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Além da interpretação textual: caminhos de pesquisa e transdisciplinaridade nos estudos literários

Beyond textual interpretation: research paths and transdisciplinarity in literary studies

Resenha de: MELLO, Celina Maria Moreira de; CATHARINA, Pedro Paulo Garcia Ferreira. (org.). Metodologia e transdisciplinaridade nos Estudos Literários . Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2022. 223 p.

A motivação para a reunião e publicação dos nove ensaios que compõem o livro Metodologia e transdisciplinaridade nos estudos literários, organizado por Celina Maria Moreira de Mello e Pedro Paulo Garcia Ferreira Catharina, professores de literatura francesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, foi a impressão de que a área de Letras no Brasil continua apegada a uma visão de crítica literária centrada na interpretação textual de obras consideradas importantes. O livro é o segundo volume da Coleção Novos Estudos Neolatinos, do Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da UFRJ, impresso com capricho pela editora 7Letras, do Rio de Janeiro, em papel de boa gramatura. Ele se apresenta como respostas possíveis a comentários e perguntas que os organizadores vêm escutando em fóruns acadêmicos, bancas e debates, quando compartilham resultado de pesquisa: “Onde está a literatura?”; “Não há análise textual?”; “Literatura é texto”; “Sem análise textual não há crítica literária”. Tal concepção textualista ainda dominante gera a incompreensão (e às vezes o veto) de outros caminhos de pesquisa na área, alguns com mais de 20 anos de estrada, com resultados comprovados, publicados e disseminados internacionalmente. Desse modo, os capítulos do livro apresentam resultados de pesquisas consolidadas que não se limitam a interpretação de textos, sem, contudo, evitá-la ou demonizá-la. Os capítulos se concentram na literatura no século XIX, que é a especialidade dos organizadores. A seguir, vamos resumir o argumento central de cada capítulo, dando destaque ao aspecto inovador de suas propostas e conclusões.

No primeiro capítulo, “Mas e o texto? Ora, o texto. Considerações sobre a interpretação de obras literárias e outros caminhos para a área de Letras”, Márcia Abreu mostra como a pergunta do título revela uma visão (ainda prevalecente) que encara o texto literário como um enigma a ser decifrado. A autora toma como exemplo Dom Casmurro, de Machado de Assis, e explica como ele foi objeto de interpretações variadas ao longo dos anos, de romance da “mulher histérica” à narrativa de homoafetividade reprimida. Como não existe “leitura certa”, cabe a pergunta: a produção de novas interpretações (muitas vezes dos mesmos textos consagrados) deve ser o objetivo final da pesquisa na área? Por outro lado, trabalhos recentes de antropologia e psicologia apontam caminhos em que a pergunta “Mas e o texto?” se torna pertinente. Experimentos mostraram que em povos primitivos a contação de histórias colabora no aumento da cooperação entre os indivíduos. Em outro experimento, biomarcadores revelaram níveis reduzidos de estresse em crianças hospitalizadas, quando expostas a narrações de histórias. Para a autora, essas pesquisas se beneficiariam do olhar de um profissional de Letras, que faria perguntas ausentes dessas investigações, relacionadas ao foco narrativo, ao enredo, ao estilo e ao gênero dos textos, e como esses elementos colaboram na produção de bem (ou mal) estar nos sujeitos. São ideias controversas que certamente promovem a cooperação entre as disciplinas e abrem novos caminhos de pesquisa na área.

