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“O copista de luxo”: Fabio Morábito e a tradução

“O copista de luxo”: Fabio Morábito and the translation

Resumo

Esta é uma conferência do escritor e poeta Fabio Morábito sobre a tradução. Inédita, mesmo na sua língua de escrita original, foi proferida em dezembro de 2022 no Instituto de Investigaciones Filológicas da Universidad Nacional Autónoma de México. O fôlego do autor perscruta com grande lirismo o lugar ocupado pelo tradutor, nos seus vínculos e contrastes com o teatro, a escrita literária, a memória, a aquisição da linguagem, a poesia e a emoção poética. E vai interligando assuntos em aparência distantes, como o histrionismo de um ator, a leitura de um manual de cartas comerciais, a risada irreprimível diante de uma imitação bem-sucedida, o caminho da traição e das pedras, o cálido sorriso de uma mulher, um jovem militar em ascensão, um monge copista, a emboscada de uma dança propiciatória, o lugar mais recôndito da selva e traduções recentes do grego arcaico.

Palavras-chave:
Fabio Morábito; tradução poética; tradução literária; tradutor de poesia; poeta

Abstract

This is a lecture on translation given by the writer and poet Fabio Morábito. Unpublished, even in its original written language, the lecture was delivered in December 2022 at the Institute of Filological Research of the Universidad Nacional Autónoma de México. With great lyricism, Morábito scrutinizes the place occupied by the translator, in his links and contrasts with theater, literary writing, memory, language acquisition, poetry and poetic emotion. The author connects seemingly distant subjects, such as an actor's histrionics, the reading of a business letter manual, the irrepressible laughter at a successful imitation, the path of betrayal and stones, the warm smile of a woman, a young military man on the rise, a copyist monk, the ambush of a propitiatory dance, the deepest part of the jungle, and recent translations from ancient Greek.

Keywords:
Fabio Morábito; poetic translation; literary translation; poetry translator; poet

Resumen

Esta es una conferencia del escritor y poeta Fabio Morábito sobre la traducción. Inédita en su idioma original, fue dictada en diciembre de 2022 en el Instituto de Investigaciones Filológicas de la Universidad Nacional Autónoma de México. El aliento del autor escruta con gran lirismo el lugar que ocupa el traductor, en sus vínculos y contrastes con el teatro, la escritura literaria, la memoria, la adquisición del lenguaje, la poesía y la emoción poética. Y conecta temas aparentemente lejanos, como el histrionismo de un actor, la lectura de un manual de cartas comerciales, la risa incontenible ante una imitación lograda, el camino de la traición y de las piedras, la cálida sonrisa de una mujer, un joven militar en ascenso, un monje copista, la emboscada de una danza propiciatoria, lo más profundo de la selva y traducciones recientes del griego antiguo.

Palabras-clave:
Fabio Morábito; traducción poética; traducción literaria, traductor de poesía; poeta

Apresentação

Esta é a tradução da conferência proferida em espanhol pelo escritor e poeta Fabio Morábito em dezembro de 2022 no Instituto de Investigaciones Filológicas da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), inédita até hoje, mesmo em sua língua original. Intitula-se “O copista de luxo” e situa a figura do tradutor de poesia como alguém que se encontra a meio caminho do copista, a meio caminho do escritor. Nela o autor perscruta com grande lirismo o lugar ocupado pelo tradutor nos seus vínculos e contrastes com o teatro, a escrita literária, a memória, a aquisição da linguagem, a poesia e a emoção poética.

Como em outros textos de Fabio Morábito, em “O copista de luxo” existe um trabalho composicional fortemente vinculado com o ritmo e o fôlego poético. Temos, assim, a impressão de escutá-lo, não apenas por se tratar de uma conferência e em função das construções que tipificam a fala. O texto dá-nos a oportunidade de uma escuta, que não é a do dia a dia, senão aquela que se faz sob o ritmo de um estilo particular e, por isso mesmo, poética. Parece ser que conversamos com o escritor. Mas na qualidade de leitores-ouvintes, estamos do lado do silêncio: aquele necessário para a escuta. Somos, então, conduzidos a assuntos em aparência distantes, como o histrionismo de um ator, a leitura de um manual de cartas comerciais, a risada irreprimível diante de uma imitação infantil bem-sucedida, o caminho da traição e das pedras, o cálido sorriso de uma mulher, um jovem militar em ascensão, um monge copista, a emboscada de uma dança propiciatória, o lugar mais recôndito da selva e as últimas traduções do próprio Morábito a partir do grego arcaico. À parte o papel da memória, o que entrelaça tudo isso e nos conduz de um assunto a outro é a poesia mesma. Sua magia reside nesse caráter intraduzível e que se apresenta, à maneira de uma conversa, como algo irrepetível.

A língua falada em “O copista” está longe de ser inculta. Revela-nos a grande erudição do autor, perpassada pela simplicidade da conversa que dispensa formalidades e é, ao mesmo tempo, comovedora. Seu leitor sente-se acolhido, ainda que não compreenda a dimensão dos diálogos que vêm à tona. Os explícitos, com Clara Malraux, Cervantes, Jaime Gil de Biedma, Marcel Proust, Safo, Arquíloco, Estesícoro. Os subentendidos, oriundos do campo teórico da tradução, e que nos oferecem, com grande leveza, os posicionamentos de Fabio Morábito a respeito de debates antigos, como a (in)fidelidade do tradutor, a conservação do espírito ou da letra, a especificidade das traduções dos poetas, a frustração e tristeza diante daquilo que não pode chegar intacto na língua da tradução, a gramática universal ou inata, a necessidade das retraduções ao longo do tempo, etc.

