobiográfico está associada ao investimento em uma narradora autodiegética que tenciona desmontar os regimes de verdade da episteme eurocêntrica enquanto postula outras modalidades do que pode ser acolhido como verdade. Insere, em uma narrativa envolvente, o tráfico de escravos e toda a questão do deslocamento no cerne da Modernidade ocidental, e não como a sua aberração. Toda a discussão nos faz perceber os vínculos entre Modernidade e violência e “exige que consideremos mais profundamente a relação de terror e subordinação racial com a própria natureza interna da Modernidade” (GILROY, 2001GILROY, Paul. O Atlántico negro: modernidade e dupla consciência. Tradução: Cid Knipel Moreira. São Paulo: Ed. 34; Rio de janeiro: Universidade Cândido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001., p. 154). Argumento que também é seguido por Achille Mbembe (2018MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Tradução: Sebastião Nascimento. São Paulo: n-1 edições, 2018. ) ao considerar o devir-negro do mundo.

Há posturas diversas, entretanto, nesse conjunto de autores e autoras aqui elencados. Grada Kilomba, assim como Saidiya Hartman, faz escolhas distintas de Paul Gilroy e Achille Mbembe, especialmente pelo investimento no narrador autodiegético que, muitas das vezes, termina por entregar narrativas calcadas em autobiografias. Há contraste entre as obras referidas, como no caso de Hartman (2019HARTMAN, Saidiya. Wayward lives, Beautiful Experiments. Intimate Histories of Social Upheaval. New York: W. W. NORTON & COMPANY, 2019. ) que se estrutura enquanto uma curadoria de histórias esquecidas de mulheres, mulheres trans, com mudança de vozes narrativas e uma atenciosa pesquisa em arquivo para repensar criticamente o padrão normativo ocidental de comportamento voltado ao sufocamento do povo negro nos EUA. Essas opções complexificam a escrita da autora frente a outros empreendimentos mais calcados no autobiográfico como em Hartman (2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Tradução: José Luiz Pereira da Costa. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.). Assim como Hartman, Kilomba (2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. ) também executa uma curadoria de relatos que passam a possuir função testemunhal no livro com o intuito de repensar criticamente a colonialidade, especialmente por vincular corpo e localidade com o intuito de apresentar uma crítica à epistemologia ocidental. A relação com a performance é executada de modo mais preciso e complexo em “CONAKRY” (2017) vídeo realizado na Casa das Culturas do mundo em Berlim, a partir de pesquisa em arquivo, apresentando uma contra memória de Amílcar Cabral e fazendo do filme um ato de descolonização. Kilomba (2017KILOMBA, Grada; CÉSAR, Felipa; MCCARTY, Diana. “CONAKRY”. 2017. Available at: https://www.youtube.com/watch?v=7YkldKs93jE . Accessed in: May 14, 2022.
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; 2019KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019. ) e Hartman (2021HARTMAN, Saidiya. Perder a mãe: uma jornada pela rota atlântica da escravidão. Tradução: José Luiz Pereira da Costa. 1. ed. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2021.) apostam na autodiegese, na percepção da memória e na alteridade, associada à atenção ao deslocamento e à diáspora, como intensificadores dessa relação entre a literatura e a história enquanto crítica ao presente, ainda sustentado por referenciais brancos e eurocêntricos.

Acredito que, apesar de variações, como alguns investimentos de Hartman e Kilomba, o romance de Sarr contribui em complexificar a variação de vozes pela aposta no hibridismo narrativo e nas críticas acerca dos modos de consagração literários. Contar uma história tensionada pela relação entre ficção e não-ficção mobilizada pela dedicatória do livro, e investir na tradição do romance para o desenvolvimento de uma narrativa onde a variação de vozes e a multiplicidade de perspectivas seja enfatizada, parece ser um dístico de Sarr. Escrever um livro que tematiza o ato de escrever, a partir de investimentos no hibridismo de gêneros textuais enquanto crítica à literariedade, torna mais abrangente o alcance de uma história que poderia ser de muitos. Inventivo, comenta os critérios de legitimação das obras por um romance que amplia os debates acerca da relação entre escrita e vida ao associá-los com os vínculos entre racismo e poder, investindo na força literária de contar histórias oscilando entre ficção e não-ficção, sem necessariamente recorrer à autoficção. Escrever um romance multifacetado e polifônico, atravessando vários continentes (África, Europa, América Latina) e vários períodos (da primeira época da colonização até as lutas por independência, da Primeira à Segunda Guerra Mundial, do período entre guerras à resistência, do exílio, como o de Gombrowicz, dos anos 1980 na França às mobilizações em Dakar ou Argel) permite o escape de uma narrativa autocentrada para a amplitude de identificações e, talvez por isso, mesmo sem conhecermos essa história, ela nos cative.

