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A NOÇÃO DE “CONTEXTO” NA OBRA DE MIKHAIL BAKHTIN E DO CÍRCULO

RESUMO

O propósito deste artigo é de caráter epistemológico, ao analisar a noção de contexto nas obras de Bakhtin, Medviédev e Volóchinov. Para evidenciar a atualidade da proposta, o ponto de partida são as teorizações recentes do contexto, desenvolvidas na semântica interpretativa de François Rastier e na análise do discurso crítica (ADC) de Teun van Dijk. A noção de contexto se revelou presente nos trabalhos filosóficos de Mikhail Bakhtin, no método sociológico de Bakhtin, Medviédev e Volóchinov e, por fim, na teoria do romance, bem como na metalinguística desenvolvidas por Bakhtin. Em todas essas fases, a análise apontou para a centralidade e a complexidade da noção de contexto na teoria da linguagem elaborada nos textos do Círculo de Bakhtin, nos quais apresenta três dimensões principais: o contexto ético-valorativo, o contexto extraverbal e o contexto verbal.

contexto ético-valorativo; contexto extraverbal; contexto verbal; Círculo de Bakhtin

ABSTRACT

The purpose of this paper is epistemological. We aim at analyzing the notion of context in theories by Bakhtin, Medviédev and Volóchinov. In order to demonstrate the present relevance of such purpose, we start by commenting on recent theorizations about context, developed in François Rastier’s interpretative semantics and in Teun van Dijk’s critical discourse analysis (CDA). The notion of context was discussed in Mikhail Bakhtin’s philosophical works, in Bakhtin, Medviédev and Volóchinov’s sociological method, as well as in Bakhtin’s theory of the novel and metalinguistics. In all these stages, the findings pointed to the centrality and complexity of the notion of context in the theory of language elaborated in the Bakhtin Circle texts, which present three main dimensions: the ethical-valuative context, the extraverbal context and the verbal context.

Ethical-valuative context; Extraverbal context; Verbal context; Bakhtin Circle

Sobre a atualidade e a relevância epistemológica do tema

O objetivo deste artigo é analisar a presença e o papel da noção de contexto nos trabalhos filosóficos de Mikhail Bakhtin da primeira metade dos anos 1920, no método sociológico desenvolvido por Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev e Valentin Volóchinov na segunda metade dos anos 1920 e na teoria do romance, bem como na metalinguística desenvolvidas por Mikhail Bakhtin entre 1930 e 1963. Para isso, o ponto de partida são as teorizações recentes do contexto desenvolvidas por dois eminentes linguistas do texto e do discurso: a semântica interpretativa de François Rastier (1998RASTIER, F. Le problème épistemologique du contexte et le statut de l’interprétation dans les sciences du langage. Langages, Paris, n. 129, p. 97–11, 1998. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458-726x_1998_num_32_129_2149. Acesso em: 20 ago. 2023.
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, 2001RASTIER, F. Arts et sciences du texte. Paris: PUF, 2001., 2022RASTIER, F. Au milieu du chemin: entretien avec François Rastier par Éric Trudel. Acta semiotica et lingvistica, João Pessoa, v. 27, n. 2 (46), p. 168–176, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/view/63003. Acesso em: 20 ago. 2023.
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) e a análise do discurso crítica (ADC) de Teun van Dijk (2012VAN DIJK, T. A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução R. Ilari. São Paulo: Contexto, 2012[2007].[2007]). Assim delimitado, o objetivo deste artigo é de natureza epistemológica, ao examinar a organização e o funcionamento das teorias em questão por meio da avaliação de uma de suas noções centrais.

A escolha das teorias desses dois autores se justifica pelo fato de: o contexto ser um elemento constituinte de suas abordagens do texto (Rastier) e do discurso/texto (Van Dijk); os autores terem formulado reflexões explícitas e amplas da noção de contexto; e, por fim, as teorizações terem sido elaboradas no campo da linguística ou dos estudos da linguagem, área de atuação e interesse da autora deste artigo. A opção por partir de trabalhos de linguistas contemporâneos objetiva revelar a atualidade e a relevância da noção de contexto no horizonte dos estudos da linguagem, bem como permite melhor avaliar, pela comparação, as contribuições e as especificidades dos escritos filosóficos, do método sociológico, da teoria do romance e da metalinguística de Mikhail Bakhtin e do Círculo.

Comecemos pelo linguista francês. Para Rastier1 1 Rastier considera que Bakhtin retomou, em seu dialogismo, os primeiros românticos (sobretudo Schleiermacher) e se situa, apesar de sua “coloração” marxista, na tradição do idealismo subjetivo. (1998), a teorização sobre o contexto evidencia aspectos da mudança epistemológica em curso nas ciências da linguagem, com seu emprego crescente sobretudo na semântica e na pragmática.

François Rastier mostra que os usos contemporâneos da noção de contexto são ambíguos: por um lado, ele é descrito em relação à situação de enunciação; por outro, na semântica cognitivista, ele é interiorizado sob a forma de cenas, permanecendo extralinguístico. Em consonância com este segundo uso, Vandendorpe (1991VANDENDORPE, C. Contextes, compréhension et littérarité. RS/SI, Montreal, n. 11, p. 9–25, 1991., p.2, tradução própria) define o contexto “não como um equivalente do referente ou do real objetivo, que se oporia ao verbal, mas como uma realidade mental determinada pela atividade pensante de um sujeito colocada em situação de produção ou de recepção de uma mensagem”2 2 Original: « non pas comme un équivalent du référent ou du réel objectif, qui s’opposerait au verbal, mais comme une réalité mentale déterminée par l’activité pensante d’un sujet placé en situation de production ou de réception d’un message» (Vandendorpe, 1991, p.2). ; os dados linguísticos são meios de ativar o contexto no espírito do leitor, ao auxiliá-lo a instanciar esquemas de pensamento adequados3 3 Representantes do cognitivismo, Sperber & Wilson (1995[1986]), orientados por uma concepção de que a função básica da linguagem é o processamento e o armazenamento de informações, defendem o acompanhamento da informação comunicada por uma garantia de relevância e que a comunicação envolve a manifestação e o reconhecimento de intenções do falante. O contexto é um construto psicológico, ou seja, um conjunto de assunções sobre o mundo com alguma organização interna (frames, scripts, protótipos etc.) constituído por expectativas e convicções estereotipadas sobre eventos e objetos frequentemente encontrados. As implicações contextuais decorrentes de uma informação relevante resultam da interação entre informações velhas (o conjunto de representações do mundo já constituídas por um indivíduo e formado por entradas enciclopédicas) e novas. .

Para Rastier (1998RASTIER, F. Le problème épistemologique du contexte et le statut de l’interprétation dans les sciences du langage. Langages, Paris, n. 129, p. 97–11, 1998. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458-726x_1998_num_32_129_2149. Acesso em: 20 ago. 2023.
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, 2001RASTIER, F. Arts et sciences du texte. Paris: PUF, 2001., 2022RASTIER, F. Au milieu du chemin: entretien avec François Rastier par Éric Trudel. Acta semiotica et lingvistica, João Pessoa, v. 27, n. 2 (46), p. 168–176, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/view/63003. Acesso em: 20 ago. 2023.
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), o contexto permite ainda opor duas grandes problemáticas ou tradições de reflexão sobre a linguagem:

  1. A tradição lógico-gramatical (Rastier, 1998RASTIER, F. Le problème épistemologique du contexte et le statut de l’interprétation dans les sciences du langage. Langages, Paris, n. 129, p. 97–11, 1998. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458-726x_1998_num_32_129_2149. Acesso em: 20 ago. 2023.
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    , 2022RASTIER, F. Au milieu du chemin: entretien avec François Rastier par Éric Trudel. Acta semiotica et lingvistica, João Pessoa, v. 27, n. 2 (46), p. 168–176, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/view/63003. Acesso em: 20 ago. 2023.
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    ) centra-se no signo, tomado como um tipo que é deformado por suas ocorrências; nessa abordagem, o bom contexto desambiguiza e permite relacionar as ocorrências ao tipo adequado, restabelecendo a transparência de um sentido literal. A análise das unidades discretas (fonemas, morfemas, semas)4 4 Considerada como uma categoria epistemológica dos “primitivos”, portanto, não definível, na linguística estrutural, a discrição é uma das propriedades fundamentais da linguagem que permite a sua segmentação em unidades descontínuas e distintas umas das outras e que fazem parte de um sistema cujos outros elementos são em número limitado. (Dubois, 1998[1973]). orienta-se pelo princípio da composicionalidade, ou seja, o todo do sentido ou o global é formado a partir da soma de suas unidades discretas ou do local. A problemática lógico-gramatical busca descontextualizar seu objeto para objetivar a língua.

  2. A tradição retórico-hermenêutica (Rastier, 1998RASTIER, F. Le problème épistemologique du contexte et le statut de l’interprétation dans les sciences du langage. Langages, Paris, n. 129, p. 97–11, 1998. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458-726x_1998_num_32_129_2149. Acesso em: 20 ago. 2023.
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    , 2022RASTIER, F. Au milieu du chemin: entretien avec François Rastier par Éric Trudel. Acta semiotica et lingvistica, João Pessoa, v. 27, n. 2 (46), p. 168–176, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/view/63003. Acesso em: 20 ago. 2023.
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    ) concebe o texto como unidade linguística fundamental, segundo uma teoria da ação ou praxeologia (Rastier, 1998RASTIER, F. Le problème épistemologique du contexte et le statut de l’interprétation dans les sciences du langage. Langages, Paris, n. 129, p. 97–11, 1998. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458-726x_1998_num_32_129_2149. Acesso em: 20 ago. 2023.
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    , 2022RASTIER, F. Au milieu du chemin: entretien avec François Rastier par Éric Trudel. Acta semiotica et lingvistica, João Pessoa, v. 27, n. 2 (46), p. 168–176, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/view/63003. Acesso em: 20 ago. 2023.
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    ) que considera a língua como um sistema “incessantemente modificado pelo uso e trabalhado por dinâmicas históricas (Rastier, 2022RASTIER, F. Au milieu du chemin: entretien avec François Rastier par Éric Trudel. Acta semiotica et lingvistica, João Pessoa, v. 27, n. 2 (46), p. 168–176, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/view/63003. Acesso em: 20 ago. 2023.
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    , p.168)5 5 Original: « un système sans cesse modifié par son usage et travaillé par des dynamiques historiques » (Rastier, 2022, p, p.168). ; em outros termos, um sistema pensado segundo a oposição ocorrência-fonte e retomada, e não tipo-ocorrência. Essa problemática se ocupa do contínuo, segundo o princípio hermenêutico de que o global condiciona e determina o local6 6 Considerado o pai da hermenêutica moderna, Schleiermacher (1987, p, p. 77), conciliando o princípio da composicionalidade ao da globalidade, postula: “não somente a compreensão do todo é condicionada pela do detalhe, mas ainda inversamente a compreensão do detalhe é determinada pela compreensão do todo” [no seulement la compréhension du tout est conditionnée par celle du détail, mais encore inversement la compréhension du détail est déterminée par la compréhension du tout]. (uma passagem ou uma unidade discreta). Nessa orientação, recontextualizar a linguagem impõe a restauração da intersubjetividade — distinguindo a situação de interpretação e a situação de enunciação, cada uma com seu universo de referência, de assunções e de responsabilidades — e a história — presente sob a forma da intertextualidade contemporânea e passada, ou seja, o contexto não é só o aqui e agora, mas ultrapassa a situação. O conceito de gênero permite conectar o contexto (ou contexto linguístico) e a situação, pois ele é um princípio organizador do texto e um modo semiótico da prática em curso. Além disso, todo texto é interpretado no interior de um corpus formado, em primeiro lugar, pelos textos que pertencem a um mesmo gênero. Para Rastier (1998)RASTIER, F. Le problème épistemologique du contexte et le statut de l’interprétation dans les sciences du langage. Langages, Paris, n. 129, p. 97–11, 1998. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/lgge_0458-726x_1998_num_32_129_2149. Acesso em: 20 ago. 2023.
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    , o texto é a unidade linguística fundamental, cuja análise orienta o acesso às unidades de nível inferior e cuja unidade superior é o corpus.