“O copista de luxo” também traz consigo os intertextos com a própria obra de Fabio Morábito - poemas, ensaios, contos e insights - no que tange à tradução, ao bilinguismo e à reflexão sobre o idioma materno.1 1 Embora seja uma aproximação que considero embrionária, parte desses intertextos aparece rastreada em Grotto, L. “Traduzir o ritmo: Octavio Paz e Fabio Morábito”, 2017. Este, surpreendentemente, não é, para ele, nem o italiano, língua dos pais e, mais tarde, a de Milão, cidade onde cresceu a partir dos três anos, tampouco é o espanhol, língua que elegeu para a sua escrita, aprendida a partir dos 15, quando se mudou para o México. A língua materna, portanto, em vez de ser a da infância ou a língua eleita, é a poesia, mãe de todas as línguas, “verdade intacta” que relativiza cada um dos idiomas, acentuando, estirando e levando-os ao máximo de sua “superfície rítmica e sonora” (Morábito, 2013MORÁBITO, Fabio. “Traduttore truffatore”. Caracol, São Paulo, v. 1, n. 5, p. 34-42, 2013. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/69240 . Acesso em: 28 set. 2023.
https://www.revistas.usp.br/caracol/arti...
, p. 38). A escuta do ritmo, ou do fôlego poético, equivaleria à escuta da poesia, além de ser um retorno à origem da própria escuta. A poesia, e consequentemente a tradução de poesia, mais do que a palavra ou a compreensão de um sentido, seriam o convite à escuta de um som: algo que associa coisas aparentemente distantes e ressoa como um fundo primeiro ou primigênio.

Em “O nado do tradutor”, ensaio que também tive a alegria de traduzir para o português, Morábito explica-nos: “A poesia é nostalgia de outras línguas, que representa por sua vez a nostalgia e o anseio de sermos ouvidos em profundidade. Nesse sentido, a poesia imita a tradução, se apresenta como uma tradução e, como esta, constitui um segundo nascimento da língua, sua emancipação do estreito cerco nativo” (Morábito, 2023MORÁBITO, Fabio. O nado do tradutor. Tradução de Livia Grotto, Cadernos de tradução, Florianópolis, v. 43, n. 1, p. 1-9, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/86358 . Acesso em: 28 set. 2023.
https://periodicos.ufsc.br/index.php/tra...
, p. 8).

Poesia e tradução seriam, nesse sentido, formas irmanadas que se acercam a um mesmo desejo, o de um nascimento segundo, quando nos libertamos das amarras da língua que herdamos do núcleo familiar e da cultura. No nosso caso, o de falantes de português do Brasil, creio que “O copista de luxo” oferece-nos esse convite à liberdade através do lirismo conversacional no qual nos instala. E nele podemos escutar o som primigênio da poesia, quem sabe mais, inclusive, do que no original em espanhol. Não porque se veja nesta tradução as qualidades da boa tradução, tal como descritas por Morábito, mas em virtude da grande distância existente entre a nossa língua falada e a língua escrita padrão. Nesse sentido, e em consonância com a reflexão de Morábito em torno do ritmo e do fôlego poético, procurei a trilha desse modo de significar que se constrói como continuidade e não é apenas sentido. Tal como também nos ensinava Henri Meschonnic (2010MESCHONNIC, Henri. Poética do Traduzir. Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010., p. XXXII), é com o ritmo que se ouve não apenas o som, mas o assunto, a “narração da significância”, “a semântica prosódica e rítmica”. O tom da fala, presente no original em espanhol de “O copista”, ao recompor-se no português do Brasil, cria, nesse sentido, um som, que pode ser música ou ruído, segundo a concepção de cada um. Ele se faz mais audível na tradução que o leitor tem à sua disposição graças à pontuação.

Última consideração, que pode eximir-me da árdua tarefa do tradutor, ofício que não me cabe, mas sobre o qual pude refletir, nos seus vínculos com a escrita literária. O meu primeiro contato com a obra de Fabio Morábito foi uma sugestão da querida amiga Miriam V. Gárate, a quem agradeço publicamente nestas páginas da revista Alea. Aprofundou-se durante o pós-doutoramento que realizei na FFLCH-USP entre 2015 e 2018 sob a supervisão da Profa. Ana Cecilia Olmos. Fabio Morábito era, então, um dos nomes de escritores tradutores que me interessavam pelo fato de sua prática não se limitar à tradução, mas espraiar-se a enunciações subjetivas, nas quais existia uma autofiguração do escritor como tradutor, apontando, simultaneamente, para um fazer poético enunciado pela perspectiva da tradução e dos questionamentos suscitados pela prática tradutória. Considero que os outros escritores indagados por essa relação e sobre os quais me detive - Jorge Luis Borges, Ricardo Piglia, Alfonso Reyes, Octavio Paz e Juan Villoro - podem ser reunidos por mais de um critério, mas o principal deles parece ser o da diferença daquilo que é próprio, percebido por meio do embate com as línguas e culturas consideradas como alheias.2 2 Para uma visão geral a respeito dos autores citados, cf. Grotto, L. “Escritores tradutores: diálogos literários e culturais”, capítulo incluído em Temas para uma história da literatura hispano-americana, (2022). Fabio Morábito, entretanto, afasta-se dessa constelação, pois o papel da nacionalidade ou a inclusão em sistemas literários nacionais lhe são pouco pertinentes. Pode-se dizer que o capricho de traduzir seus textos presta-se a usufruir desse lugar do tradutor para, quem sabe, por intermédio dele, encontrar algumas respostas.