Arquivo e temporalidade

No dia 15 de julho de 2018, seguindo a estrutura de um diário, está escrito: “A França venceu a Copa do Mundo de Futebol e o país celebrou sua segunda estrela sob um céu transbordante” (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 45, tradução nossa) Os primeiros capítulos do romance são escritos enquanto uma antecipação narrativa que depois será retomada em momentos futuros, utilizando um jogo entre antecipação narrativa e retrospecto, fazendo com que o presente seja tomado enquanto objeto de uma memória futura. Menos comum do que a suspensão da narrativa que permite o recurso de uma lembrança, normalmente nomeado como flashback, a antecipação explicita a tensão entre tempo da narrativa e tempo narrado. Justamente essa tensão é considerada por Genette (1987GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. Tradução: Fernando Cabral Martins. Lisboa: Vega, 1987. ) como o principal enquadramento referencial para o estudo do tempo ficcional. Esse tempo se remete também à opção do livro em travar um íntimo vínculo com o presente, inclusive mencionando fatos históricos, como parte de um movimento performático rumo ao espaço polifônico do estar em comum e da partilha de experiências. Não se trata apenas da alternância de vozes ou do hibridismo do livro, mas também o reconhecimento de que esse temário é fruto de um constructo histórico, com a incorporação ou refutação de acontecimentos históricos ocidentais em relação com outros tempos entrelaçados no agora. A escrita destaca a multiplicidade temporal constitutiva do presente e a fluidez e corrupções a que está sujeita a memória.

A figura do arquivo é retomada ao longo do escrito em conexão com essa abertura para a multiplicidade temporal do presente.3 3 Também pode-se encontrar essa tendência em romances dos últimos anos. Uma citação possível é a de Rodrigo Rey Rosa em El Material Humano. Sobre Rey Rosa ver Rodrigues Leite (2018) La plus secrète mémoire des hommes é uma ampla exploração do arquivo: coleções, recortes de jornal e livrarias são extensivamente tematizados no texto; conseguimos perceber que Sarr está interessado na relação entre arquivo e modernidade enquanto um dos motes subterrâneos para o desdobramento da relação entre enigma e romance subjacentes à narrativa do livro. O autor não abandona o romance; aposta no hibridismo narrativo e se utiliza da figura do arquivo para a elaboração do relato. A enunciação da trama discursiva ocorre a partir da inserção de elementos que provocam descontinuidade no tempo linear, expondo os estratos do tempo que compõem o presente, apresentando sentidos não antevistos. Os recortes de jornal com reportagens dos anos trinta, os documentos acerca da outorga de prêmios literários, as menções às revistas literárias com reportagens ficcionais acerca do processo por plágio de T. C. Elimane, tendo como referência Yambo Ouologuem, são dispostas por colagem em uma narrativa que se desenrola, na parte inicial do livro, a partir dos últimos anos da política francesa e mundial.

O arquivo funciona em um duplo movimento no romance de Sarr: o personagem principal tanto faz uma série de pesquisas em arquivo quanto também está compondo seu próprio arquivo e o mostrando para o leitor. Essas opções podem ser identificadas no primeiro livro do romance, em seu segundo subcapítulo “Journal Estival”, “diário de verão”. Em diversas entradas dos diários são alternados comentários acerca das ocorrências do dia junto a trechos de cada um dos mais variados jornais em que foram colocadas informações acerca do livro de T. C. Elimane e sua trajetória. São apresentados trechos da suposta pesquisa ocorrida na La Revue des deux mondes, L’Humanité, Le Figaro, La Revue de Paris e Mercure de France. Na entrada do dia 10 de agosto de 2018 afirma: “Passei o dia nos arquivos da imprensa onde um conhecido influente de Musimbwa me conseguiu uma autorização” (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 78, tradução nossa). Continua dizendo que o telefone dele o dificultava em permanecer concentrado e que se deparou com uma curta pesquisa feita pela jornalista B. Boullème de um trecho que estava disponível nos arquivos dos jornais franceses, mesmo que imediatamente não seja anunciado onde essa pesquisa ocorreu. O narrador e personagem Diégane Latyr Faye comenta acerca daquele dia de pesquisas: “Reli o Le Labyrinthe de l’inhumain à luz do que os críticos da época e a investigação desta jornalista me ensinaram” (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 79, tradução nossa). O romance investe na colagem de fragmentos diversos de trechos de jornais no diário do narrador, apresentando um interessante jogo entre ficção e não-ficção, a partir da contraposição temporal entre um documento escrito em 1938, ano da publicação de T.C. Elimane, e as anotações do diário feitas no agora de 2018, mesmo que a referencialidade histórica não seja destacada, pois os documentos são copiados pelo narrador.