No capítulo “Os modelos da comunicação nos Estudos Literários”, Anthony Glinoer faz um panorama das tentativas de se pensar o fato literário como um circuito comunicacional com vários agentes, polos e mediadores, abrindo caminho para pesquisas sem análises centradas na interpretação de textos e/ou contextos sociais. O modelo linguístico de Jakobson pensava o processo comunicacional como sendo o resultado de três elementos: uma fonte que emite uma mensagem em direção a um alvo que a recebe. A pergunta “Mas e o texto?” pressupõe a supremacia da mensagem, da chamada “função poética” da linguagem, mas a literatura se vale de outras formas de comunicação que as constitui tanto quanto o escrito. Mantendo essa ideia, a sociologia da literatura vê a literatura como um processo de comunicação com três polos: a produção (escritores), a distribuição (editores) e o consumo (públicos). Como mostra o autor, tal perspectiva abre novos caminhos de pesquisa na área, como, por exemplo, as formas de financiamento da escrita literária, as condições sociais nas quais um autor produz uma obra, e, no polo do consumo, as “práticas de leitura”, que são vistas como produtoras de sentidos legítimos sobre os textos, essenciais para a compreensão da sociedade como um todo (CHARTIER, 1990CHARTIER, Roger. A história cultural: Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Betrand, 1990.). Dentre os intermediários da comunicação literária, o editor (e como suas escolhas e posicionamentos impactam os modos como os textos são recebidos e lidos) tem sido o objeto do maior número de pesquisas.

Já em “A teoria dos campos através do prisma do campo literário”, Joseph Jurt mostra como a sociologia dos campos de produção cultural abriu novas perspectivas de pesquisa na área de Letras, nas quais, de modo semelhante, a interpretação textual perde o protagonismo. O conceito de “campo” remete a campo de forças e, ao mesmo tempo, campo de lutas; os agentes lutam constantemente para mudar as relações de forças existentes; os agentes que constituem esses espaços são ao mesmo tempo constituídos por eles (BOURDIEU, 1996BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.). O conceito de campo permite transcender a tradicional alternância entre uma análise interna (práticas literárias e artísticas) e uma análise externa (como tais práticas se vinculam às formações sociais) da obra, que ainda dominam as faculdades de Letras. Embora instigantes, essas leituras desconhecem as instâncias mediadoras do campo de produção cultural enquanto espaços de relações objetivas e criadoras de sentido e valor, com seus processos internos de seleção, legitimação e consagração de autores e obras. Desse ponto de vista, antes de interpretar os textos, seria preciso compreender como determinadas obras se tornam conhecidas e merecedoras de interpretação e reinterpretação. Daí a importância da pesquisa sobre outros agentes do campo literário, como os vendedores de livros, os diretores de teatro e periódicos; e sobre instâncias e mecanismos de consagração e reconhecimento, como os salões, os cenáculos, as academias e as premiações.

Os capítulos “Um corpus epistolar: o caso Dreyfus na correspondência de Émile Zola”, de Alain Pagès, e “Correspondências entre autor e editor, uma preciosa fonte de acesso às obras”, de Jean-Yves Mollier, discutem as cartas de escritores como locais promissores de pesquisa na área de Letras e essenciais para a compreensão de suas obras. Na leitura dirigida proposta por Pagès, destacam-se as cartas de Zola relacionadas ao famoso caso Dreyfus, dando surgimento ao gênero da “carta aberta”, para ser impressa nos jornais e lida em voz alta. Esses documentos revelam traços da imagem pública de Zola que são indissociáveis de sua ficção. No estudo de Mollier, a correspondência entre escritores e editores franceses da segunda metade do século XIX ajuda a desbancar mitos da história literária, como a baixa remuneração dos escritores, a ganância dos editores e a autonomia dos autores frente à perspectiva comercial do editor (MOLLIER, 2010MOLLIER, Jean-Yves. O dinheiro e as Letras: História do capitalismo editorial. São Paulo: EDUSP, 2010. ). Madame Bovary, de Flaubert, é um caso emblemático. A obra foi publicada numa coleção de livros baratos, associada a histórias sentimentais e licenciosas, e fez muito sucesso. Foi, portanto, uma decisão editorial de “rebaixamento”, sem relação com as qualidades literárias do texto, que garantiu a primeira fama do livro. Mollier usa a imagem dos créditos que sobem ao final de um filme com os nomes de todos que participaram de sua realização e propõe que o estudo da correspondência e arquivos dos editores permite, justamente, reconhecer outros partícipes do circuito comunicacional da literatura, tão ativos e legítimos como o autor e o leitor.