Este trabalho de tradução vai dedicado a um grande copista de luxo: Sérgio Molina. Foi ele que me facilitou o contato com o escritor.

Tradução

O copista de luxo, de Fabio Morábito

Não me lembro onde li ou de quem ouvi dizer que o tradutor é um copista de luxo. A princípio, pareceu-me uma frase redutora e injusta, mas depois pensei que a palavra “luxo” dava pé a um amplo leque de virtudes que contrariam o rebaixamento transmitido pela noção de “copista”. Imaginei um diálogo de conto ou de romance no qual um homem diz a uma mulher: “Você é uma esplêndida tradutora”, e ela responde: “Sou apenas uma copista de luxo”, com uma modéstia que, em vez de reduzir a dignidade de sua profissão, a realça. Nessa noção de luxo aberta a infinitas possibilidades, eu incluiria, entre outras, a do ator. Duvido que alguém sem certo dom histriônico possa ser um bom tradutor, isto é, sem a capacidade, como afirma Clara Malraux, de perder e depois recuperar sua identidade, ou seja, de mergulhar plenamente na experiência alheia preservando a própria personalidade. Copista, então, e ator. É uma combinação estranha. Nada contraria mais a humildade e o anonimato do copista do que a índole protagonista e muitas vezes narcisista do ator. Mas o tradutor, de certa forma, é o especialista em unir extremos, em ser a ponte entre mundos distantes e até antagônicos, e daí certa aura fantasmagórica que envolve a sua figura, e que explica, entre outras coisas, porque por muito tempo os editores de livros não sentiram a necessidade de dar-lhe os créditos, como se o tradutor não existisse, ou existisse apenas pela metade.

Não lembro mais qual escritor, com fama um tanto quanto estabelecida em seu país, decidiu parar de escrever para se dedicar inteiramente à tradução. Quando lhe perguntaram o motivo, respondeu que encontrava no exercício de traduzir os mesmos estímulos criativos que eram típicos do trabalho de um escritor. Não concordo inteiramente, mas é inegável que a tradução deve ser entendida como uma atividade artística, mesmo quando exercida em campos tão prosaicos como a tradução de um manual de eletrodoméstico, porque nem nesse campo, e quase em nenhum outro, podemos prescindir de certo esmero estilístico. O estilo, que é a procura por uma expressão verbal que não se limita a comunicar determinados dados e fatos, mas que torna visível a própria comunicação, colocando-a em primeiro plano, não está ausente de nenhum espaço da interação humana. Quando na rua alguém pede alguma informação, dispara, em nós, um desejo de clareza e precisão que já é um germe de estilo. Um livro que há muitos anos me fisgou desde a primeira página foi um manual para escrever cartas comerciais. Não sei como caiu em minhas mãos. Tratava-se de um grande número de exemplos de cartas que recobriam todas as ações envolvidas numa transação comercial: solicitar, persuadir, ilustrar, objetar, avisar, detalhar, tranquilizar, reclamar, parabenizar, etc. As cartas abordavam cada um desses assuntos com um decoro estilístico que fazia esquecer que o objetivo delas era ganhar dinheiro. Eram sucintas sem ser grosseiras. Gostei especialmente de certas fórmulas de saudação e despedida, desde o sucinto “Tenho o prazer de informar que…”, até o barroquíssimo “Permita-me desviar sua valiosa atenção para participar-lhe…”. Desviar sua valiosa atenção! Estou seguro de que Dom Quixote teria usado essa fórmula muitas vezes se a tivesse conhecido. Jaime Gil de Biedma, um dos melhores poetas espanhóis do século passado, acreditava que um poema deveria fugir de toda imprecisão expressiva e aspirar à concretude de uma carta comercial. Poderíamos dizer, ao contrário, que uma carta comercial, para ser persuasiva, deve evitar uma atitude cartorial seca, cuidando da economia, do ritmo da apresentação e de certa fragrância linguística que demonstre um compromisso não exclusivamente lucrativo por parte de quem a escreve.

O sugestivo título do artigo que citei de Clara Malraux é “Tradução e cumplicidade”. O tradutor, quando é bom, é um cúmplice, mas sabemos que muitas vezes um cúmplice se torna um traidor, e o tradutor não escapa a essa possibilidade. Na verdade, aqueles que acreditam que a tradução de poesia é impossível acreditam que nela o original é sempre traído. Estou de acordo, com a única diferença de que, a meu ver, apenas certo grau de traição permite que uma tradução poética seja válida. Acho que a traição não exclui a lealdade. Você pode trair alguém para descobrir uma forma mais pessoal e íntima de ser leal, contrariando os princípios morais que estão na boca de todos. A mesma coisa acontece com um texto literário. Ser fiel a ele é muito difícil, a começar pelo fato de que ao traduzir se deve ser fiel duas vezes, ao texto que se traduz e ao outro, o texto da tradução, e quase sempre, principalmente em poesia, são fidelidades difíceis de conciliar. Deve-se, portanto, escolher o caminho da traição e, outro paradoxo, ser fiel a esse caminho até o fim, em busca dessa fidelidade ao espírito do texto que, se alcançada, nos permitirá certa liberdade criativa, a mesma daquele escritor que citei algumas linhas antes, suficiente para deixar de escrever os próprios livros e dedicar-se a traduzir os de outros.