Destaca-se a utilização da colagem de diversos tempos que exacerba a multiplicidade temporal típica das intenções que também estavam sendo executadas pelos primeiros modernistas que investiram nessa estratégia de composição do relato. Lembra existir uma relação íntima entre colagem e montagem, enquanto procedimento típico das vanguardas e crítica da temporalidade moderna. A contraposição de tempos, o ano de 2018 que requisita 1938, ocorre como crítica da linearidade temporal do romance oitocentista, abrindo-se para um livro que tem no arquivo um elemento de inteligibilidade. Entre as entradas do dia 10 de agosto de 2018 até 25 de agosto de 2018 são colocadas entradas do diário que possuem uma colagem de algum trecho de jornais de 1938. Justamente nessa periodização encontra-se o dia 19 de agosto em que há uma colagem de jornal de 1938 com o título “O Labirinto do Inumano ou a verdadeira fonte de uma impostura” (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 96, tradução nossa). Ou então, quando lê outro Albert Maximin no Paris-Soir, na entrada de 21 de agosto, que menciona Henri Bobinal e sua leitura dos Diários de Gombrowicz com suas menções à leitura do romance de um autor africano inominado. A continuidade da entrada desse dia no diário expressa o veredito acerca do livro com as opiniões que aos poucos o levarão a ser banido e ao esquecimento do seu autor.

A mobilização do arquivo ocorre tanto em termos da abertura de uma discussão acerca da relação entre arquivo e violência, especificamente pensando em termos de uma prática de pesquisa histórica - argumento já levantado por Trouillot (2016TROUILLOT, Michel-Rolph. Silencing the Past: Power and the Production of History. Boston: Beacon Press, 1995.) e figurado por Sarr a partir de um jogo entre ficção e não-ficção - quanto faz com que seu romance esteja inserido em algumas das discussões mais recentes da arte contemporânea com a reiteração da prática arquivística (FOSTER, 2014FOSTER, Hal. O retorno do real. Tradução: Célia Euvaldo. São Paulo: Cosac & Naify, 2014.). Afirmo, então, que o livro mobiliza o “impulso arquivístico” (FOSTER, 2004FOSTER, Hal. An archival impulse. MIT Press, [s.l.] , n. 110, p. 3-22, Oct. 2004. DOI: https://doi.org/10.1162/0162287042379847
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) em variadas dimensões. Primeiro, o narrador mobiliza os arquivos a partir de um desejo de sistematização e completude. A fantasia de um conhecimento que possa ser totalmente abarcado por um conhecimento compreensivo foi um dos pilares da epistemologia arquivística do século XIX, como comenta Foucault (2004FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução: Luiz Felipe Baeta Neves. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. ) ao tratar do arquivo. Esses pressupostos epistemológicos emergem quando percebemos que, ao longo de todo o livro, o narrador funciona como um genealogista fazendo menções constantes ao uso do arquivo enquanto um locus onde os personagens vão em busca de executar a pesquisa histórica para poder ser desvendado o que realmente aconteceu com T C Elimane e, consequentemente, é a partir dos documentos coletados que se descobre que o livro Le Labyrinthe de l’inhumain foi acusado de impostura. É a pesquisa histórica e a utilização de documentos que lhe permite sistematizar um conhecimento acerca das ocorrências com o livro de Elimane, assim como possibilita que o narrador passe a sustentar uma determinada perspectiva acerca da realidade do passado e, consequentemente, encontre meios para questioná-la. A pesquisa histórica para descobrir o que houve com o livro Le Labyrinthe de l’inhumain, que tanto encantou o narrador, ocorre ao longo de toda a primeira parte em que a pesquisa em arquivo se torna mais explícita com a apresentação de recortes de jornal fictícios que colocam em tensão a relação entre ficção e não-ficção, sugerindo que os conflitos valorativos não podem ser resolvidos apenas com o apelo à evidência. Entretanto, enquanto um segundo aspecto, cabe considerar que o arquivo também possui uma dimensão subjetiva, já que ele se mistura com lembranças pessoais e com os registros realizados no presente, explorando essa dimensão da escrita no agora. O terceiro aspecto que merece menção é o uso da propedêutica que permanece incompleta, especialmente porque ele não elabora juízos a partir de argumentações e exposições contrários ao livro que tanto encantou o narrador. Pelo contrário, há um processo lento e gradual de descoberta da trajetória de Elimane e de complexificação das acusações que sofreu. Há a produção de um arquivo que termina apenas por esboçar de modo fragmentado a elaboração de uma história.