Passemos ao conhecido livro “Discurso e Contexto. Uma abordagem sociocognitiva” do linguista Teun Van Dijk (2012VAN DIJK, T. A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução R. Ilari. São Paulo: Contexto, 2012[2007].[2007]). Nele, o autor faz uma extensa revisão bibliográfica da noção de contexto em ciências humanas e, assim como Rastier, Van Dijk também vê a reflexão sobre o contexto provocar uma mudança epistemológica nos estudos da língua e do discurso: “o contextualismo implica que os fenômenos precisam ser estudados em relação a uma situação ou entorno” (Van Dijk, 2012[2007], p. 28), o que contrasta com teorias “descontextualizadas, abstratas, estruturalistas, formalistas, autônomas” (Van Dijk, 2012VAN DIJK, T. A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução R. Ilari. São Paulo: Contexto, 2012[2007].[2007], p. 28) sobre os fenômenos da linguagem. Van Dijk considera que, depois da Segunda Guerra Mundial, teorias formalistas, estruturalistas ou autônomas dominaram a esfera científica da linguística e das ciências humanas. Sempre segundo Van Dijk, foi só nos anos 1970 e 1980, em disciplinas como a Etnografia da Fala, a Pragmática, a Sociolinguística e a Análise do Discurso Crítica, que se desenvolveu uma “abordagem integrada do uso linguístico e dos eventos comunicativos voltada para o contexto e nele inserida” (Van Dijk, 2012VAN DIJK, T. A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução R. Ilari. São Paulo: Contexto, 2012[2007].[2007], p. 300–301).

Como a própria designação evidencia, Van Dijk assenta sua abordagem sociocognitiva, por um lado, em uma base cognitivista (representações mentais7 7 O conceito de “representação” nomeia o modo original da presença de um objeto externo no espírito humano, ou seja, um objeto externo físico é “presente de novo” (re-presentado), mas sobre uma outra forma (Meunier, 2002). subjetivas), e, por outro, em uma base social (conhecimentos, atitudes, ideologias, gramática, regras, normas e valores socialmente compartilhados por comunidades discursivas) para propor que a produção e a interpretação dos discursos ocorre sob o controle de modelos mentais de contextos, ou seja, “não um tipo de situação social objetiva, e sim construtos dos participantes, subjetivos embora socialmente fundamentados, a respeito das propriedades que para eles são relevantes em tal situação, isto é, modelos mentais” (Van Dijk, 2012VAN DIJK, T. A. Discurso e contexto: uma abordagem sociocognitiva. Tradução R. Ilari. São Paulo: Contexto, 2012[2007].[2007], p. 87)8 8 No âmbito de uma semiótica da interpretação agregadora das ciências da cultura, Bouquet (2002) fala em cognição situada, ou seja, uma cognição situada em um quadro cultural. . Van Dijk enfatiza serem esses modelos mentais flexíveis e negociarem os falantes constantemente sua interpretação dos aspectos relevantes da situação comunicativa. A relação entre os modelos mentais dinâmicos de contexto e as estruturas de discurso é de controle das possíveis variações da língua, do texto e do conhecimento.

À luz de uma teoria do processamento textual, Van Dijk defende ser crucial que os usuários da língua, além da representação do sentido de um texto, construam “modelos mentais dos eventos que são assunto desses textos, isto é, a situação que eles têm como denotação ou referência” (Van Dijk, 2012[2007], p. 90). Nesses modelos mentais, opera o mecanismo K, um dispositivo para a ação conjunta que regula a (não) expressão do conhecimento no discurso, ou seja, o cálculo pelo falante dos eventos e conhecimentos de mundo compartilhados por seus receptores e, portanto, sem a necessidade de ser expresso, implícito. Último aspecto essencial na abordagem de van Dijk para este artigo é sua visão de que os gêneros do discurso, embora tenham preferências por estruturas gramaticais e discursivas em vários níveis, particularizam-se mais por características contextuais do que textuais, daí a importância de uma teoria explícita do contexto para o conceito de gêneros do discurso.

O contexto na antropologia filosófica e na estética de Mikhail Bakhtin nos anos 1920

Considerado por Mikhail Bakhtin (2003a, p. 351) como sua “antropologia filosófica” [философская антропология] ou ainda sua “filosofia moral” [нравственная философия] (Bakhtin, 2003a, p. 354), o texto “Por uma filosofia do ato”, escrito, segundo os editores das obras reunidas, entre 1918 e 1924, é resultado de um projeto maior do qual esse texto seria a primeira parte sobre o tema: “a arquitetônica do mundo real do ato” [архитектоника действительного мира поступка] (Gogotichvíli, 2003ГОГОТИШВИЛИ, Л. А. [GOGOTICHVÍLI, L. A.] Коментарии. In: БАХТИН, М. М. [BAKHTIN, M. M.] К философии поступка [Por uma filosofia do ato]. Собрание сочинений t. 1. Философская эстетика 1920х годов [Obras reunidas vol. 1. Estética filosófica dos anos 1920]. Org. S. G. Botcharóv, N. I. Nikoláev. Moscou: Издательство русские словари/Языки славянской культуры, 2003. p. 351–438., p. 354).

Uma das editoras desse texto, Liudmila Gogotichvíli, ao comentar os principais temas de “Por uma filosofia do ato”, destaca que os desafios bakhtinianos, caros à época, em superar, por um lado, a ruptura entre cultura e vida e, por outro, a culpa do teoreticismo desembocam na seguinte concepção: “Fora do ato volitivo individual no acontecimento concreto da vida, o reino dos sentidos e dos valores eternos (a cultura no todo) e a “vida” não têm chance de entrar em contato”9 9 Original: Вне индивидуально-волевого поступка в конкретном событии бытия царство смыслов и вечных ценности (культура в целом) и «жизнь» не имеют шансов соприкоснуться. (Gogotichvíli, 2003ГОГОТИШВИЛИ, Л. А. [GOGOTICHVÍLI, L. A.] Коментарии. In: БАХТИН, М. М. [BAKHTIN, M. M.] К философии поступка [Por uma filosofia do ato]. Собрание сочинений t. 1. Философская эстетика 1920х годов [Obras reunidas vol. 1. Estética filosófica dos anos 1920]. Org. S. G. Botcharóv, N. I. Nikoláev. Moscou: Издательство русские словари/Языки славянской культуры, 2003. p. 351–438., p. 389, tradução própria). A proposta bakhtiniana da filosofia do ato contém — “no ato volitivo individual, no acontecimento concreto da existência” (Gogotichvíli, 2003ГОГОТИШВИЛИ, Л. А. [GOGOTICHVÍLI, L. A.] Коментарии. In: БАХТИН, М. М. [BAKHTIN, M. M.] К философии поступка [Por uma filosofia do ato]. Собрание сочинений t. 1. Философская эстетика 1920х годов [Obras reunidas vol. 1. Estética filosófica dos anos 1920]. Org. S. G. Botcharóv, N. I. Nikoláev. Moscou: Издательство русские словари/Языки славянской культуры, 2003. p. 351–438., p. 389) — uma orientação filosófica para a compreensão da vida humana em seus atos concretos — aí incluídos, a nosso ver, os enunciados verbais e não verbais — da qual o contexto, seja ele ético (relação Eu-Outro), situacional (interlocutores, aqui, agora etc.), horizonte ideológico amplo (outras obras, ideologias, cultura), é parte integrante, constitutiva, inalienável.

Em Por uma filosofia do ato, Mikhail Bakhtin defende que “o conteúdo semântico abstraído do ato” [отвлечённое от акта-поступка смысловое содержание] (Bakhtin, 2003a[192–], p. 12) ou “a significação atemporal” [вневременная значимость] é apenas um dos aspectos enriquecedores da historicidade real do “acontecimento da existência” [бытия-события] (Bakhtin, 2003a[192–], p. 15), da atividade da existência, do pensamento participativo. Na sequência, postula que só o ato responsável, que conhece um “contexto único” [единый контекст] (Bakhtin, 2003a[192–], p. 29), pode ser a base da sua prima filosofia. Nessa orientação, a nosso ver, a “antropologia filosófica” bakhtiniana — sem negar os sentidos abstratos, fora de contexto, recorrentes — inclui o contexto histórico e real no centro de sua reflexão, bem como o lugar único ocupado pelo eu na existência com sua verdade individual singular, o que tem consequências para toda a teorização posterior sobre a linguagem.

Na parte final desse texto, a palavra “contexto” [контекст] é recorrente. Inicialmente, o termo é acompanhado pelo adjetivo “axiológico” ou “valorativo” [ценностный]; em seguida, pelo adjetivo russo “событийный” derivado do substantivo “событие” (acontecimento, evento), que não tem um equivalente em português, mas que pode ser traduzido por “do acontecer” ou “do acontecimento”; e, por fim, pela reunião desses dois adjetivos na expressão “ценностно-событийный контекст”, ou seja, “contexto do acontecimento/acontecer axiológico/valorativo” (Bakhtin, 2003a, p. 400). Por meio dessas expressões, Mikhail Bakhtin desenvolve a ideia de que o lugar único ocupado pelo “eu” é afirmado na existência histórica da humanidade, ou seja, os valores da existência singular e concreta do ser humano se vinculam aos valores da humanidade histórica, ou ainda, o contexto espacial e temporal imediatos não se desvincula do contexto amplo, histórico, social, ou ainda, a singularidade de cada ser humano não nega sua vinculação aos valores históricos e sociais da humanidade.

Para finalizarmos esta análise de Por uma filosofia do ato orientada pelo conceito de “contexto”, citamos a análise de Liudmila Gogotichvíli (2003ГОГОТИШВИЛИ, Л. А. [GOGOTICHVÍLI, L. A.] Коментарии. In: БАХТИН, М. М. [BAKHTIN, M. M.] К философии поступка [Por uma filosofia do ato]. Собрание сочинений t. 1. Философская эстетика 1920х годов [Obras reunidas vol. 1. Estética filosófica dos anos 1920]. Org. S. G. Botcharóv, N. I. Nikoláev. Moscou: Издательство русские словари/Языки славянской культуры, 2003. p. 351–438., p. 412) que, embora constate não ser a reflexão sobre a linguagem central nessa obra, considera que: 1) seu tema central “o acontecimento da existência” [событие бытия] corresponde, no contexto linguístico, à “comunicação discursiva” [речевое общение]; 2) o ato [поступок] corresponde ao enunciado [высказывание]; 3) o tom volitivo-emocional [эмоционально-волевой тон] se fortalece no conceito de entonação [интонация], o qual supera o dualismo entre o dado e o prescrito: “a palavra viva não só significa o objeto como algo presente, mas, por meio da sua entonação, também expressa minha relação valorativa com ele; o almejado e o não almejado nele, e, com isso, movimenta o objeto em direção ao prescrito”10 10 Original: Живое слово не только обозначает предмет как некоторую наличность, но своей интонацией выражает и мое ценностное отношение к нему, желательное и нежелательное в нём и этим приводит предмет в движение по направлению к заданности. (Gogotichvíli, 2003, p, p. 412). (Gogotichvíli, 2003ГОГОТИШВИЛИ, Л. А. [GOGOTICHVÍLI, L. A.] Коментарии. In: БАХТИН, М. М. [BAKHTIN, M. M.] К философии поступка [Por uma filosofia do ato]. Собрание сочинений t. 1. Философская эстетика 1920х годов [Obras reunidas vol. 1. Estética filosófica dos anos 1920]. Org. S. G. Botcharóv, N. I. Nikoláev. Moscou: Издательство русские словари/Языки славянской культуры, 2003. p. 351–438., p. 412, tradução própria) ; e 4) as formas de discurso bivocal [формы двуголосого слова] refletem a arquitetônica do mundo do ato ou do acontecimento da existência como contraposição valorativa do Eu e do Outro.