Até aqui, vê-se que tudo o que venho dizendo sobre o tradutor, a começar pelo que Clara Malraux diz sobre o fato de ele ser capaz de mergulhar totalmente na experiência de outra pessoa preservando sua própria personalidade, pode ser perfeitamente aplicado ao escritor. Porque um tradutor é antes de tudo um escritor. E o que faz um escritor senão mergulhar completamente na experiência alheia, a de seus personagens, mas reservando para si uma saída de emergência para não perder o controle de sua matéria, isto é, para não se perder no inverossímil e gratuito? Acredito que esta, justamente, seja a principal função do estilo, a de exigir o tempo todo do escritor uma coerência entre todas as palavras, garantindo-lhe aquele empurrão para a superfície que o impedirá de perecer no fundo de suas imersões. Mas se todo tradutor é um escritor, todo escritor também é um tradutor. Proust disse: “A tarefa do escritor não é imaginar, mas perceber. O artista é essencialmente um escriba”. É isso o que faz um tradutor: perceber e imitar o que percebe. O que é, no fundo, a tarefa do ator: refazer com seus gestos os gestos dos outros, representar outro corpo com seu próprio corpo. A imitação está no fundo da ideia do tradutor como copista de luxo, onde luxo quer dizer que não é um copista que copia, mas que imita, e parece-me que a imitação é algo profundamente subestimado entre nós. Se pensamos na facilidade com que as crianças imitam o que veem, parece inexplicável que esse dom, em vez de ser cultivado e aperfeiçoado, seja deixado à própria sorte, como se fosse algo inferior e desprezível. Essa risada irreprimível que a imitação bem-sucedida de uma voz ou de alguns gestos produz em todos nós deveria ser examinada com atenção. É o produto de uma revelação misteriosa, de uma aparição mágica, muito próxima da emoção poética. Pode até ser o núcleo dessa emoção. Porque, assim como na pessoa do imitador a pessoa imitada se recorta de repente, numa fusão extraordinária que nos causa espanto, a emoção poética consiste na junção de dois planos de sentido ignorados e que de repente se encaixam de modo inesperado. Quando um caçador imita a voz de um animal para atraí-lo para a emboscada ou quando numa dança propiciatória imita, passo a passo, a maneira como se move, não está apenas executando um método de caça, está se transformando noutro ser, compenetrando-se com a natureza de modo inédito, quase podemos dizer que foi à caça desse outro eu que carrega consigo, oculto e adormecido. É o que faz o tradutor de um romance ou de um poema, imitando passo a passo os movimentos do autor que traduz para atraí-lo para a emboscada de seu idioma, gerando um texto que já estava ali e só esperava o momento certo para se manifestar.

Vou abrir um parêntese para contar algo que não tem a ver com a tradução, mas com a memória, e confio que se verá a conexão entre uma e outra, mais especificamente, com a questão de por que uma lembrança é mais lembrança quando se apresenta aparentemente desvinculada de tudo. Quando eu tinha cinco anos, minha mãe visitava de vez em quando uma amiga mais velha que se chamava Ada, esposa de um soldado de alta patente, acho que coronel. A senhora Ada convidou minha mãe para um desfile militar e desse evento só tenho a imagem do momento em que o coronel chamou um jovem subordinado para apresentá-lo à esposa. Lembro-me vividamente da atitude militar do jovem, que se pôs em posição de sentido diante da senhora Ada e se inclinou para beijar-lhe a mão, e o gesto dela de estender a mão com um sorriso cálido, quase afetuoso, enquanto o coronel observava satisfeito o ato de deferência do jovem soldado. Minha mãe está apagada nessa cena; só sei que está ao lado de Ada, e eu, claro, estou ao lado dela. Não me lembro se o jovem soldado também beijou a mão da minha mãe, embora seja provável que sim. Pergunto-me por que essa lembrança ficou gravada em mim. Talvez tenha sido a expressão de Ada, o sorriso com que acompanhou o gesto de oferecer a mão, gesto a que devia estar acostumada devido à patente do esposo. Existia naquele sorriso a viva curiosidade de conhecer o jovem subordinado que o marido teve a amabilidade de lhe apresentar, seguramente por se tratar de alguém que o coronel estimava, um jovem que estava ascendendo na carreira militar, dono de uma energia evidentemente transbordante que se manifestou na forma de se colocar em posição de sentido diante da esposa de seu superior, com um sorriso cuja amplitude harmonizava-se perfeitamente com o sorriso da amiga de minha mãe. O que não daria eu para ver uma foto recente daquele homem e saber o que a vida fez dele; se foi promovido com êxito e com o brio que cada gesto seu transmitia naquela manhã, ou se, ao contrário, não ascendeu, tornando-se um militar de pouca relevância! Se minha mãe estivesse viva, perguntaria a ela sobre o desfile e sobre Ada; quantos anos tinha a amiga, como e onde a conheceu, se era uma mulher bonita e distinta como aparece na minha lembrança, se ela se lembrava do jovem subalterno que lhe beijou a mão e se ele também a tinha beijado. Mas minha mãe está morta; Ada também está morta, seu marido, o coronel, está morto, e é provável que o jovem soldado também esteja morto. Fiquei sozinho com essa lembrança e às vezes duvido de sua veracidade. Porque quando morre uma pessoa próxima, morre a possibilidade de entender alguns fatos de nossa vida que essa pessoa poderia ter-nos ajudado a entender, pois vivenciou-os conosco; podem ser eventos secundários que, no entanto, por algum motivo adquiriram um significado especial em nossa memória, sobretudo depois que a morte dessa pessoa tornou impossível lançar sobre eles uma luz e um olhar diferente do nosso, um olhar que não teria apenas nos assegurado uma compreensão melhor, mas a certeza de que aconteceram de verdade.