O arquivo que está sendo construído não funciona simplesmente como memória; pelo contrário, também interpela o presente, como expresso na reiterada utilização da técnica da colagem de diversos tempos. Tudo isso ocorre após a sua pesquisa nos arquivos da imprensa francesa em que executa uma pesquisa histórica para descobrir quem foi Elimane e qual o motivo do ocaso de Le Labyrinthe de l’inhumain. Ele recolhe recortes de jornais, notas de pé de página acerca do livro e comentários acerca da impostura de Elimane. Por mais que possua um desejo por totalidade e compreensão histórica do passado, e da História europeia, - típicos do desejo arquivístico na modernidade - o arquivo que produz torna-se autorreferencial e adia permanentemente a sua completude. Essas opções geram impactos para a temporalidade da narrativa: como Derrida considera, todo arquivo é tanto um registro do passado quanto também uma promessa para o futuro. O arquivista produz cada vez mais material para o arquivo e é por isso que o arquivo nunca se fecha, comenta ele, e permanece perpetuamente aberto ao futuro. A narrativa, na qual se destaca a estratégia da montagem, facilita que o relato se coloque entre o registro do passado e a projeção do futuro para o qual o arquivista está impelido no presente. No caso do romance de Sarr, a presença temática e a ênfase na montagem do relato propiciam que seja incluído um passado distante das publicações de fins dos anos trinta, dos acontecimentos dos dias corridos da vida do narrador e do futuro que de algum modo se pretende redentor do destino do livro escrito por Elimane. A partir dessa opção narrativa, começa a ser elaborada em La plus secrète mémoire des hommes uma estrutura na qual a pesquisa em arquivo cria um novo arquivo pessoal a partir dos recortes de jornais que estão sendo colados nas entradas dos diários, mesmo que ampliem a tensão entre ficção e não ficção por não termos certeza, enquanto leitores, da procedência das fontes apresentadas pelo narrador. A pesquisa produz um novo arquivo com uma função particular na narrativa: ele não se detém apenas no passado, mas se projeta enquanto abertura para o futuro.

Não se trata, então, de que o projeto de La plus secrète mémoire des hommes seja historicista, pois não é um empreendimento que reitera o tempo vazio e homogêneo manifestado pela continuidade entre passado e presente em uma forma abstrata e cronológica da modernidade com o qual a narrativa de Sarr também tenta romper. Parece ser justamente o contrário: escovar a história a contrapelo parece ser o objetivo mais imediato; entretanto, Sarr pretende executar essa ação explicitando a complexidade temporal do presente. Envolve, antes, um modo descontínuo de temporalidade que é diametralmente oposto aos impulsos homogeneizantes que se atribui costumeiramente ao fazer científico e historicista do oitocentos. As colagens operadas pelo narrador e Diégane Latyr Faye fazem parte dos seus esforços para resistir ao poder do tempo linear, sublinhando a natureza relativa da temporalidade. A prática de relacionamento da memória com conhecimentos de arquivo revela uma estrutura de temporalidade em que o movimento para o futuro envolve a acumulação crescente dos vestígios da década de 1930, do processo ocorrido naqueles tempos, enquanto que o passado presente dos últimos acontecimentos europeus é ofuscado como um interregno até o encontro com o livro que lhe despertou interesse.

Considera-se, então, a historicidade da linguagem, a partir da percepção de que a performance, típica de um texto como esse, deve ser entendida como uma arte processual que expõe a precariedade do presente. O romance enfatiza os estratos temporais de todo o relato e, conforme argumentamos, abre-se ao porvir. Como em toda performance, trava uma relação com o agora do acontecimento e evoca o passado que não pode ser ultrapassado, pela presença dos fantasmas, e abre-se ao futuro, com a figuração do arquivo. Rompe-se, por um lado, com a concepção de história linear e teleológica instaurada pela modernidade e, por outro lado, são estabelecidas relações com tempos outros no processo da confecção do romance, evocando novos sentidos durante a leitura. A figuração do arquivo expressa a multiplicidade de tempos expressos no agora, como se fosse um palimpsesto onde estão tempos variados com particular predileção pelo futuro. O romance reivindica para si, enquanto ato performático da memória, expresso pela narrativa, tanto a pesquisa levada adiante a partir dos restos materiais, como as pesquisas feitas em “arquivos da imprensa” (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 79 tradução nossa), e também a evocação pelo romance de vestígios e restos imateriais que serão trabalhados pela imaginação, aspectos imprescindíveis para conhecer aquilo que não se é possível atingir enquanto a totalidade do conhecimento, conforme o argumento de Jacques Derrida. Por meio da figura do diário, tanto de uma investigação quanto de uma pesquisa histórica, pode ser proposta a leitura do livro como uma colagem acerca do embate de gerações, ambas unidas pelo fracasso, que elaboram uma memória a partir de uma narrativa pautada pelo inacabamento e hibridismo de gêneros aguçando ainda mais a mistura entre as categorias temporais de passado, presente e futuro.