A seguir, passemos a comentar o texto “Questões de metodologia estética da criação verbal. O problema da forma, do conteúdo e do material na criação artística verbal”11 11 No Brasil, esse texto foi traduzido e publicado na coletânea “Questões de literatura e estética (A Teoria do Romance)” em 1988 a partir da edição russa de 1975. A primeira parte do título “Questões de metodologia estética da criação verbal” não constava dessa tradução, e o encontramos no volume I de “M. M. Bakhtin. Obras reunidas” (Bakhtin, 2003b). Esse título é acompanhado de uma pequena introdução ao artigo, de aproximadamente uma página, após a qual aparece o nome conhecido no Brasil: “O problema da forma, do conteúdo e do material na criação artística verbal” , escrito em 1924, mas editado e publicado pela primeira vez por Kójinov em 1975 e republicado nas obras reunidas em 2003. A escolha desse ensaio se justifica pelo fato de Mikhail Bakhtin estabelecer uma interlocução com o formalismo russo, conhecido, sobretudo em sua primeira fase, por priorizar a forma linguística como a essência da arte literária em detrimento de seu contexto social, histórico e ideológico.

Nesse ensaio, M. Bakhtin estabelece o objetivo central de analisar os principais conceitos e problemas da poética com base em uma estética sistemática geral. O primeiro aspecto que remete ao conceito de contexto é a crítica ao isolamento da arte e em especial da obra de arte verbal ou literária da unidade ou dos outros campos (ético, cognitivo, religioso) da cultura humana. Segundo Bakhtin, na poética esse isolamento ocorreu por meio da adesão à linguística. Em seguida, Bakhtin critica a tentativa de compreender o objeto estético com base em seu material (cores, mármore, palavra, som etc.), para propor que a essência do objeto estético está na atividade do artista-autor-criador e do espectador com a obra artística, ou seja, o locutor e o destinatário são aspectos constitutivos do objeto estético.

Outra reflexão essencial é a proposição de que o objeto estético vive nas fronteiras dos diversos campos da cultura: ético, cognitivo (científico), político, religioso. Nesse âmbito, Bakhtin propõe que “todo fenômeno cultural é concreto e sistemático, ou seja, ocupa uma certa posição essencial em relação à realidade preexistente de outras atitudes culturais”12 12 Original: Каждое явление культуры конкретно-систематично, т. е. занимает какую-то существенную им действительности позицию по отношению к преднаходимой им других культурных установок (…) (Bakhtin, 2003b [1924], p. 285, tradução própria). Com isso, o contexto de uma obra artística inclui sua relação com obras anteriores que formam seu contexto histórico mais amplo.

O próprio termo “contexto” aparece na seção “III. O problema do material” [III. Проблема Материала], quando Mikhail Bakhtin, ao abordar a palavra como material da literatura, trata do objeto da linguística — a língua [язык] — e propõe o conceito de enunciado [высказывание]:

A linguística é uma ciência apenas na medida em que ela domina seu objeto: a língua. A língua da linguística se define por um pensamento puramente linguístico. O enunciado concreto único é sempre dado em um contexto axiológico-semântico cultural — na ciência, na arte, na política etc., ou no contexto de uma situação pessoal e cotidiana única; apenas nesses contextos um enunciado é vivo e percebido: ele é verdadeiro ou falso, bonito ou feio, sincero ou falso, direto, cínico, com autoridade etc.; enunciados neutros não existem nem podem existir, mas a linguística os vê apenas como um fenômeno da língua, оs relaciona apenas com a unidade da língua, mas não como uma unidade do conhecimento, da prática cotidiana, da história, do caráter da pessoa etc. (Bakhtin, 2003b[1924]), p. 300, grifo nosso, tradução própria)13 13 Original: Лингвистика является наукой, лишь поскольку она овладевает своим предметом — языком. Язык лингвистики определяется чисто лингвистическим мышлением. Единичное конкретное высказывание всегда дано в ценностно-смысловом культурном контексте — в научном, в художественном, политическом и ином, или в контексте единичной лично-жизненной ситуации; только в этих контекстах отдельное высказывание живо и осмысленно: оно истинно или ложно, красиво или безобразно, искрение или лукаво, откровенно, цинично, авторитетно п пр.: нейтральных высказываний нет и быть не может; но лингвистика видит в них лишь явление языка, относит их лишь к единству языка, но отнюдь не к единству познания, жизненной практики, истории, характера лица и. т. п. .

Empregado três vezes, o “contexto” é concebido como dimensão inalienável do conceito de “enunciado” e compreende as esferas ou campos da cultura e da vida, em que o enunciado assume uma posição axiológico-semântica. Até onde sabemos, é nessa passagem que o conceito de enunciado — desenvolvido no âmbito do método sociológico por Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev e Valentin Volóchinov, na segunda metade dos anos 1920, e da metalinguística proposta por Mikhail Bakhtin nos anos 1950 — adquire seus primeiros contornos explícitos em contraste com a linguística da época: a contraposição entre língua, como objeto da linguística, e o enunciado corresponderá ao contraponto entre linguística e método sociológico/metalinguística; a distinção entre, por um lado, o contexto axiológico-semântico cultural e, por outro, a situação pessoal e cotidiana única corresponderá à distinção entre esferas ideológicas constituídas com seus gêneros secundários e ideologia do cotidiano com seus gêneros primários; a contraposição entre a neutralidade da língua e a não neutralidade do enunciado será expandida na oposição entre palavra neutra e signo ideológico, no caráter valorado das relações dialógicas ocorridas no interior de e entre os enunciados.

O contexto no método sociológico de Bakhtin/Medviédev/Volóchinov

Nesta seção, analisaremos a noção de contexto em artigos e livros produzidos por Mikhail Bakhtin, Pável Medviédev e Valentin Volóchinov, durante o período de inserção ou proximidade desses autores no ILIAZV (Instituto da História Comparada das Literaturas e das Línguas do Ocidente e do Oriente] em Leningrado, de 1925 a 1930 (Grillo; Américo, 2019GRILLO, S.; AMÉRICO, E. V. Registros de Valentin Volóchinov nos arquivos do ILIAZV. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Org., tradução, ensaio introdutório e notas S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 7–56.). Nossa investigação bibliográfica seguirá a cronologia de publicação dos textos e incidirá sobre aqueles artigos — com as formulações mais elaboradas sobre a noção de contexto — de Valentin Volóchinov (2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Org., tradução, ensaio introdutório e notas S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019[1926]. p. 109–146.[1926]), presentes na coletânea “A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas”, bem como sobre as obras de maior fôlego publicadas pelos três pesquisadores, a saber: “O método formal nos estudos literários. Introdução crítica a uma poética sociológica” de Pável Medviédev (2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas E. V. Américo e S. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012[1928].[1928]), “Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem” de Valentin Volóchinov (2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929]) e “Problemas da obra de Dostoiévski” de Mikhail Bakhtin (2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929]).

No artigo “A palavra na vida e a palavra na poesia. Para uma poética sociológica” (Volóchinov, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Org., tradução, ensaio introdutório e notas S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019[1926]. p. 109–146.[1926]), o objetivo geral é mostrar que o método sociológico é capaz de superar a ruptura entre forma e conteúdo, teoria e história, poética teórica (que trata de forma, tema e estilo poéticos) e poética sociológica (que aborda a influência do meio social extra-artístico sobre as formas literárias)14 14 Nesse texto, ao criticar o método formal por reduzir a forma à organização do material e propor que o objeto artístico compreende a inter-relação entre o criador e os contempladores fixada na obra artística, Valentin Volóchinov se aproxima das posições de Mikhail Bakhtin no ensaio de 1924 analisado por nós na seção anterior, o que evidencia a estreita afinidade teórica entre os integrantes do Círculo nos anos 1920. . A arte literária é um dos campos da criação ideológica (ao lado do jurídico, do cognitivo etc.): “uma forma específica de comunicação social, realizada e fixada no material da forma artística” (Volóchinov, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Org., tradução, ensaio introdutório e notas S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019[1926]. p. 109–146.[1926], p. 116). Dessa perspectiva, Volóchinov propõe o objetivo específico de “compreender a forma do enunciado poético enquanto a forma dessa comunicação estética específica, realizada no material da palavra” (Volóchinov, 2019[1926], p. 117).

Para atingir esse objetivo específico, o autor aborda o enunciado verbal no discurso cotidiano comum, no qual estão os fundamentos da forma literária e a relação do enunciado com o meio social circundante é mais precisa e clara. Mediante a análise de um enunciado de única palavra semanticamente quase vazia, “puxa”, o autor demonstra que ela só faz sentido ao sabermos da situação extraverbal ou contexto:

  1. a compreensão do enunciado é composta por uma avaliação social (é verdade, é mentira etc.) que ao, incidir sobre a parte verbal e o contexto extraverbal do enunciado, funde-as em uma unidade indivisível;

  2. o contexto extraverbal é formado pelo “visto por ambos” (o horizonte espacial comum), pelo “conhecido por ambos” (o conhecimento e a compreensão da situação comum aos dois) e o “avaliado em concordância” (a avaliação comum dessa situação);

  3. o enunciado verbal não é um simples reflexo da situação extraverbal, mas uma conclusão avaliativa dessa situação, ou seja, uma continuidade e um desenvolvimento dessa situação; “a situação integra o enunciado como uma parte necessária da sua composição semântica” (Volóchinov, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Org., tradução, ensaio introdutório e notas S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019[1926]. p. 109–146.[1926], p. 120);

  4. as avaliações são primordialmente sócio-objetivas, ou seja, compreendem a unidade material do mundo (os objetos e acontecimentos do meio social mais próximo) e a unidade das condições reais de vida que geram o caráter partilhado das avaliações;

  5. as emoções individuais apoiam-se na avaliação social ou, em outros termos, as emoções individuais são tonalidades do tom principal da avaliação social;

  6. as avaliações sociais determinam a forma verbal do enunciado e se expressam na entonação, esta no limite entre a parte verbal e a parte extraverbal do enunciado;

  7. o enunciado é produto da comunicação verbal entre falante, ouvinte e personagem (mundo exterior e os outros) fixada no material da palavra. No enunciado cotidiano, a concordância ou discordância pressuposta pelo autor em relação ao ouvinte determina o estilo e a entonação.

A partir desses elementos do enunciado cotidiano, Volóchinov propõe que o enunciado poético está ligado ao contexto cotidiano não dito e às avaliações sociais organizadoras da forma literária como sua expressão. O ouvinte e o personagem (também chamado de objeto do enunciado) participam do processo criativo, ao assumirem uma posição ativa em relação ao conteúdo por meio da forma que é sua avaliação. Na poética sociológica proposta por Volóchinov (2019[1926]), a forma deve ser estudada, por um lado, como avaliação ideológica do conteúdo, e, por outro, realização técnica dessa avaliação no material (a palavra, o som, as cores). É no processo da comunicação social que a palavra no enunciado artístico ganha vida.