Considerei esse episódio porque o tradutor enfrenta como ninguém o caráter aleatório e fragmentário do escrito. Traduzir, que é dar conta de cada linha, de cada palavra e até de cada sinal de pontuação de um texto de outra língua, é algo semelhante a mergulhar numa lembrança remota, desvinculada de um antes e de um depois, onde todos os elementos têm o mesmo grau de hierarquia. Se traduzir é trazer à tona o mesmo fato sob outra forma de consciência, ou seja, em outro idioma, então traduzir é como lembrar, e ao mesmo tempo que é uma lembrança que nos obceca porque aparece desligada daquilo que poderia prover-lhe uma sólida razão de ser, um texto que traduzimos pode ser visto como o fragmento que restou de um texto maior que se perdeu, e daí o seu hermetismo substancial. Aqui, alguém poderia objetar que a mesma coisa acontece com o escritor, que até que não ponha o ponto final no texto, avança sem notar as próprias pausas. Mas não é assim. Quando escreve, o escritor não está realmente sozinho com suas palavras, porque o que o faz avançar é algo que ultrapassa as palavras, é um impulso no qual se misturam o ritmo, certa intenção de conteúdo e a sensação do efeito que quer plasmar na página. As palavras, por assim dizer, vêm obedientes a esse impulso, que é o verdadeiro propulsor da escrita; de certo modo, o escritor deduz cada frase de um todo que já tem na cabeça e por isso está sempre um pouco à frente das palavras que escreve; o que explica a impaciência característica do ato de escrever, pois o escritor está sempre esperando que suas próprias palavras o alcancem. O tradutor não corre esse risco; está ali para dar conta de cada palavra do autor, avança pedra após pedra por um caminho já plasmado e, como todo copista, mesmo que seja um copista de luxo, está atrasado em relação ao que as palavras constroem. Isso produz nele a sensação de estar diante de um texto permanentemente inacabado. É a mesma situação de quem guarda a lembrança de um episódio que o obceca porque perdeu o significado em relação ao resto de sua vida. Sabe que esse significado existe, porque se não essa lembrança não estaria a toda hora aflorando em sua consciência, e por isso lamenta a ausência daquelas pessoas que poderiam ter-lhe dado uma pista para encontrá-lo. Mas também intui que essas pessoas não poderiam ajudá-lo de verdade, porque o feitiço que determinado episódio do passado produz em nós não depende tanto das circunstâncias que o tornaram possível, mas do fato de ter sido reduzido a um pedaço que não tem relação com nada, como um pedaço de madeira que boia no mar como o único vestígio visível do naufrágio de um barco. Da mesma forma, um tradutor costuma receber uma ajuda minguada do autor que está traduzindo quando solicita esclarecimentos sobre o significado de uma palavra, de um trecho ou de um texto inteiro. Afinal, quanto pode ajudar o autor se, na realidade, pelo que acabei de dizer, este escreveu pela metade o que escreveu, recolhendo pelo caminho as palavras que estavam ali, servidas de mão beijada, e marcando, com cada uma delas, um sulco novo, uma nova direção, um caminho inexplorado? Sempre em frente, sempre pisando firme, sempre no caminho certo. Como é fácil ser autor, queixa-se intimamente o tradutor! Como é fácil criar! O difícil é escrever, que é o que ele vem fazendo, ou seja, ponderando cada palavra, ajustando o peso de cada uma sem sair do sulco traçado!