Nostalgia do futuro

A prosa em questão busca uma configuração particular entre as dimensões visíveis e dizíveis da experiência, concebida como um exercício ficcional, onde ocorre a textualização, interpretação e exposição daquilo que é inapreensível como mundo da vida. Por meio da criação e ficcionalização da experiência, aquilo que nomeamos como real se manifesta no romance por meio de vozes que divergem e convergem entre si em torno de uma história ausente - relacionada com os impasses na formação do cânone e os silenciamentos da história da literatura, especialmente relacionada ao racismo como uma prática constitutiva da modernidade - que se efetiva em termos narrativos pelas tensões existentes entre vozes que, apesar de suas singularidades e estando ou não em conflito, apresentam o dissenso entre elas a favor da manutenção da diferença que assegura a existência da sua multiplicidade. A história ausente que merece ser relembrada, o processo sobre T. C. Elimane e seu desaparecimento, é também inapreensível e demarca diferença frente às ocorrências históricas ou qualquer possibilidade de veredito acerca do passado ou até mesmo da constituição de uma imagem unívoca acerca desse passado - e por isso tantas colagens ao longo da narrativa - o que faz com que o romance transcenda seus limites. Questiona-se tanto o caráter representativo da linguagem quanto se permite que a realidade histórica seja apresentada em sua complexidade inerente por meio do vínculo entre o coro de vozes e o caráter fragmentário do romance. Acredito que toda essa arquitetura se intensifica ao optar por jogar com alternâncias temporais e compor um relato vocacionado ao porvir.

La plus secrète mémoire des hommes preconiza uma literatura que se configura como um modo de fazer poético que supõe disponibilidade e atenção ao corpo, especialmente ao corpo negro, em relação ao mundo que o circunda, sujeitando-o às influências da imaginação e da colonialidade com o objetivo de implicar o real, em sua indizibilidade, na obra. Ao longo do livro, essa prática também é afirmada em seu espraiamento pelos mais diversos campos, especialmente dos vínculos, escolhas e acordos que formam o cânone literário e conformam a história da literatura “...preguiçoso demais para pensar e pensar em si mesmo através da literatura, escravizado demais aos prêmios literários, às lisonjas, aos jantares sociais, aos festivais, aos cheques..., pusilânime demais para ousar romper com o romance, através da poesia, através de qualquer outra coisa” (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 42, tradução nossa). A realidade é performada, nesse romance, mediante uma construção literária pautada em gêneros múltiplos que colocam a escrita em uma zona limítrofe, ameaçada pelo silêncio e pelo fracasso, mas que também deixa entrever uma realidade cuja potência escapa da apreensão pela representação histórica confiante de sua capacidade de dizer o que foi o real do passado. Alude-se aqui ao modo como a obra se estrutura: como já mencionado, constituída por vários personagens que geram uma alternância de vozes, a narrativa gravita em torno de diversas buscas espectrais que embaralham as categorias temporais de passado, presente e futuro com a predileção pela última. Por um lado, no romance temos Diégane Latyr Faye que narra suas buscas vitais: a da escrita e, sobretudo, a que empreende com a investigação acerca de Elimane e Le Labyrinthe de l’inhumain ao tentar encontrar os motivos das acusações do escritor africano enquanto uma fantasmagoria que atravessa grande parte da narrativa como ausência evocada, que não se encontra plenamente com o narrador e principal personagem. Por outro lado, temos a busca que o leitor empreende (e o próprio texto) pelo reconhecimento de seus personagens- construídos por uma multiplicidade de vozes - sendo que, a imagem final do livro, a que resta como desfecho, é inacabada. O diário, que compõe a primeira parte do romance, enfatiza a fragilidade do presente, que pode ser suscetível ao passado assombrado por fantasmas; por outro lado, a pesquisa histórica em arquivos, e o fato de o narrador e o personagem estarem compondo um arquivo, abre espaço para a retomada do processo de inquérito sofrido por Elimane, enquanto uma possibilidade de modificação da história da literatura e a formação do cânone, e também abertura para o porvir típico de todo arquivo que se projeta em um ato futuro de retrospecção. A fragilidade do presente permanece enquanto um temário sustentado até os últimos momentos do romance, mantendo-se enquanto possibilidade de abertura ao porvir sem que esse porvir seja o típico futuro diferente do que era o presente na modernidade.

E tudo isso ocorre em um romance que se construiu em torno da solução de um enigma e que utiliza a pesquisa histórica, especialmente a relação entre documentos e provas, para tentar estabelecer um veredito acerca das acusações de plágio do romance de Elimane e de seu posterior sumiço, mas que nunca estaciona nessa compreensão e se abre para o questionamento dos critérios que alicerçam o julgamento de valor acerca das obras. Apesar de utilizar como motor narrativo as pistas e a busca pela solução do enigma, o que o aproxima dos relatos policiais, ele não termina em suas últimas páginas com a apresentação de um desfecho claramente apresentável ao leitor após o inquérito, como ocorre nos romances policiais clássicos, cujo personagem mais conhecido é Sherlock Holmes, nem mesmo se encontra a composição de uma peça do hard-boiled, típica dos escritos de Raymond Chandler. Ao mencionar eventos históricos em que ocorreram a destruição em massa - como a Segunda Guerra Mundial, as ditaduras militares na América Latina, as guerras no continente africano -, a investigação atravessa o período pós-Segunda Guerra Mundial questionando a História ocidental como produtora de silêncios e violência, especialmente motivada por ações dos países centrais com implicações para nações de outros continentes.