Partindo do enunciado cotidiano e comparando-o com o enunciado literário, Valentin Volóchinov conclui que:

Todos os aspectos analisados por nós que determinam a forma do enunciado literário — 1) o valor hierárquico do personagem ou do acontecimento, que é o conteúdo do enunciado; 2) o grau da sua proximidade com o autor, por um lado, e com os personagens, por outro — todos esses aspectos são os pontos de aplicação das forças sociais da realidade extraliterária à poesia. Justamente graças a essa estrutura internamente social, a criação literária é aberta de todos os seus lados às influências sociais dos outros campos da vida (Volóchinov, 2019VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: para uma poética sociológica. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Org., tradução, ensaio introdutório e notas S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019[1926]. p. 109–146.[1926], p. 144).

Por meio dessa exposição dos principais argumentos de Valentin Volóchinov, esperamos ter demonstrado que o contexto extraverbal é elemento integrante do conceito de enunciado literário e não literário; integra o enunciado por meio do percebido, compreendido e avaliado pelo falante, pelo personagem/acontecimento e pelo ouvinte; as avaliações sociais conectam a parte verbal e o contexto do enunciado no material da palavra.

Em O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica, Pável Medviédev (2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas E. V. Américo e S. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012[1928].[1928]) (assim como já observamos em um texto de Mikhail Bakhtin e outro de Valentin Volóchinov) formula sua poética sociológica em diálogo especialmente com os primeiros escritos dos formalistas russos, produzidos entre 1914 e 1919. Conforme exposto na introdução deste artigo, Van Dijk considera que teorias formalistas dominaram a esfera científica das ciências humanas depois da Segunda Guerra Mundial. Já Pável Medviédev aponta que o formalismo tem sua “pátria” na França do século XVII, mas ele se concentra nos formalistas da arte no século XIX da Europa Ocidental (que se posicionaram diante da crise do positivismo e do idealismo) e nos anos 1910 da Rússia.

Logo de início, o autor explicita que a questão norteadora do livro é superar a ruptura entre o estudo de um fenômeno ou produto ideológico (uma obra de arte, um trabalho científico, uma cerimônia religiosa compostos por seus materiais, formas e propósitos) e as especificidades dos campos da criação ideológica. Em outros termos, a questão é: “Como reunir, na unidade da construção artística, a imediata presença material de uma obra singular, seu aqui e agora, com a infinita perspectiva semântica dos significados ideológicos introduzidos nela?” (Medviédev, 2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas E. V. Américo e S. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012[1928].[1928], p. 181)

A resposta a essa questão é orientada pela tese de que os fatores sociais externos influenciam a natureza interna da literatura (seu enredo, estilo, composição etc.), tornando-se internos. Com esse propósito, são apresentados os componentes dos fenômenos ideológicos: primeiramente, eles “se realizam no processo da comunicação verbal” (Medviédev, 2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas E. V. Américo e S. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012[1928].[1928], p. 51), ou seja, envolvem relações sociais entre autor e destinatário; em segundo lugar, são parte da realidade social e material na qualidade de signos; em terceiro lugar, integram e são influenciados pelo meio ou horizonte ideológico geral de dada época e de dada sociedade, que é formado pelo conjunto dos objetos-signos (obras de arte, símbolos religiosos etc.) constitutivo da “consciência social de uma dada coletividade” (Medviédev, 2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas E. V. Américo e S. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012[1928].[1928], p.56); em quarto lugar, um fenômeno ideológico sofre a influência privilegiada dos outros fenômenos ou produtos, contemporâneos e passados, de um determinado campo ideológico: uma obra literária é parte do meio literário, um artigo científico é parte do meio científico etc.; por fim, a relação entre, por um lado, um fenômeno ideológico e, por outro, o meio ou horizonte ideológico geral e a base econômica é de reflexo e de refração, ou seja, nem totalmente autônomo nem “submisso” por completo.

Esses componentes evidenciam que a metodologia de isolamento do objeto de estudo do método sociológico — o objeto ideológico — não pode apartá-lo do sistema da interação social, sem o qual esse objeto se torna um “puro objeto da natureza” (Medviédev, 2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas E. V. Américo e S. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012[1928].[1928], p. 134).

Toda essa reflexão leva à proposição do enunciado como um ato social, que é, a união indissolúvel entre um conjunto material particular (sonoro, pronunciado, visual) e um fenômeno histórico inseparável do acontecimento da comunicação. O contexto do enunciado, enquanto um ato sócio-histórico, é composto pelo conjunto das condições sócio-históricas e pela situação concreta, isto é, horizonte ideológico amplo e contexto imediato. O que une a presença material da palavra e seus sentidos ideológicos é, na proposta de Pável Medviédev, 2012MEDVIÉDEV, P. O método formal nos estudos literários: Introdução crítica a uma poética sociológica. Tradução e notas E. V. Américo e S. Grillo. São Paulo: Contexto, 2012[1928].[1928]), a avaliação social que determina a seleção dos recursos linguísticos e sua combinação no enunciado, ou ainda, a escolha e a ligação entre conteúdo e forma. Adiante, o autor identifica a avaliação social como a atmosfera axiológica e sua orientação avaliativa no meio ideológico, ou seja, entender um enunciado no contexto da sua contemporaneidade e no contexto do seus leitores extemporâneos. As palavras são escolhidas pelo poeta e outros autores (cientista, publicitário, jornalista) em razão das avaliações sociais nelas contidas.

Último aspecto analisado por Medviédev é o gênero, definido como uma “totalidade típica do enunciado” (Medviédev, 2012[1928], p. 193) e que se orienta, por um lado, para seus ouvintes e receptores e seus modos de recepção (leitura silenciosa, lugar e tempo específico, em uma esfera ideológica etc.), e, por outro, para a vida por meio do seu conteúdo temático (seleciona, domina e aprofunda determinados aspectos da realidade).

Na obra de Pável Medviédev, novamente a parte material (verbal, sonora, plástica etc.) e extraverbal ou contexto se unem na composição do enunciado mediados pela avaliação social. O contexto sociohistórico do enunciado ou de qualquer fenômeno ideológico é formado pela situação comunicativa imediata, pelo campo ideológico específico do enunciado (literário, artístico, científico) e pelo horizonte ideológico geral de uma época e de uma sociedade (conjunto dos objetos-signos — obras de arte, símbolos religiosos, afirmações científicas etc. — que constituirão a consciência social de uma coletividade). A relação entre o enunciado e o contexto é de reflexo e de refração, ou seja, o enunciado não é nem totalmente autônomo nem “submisso” por completo ao contexto. Essa compreensão orienta a metodologia de isolamento do objeto de pesquisa do método sociológico: os fenômenos ideológicos (obras de arte, trabalhos científicos etc.) são sócio-históricos, não podendo prescindir do contexto.

Em 1929, Mikhail Bakhtin (2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929]) publica a primeira versão de seu conhecido livro sobre Fiódor Dostoiévski: “Problemas da obra de Dostoiévski”. Em seu prefácio, o autor se propõe, do ponto de vista metodológico, a superar a separação entre uma análise ideológica e uma análise formal a fim de encontrar “a ideologia que determinou sua forma artística” (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p. 52) e, para isso, explicita sua convicção de que:

toda criação literária é interna e imanentemente sociológica. Nela cruzam-se forças sociais vivas, cada elemento de sua forma está permeado por avaliações sociais vivas. É por isso que uma análise puramente formal deve tomar cada elemento da estrutura artística como um ponto de refração das forças sociais vivas [...]

Há, aqui, uma grande coerência entre os textos do Círculo analisados até o momento: a forma artística (objeto de estudo do autor, mas poderia ser a forma científica, a jornalística, a religiosa etc.) não pode ser compreendida sem as forças sociais nela refratadas, ambas mediadas pelas avaliações sociais. Na análise do romance polifônico, Bakhtin sustenta que as teses ideológicas extraídas do contexto social, histórico e ideológico de Dostoiévski são refratadas no conteúdo do romance mediadas pela “arquitetônica artística das obras de Dostoiévski” (Bakhtin, 2022[1929], p. 60); esta também chamada de forma, visão ou vontade artística, ou ainda da “ideologia constituinte da forma” (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p. 133)15 15 Ao analisar o trabalho de Vietchsláv Ivánov, Mikhail Bakhtin observa que esse autor não mostrou como a visão de mundo de Dostoiévski se transformou na “visão de mundo artística e da construção artística do todo verbal do romance” (...) (Bakhtin, 2022[1929], p.83). . Segundo Bakhtin, essa arquitetônica, forma, visão ou vontade artística representa o mundo segundo o critério da “coexistência e interação” (Bakhtin, 2022[1929], p. 93, 97, 98), ou seja, da coexistência espacial das contradições diferentemente do critério da série temporal em formação, como ocorre na dialética. Esse critério se orienta ainda pela dominante da “autoconsciência” do personagem e pela inter-relação de “eus” enquanto princípios estruturantes das obras de Dostoiévski. Por fim, Bakhtin postula que a “contraposição dialógica” (Bakhtin, 2022[1929], p.275) e inconclusa é o centro dos romances de Dostoiévski e o traço definidor do ser humano. Esses princípios levam às seguintes conclusões de Bakhtin no final do último capítulo:

O diálogo do “homem com o homem”, que analisamos, é um documento sociológico excepcionalmente interessante. A percepção excepcionalmente aguda da outra pessoa como o “outro”, e do seu “eu” nu, pressupõe que todas as definições que revestem o “eu” e o “outro” com uma carne social concreta — de família, de estrato, de classe e de todas as variações dessas definições — perderam sua autoridade e sua força criadora de forma. É como se a pessoa se apercebesse diretamente no mundo, como um todo, sem quaisquer instâncias intermediárias, à parte de qualquer coletivo social ao qual poderia pertencer (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p. 302).

Mikhail Bakhtin afirma que essa forma artística ocorre no contexto sociohistórico russo do século XIX, marcado pelo contato de mundos e grupos sociais que antes estavam isolados, e ainda pelo “processo de diferenciação social aguda, o processo de separação e decomposição de grupos anteriormente fechados e autossuficientes”. (Bakhtin, 2022[1929], p. 273). Esse contexto deveria “revelar e elucidar o próprio material sujeito a uma explicação socioeconômica” (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p. 272). Bakhtin demonstra uma preocupação teórico-metodológica de evitar, por um lado, reduzir a obra artística a reflexo do contexto extraverbal, e, por outro, analisar o material verbal da obra literária como uma reconstrução artística do meio socioeconômico orientado por princípios artísticos do autor, tais como os acima expostos brevemente.

Outro aspecto do contexto neste trabalho é a relação com o objeto da representação — os personagens do romance. Mikhail Bakhtin opõe os verbos “criar” e “inventar” personagens: “(...) criar não significa inventar. Toda criação está ligada tanto às suas próprias leis quanto às leis do material com a qual ela trabalha. Toda criação é determinada pelo seu objeto e pela sua estrutura (...)” (Bakhtin, 2022[1929], p.121). Os princípios de representação, a arquitetônica autoral, são determinados pelo referente do romance: os personagens criados a partir da vida, cujas características determinam a criação do autor, ou seja, o autor não é totalmente livre para criar, mas também não realiza um simples reflexo de seres extra-artísticos.