Recentemente, escrevi um conto chamado “Frade Ruperto”, que se passa num mosteiro medieval. O narrador é um monge copista. Ele e alguns colegas passam de seis a oito horas por dia copiando manuscritos. É um trabalho ingrato: o frio no inverno, o calor no verão, a postura curvada que martiriza o pescoço e as costas, o contínuo movimento ocular do manuscrito ao pergaminho, tudo conspira para azedar o temperamento dos monges. Eles são consolados pelo pensamento de que cada pergaminho copiado é uma oração a Deus, que lhes abrirá as portas do céu ao morrerem. Nesse grupo de mal-humorados perenes existe uma exceção: Frade Ruperto, cujo rosto, sempre sorridente, harmoniza com a sua aparência fresca e a postura ereta. O narrador se pergunta como seria possível esse homem ter permanecido tão elegante, ao contrário de seus colegas artríticos. Finalmente adivinha o segredo: Frade Ruperto não sabe ler nem escrever; consegue copiar um manuscrito porque imita os signos das letras, mas desconhece seu significado. A rigor, é um desenhista, não um copista. Uma noite, secretamente, o narrador consegue o maço de pergaminhos copiados por Frade Ruperto e não só descobre que não há erros, como seria de se esperar de um analfabeto, mas que o traço da sua letra é primoroso, mais próximo de um artista do que de um amanuense. Deduz o que ocorre: Frade Ruperto, estritamente falando, não copia um manuscrito; dono de uma memória visual excepcional, captura-o num relance, guardando-o em sua mente, de onde o desfia, signo após signo, sem a necessidade de fazer com a cabeça aquele vai-e-vem permanente do manuscrito à página, culpado pela má postura dos demais copistas e, em última instância, pela saúde debilitada que têm. O segredo de Frade Ruperto reside no seu analfabetismo, que o salva do cárcere das palavras e libera sua mente para abrir-se à beleza da pura caligrafia. Assim, Frade Ruperto se relaciona com os manuscritos como um escritor se relaciona com o que escreve, atravessando as palavras sem se afincar, sob pena de deter o impulso inventivo que pertence mais ao ritmo do que à letra. O narrador do conto se pergunta se esse dom do frade vem de Deus ou do diabo, e neste ponto deixo o conto para o eventual leitor que queira descobri-lo por si mesmo. O que quero sublinhar é o caráter de fragmento, de pedaço sem continuidade e de lembrança remota com que um texto sempre se apresenta aos olhos de quem o traduz. Ao contrário do leitor e do próprio autor, que são levados pela mão do texto e seguem o ritmo que este lhes impõe, o tradutor caminha contra a corrente, pisando em cada pedra do leito do rio. Por isso se diz que o tradutor é o verdadeiro leitor de um texto, mais do que aquele que o criou. Talvez lhe coubesse melhor a definição de lavrador do texto, implacável lavrador. Sulco após sulco, indo e vindo pela trama, está sempre onde está, nem um passo a mais, nem um passo a menos; e nisso reside, parece-me, a tristeza de traduzir. Sim, porque a meu ver, no ato de traduzir, ao lado de satisfações inquestionáveis, existe um elemento de tristeza, de frustração sutil e de insuficiência. Mas isso seria assunto para outra conferência, por isso deixo apenas anotado.

Pude perceber mais claramente essa condição de dolorosa fidelidade ao sulco traçado quando, recentemente, traduzi 60 poemas gregos arcaicos (Safo, Anacreonte e companhia) que, como se sabe, chegaram até nós quase todos num estado muito incompleto. Como não sei nenhuma palavra do grego, contei com a ajuda de Bernardo Berruecos, amigo e colega de instituto, de quem partiu a ideia de que eu traduzisse os poemas. Ele também os traduziu, usando uma abordagem que chamaremos por conveniência de filológica ou literal, ao contrário da minha, que também chamaremos de poética por conveniência. Contando com sua tradução e assessoria, e com outras traduções existentes, elaborei as minhas, que aparecerão ao lado das dele para que o leitor avalie a dupla faceta da tradução de cada poema: aquela que o disseca rigorosamente em seus elementos, que é a da aproximação filológica, e a que aspira a recompor com a nossa inteligibilidade cotidiana, a do nosso aqui e agora, ou seja, a que aspira a compor um novo poema na nossa língua. A partir dessas duas vertentes diferentes e quase opostas da tradução, deparamos com o mesmo, que é o caráter truncado dos poemas, muitas vezes reduzidos, devido à deterioração dos papiros, a meros resíduos dos originais. Não posso deixar de imaginar que se Safo e Arquíloco ressuscitassem e vissem o estado em que suas criações circulam entre nós, poderiam processar os editores, argumentando que esses pedaços inacabados não os representam, ao contrário, os denigrem. Receio que seria inútil dizer-lhes que nosso gosto literário é muito diferente daquele que prevalecia na Grécia dos séculos VII, VI e V a. C.; que nós, ao contrário dos gregos daquela época, adoramos tudo o que é fragmentário, tudo o que é implícito, o que é dito nas entrelinhas; que tendemos a fugir do que é categórico e unívoco, sendo cativados pelo que somente é indicado e sugerido e, por isso, seus poemas nos parecem, no estado em que estão, maravilhosamente atuais, maravilhosamente vivos. Duvido que entendessem, e mesmo que entendessem, se recusariam a ser reconhecidos como os autores desses farrapos poéticos, como talvez os qualificassem, dessas composições esfiapadas e pueris. E não poderíamos nos opor. À sua maneira, estariam certos. Quanto se preservou, no estado em que se encontram os poemas, do espírito das pessoas que os escreveram? Quanto refletem seus verdadeiros sentimentos e paixões? Nunca saberemos. Quando traduzimos ocorre inevitavelmente uma usurpação, uma distorção do sentido original e um maior ou menor desconhecimento da personalidade do autor. Sem essa usurpação não poderíamos entender nada da literatura escrita em outras línguas e em outras épocas, muito menos apreciá-la. O Frade Ruperto do meu conto leva essa situação ao extremo. É um notável copista porque não entende uma só palavra dos manuscritos que copia. É provável que se lhe dissessem sobre o que são esses manuscritos, a mão tremesse, o talento murchasse. Seu talento excepcional é inseparável da ignorância do que significam realmente os textos; e a beleza de seus traços, o esmero com que se dedica a reproduzi-los e até a melhorá-los, só pode ser fruto de um voo imaginativo que lhes atribui um conteúdo, sabe-se lá qual, diferente do que têm. É o que acontece com a minha lembrança da senhora Ada. Se ressuscitasse minha mãe (percebo que agora estou dando para ressuscitar pessoas, primeiro os poetas gregos arcaicos e agora minha mãe) e ela respondesse todas as minhas perguntas sobre aquela manhã da minha infância quando um jovem soldado beijou a mão de sua amiga e esta, uma bela mulher a caminho da velhice, presenteou o jovem com um sorriso inesquecível, de uma pureza e um recato que são o cerne da minha lembrança e a razão pela qual aquela manhã ficou gravada em mim para sempre; se minha mãe, quero dizer, detalhasse exaustivamente as circunstâncias daquele episódio remoto, eu realmente ganharia alguma coisa? Não perderia tudo? E com esse tudo, não quero dizer o mistério daquele momento, aquele que se tornou íntimo para mim, centro irradiador da minha infância, embora eu não saiba dizer por quê? Da mesma forma, talvez alguns ou mesmo muitos dos pedaços que chegaram até nós da poesia grega arcaica, se os lêssemos reintegrados em seus textos originais, deixariam de nos comover como agora. Vou citar um deles, do poeta Estesícoro, do século VII a. C.:

Não, não é verdade a história que contam, não foste nas naves de sólidos bancos, jamais conheceste as muralhas de Troia.

Desde que os li, senti que estes três versos formavam um poema redondo, que na sua brevidade expressa a decepção diante de uma vida que se revelou avara em seus frutos. No entanto, Estesícoro os escreveu com uma intenção muito diferente. Sabemos que o poema ao que pertencem pretendia ser um ato de justiça para com Helena, a mulher de Menelau, sempre apontada como a responsável pela guerra de Troia por ter-se apaixonado por Páris. Segundo alguns, Helena nunca deixou sua terra natal, Esparta, e não traiu o marido. O poema de Estesícoro é uma tentativa de redimir o nome dela, denunciando a falsidade da lenda. Mas lidos agora e separados do poema que os continha, produzem uma ressonância muito diferente do propósito redentor do original. Eles apontam para a fragilidade de nossas memórias, que nos oferecem uma visão sempre mutante do passado. O sentimento de continuidade interior que o homem grego mantinha intacto deteriorou-se no homem moderno. Mergulhado num anonimato que o distancia de seu eu e obrigado a adaptar-se a situações sempre novas, o homem dos nossos dias, sempre que olha para trás, não consegue conectar o seu presente com o que viveu. A obra de Proust é uma prova disso, na qual a busca do tempo perdido é, na verdade, a busca dessa coerência interior extraviada. Nosso passado não parece nosso, mas o de um desconhecido com o qual não conseguimos nos identificar. Essa alienação de si é impensável no homem antigo, mas para o homem moderno é uma condição permanente; por isso o último verso de Estesícoro, em vez de representar um ato de absolvição, como devia ser para Helena, soa para o leitor moderno como uma crítica. “Jamais conheceste as muralhas de Troia” significa que mal viveu, que a vida passou ao seu lado sem tocá-lo, porque lhe faltou a coragem de embarcar para algum lugar. A falsidade da história que os outros contam são as mentiras que contamos a nós mesmos para ocultar esse sentimento de separação da vida. Assim, lidos hoje, os três versos parecem-nos completos e contundentes, tocam uma ferida profunda e têm esse espanto íntimo que pedimos à poesia, que até coloca no final essa emblemática palavra, “Troia”, resumindo a nossa ideia de glória, nosso sentimento de uma vida plena, sem importar em qual dos dois lados se tenha lutado.