Por isso, os termos finais do romance são tão sonoros, especialmente quando o personagem Diégane volta a assumir a voz do escrito e nota o fracasso de sua empreitada. Porém, agora, ao ler uma carta enviada por Siga D., em 1969, uma das que entrou em contato com T.C. Elimane, simula uma leitura e a apresenta ao leitor em uma voz feminina ao dizer que

durante anos, em minhas alucinações, me vi como estou agora, nesta sala, velha, escrevendo nesta mesa, num sentimento de leve tristeza. Interpretei essa visão como um sinal de que um dia conseguiria terminar o livro da minha vida depois de Le Labyrinthe de l’inhumain. Vi na minha tristeza aquela que prende alguns criadores quando terminam um trabalho que os exigia que fossem até o fim de suas forças. Enganei-me. Na realidade, e compreendo neste exato momento, esta visão não me mostrou terminando meu romance, mas esta carta. A tristeza que surge em mim agora não reflete meu sentimento pela conclusão de meu livro, mas por sua incompletude. Não vou terminar. Tenho cento e dois anos e o meu tempo acabou. Eu sinto falta do futuro. Assim termina todo adivinho: na nostalgia do futuro. Assim termina o vidente: na melancolia do porvir (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 416, tradução nossa).

Apesar do extenso romance, a sensação que se tem ao final da leitura é de ausência: uma obra fragmentada, inacabada, na qual proliferam diversos gêneros discursivos, além das histórias que se cruzam ao falarem do fracasso; na qual o próprio leitor, ao tentar capturar os protagonistas que se apresentam no relato, tem que seguir a pesquisa histórica e os impulsos detetivescos do narrador para poder dar conta do ato de leitura que a obra demanda. É possível então dizer que a busca fracassada, e todos os fracassos que assolam essa narrativa cheia de espectros, que levaram à consciência da perda da confiança no progresso histórico e nos critérios que alicerçaram o conceito moderno de História, desencadeiam fragmentos de um texto cujo todo não nos é totalmente conhecível. Sugere-se assim uma realidade histórica que somos incapazes de conhecer plenamente, cujos indícios de sua presença no romance são elaborados a partir dos hiatos e fraturas no texto. O real histórico emerge semelhante ao solicitado por Hayden White em sua leitura da crítica feita por Auerbach a um conceito de realidade enquanto produção de “uma imagem espelhada verbal de alguma realidade extraverbal” (WHITE, 1999WHITE, Hayden. Auerbach’s Literary History: figural Causation and Modernist Historicism. In: WHITE, Hayden. Figural Realism: Studies in the Mimesis Effect. The Johns Hopkins University Press, 1999. p. 87 - 101. , p. 93) e também como um específico caso de figuração no qual o empreendimento artístico deve ser percebido levando-se em conta a historicidade da obra. O debate acerca da apresentação da realidade em textos históricos deve ser percebido por meio do uso específico da linguagem, metáforas e figuras retóricas, como ele afirma. Esse romance, contudo, afasta-se da alegoria - pelo menos no modo como a alegoria tem sido geralmente compreendida no Ocidente, enquanto um termo utilizado para falar de outro - por estar mais próximo de restos e rastros encontrados por uma investigação histórica, mesmo que seja ficcional.

Emergem assim configurações do sensível que tensionam os limites dos modos de organização do real e revisitam, por um processo metonímico de diferença, a construção de um romance híbrido. Como um modo de intervir nas dimensões visíveis e legíveis da realidade, o romance gera leituras variadas a partir de temporalidades múltiplas, colocando em jogo os modos de narrar e enriquecendo o mundo mediante a implementação de cenas de dissenso - como aquelas onde os silêncios de Elimane são reafirmados enquanto parte de um mundo possível, assim como os questionamentos acerca dos rituais de celebração do mundo acadêmico - que asseguram “o conflito de vários regimes de sensorialidade” (RANCIÈRE, 2009RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Tradução: Mônica Costa Netto. São Paulo: Editora 34, 2009., p. 59). As múltiplas vozes suscitam possibilidades ante a referencialidade histórica destacada no romance pelo qual a experiência sugerida é lida em seus fragmentos, em sua incompletude, franqueando processos de leitura que transcendem os próprios limites da narrativa e a abrem ao devir. Enfatiza-se, mais uma vez, a disposição de futuro do relato, não apenas pelo aparecimento dessa categoria temporal, mas especialmente pelas fraturas presentes no romance devido à pesquisa em arquivo.