Na última parte da obra, ao analisar o estilo verbal de Dostoiévski criador do ponto de intersecção dos horizontes dos personagens, o contexto extraverbal recobre vários aspectos da obra literária: a orientação da palavra autoral para seu objeto (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p.174); as “intenções do autor” que podem ou não ser expressas diretamente na narração do romance (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p.166); as “avaliações sociais segmentadas” refletidas e refratadas no estilo do autor (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p.168); a antecipação das objeções, avaliações e pontos de vista do interlocutor na palavra literária (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p.176); a orientação autoral à palavra alheia, seja na mesma direção semântica, seja em direções semânticas distintas como na paródia (nos limites das intenções do autor) e na polêmica (influenciando a palavra do autor de fora). Ao defender que a orientação à ou relação com palavra alheia é um dos principais traços do romance de Dostoiévski, Mikhail Bakhtin afirma a natureza social interna da linguagem enquanto “meio de comunicação social em eterno movimento” (Bakhtin, 2022[1929], p.184), pois a “vida da palavra está na passagem de uma boca a outra boca, de um contexto a outro contexto, de uma coletividade social a outra, de uma geração a outra geração” (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929], p.183–184, grifo nosso).

Em “Problemas da obra de Dostoiévski” (Bakhtin, 2022BAKHTIN, M. Problemas da obra de Dostoiévski. Tradução, notas e glossário S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2022[1929].[1929]), Mikhail Bakhtin objetiva revelar os princípios da visão de mundo ou a arquitetônica artística de Dostoiévski. Essa ideologia orientadora da forma artística faz a mediação entre o contexto sóciohistórico do autor e a construção material da obra. Se, por um lado, não podemos reduzir a análise de uma obra artística ao reflexo do seu contexto, por outro, o autor elabora seus princípios artísticos à luz de uma compreensão aguda e original do seu meio social, histórico e ideológico. Nos textos anteriormente analisados de Valentin Volóchinov e Pável Medviédev, a avaliação social parece ocupar o lugar de mediação que a arquitetônica artística ocupa no texto de Mikhail Bakhtin.

Por fim, a análise de enunciados de outras esferas ideológicas (científica, religiosa, jornalística etc.) pode se beneficiar dessa concepção de forma comparativa, ao se questionar, por exemplo, se a forma científica de um artigo seria determinada de maneira tão decisiva pelo seu autor, quanto uma obra literária. As avaliações sociais da esfera ideológica não seriam mais determinantes na forma científica do artigo do que a arquitetônica do autor? Poderíamos detectar artigos em que o autor faz uma recriação formal em benefício de um conteúdo original?

Em “Marxismo e filosofia da linguagem. Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem”, Valentin Volóchinov (2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929]) objetiva (mencionando o interesse pela palavra despertado pelos formalistas) investigar o lugar da linguagem no pensamento marxista, orientado pelas seguintes questões centrais: a realidade concreta dos fenômenos linguísticos, “o papel produtivo e a natureza social do enunciado” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 87) e o problema do enunciado alheio.

Ao defender o caráter material da palavra ou dos signos ideológicos verbais, Volóchinov propõe que eles são: 1) constituídos nas esferas ideológicas (“ciência, arte, religião etc.”) ou contextos ideológicos integrais (Volóchinov, 2021[1929], p.104) bem como na comunicação ideológica cotidiana, onde adquirem modos específicos de orientação na realidade; 2) formados no meio social e ideológico; 3) determinados por e parte das “condições e as formas da comunicação social” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 98); 4) são constituídos no cruzamento de ênfases “valorativas”, “sociais” ou “ideológicas”, ou seja, recebem uma atenção da sociedade (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 110-111).

Ao delimitar e isolar o objeto da filosofia da linguagem, Valentin Volóchinov descreve que a linguagem é composta pelo som como fenômeno acústico, pelo processo fisiológico de produção do som e de sua percepção sonora, pelos signos interiores do falante e do ouvinte, mas que todos esses aspectos só se tornam linguagem sob duas condições: na unidade do meio social (numa mesma coletividade linguística e em uma sociedade organizada de modo específico) e no acontecimento da comunicação social mais próxima. Portanto, situação próxima e contexto amplo são elementos integrantes do que ele entende por língua ou linguagem verbal humana.

Na sequência, ao finalizar as críticas ao subjetivismo individualista e ao objetivismo abstrato, Volóchinov afirma que o “sentido de uma palavra é totalmente determinado por seu contexto” (Volóchinov, 2021[1929], p. 195) e propõe que a abordagem do sentido deve orientar-se por uma combinação dialética da unidade do significado com a sua multiplicidade constituída em “contextos multidirecionais” em “estado de interação e embate tenso e ininterrupto” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 197), como ocorre quando uma palavra pronunciada por dois locutores em um diálogo adquire diferentes sentidos em função de ênfases valorativas diferentes no contexto de cada réplica.

A abordagem do sentido é retomada no capítulo “Tema e significação”, em que “o tema do enunciado é definido não apenas pelas formas linguísticas que o constituem [...] mas também pelos aspectos extraverbais da situação.” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 228). Além disso, a significação estável do enunciado faz a conexão com “aquilo que veio antes e que veio depois” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 229), ou seja, os enunciados-fonte anteriores e os enunciados-resposta posteriores. Na tradição retórico-hermenêutica proposta por François Rastier e por nós exposta acima, essa conexão se dá no interior de um corpus, que é formado, em primeiro lugar, pelos textos que pertencem a um mesmo gênero.

Na defesa de que “a palavra é um ato bilateral” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 205), ganha destaque a orientação da palavra para o interlocutor, este definido por seu grupo social, por sua relação hierárquica (inferior ou superior) e por seus laços sociais (pai, irmão, amigo etc.) com o locutor. Em seguida, é afirmado que o enunciado é determinado de dentro de sua estrutura e estilo pela situação social mais próxima (em especial, pelos seus participantes — locutor e interlocutor) e pelo meio social mais amplo: “Essa situação social mais próxima e o participantes sociais mais imediatos determinam a forma e o estilo ocasionais do enunciado.” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 207) Nesta obra, a expressão “orientação social” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 207) ganha uma acepção mais ampla e imprecisa: a determinação da vivência interior e do enunciado pela situação social mais próxima, pelo interlocutor (também chamado de ouvinte potencial), pela posição social do locutor, pelo contexto valorativo (apelo, propaganda, protesto etc.), pela situação mais distante (conjunto de condições de uma coletividade falante), pelos discursos anteriores de uma mesma esfera. Tudo isso é, a nosso ver, sintetizado no conceito central do livro de que a realidade fundamental da linguagem é “o acontecimento social da interação discursiva que ocorre por meio de um ou de vários enunciados” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 219).

Ao abordar a terceira questão central da obra — o problema do enunciado alheio —, Valentin Volóchinov retoma sua tese de que o diálogo é a unidade real da linguagem, para defender que as formas de transmissão do discurso alheio revelam a orientação mútua entre o contexto autoral e o discurso transmitido, bem como o papel do contexto autoral assimilador e transmissor do discurso alheio. O discurso alheio perde seu contexto primeiro, mas mantém seu “conteúdo objetivo”, “rudimentos de sua integridade linguística” e “independência construtiva” (Volóchinov, 2021[1929], p. 250). Essa orientação mútua ou percepção ativa do enunciado alheio e da “personalidade do falante” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 319) se manifesta nos modelos de transmissão do discurso alheio e em suas modificações discursivas que são “indicadores do desenvolvimento atingido pela língua em dado momento, bem como da correlação de forças entre o enunciado autoral e o alheio” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 263). Adiante, ao expor uma das modificações do discurso direto, “o discurso alheio antecipado, disperso e oculto no contexto autoral” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 280, grifo nosso), Volóchinov analisa uma obra de Dostoiévski e conclui que “quase todas as palavras desse conto (...) compartilham simultaneamente dois contextos entrecruzados, dois discursos: o discurso do autor narrador (irônico e escarnecedor) e o discurso do personagem (que nem pensa em ironia)” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 284, grifo nosso), ou seja, as palavras ganham sentidos e entonações diversos a depender do contexto do enunciado em que são assimiladas e transmitidas. Outro aspecto desenvolvido por Volóchinov é o fato de que o discurso alheio é percebido, primeiramente, no “contexto do discurso interior” do falante que, de forma ativa, o compreende e avalia (Volóchinov, 2021[1929], p. 254). Por fim, um terceiro aspecto é o fato de que os modelos e suas modificações surgem em razão de um “deslocamento dentro da comunicação discursiva e da orientação mútua dos enunciados” (Volóchinov, 2021VOLÓCHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem: Problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Tradução, notas e glossário S Grillo e E. V. Américo. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2021[1929].[1929], p. 295), indicando que as condições extraverbais da comunicação discursiva desempenham um papel importante na constituição das diferentes formas de transmissão do discurso alheio.

Após essa exposição da presença do “contexto” nessa obra, concluímos que o contexto pode ser formado por aspectos extraverbais — a situação comunicativa imediata (locutores e suas posições sociais, tempo, espaço etc.), o contexto sócio-ideológico amplo (esferas ideológicas, a mesma coletividade linguística, uma sociedade organizada de modo específico etc.), a orientação para o interlocutor, as avaliações sociais — e por contextos verbais — os enunciados-fonte e enunciados-resposta de enunciado, o discurso interior do falante, o discurso verbal (autoral ou do personagem) assimilador e transmissor do discurso alheio. Ao responder à pergunta sobre a natureza concreta da linguagem, Volóchinov defende que o contexto extraverbal é parte integrante do acontecimento social da interação discursiva, esta tomada como a essência da língua/linguagem, e elemento determinante do tema ou sentidos singulares dos enunciados em constante tensão com as significações mais estáveis da língua.

Na sequência, abordaremos o contexto, de modo conjunto, nos três artigos que formam o projeto de popularização científica16 16 Conforme informamos no ensaio introdutório “Registros de Valentin Volóchinov nos arquivos do ILIAZV” (Grillo; Américo, 2019), esses três artigos foram publicados no periódico Literatúrnaia utchióba. Jurnál dliá samoobrazovániia [Estudos da literatura. Revista para auto-formação], em 1930. Pelo que sabemos até este momento, trata-se dos três últimos textos publicados por Valentin Volóchinov. A revista Literatúrnaia utchióba foi criada em 1930 pelo escritor Maksím Górki, seu editor chefe, com o propósito de ensinar o ofício literário a escritores iniciantes das camadas sociais populares. “A estilística do discurso literário” (1930): I. O que é a linguagem/língua?; II. A construção do enunciado; III A palavra e sua função social.

Em primeiro lugar, o contexto compreende a organização econômica (ou organização social do trabalho) e sociopolítica de uma coletividade, fatores e forças produtoras da linguagem verbal humana, ou seja, a linguagem humana ou língua é o resultado de uma atividade coletiva que ocorre em determinadas condições econômicas, sociais e políticas. Em segundo lugar, a língua — como forma materializada da comunicação social — exerce uma influência inversa sobre essas condições ao marcar uma “ruptura com o mundo da natureza” e ao criar o mundo da cultura ou dos sistemas ideológicos (ciência, arte, moral, direito etc.) (Volóchinov, 2019a[1930], p. 248).

Na “Estilística do discurso literário II”, Valentin Volóchinov retoma esses fatores e forças para afirmar que: 1) a “essência real da língua é o acontecimento social da interação discursiva, realizada em um ou muitos enunciados” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 268); 2) a “situação” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 269) do artigo I se tornam as variedades da comunicação social (no setor produtivo, no cotidiano, na comunicação ideológica).

Em seguida, novamente o discurso interior é a condição para a comunicação discursiva ao possibilitar a “compreensão do signo e a resposta a ele” (Volóchinov, 2019a[1930], p. 250). Embora aqui Volóchinov não empregue o termo contexto, entendemos que se trata do mesmo sentido que encontramos em “Marxismo e filosofia da linguagem” a respeito do contexto do discurso interior de compreensão e de avaliação do discurso alheio.