De onde vem à poesia essa capacidade de se potencializar no pequeno, de sobreviver às mutilações, como essas lagartixas capazes de se desprender de seus rabos quando são atacadas por um predador? O pedaço da cauda se mexe e distrai o suficiente para que escapem. Esses pedaços poéticos nos vêm distraindo durante um longo intervalo de tempo. De alguma forma, a mutilação sofrida por esses poemas já é um preâmbulo de sua tradução para outras línguas, não porque a tradução seja uma mutilação, ou melhor dizendo, porque num sentido, sim, ela é uma mutilação de certos aspectos do texto original para aprimorar outros, e esta é uma das razões pelas quais cada geração retraduz os mesmos textos que as anteriores traduziram, pois percebe no tom e no vocabulário de suas traduções um fundo de incompreensão, um ranço que curiosamente não percebem nos trabalhos criativos, ou ao menos não com a mesma intensidade. É nas traduções, portanto, onde o gosto e a moda de uma época são denunciados de forma mais direta, onde uma determinada estética manifesta mais claramente seus limites, seus códigos expressivos mais recorrentes, em suma, sua visão de mundo. As traduções, então, tendem a envelhecer mais rápido do que as obras criativas, fato que ficou muito claro para mim quando, ao revisar algumas das traduções do século XIX dos poetas gregos, pareceram-me quase ilegíveis devido a seu espírito romântico inflado. E apesar de quase todas as traduções terem sua data de validade impressa, continuamos traduzindo. Acho que fazemos isso porque a tradução está no centro de nossa capacidade de comunicação. Um idioma nunca está sozinho. Mesmo no lugar mais recôndito da selva, uma tribo tem consciência de que existem outras tribos que falam de outra forma; nos seus contatos esporádicos para lutar, negociar ou arranjar um casamento, essa tribo experimenta o fascínio de um idioma diferente do seu. Porque, de certo modo, só a tradução garante que nos comunicamos. Quando uma palavra é capaz de suscitar uma palavra equivalente noutro idioma, então, investida do halo da tradução, ela ganha seu estatuto real de palavra. Por extensão, só é idioma aquele que outros podem traduzir para o seu, só um idioma endossado por outros é um idioma de verdade ou, noutras palavras, só um idioma contaminado por outros é um idioma vivo. Por isso, uma das principais razões que fazem com que um grupo humano estabeleça contato com outros grupos é a necessidade de ser traduzido, que, se olharmos bem, nada mais é do que a nossa necessidade de poesia. Acredito que não pode haver poesia se não se deu o encontro de duas ou mais línguas; a própria poesia é a invocação de outra língua, o sonho de nos comunicarmos com outras palavras e a necessidade de banhar nosso ambiente com novos ritmos e novos sons. Assim, a poesia é a nostalgia de outras línguas, que por sua vez representa a nostalgia, o desejo de sermos ouvidos em profundidade. Os especialistas em aquisição de linguagem afirmam algo fascinante, e com isto concluo. Segundo eles, quando a criança ainda não aprendeu a falar, suas faculdades fonológicas são infinitas; seu aparelho fônico é capaz de reproduzir qualquer som de qualquer idioma, mas no momento em que começa a adentrar em sua língua materna, essa faculdade se dissipa; ganha idioma mas perde linguagem; podemos nos comunicar porque sacrificamos um potencial muito rico de possibilidades expressivas. E esse potencial, acredito, permanece de alguma forma no nosso inconsciente. As línguas que não falamos despertam em nós, com seus sons incompreensíveis e cativantes, cativantes porque incompreensíveis, aquela liberdade suprema que nos foi tirada pela língua materna, e algo em nós não se resigna a essa perda. Acho que uma dessas línguas estrangeiras que evoca a memória daquele estado edênico da fonação humana é a poesia, esse estranho idioma que distorce os significados comuns das palavras para submetê-las ao império do ritmo, do som e das associações mais inusitadas. Nela se vislumbra aquela capacidade que tivemos em algum momento de tudo dizer sem dizer nada, a alegria de nos expressarmos sem nos prendermos a um significado concreto. Nesse sentido, a tradução será sempre uma parente próxima da poesia, pois é nela que se torna mais evidente a fome de outras cadências, de outros gestos significativos, de outra forma de se mover nas águas da linguagem, em suma, de outros modos de ser.

Agradecimento

A Alea agradece a gentileza de Fabio Morábito ao autorizar a tradução e a publicação do texto nas páginas da nossa revista. Igualmente agradecemos à tradutora, pelo trabalho e pela mediação com o escritor.

Referências

  • GROTTO, Livia. Escritores tradutores: diálogos literários e culturais. In: GROTTO, Livia; CORDIVIOLA, Alfredo; OLMOS, Ana Cecilia; PALMERO GONZÁLEZ, Elena; GÁRATE, Miriam V. (org.). Temas para uma história da literatura hispano-americana Porto Alegre: Letra 1, 2022. v. II (Inscrições do sujeito, Redes do literário), p. 251-271.
  • GROTTO, Livia. Traduzir o ritmo: Octavio Paz e Fabio Morábito. eLyra: Revista da Rede Internacional Lyracompoetics, n. 9, 2017, p. 151-175. Disponível em: https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/176 Acesso em: 28 set. 2023.
    » https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/176
  • MORÁBITO, Fabio. O nado do tradutor. Tradução de Livia Grotto, Cadernos de tradução, Florianópolis, v. 43, n. 1, p. 1-9, 2023. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/86358 Acesso em: 28 set. 2023.
    » https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/86358
  • MESCHONNIC, Henri. Poética do Traduzir Tradução de Jerusa Pires Ferreira e Suely Fenerich. São Paulo: Perspectiva, 2010.
  • MORÁBITO, Fabio. “Traduttore truffatore”. Caracol, São Paulo, v. 1, n. 5, p. 34-42, 2013. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/69240 Acesso em: 28 set. 2023.
    » https://www.revistas.usp.br/caracol/article/view/69240
  • 1
    Embora seja uma aproximação que considero embrionária, parte desses intertextos aparece rastreada em Grotto, L. “Traduzir o ritmo: Octavio Paz e Fabio Morábito”, 2017GROTTO, Livia. Traduzir o ritmo: Octavio Paz e Fabio Morábito. eLyra: Revista da Rede Internacional Lyracompoetics, n. 9, 2017, p. 151-175. Disponível em: https://www.elyra.org/index.php/elyra/article/view/176 . Acesso em: 28 set. 2023.
    https://www.elyra.org/index.php/elyra/ar...
    .
  • 2
    Para uma visão geral a respeito dos autores citados, cf. Grotto, L. “Escritores tradutores: diálogos literários e culturais”, capítulo incluído em Temas para uma história da literatura hispano-americana, (2022GROTTO, Livia. Escritores tradutores: diálogos literários e culturais. In: GROTTO, Livia; CORDIVIOLA, Alfredo; OLMOS, Ana Cecilia; PALMERO GONZÁLEZ, Elena; GÁRATE, Miriam V. (org.). Temas para uma história da literatura hispano-americana. Porto Alegre: Letra 1, 2022. v. II (Inscrições do sujeito, Redes do literário), p. 251-271.).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    17 Ago 2023
  • Aceito
    21 Set 2023
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