No capítulo “Tornar-se célebre: Machado de Assis, autoria e edição”, Lúcia Granja estuda a trajetória do autor de Memórias póstumas de Brás Cubas como editor da própria obra, conhecedor das práticas editoriais e das redes internacionais de intercâmbio entre editores na Europa e no Brasil. A autora se pergunta em que medida Machado de Assis teria interferido nos processos de produção e circulação de suas obras e como essas mediações teriam colaborado na construção de sua carreira de sucesso. Nesse sentido, o capítulo combate a pedestalização de Machado de Assis ao retratá-lo como um escritor do seu tempo, interessado em administrar a carreira e obter o reconhecimento do público. Ele estava envolvido em projetos do seu editor principal, Baptiste-Louis Garnier, desde 1860, como contista do Jornal das Famílias, crítico da produção da editora e divulgador de suas publicações na imprensa. A autora especula se não teria sido por conselho do editor, tendo em vista a boa aceitação dos contos, que Machado de Assis, a partir de 1870, opta pela prosa de ficção como gênero preferencial de sua arte, e não mais a poesia, o que era um rebaixamento em termos de “capital simbólico”, mas também representava a escolha pragmática do artista que vai aonde o público está. Esse Machado “humanizado” ajuda a colocar sob suspeição o primado da genialidade machadiana, que é um dos pilares da área de Estudos Literários no Brasil. Essa faceta “interessada” do escritor não se revela facilmente na sua ficção e nem se encarna no “narrador volúvel” dos seus romances (SCHWARZ, 2012SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012. ), mas pode ser vislumbrada em correspondências entre autor e editor, contratos editoriais, recibos e catálogos de editoras. Desse modo, tais documentos acabam por se sobrepor ao texto ficcional como material de análise do pesquisador de Letras.

Em “A lista: do jornal ao romance e do romance ao jornal”, Éléonore Reverzy mostra como a leitura atenta do texto ficcional permanece atual na área, mas não necessariamente para alimentar análises habituais de narrador, personagens, temas, estruturas narrativas, alegorias, críticas sociais etc., que muitas vezes é a cobrança que subjaz à pergunta “Mas e o texto?”. O instigante da proposta é analisar a forma mais antiliterária que podia existir: as listas (de objetos, de pessoas e de acontecimentos) do romance realista, e suas afinidades com o modelo da lista jornalística. A lista de anúncios e seu protocolo comercial tinham algo em comum com a estética realista: o interesse pelo íntimo e pelo segredo - uma “literatura do olho”, que lista os predicados dos objetos e pode ser atribuída à revolução fotográfica. Na ficção, as listas causavam o “efeito de inventário” que Machado de Assis criticou n’O primo Basílio, registrando a profusão de novos objetos e sensações na Belle Époque. A enumeração vertiginosa estava associada a um imaginário de abundância e ao “efeito vitrine”, que despertava o desejo de consumir (BENJAMIN, 2007BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. ). A autora mostra como Zola e os Goncourt aproveitavam as listas de celebridades das colunas sociais como “formas mínimas” na ficção, criando “paródias das listas mundanas” dos jornais, nas quais a acumulação e a enumeração de objetos, pessoas e sensações, eram, ao mesmo tempo, a assinatura e o diagnóstico de uma época: o “grau zero” de uma descrição realista e impessoal do capitalismo e da vida no Segundo Império.