Ainda a última carta auxilia a entender a relação entre fragmentariedade e um futuro que não se condiciona à temporalidade moderna e, por isso, ainda é algum modo de continuar abrindo-se ao que virá a partir de seus rastros.

Mas é uma melancolia que ainda pode ser feliz. Tudo vai depender de você. Eu parto. Consola-me, já que darei um passo nas sombras, a ideia de que qualquer um, você cujo nome eu não sei, mas cujo rosto conheço, vai ler este livro, e talvez tirar algo dele. Eu não quero desaparecer completamente. Eu quero deixar esse rastro, mesmo que não seja completo. Essa é a minha vida (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 417, tradução nossa).

Uma vida que ao final se entrega como uma carta deixada ao futuro, que acolhe a disposição afetiva melancólica aproximando-a da felicidade e - tanto como conceito quanto pelas estratégias da escrita - que se abre ainda para a crítica aos alicerces da modernidade dos quais a História em si é uma das suas expressões, assim como a temporalidade moderna do otimismo do futuro. Volta ao tema do fracasso, do inacabamento, da incompletude que serve como uma das imagens centrais de todo o romance que incorpora muitos materiais que seriam externos, como as cartas que, gradualmente, vão se tornando preponderantes ao longo da narrativa.

Os fantasmas do passado que não passa estão ligados ao fracasso em diversas dimensões: o do personagem Diégane, em compreender a motivação final do silêncio de T.C. Elimane, e a do narrador, que mesmo com a alternância de vozes, fracassa em compor o romance esperado que pudesse elucidar a história e legitimar o valor literário do livro acusado de plágio. O fracasso e os fantasmas são assim modos de se contrapor ao otimismo da História, mas também da crítica ao autoritarismo e aos mecanismos de poder que fundamentam o silêncio de muitos, apagando as possibilidades de reinvenção humana. A forma romance também fracassa, e por isso continua, se reinventa e pode seguir adiante incorporando práticas externas a ela, como as últimas cartas enviadas por Madag, uma das vozes que entraram em contato com T.C. Elimane, e que também criou seu próprio arquivo privado. Também assolada pelo fracasso do entendimento, pede ao narrador para publicar seu caderno, e não uma obra de um romance por completo.

Vou esperar, finalmente, pela chegada de Madag. Não pude aceitar seu pedido. Publicar o que estava naquele caderno teria destruído seu trabalho, ou a memória egoísta que eu quero manter. Madag virá me ver uma noite para me responsabilizar, talvez para se vingar, eu sei; e seu fantasma, avançando em minha direção, sussurrará os termos da terrível alternativa existencial que era o dilema de sua vida; a alternativa diante da qual hesita o coração de quem é assombrado pela literatura: escrever, não escrever (SARR, 2021SARR, Mohamed Mbougard. La plus secrète mémoire des hommes. Paris: Editions Philippe Rey/Jimsaan, 2021. , p. 420, tradução nossa).

E assim termina o romance: na hesitação, no reconhecimento da impossibilidade de formar uma imagem final de todo o percurso de T.C. Elimane, referindo-se a uma personagem secundária, que está em dúvida em entregar um arquivo privado, mas que hesita, assim como o próprio gênero, e segue adiante incorporando elementos externos a ele para novas apresentações. E o fracasso, dos personagens, diz respeito a todos que sucumbiram ante à temporalidade moderna e aos passados que permanecem como feridas abertas em seu vínculo entre colonialidade e poder.

A opção por uma politização do tempo vocacionada à crítica da linearidade temporal moderna ocorre por meio do questionamento da categoria futuro em assimetria aos referenciais típicos da modernidade. Ao mesmo tempo, essa politização do tempo não aposta na opção por uma temporalidade pré-moderna que grassou enquanto opção retórica efetuada por escritores que não estavam vivenciando a espacialidade central europeia ou norte-americana. Há uma diferença da proposta de escrita de La plus secrète mémoire des hommes em relação às produções latino-americanas, admiradas por Sarr, da segunda metade do século XX nomeadas como realismo maravilhoso da autoria de Gabriel Garcia Márquez em Cem Anos de Solidão e Carlos Fuentes em La muerte de Artemio CruzFUENTES, Carlos. La muerte de Artemio Cruz. Buenos Aires: Alfaguara, 2008. Enquanto essas últimas investem na elaboração da narrativa coesa em que se figura a singularidade temporal da espacialidade latino-americana de maneira circular como um modo de investir na politização do tempo, aquela acolhe a modernidade em seus rastros e restos em uma poética do fragmento que critica as fundações epistemológicas da História moderna. Evita-se expor um tempo arcaizante que se pretende originário e original. Ou seja, sugerir a existência de um tempo próprio e particular latino-americano que se contraponha ao dos espaços centrais em sua maneira linear e homogênea da temporalidade moderna. De modo abrangente, algumas produções do continente africano também investiram nessa perspectiva, como muitos dos romances de Mia Couto, dentre os quais destacaria Terra Sonâmbula.