Na sequência de “A estilística do discurso literário I”, ao abordar a passagem do discurso interior ao discurso exterior ou enunciado, o contexto é tratado como o “ambiente social mais próximo (...) que determina a forma do enunciado” (Volóchinov, 2019a[1930], p. 256), do qual Valentin Volóchinov destaca o papel dos seus participantes ou interlocutores mais próximos e mais distantes. Na passagem do discurso interior ao exterior, o autor destaca a orientação social de ambos: primeiramente, o discurso interior é orientado para um ouvinte presumido; em seguida, a obra, enunciado ou discurso exterior considera “um ouvinte real e presente” (Volóchinov, 2019a[1930], p.263) e deve dominar “as condições técnicas exteriores” (no caso de uma obra literária, a redação, a tipografia, o mercado editorial etc.) (Volóchinov, 2019a[1930], p. 250–51).

Na “Estilística do discurso literário II e III”, Valentin Volóchinov avança cinco questões:

  • usa o termo “auditório” para designar os “participantes da situação” (Volóchinov, 2019b[1930], p.269) e, em seguida, define a “orientação social do enunciado” como sua “dependência [...] em relação ao peso sócio-hierárquico do auditório” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 280);

  • afirma que todo enunciado é formado por uma “parte verbal expressa” e “uma parte extraverbal não expressa, sem a qual não é possível compreender o próprio enunciado” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 269);

  • o enunciado, ao constituir-se em uma “interação discursiva gerada em uma comunicação social” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 269), toma a forma de um gênero;

  • o enunciado é formado por uma parte não verbal: “gestos”, “expressão do rosto”, “pose do corpo” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 281);

  • o enunciado é formado por um “sentido”, “conteúdo” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 282-283), dependente do “ambiente mais próximo” (espaço e tempo do acontecimento do enunciado, seu tema e a avaliação dos falantes com o ocorrido) e “das condições sociais mais longínquas da comunicação social” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 283). A conclusão do artigo é que a situação imediata e a longínqua — com destaque para o auditório — determinam o tema, a entonação17 17 Em uma nota de rodapé do artigo I, Volóchinov assim define a entonação: “é o aumento ou diminuição do volume da voz, que expressa nossa relação com o objeto do enunciado (de alegria, de tristeza, de surpresa, de questionamento etc.)” (Volóchinov, 2019a[1930], p. 255). No artigo II, o autor acrescenta que a entonação é “a expressão sonora da avaliação social” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 287). , a escolha das palavras e a disposição delas no todo do enunciado.

Por fim, em “A estilística do discurso literário III. A palavra e sua função social’ (Volóchinov, 2019c[1930], p. 311), Volóchinov retoma a questão de “Marxismo e filosofia da linguagem” sobre como um “fenômeno da realidade material” se torna um “fenômeno da realidade ideológica”, para argumentar que a “palavra”, apesar de também ser uma parte da realidade material, é desde o início um fenômeno puramente ideológico dependente de uma coletividade socialmente organizada. Na comunicação social e na interação discursiva, a palavra reflete e refrata “os pontos de vista” contraditórios dos indivíduos e dos grupos sociais de uma coletividade sígnica que a impregnam de suas avaliações e entonações (Volóchinov, 2019c[1930], p. 320).

Em razão do propósito popularizador desses três artigos, Valentin Volóchinov didatiza, exemplifica, explicita, revisita os aspectos do contexto já trabalhados em “Marxismo e filosofia da linguagem”. Três ênfases sobre o contexto nesses artigos merecerem um destaque: em primeiro lugar, a afirmação do contexto como “parte extraverbal do enunciado”; em seguida, o papel da língua na criação da cultura ou sistemas ideológicos constituídos; por fim, a influência do contexto imediato e amplo na definição do tema, da entonação, da escolha das palavras e da disposição delas no todo do enunciado.

O “contexto” na obra de Mikhail Bakhtin entre 1930 e 1963

Os anos 1930 são particularmente produtivos para Mikhail Bakhtin: ele escreve uma série de longos textos sobre a teoria do romance, bem como seu livro, depois tese, sobre a obra do romancista francês François Rabelais. Ao analisar a produção bibliográfica nesse período, defendemos que “a teoria dos gêneros de Bakhtin desenvolve-se em um diálogo tenso entre o passado literário concluso e a contemporaneidade extraliterária e literária em crise e formação.” (Grillo, 2022GRILLO, S. Mikhail Bakhtin: pensador do riso, da crise e da mudança na teoria dos gêneros do discurso. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 30, p. 1185–1205, 2022., p. 1185)18 18 Em razão dos limites espaciais, faremos uma síntese das formulações de Mikhail Bakhtin a respeito da relação entre enunciado, em especial o romance, e o contexto. Para mais informações a respeito das circunstâncias teóricas, sociais e institucionais desses textos, conferir o artigo de Grillo (2022). .

Primeiramente, Mikhail Bakhtin defende ser a palavra alheia o principal objeto de representação no romance, no qual se torna bivocal, pois nela percebemos simultaneamente o estilo e a visão de mundo alheios parodiados, estilizados, polemizados ou ironizados pela palavra e visão de mundo autoral: o autor do romance entra em relações dialógicas com a linguagem-visão de mundo dos personagens e de outros gêneros. Em termos muito próximos aos de Valentin Volóchinov antes aqui expostos, o autor assimila, interpreta, avalia as palavras alheias e dialoga com elas em seu romance, que se torna o contexto discursivo-autoral do discurso alheio (Grillo, 2022GRILLO, S. Mikhail Bakhtin: pensador do riso, da crise e da mudança na teoria dos gêneros do discurso. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 30, p. 1185–1205, 2022.).

Em segundo lugar, Mikhail Bakhtin caracteriza o contexto extraverbal ou as condições históricas e culturais da vida dos helenos que proporcionaram o surgimento, por um lado, do epos, da lírica e da tragédia, e, por outro, do que viria a ser o romance:

Do seio desse monolinguismo confiante e indiscutível nasceram os grandes gêneros diretos dos helenos: epos, lírica e tragédia. Contudo, ao lado deles, sobretudo nas camadas populares inferiores, floresceu uma criação paródica-travestizante, que conservou a memória dos antigos embates linguísticos e que foi permanentemente nutrida pelos processo em curso da estratificação e diferenciação linguísticas (Bakhtin, 2012b, p. 537, tradução própria)19 19 Original: Из лона этого уверенного и бесспорного одноязычия родились великие прямые жанры эллинов – их эпос, лирика и трагедия. Они выражали централизующие тенденции языка. Но рядом с ними, особенно в народных низах, процветало пародийно-травестирующее творчество, сохранявшее память древней языковой борьбы и питаемое постоянно происходящими процессами языкового расслоения и дифференциации. .

Sempre segundo Bakhtin, embora tenha incorporado uma multiplicidade de gêneros (diálogos, peças líricas, cartas etc.), o romance grego não conseguiu expressar a consciência plurilinguística dessa criação paródica-travestizante. Já a partir do século XVII, o romance europeu se formou nas fronteiras entre as tendências linguísticas centralizadoras e as tendências renovadoras oriundas do heterodiscurso extraliterário, que apontam para os desdobramentos futuros da língua. O riso medieval e o plurilinguismo característico do surgimento das línguas europeias modernas prepararam o romance da Idade Moderna (Grillo, 2022GRILLO, S. Mikhail Bakhtin: pensador do riso, da crise e da mudança na teoria dos gêneros do discurso. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 30, p. 1185–1205, 2022.).

Em terceiro lugar, Mikhail Bakhtin propõe a distinção entre epos e romance nos seguintes termos: o epos é a poesia do passado e ocorrido, já o romance se forma na zona de contato com a contemporaneidade em processo20 20 Importante observar que Mikhail Bakhtin enfatiza não se tratar de juízo de valor e declara que não há obra que tenha lhe dado mais prazer do que a epopeia homérica. . Nessa direção, argumenta que o romance se constrói em conexão estreita com os acontecimentos inconclusos da contemporaneidade, ultrapassando as fronteiras da especificidade artístico-literária e relacionando-se com gêneros extraliterários: “o romance utilizou-se amplamente de cartas, confissões, diários, formas e métodos da retórica dos tribunais etc. A ruptura das fronteiras entre o literário e o extraliterário é outro aspecto que faz do romance um gênero em formação.” (Grillo, 2022GRILLO, S. Mikhail Bakhtin: pensador do riso, da crise e da mudança na teoria dos gêneros do discurso. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 30, p. 1185–1205, 2022., p. 1193)

Conforme apontamos (Grillo, 2022GRILLO, S. Mikhail Bakhtin: pensador do riso, da crise e da mudança na teoria dos gêneros do discurso. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 30, p. 1185–1205, 2022.), nesse processo, os demais gêneros “dialogizam-se” (Bakhtin, 2012a, p. 612) por meio do contato com o heterodiscurso, o riso, a ironia, o humor, a autoparodização e a contemporaneidade inacabada e em formação. O contexto que favoreceu, segundo Bakhtin, essas particularidades foi a abertura do pensamento e da vida do ser humano europeu para a variedade de culturas, línguas (em estreita interação e que se “interiluminam” (Bakhtin, 2019BAKHTIN, M. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019., p. 76) e tempos (presente em processo, sem começo nem fim). Bakhtin localiza as fontes dessas particularidades no riso popular, no folclore e no estilo sem cerimônias desses gêneros, prontos a refletir a contemporaneidade, as linguagens populares, seu caráter ambivalente destruidor e renovador. Para Bakhtin, o riso é o fator essencial de aproximação do gênero romance de uma percepção realista do mundo; ideia desenvolvida por Bakhtin nas análises do romance de Rabelais (Bakhtin, 2010[1929]) e do diálogo socrático no romance polifônico de Dostoiévski.

O último texto analisado neste artigo é “Problemas da poética de Dostoiévski” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963]), uma vez que ele, por um lado, permite a percepção do desenvolvimento das ideias de Mikhail Bakhtin pela comparação com “Problemas da obra de Dostoiévski” (Bakhtin, 2022[1929]), e, por outro, contém a proposta de uma disciplina, a metalinguística, fundamental a todos os linguistas e teóricos do discurso que compreendem a palavra em sua relação intrínseca com o contexto extraverbal e verbal.

Ao anunciar os objetivos do livro, Mikhail Bakhtin enfatiza que abordará apenas os problemas da poética de Dostoiévski e que seu objetivo é descobrir sua inovação na forma artística, considerando os “princípios básicos da estética europeia” (Bakhtin, 2010[1963], p. 1), ou seja, os romances-enunciados de Dostoiévski representam uma inovação no contexto da estética ou esfera literária europeia anteriores a ele. Se no texto de 1929, a ênfase estava na relação entre contexto extraverbal histórico e social e a sua reconstrução pela arquitetônica do autor, agora, sem perder essa perspectiva, Bakhtin acentua o diálogo de Dostoiévski com o contexto (ou tradição) literário, estético, artístico.

Ao analisar a fortuna crítica sobre Dostoiévski, Mikhail Bakhtin se depara com o autor alemão Otto Kaus (1923)KAUS, O. Dostoewski und sein Schicksal. Berlin: [s.n.], 1923. que explica o surgimento do romance polifônico como resultado do avanço do capitalismo na Rússia no século XIX. Embora critique o fato de Otto Kaus não revelar as peculiaridades da construção desse romance, Mikhail Bakhtin avalia positivamente a consideração do contexto econômico e social russo para a compreensão do surgimento do romance polifônico: “a essência da contraditória vida social em formação [...] devia manifestar-se de modo sobremaneira marcante, enquanto deveria ser especialmente plena e patente a individualidade dos mundos que haviam rompido o equilíbrio ideológico e se chocavam entre si.” (Bakhtin, 2010[1929], p. 21). Adiante, ao comentar outro autor, Bakhtin afirma: “as contradições objetivas da época determinaram a obra de Dostoiévski não no plano da erradicação individual dessas contradições na história espiritual do escritor, mas no plano da visão objetiva dessas contradições como forças coexistentes” (Bakhtin, 2010[1929], p. 31). O contexto ideológico extraverbal, embora não seja o foco da análise de Bakhtin, é avaliado como determinante da criação de Dostoiévski.