Tanto o trabalho de Éléonore Reverzy quanto de Silvia Maria Azevedo e Tania Regina de Luca, no capítulo “O momento literário e Portugal d’Agora, de João do Rio: do jornal ao livro”, comprovam a importância da pesquisa em periódicos para a renovação dos estudos na área de Letras. No século XIX, quando os mesmos escritores ocupavam simultaneamente os campos literário e jornalístico (THÉRENTY, 2007THÉRENTY, Marie-Ève. La littérature au quotidien; poétiques journalistiques au XIX siècle. Paris: Seuil, 2007. ), os periódicos passam a abrigar obra autoral tão importante quanto os romances e os livros de poesia. Como mostram Azevedo e de Luca, João do Rio foi um caso célebre do escritor-jornalista, cujos textos oscilavam entre a reportagem e a ficção, “em um misto entre informação/criação”. Apesar da fama conquistada e do sucesso de público, sempre que suas séries de reportagens, como As religiões do Rio, viraram livro, João do Rio enfrentava a resistência dos escritores dominantes, reunidos em torno de Machado de Assis na ABL, para quem o estatuto “menor” de jornalista (e ainda por cima, mulato e gay) não o tornava apto a pleitear uma cadeira na agremiação. Para as autoras, a admissão do escritor, em 1909, depois de três tentativas frustradas, era um reconhecimento do seu trabalho incansável e das redes (inclusive internacionais) de apoio e amizade que forjou, conseguindo ingresso em ambientes até então vedados a escritores como ele. Por essas mesmas razões, João do Rio permaneceu esquecido por décadas e só recentemente voltou ao radar da crítica universitária. Nessas pesquisas, a leitura de crônicas, folhetins, colunas sociais, entrevistas, notícias de crime, anúncios de livros e espetáculos teatrais é tão importante quanto a análise de contos e romances.

Por fim, no capítulo “Le Père Goriot; a construção espacial de um novo gênero narrativo, suportes e edições”, Celina Maria Moreira de Mello propõe novas questões de leitura para o romance de Balzac que deveriam ser levadas em conta antes do exercício habitual de crítica textual e social. Aqui, também temos leitura atenta de texto literário, incluindo a atenção ao que muda e desaparece na trajetória editorial de Le Père Goriot, de sua estreia na Revue de Paris em 1834, a reedições subsequentes em formato de livro, em 1839 e 1843, com editores diferentes. As diferentes edições e escolhas editoriais implicam ressignificações do valor e do lugar do romance no campo literário, num processo em que a obra cria sua própria importância (MAINGUENEAU, 2006MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2006. ). Como propõe a autora, Le Père Goriot estabelece seu próprio gênero, o romance à Balzac, que está na base dos romances realistas-naturalistas posteriores e que até hoje fornece padrões narrativos que são imitados e parodiados. De sua origem como narrativa indecisa, publicada na imprensa, que buscava a própria voz e ainda se apoiava em convenções do drama romântico, Le Père Goriot se ressignifica ao longo dos anos, no desenrolar de suas revisões, cortes, acréscimos e reedições, como um romance moderno e científico, parte integrante de uma grande obra autoral, digno de ser emulado e interpretado. Tais conclusões mostram que, antes de interpretar os textos, é preciso saber como eles se tornam interpretáveis.

O livro Metodologia e transdisciplinaridade nos estudos literários mostra múltiplas possibilidades de pesquisa na área Letras além da produção de interpretações singulares de determinados textos. Depois de sua leitura, quando ouvirmos a pergunta “Mas e o texto?”, podemos dizer: “Ora, o texto...”.

Referências

  • BENJAMIN, Walter. Passagens Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
  • BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
  • CHARTIER, Roger. A história cultural: Entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Betrand, 1990.
  • MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário São Paulo: Contexto, 2006.
  • MOLLIER, Jean-Yves. O dinheiro e as Letras: História do capitalismo editorial. São Paulo: EDUSP, 2010.
  • SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2012.
  • THÉRENTY, Marie-Ève. La littérature au quotidien; poétiques journalistiques au XIX siècle Paris: Seuil, 2007.
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    09 Jan 2023
  • Aceito
    15 Mar 2023
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