Esse romance mais recente de Sarr, de modo contrário aos romances citados, acolhe a tendência contemporânea de escrever obras que não se sabe classificar muito bem, possuidoras de digressões autorais, cartas, entradas de diários e utiliza-se do ensaio para enfatizar suas leituras e opiniões políticas. Há muito de não ficção, especialmente pelo embaralhamento entre autor e narrador, assim como o uso de referências acerca da vida de Yambo Ouologuem que ganham força de desestabilização do discurso devido à dedicatória de La plus secrète mémoire des hommes. Não é tão fácil atribuir a esse livro a definição de romance devido ao seu hibridismo típico como uma espécie de grande quimera resistente à ficção, uma marca característica do romance enquanto gênero moderno, mesmo que desde Bakhtin trabalhemos com o caráter onívoro do romance. Dessa maneira, Sarr parece ir ao encontro do que está sendo produzido no século XXI e um tanto quanto deveria interessar aos historiadores: a presença de documentos por narrativas que usam uma amplitude de materiais, no caso, dados de arquivos e reportagens jornalísticas, distanciando-se, ou não somente, investindo na invenção de acontecimentos, mas também evitando opções para legitimar o que “realmente” aconteceu. Por fim, não estamos diante de uma prosa que invista em procedimentos autoficcionais com a mistura do nome do autor e do narrador nem mesmo a presença marcante dos fragmentos que seriam possivelmente identificados enquanto biográficos.

Retomo, então, com o intuito de certo fechamento do argumento, a perspectiva do apoderamento por parte da literatura de referenciais da pesquisa histórica, e de gêneros distintos do romance - o ensaio e a carta - que dão um tom particular a essa prosa de ficção em sua íntima conexão com a história, a pesquisa em arquivos e a crítica ao progresso. Aspecto a ser destacado é a relação com a discussão acerca da temporalidade, especialmente a valorização da categoria temporal do futuro, sem apostar na linearidade histórica que projetaria os indivíduos a um lugar redentor do presente. O ganho de singularidade dessa prosa de ficção se amplia se atentarmos para a novidade de que evita a domesticação do passado, associando produção do conhecimento, critérios avaliativos para a literatura e racismo, porém evitando a descrição analítica realizadas pelos pós-coloniais e decoloniais. Apostar no performativo e compor uma prosa que tende à negação das convenções típicas do romance do século XIX, faz com que o relato se aproxime da prática dos historiadores, especialmente pela valorização da pesquisa em arquivos e a exposição da prova coletada após a investigação.

References

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INFORMAÇÕES ADICIONAIS

  • Endereço para correspondência

    R. São Francisco Xavier, 524 - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ,Brasil
  • Financiamento

    Não se aplica
  • Modalidade de avaliação

    Duplo-cega por pares.
  • Aprovação no comitê de ética

    Não se aplica.
  • Contexto de pesquisa

    O artigo deriva de discussões ocorridas com estudantes de Iniciação Científica com bolsas de pesquisa da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
  • Preprint

    O artigo não é um preprint.
  • Disponibilidade de dados de pesquisa e outros materiais

    “Não se aplica”.
  • 1
    Caminho sugestivo para o trato com essa proposta é a tese Ramos (2018RAMOS, André da Silva. Machado de Assis e a experiência da história: climas e espectralidade. 2019. Tese (Doutorado em História) - Programa de Pós-Graduação em História do Departamento de História do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal de Ouro Preto, Ouro Preto, 2019. ).
  • 2
    Uma leitura sugestiva desse romance de Sarr associando-o ao tema do mal-estar civilizacional com o aporte teórico de Freud e Franz Fanon para pensar a questão da curadoria não-ocidental pode ser encontrado em Thuin (2022THUIN, Antonia. La plus secrète mémoire des hommes: modos de usar e de pensar a produção contemporânea não ocidental. Paper kindly provided by the author. ).
  • 3
    Também pode-se encontrar essa tendência em romances dos últimos anos. Uma citação possível é a de Rodrigo Rey Rosa em El Material HumanoREY ROSA, Rodrigo. O Material Humano. Tradução: Josely Vianna Baptista. São José dos Campos: Benvirá, 2011. . Sobre Rey Rosa ver Rodrigues Leite (2018LEITE, Guilherme Rodrigues. Ficções de arquivo e autoritarismo de Estado na América Latina: Uma leitura de “El material humano”, de Rodrigo Rey Rosa. 2018. Dissertação (mestrado em História) - Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018. )

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Flávia Varella - Editora-chefe Fabio Duarte Joly - Editor executivo

Disponibilidade de dados

“Não se aplica”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2022
  • Revisado
    26 Dez 2022
  • Aceito
    17 Jan 2023
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