Nessa mesma direção, Bakhtin analisa o conhecido artigo-resenha de Lunatchárski21 21 Há uma excelente análise deste artigo em Nuto (2021). (1929), chegando à conclusão de que: “As novas formas de visão artística são preparadas lentamente, pelos séculos; uma época cria apenas as condições ideais para o amadurecimento definitivo e a realização de uma nova forma. Descobrir esse processo de preparação artística do romance polifônico é tarefa da poética histórica.” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 41). Aqui Mikhail Bakhtin reconhece, por um lado, a importância do contexto sócio-histórico extraverbal para a explicação e a compreensão do surgimento de um gênero literário e, por outro, ser a tradição estética (ou, generalizado para outros campos, a história de evolução de um gênero em sua esfera) também fundamental para a sua aparição. Duas dimensões do contexto são aqui abordadas: o contexto social, histórico e econômico extraverbal, bem como os enunciados anteriores de uma esfera da cultura ou da atividade humana.

Em seguida, ao analisar o modo de construção dos personagens no romance polifônico, Mikhail Bakhtin (2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963]) identifica uma inversão na relação entre os personagens e sua realidade: as condições sociais do personagem e seu mundo são objeto de sua reflexão, com isso o personagem não coincide consigo próprio nem é pré-determinado por suas condições de vida, há sempre um excedente de humanidade dada na autoconsciência dos personagens.

No capítulo “A ideia em Dostoiévski”, Bakhtin, ao analisar a função artística da ideia nos obras de Dostoiévski, emprega a palavra contexto em duas circunstâncias:

  1. No “contexto artístico de sua criação” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 103), as ideias de Dostoiévski “tornam-se inteiramente dialógicas e entram no grande diálogo do romance em absoluto pé de igualdade com outras imagens de ideias” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 103); já em seus textos jornalísticos, as ideias de Dostoiévski assumem “forma sistêmico-monológica ou retórico-monológica” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 103). Em outros termos, as ideias de Dostoiévksi ganham formas de existência distintas a depender da esfera, do gênero e do projeto autoral em que são formuladas: romance literário ou artigo jornalístico;

  2. Ao abordar como as ideias, no projeto artístico de Dostoiévski, são inseparáveis da voz da pessoa que as produziu e do seu contexto verbal: “É típico das obras de Dostoiévski não haver semelhantes ideias particulares, teses e formulações do tipo de sentenças, máximas, aforismos, etc., que separadas do contexto e desligadas da voz, conservem em forma impessoal a sua significação semântica” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 108). Para Bakhtin, a ideia, a pessoa que a emitiu e seu contexto são indissociáveis nas obras de Fiódor Dostoiévski.

Adiante, o romance polifônico criado por Dostoiévski se conecta com tradições de gêneros literários do “romance de aventura” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 116), do “sério-cômico” ligados ao folclore carnavalesco (diálogos socráticos, os simpósios, a sátira menipéia etc.) (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 121). Mikhail Bakhtin, orientado por uma “poética histórica dos gêneros” (Bakhtin, 2010[1963], p. 122 e p.173), visa revelar, por um lado, a tradição histórico-genética da literatura europeia na qual a obra de Dostoiévski se inscreve — “O gênero vive do presente, mas sempre recorda o seu passado, o seu começo.” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 121) — e, por outro, como “os traços tradicionais do gênero se combinam organicamente com a singularidade individual e a aplicação profunda desses traços em Dostoiévski” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 177).

O contexto sócio-histórico de formação dos gêneros é mobilizado em dois momentos da poética histórica: 1) Bakhtin recupera o contexto de formação do gênero sátira menipéia: uma “época” da “desintegração popular nacional”, de “luta tensa entre inúmeras escolas e tendências religiosas e filosóficas heterogêneas”, de “preparação e formação (...) do cristianismo” (Bakhtin, 2010[1963], p. 136); e 2) o caráter flexível e dinâmico da carnavalização se mostrou eficaz na época em que Dostoiévski produziu suas obras, ou seja, na época de introdução do capitalismo na Rússia no século XIX:

Ao tornar relativo todo o exteriormente estável, constituído e acabado, a carnavalização, com sua ênfase nas sucessões e na renovação, permitiu a Dostoiévski penetrar nas camadas profundas do homem e das relações humanas. Ela se revelou surpreendentemente eficaz à compreensão artística das relações capitalistas em desenvolvimento, quando as formas anteriores de vida, os alicerces morais e as crenças se transformavam em “cordas podres” e punha-se a nu a natureza ambivalente e inconclusível do homem e do pensamento humano até então oculta. Não apenas os homens e seus atos, como também as ideias abandonaram os seus ninhos hierárquicos fechados e passaram a chocar-se no contato familiar do diálogo “absoluto”(isto é, não limitado por nada) (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 192–193).

Aqui, Mikhail Bakhtin mobiliza conjuntamente duas dimensões do contexto: tradição literária — ao revelar a “transposição do carnaval para a linguagem da literatura” no que ele chama de “carnavalização da literatura” (Bakhtin, 2010[1963], p. 139, 140), um dos ramos da “história da cultura” — e contexto sócio-histórico. Sua conclusão é que “nossa análise diacrônica confirma os resultados da sincrônica” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 206). A nosso ver, essa abordagem teórico-metodológica se aproxima, em certos aspectos, da tradição retórico-hermenêutica proposta por François Rastier, pois Mikhail Bakhtin conecta a história do gênero e a situação social, ideológica, temporal de seu surgimento e formação, mas sem perder a contribuição singular individual do autor.

Para finalizar a análise dessa obra, destacamos a proposição da metalinguística como uma disciplina que estuda o “discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 207) e tem por objeto as “relações dialógicas” (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 208) que são “extralinguísticas” e ocorrem no interior e entre “enunciados integrais (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 208-209) de diferentes sujeitos ou autores (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 209). Ao definir o conjunto de fenômenos discursivo-literários a serem estudados pela linguística — paródia, estilização, diálogo etc. — Bakhtin usa recorrentemente a palavra “contexto” (Bakhtin, 2010[1963], p. 212) para se referir ao “contexto monológico” de um autor22 22 Adiante nesse mesmo texto, Mikhail Bakhtin (2010[1963], p. 223) usa a expressão “discurso autoral/do autor” [авторская речь] com o mesmo sentido de “contexto autoral/do autor”. e ao “segundo contexto” do enunciado alheio no enunciado do autor (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 212, 213) e faz a seguinte síntese

A palavra não é um objeto, mas um meio constantemente ativo, constantemente mutável de comunicação dialógica. Ela nunca basta a uma consciência, a uma voz. Sua vida está na passagem de boca em boca, de um contexto para outro, de um grupo social para outro, de uma geração para outra. Nesse processo ela não perde o seu caminho nem pode libertar-se até o fim do poder daqueles contextos concretos que integrou (Bakhtin, 2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 232, grifo nosso).

Aqui Bakhtin emprega a palavra contexto, sobretudo, na acepção de contexto verbal de um enunciado autoral, mas, em um segundo plano, no sentido do contexto extralinguístico de um enunciado.

Descobertas da pesquisa

A noção de contexto é central em teorias do texto e do discurso, ganhando, recentemente, extensas reflexões que a colocam no núcleo de epistemologias da linguagem. Seja sob a perspectiva retórico-hermenêutica de François Rastier, seja sob o ponto de vista sociocognitivo de Teun van Dijk, a entrada do contexto na ciência da linguagem resultou em um campo de pesquisas que tirou das abordagens gramaticais e formalistas a exclusividade da reflexão científica sobre a linguagem verbal humana.

Na antropologia filosófica de Mikhail Bakhtin, o contexto está presente, primeiramente, na teorização sobre a existência humana: os contextos histórico-real e ético-valorativo integram a reflexão sobre o lugar único ocupado pelo “eu” na existência com sua verdade individual singular e sua contraposição valorativa Eu/Outro, com impactos sobre toda a teorização posterior sobre a cultura e a linguagem. O lugar único ocupado pelo “eu” é afirmado na existência histórica da humanidade, ou seja, o estatuto singular de cada ser humano não nega sua vinculação aos valores históricos e sociais da humanidade.

No diálogo com o formalismo russo, que, em sua primeira fase, priorizava a forma linguística como a essência da arte literária em detrimento de seu contexto social, histórico e ideológico, Mikhail Bakhtin propõe uma estética da obra de arte na relação com obras culturais pré-existentes, e uma estética da obra literária, que, ao situar-se em relação à linguística da língua da época, concebe o enunciado artístico como uma unidade em um contexto axiológico-semântico cultural.

A afirmação de Mikhail Bakhtin de que o “contexto é potencialmente inacabável” (Bakhtin, 2017[1970–71], p. 44) expressa bem a complexidade dessa noção no método sociológico desenvolvido por Bakhtin/Medviédev/Volóchinov na segunda metade dos anos 1920. No centro da reflexão está o conceito de enunciado, concebido como formas específicas da comunicação social, realizadas e fixadas no material da palavra. Aqui o contexto compreende as seguintes dimensões: a situação extraverbal — situação comunicativa imediata, campo ideológico específico do enunciado (literário, artístico, científico etc.), a mesma coletividade linguística, uma sociedade organizada de modo específico — que exercem influência na definição do tema, da entonação, da escolha das palavras e da disposição delas no todo do enunciado; o horizonte ideológico de uma época ou de uma sociedade (conjunto dos objetos-signos — obras de arte, símbolos religiosos, afirmações científicas etc. — que constituirão a consciência social de uma coletividade ou a avaliação social compreendida como a atmosfera axiológica da contemporaneidade). O contexto extraverbal é elemento determinante do tema ou sentidos singulares dos enunciados em constante tensão com as significações mais estáveis da língua, assemelhando-se à tradição retórico-hermenêutica da língua (Rastier, 2022RASTIER, F. Au milieu du chemin: entretien avec François Rastier par Éric Trudel. Acta semiotica et lingvistica, João Pessoa, v. 27, n. 2 (46), p. 168–176, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/view/63003. Acesso em: 20 ago. 2023.
https://periodicos.ufpb.br/index.php/act...
) como um sistema constantemente modificado pelo uso e trabalhado pela história.

De modo recorrente, Bakhtin, Medviédev e Volóchinov demonstram a preocupação teórico-metodológica de não reduzir a obra artística a um reflexo do contexto extraverbal, e, para isso, postulam duas mediações: Mikhail Bakhtin defende que o material verbal da obra literária é uma reconstrução artística do meio socioeconômico orientado por princípios artísticos do autor ou de sua arquitetônica artística; já Valentin Volóchinov e Pável Medviédev propõem que a união da parte verbal e extraverbal do enunciado é feita pela avaliação social, isto é, a expressão da relação ativa do locutor/autor com o objeto do enunciado (o que ele percebe, compreende e avalia) que assume tonalidades sob a influência do tom principal da atmosfera axiológica da contemporaneidade. Outra formulação nesse sentido é propor que a relação entre a parte verbal e a parte extraverbal do enunciado é de reflexo e de refração, para evidenciar que o enunciado não é nem totalmente autônomo nem “submisso” por completo à realidade extraverbal.

O contexto também pode ser verbal e, nessa direção, compreende os enunciados-fonte e os enunciados-resposta de um enunciado; o gênero do discurso; o discurso interior do falante, que percebe, avalia e assimila, de forma ativa, o discurso alheio, sempre orientado pela percepção de um interlocutor presumido; o discurso ou contexto verbal (autoral ou do personagem) em que um enunciado alheio é assimilado e percebido.

Por fim, contexto verbal e extraverbal, tal como foram acima caracterizados, são parte indissociável do objeto de estudo da metalinguística bakhtiniana — as relações dialógicas no interior e entre enunciados — e dos fenômenos discursivos (diálogo, paródia, polêmica aberta e velada etc.) em que se realizam.

REFERÊNCIAS

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  • BAKHTIN, M. Teoria do romance III: o romance como gênero literário. Tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2019.
  • BAKHTIN, M. Fragmentos dos anos 1970–1971. In: BAKHTIN, M. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Org., tradução, posfácio e notas P. Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2017[1970–71]. p. 21–56.
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  • VOLÓCHINOV, V. Estilística do discurso literário III: A palavra e sua função social. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Org., tradução, ensaio introdutório e notas S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019c[1930]. p. 306–336.
  • 1
    Rastier considera que Bakhtin retomou, em seu dialogismo, os primeiros românticos (sobretudo Schleiermacher) e se situa, apesar de sua “coloração” marxista, na tradição do idealismo subjetivo.
  • 2
    Original: « non pas comme un équivalent du référent ou du réel objectif, qui s’opposerait au verbal, mais comme une réalité mentale déterminée par l’activité pensante d’un sujet placé en situation de production ou de réception d’un message» (Vandendorpe, 1991VANDENDORPE, C. Contextes, compréhension et littérarité. RS/SI, Montreal, n. 11, p. 9–25, 1991., p.2).
  • 3
    Representantes do cognitivismo, Sperber & Wilson (1995SPERBER, D.; WILSON, D. Relevance, communication & cognition. 2. ed. Oxford; Cambridge: Blackwell, 1995[1986].[1986]), orientados por uma concepção de que a função básica da linguagem é o processamento e o armazenamento de informações, defendem o acompanhamento da informação comunicada por uma garantia de relevância e que a comunicação envolve a manifestação e o reconhecimento de intenções do falante. O contexto é um construto psicológico, ou seja, um conjunto de assunções sobre o mundo com alguma organização interna (frames, scripts, protótipos etc.) constituído por expectativas e convicções estereotipadas sobre eventos e objetos frequentemente encontrados. As implicações contextuais decorrentes de uma informação relevante resultam da interação entre informações velhas (o conjunto de representações do mundo já constituídas por um indivíduo e formado por entradas enciclopédicas) e novas.
  • 4
    Considerada como uma categoria epistemológica dos “primitivos”, portanto, não definível, na linguística estrutural, a discrição é uma das propriedades fundamentais da linguagem que permite a sua segmentação em unidades descontínuas e distintas umas das outras e que fazem parte de um sistema cujos outros elementos são em número limitado. (Dubois, 1998DUBOIS, J. et al. Dicionário de lingüística. 10. ed. Tradução I. Blikstein et al. São Paulo: Cultrix, 1998[1973].[1973]).
  • 5
    Original: « un système sans cesse modifié par son usage et travaillé par des dynamiques historiques » (Rastier, 2022, pRASTIER, F. Au milieu du chemin: entretien avec François Rastier par Éric Trudel. Acta semiotica et lingvistica, João Pessoa, v. 27, n. 2 (46), p. 168–176, 2022. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/actas/article/view/63003. Acesso em: 20 ago. 2023.
    https://periodicos.ufpb.br/index.php/act...
    , p.168).
  • 6
    Considerado o pai da hermenêutica moderna, Schleiermacher (1987, pSCHLEIERMACHER, F. D. E. Herméneutique: Pour une logique du discours individuel. Tradução C. Berner. Alençon: CERF/PUL, 1987[1809–1810]., p. 77), conciliando o princípio da composicionalidade ao da globalidade, postula: “não somente a compreensão do todo é condicionada pela do detalhe, mas ainda inversamente a compreensão do detalhe é determinada pela compreensão do todo” [no seulement la compréhension du tout est conditionnée par celle du détail, mais encore inversement la compréhension du détail est déterminée par la compréhension du tout].
  • 7
    O conceito de “representação” nomeia o modo original da presença de um objeto externo no espírito humano, ou seja, um objeto externo físico é “presente de novo” (re-presentado), mas sobre uma outra forma (Meunier, 2002)MEUNIER, J.-G. Représentation, information et culture. In: RASTIER, F.; BOUQUET, S. Une introduction aux sciences de la culture. Paris: PUF, 2002. p. 137–155..
  • 8
    No âmbito de uma semiótica da interpretação agregadora das ciências da cultura, Bouquet (2002)BOUQUET, S. De l’hexagramme cognitiviste à une sémiotique de l’interprétation. In: RASTIER, F.; BOUQUET, S. Une introduction aux sciences de la culture. Paris: PUF, 2002. p. 11–35. fala em cognição situada, ou seja, uma cognição situada em um quadro cultural.
  • 9
    Original: Вне индивидуально-волевого поступка в конкретном событии бытия царство смыслов и вечных ценности (культура в целом) и «жизнь» не имеют шансов соприкоснуться.
  • 10
    Original: Живое слово не только обозначает предмет как некоторую наличность, но своей интонацией выражает и мое ценностное отношение к нему, желательное и нежелательное в нём и этим приводит предмет в движение по направлению к заданности. (Gogotichvíli, 2003, pГОГОТИШВИЛИ, Л. А. [GOGOTICHVÍLI, L. A.] Коментарии. In: БАХТИН, М. М. [BAKHTIN, M. M.] К философии поступка [Por uma filosofia do ato]. Собрание сочинений t. 1. Философская эстетика 1920х годов [Obras reunidas vol. 1. Estética filosófica dos anos 1920]. Org. S. G. Botcharóv, N. I. Nikoláev. Moscou: Издательство русские словари/Языки славянской культуры, 2003. p. 351–438., p. 412).
  • 11
    No Brasil, esse texto foi traduzido e publicado na coletânea “Questões de literatura e estética (A Teoria do Romance)” em 1988 a partir da edição russa de 1975. A primeira parte do título “Questões de metodologia estética da criação verbal” não constava dessa tradução, e o encontramos no volume I de “M. M. Bakhtin. Obras reunidas” (Bakhtin, 2003b). Esse título é acompanhado de uma pequena introdução ao artigo, de aproximadamente uma página, após a qual aparece o nome conhecido no Brasil: “O problema da forma, do conteúdo e do material na criação artística verbal”
  • 12
    Original: Каждое явление культуры конкретно-систематично, т. е. занимает какую-то существенную им действительности позицию по отношению к преднаходимой им других культурных установок (…)
  • 13
    Original: Лингвистика является наукой, лишь поскольку она овладевает своим предметом — языком. Язык лингвистики определяется чисто лингвистическим мышлением. Единичное конкретное высказывание всегда дано в ценностно-смысловом культурном контексте — в научном, в художественном, политическом и ином, или в контексте единичной лично-жизненной ситуации; только в этих контекстах отдельное высказывание живо и осмысленно: оно истинно или ложно, красиво или безобразно, искрение или лукаво, откровенно, цинично, авторитетно п пр.: нейтральных высказываний нет и быть не может; но лингвистика видит в них лишь явление языка, относит их лишь к единству языка, но отнюдь не к единству познания, жизненной практики, истории, характера лица и. т. п.
  • 14
    Nesse texto, ao criticar o método formal por reduzir a forma à organização do material e propor que o objeto artístico compreende a inter-relação entre o criador e os contempladores fixada na obra artística, Valentin Volóchinov se aproxima das posições de Mikhail Bakhtin no ensaio de 1924 analisado por nós na seção anterior, o que evidencia a estreita afinidade teórica entre os integrantes do Círculo nos anos 1920.
  • 15
    Ao analisar o trabalho de Vietchsláv Ivánov, Mikhail Bakhtin observa que esse autor não mostrou como a visão de mundo de Dostoiévski se transformou na “visão de mundo artística e da construção artística do todo verbal do romance” (...) (Bakhtin, 2022[1929], p.83).
  • 16
    Conforme informamos no ensaio introdutório “Registros de Valentin Volóchinov nos arquivos do ILIAZV” (Grillo; Américo, 2019)GRILLO, S.; AMÉRICO, E. V. Registros de Valentin Volóchinov nos arquivos do ILIAZV. In: VOLÓCHINOV, V. A palavra na vida e a palavra na poesia: ensaios, artigos, resenhas e poemas. Org., tradução, ensaio introdutório e notas S. Grillo e E. V. Américo. São Paulo: Editora 34, 2019. p. 7–56., esses três artigos foram publicados no periódico Literatúrnaia utchióba. Jurnál dliá samoobrazovániia [Estudos da literatura. Revista para auto-formação], em 1930. Pelo que sabemos até este momento, trata-se dos três últimos textos publicados por Valentin Volóchinov. A revista Literatúrnaia utchióba foi criada em 1930 pelo escritor Maksím Górki, seu editor chefe, com o propósito de ensinar o ofício literário a escritores iniciantes das camadas sociais populares.
  • 17
    Em uma nota de rodapé do artigo I, Volóchinov assim define a entonação: “é o aumento ou diminuição do volume da voz, que expressa nossa relação com o objeto do enunciado (de alegria, de tristeza, de surpresa, de questionamento etc.)” (Volóchinov, 2019a[1930], p. 255). No artigo II, o autor acrescenta que a entonação é “a expressão sonora da avaliação social” (Volóchinov, 2019b[1930], p. 287).
  • 18
    Em razão dos limites espaciais, faremos uma síntese das formulações de Mikhail Bakhtin a respeito da relação entre enunciado, em especial o romance, e o contexto. Para mais informações a respeito das circunstâncias teóricas, sociais e institucionais desses textos, conferir o artigo de Grillo (2022)GRILLO, S. Mikhail Bakhtin: pensador do riso, da crise e da mudança na teoria dos gêneros do discurso. Revista de Estudos da Linguagem, Belo Horizonte, v. 30, p. 1185–1205, 2022..
  • 19
    Original: Из лона этого уверенного и бесспорного одноязычия родились великие прямые жанры эллинов – их эпос, лирика и трагедия. Они выражали централизующие тенденции языка. Но рядом с ними, особенно в народных низах, процветало пародийно-травестирующее творчество, сохранявшее память древней языковой борьбы и питаемое постоянно происходящими процессами языкового расслоения и дифференциации.
  • 20
    Importante observar que Mikhail Bakhtin enfatiza não se tratar de juízo de valor e declara que não há obra que tenha lhe dado mais prazer do que a epopeia homérica.
  • 21
    Há uma excelente análise deste artigo em Nuto (2021)NUTO, J. V. Bakhtin e Lunatcharski: um diálogo. Bakhtiniana: Revista de Estudos do Discurso, São Paulo, v. 16, p. 53–69, 2021..
  • 22
    Adiante nesse mesmo texto, Mikhail Bakhtin (2010БАХТИН, M. M. [BAKHTIN, M. M.], М. М. Бахтин. Собрание сочинений. Т. 4(2). Творчество Франсуа Франсуа Рабле и народная культура Средневековья и Ренессанса (1965 г.). Рабле и Гоголь. Искусство слова и народная смеховая культура (1940, 1970 гг.). Комментарии и приложения. [M. M. BAKHTIN. Obras reunidas vol. 4(2). A criação de François Rabelais e a cultura popular na Idade Média e no Renascimento (1965). Rabelais e Gógol. A arte da palavra e a cultura cômica popular (1940, 1970). Comentários e anexos]. Москва: Языки Славянских Культур, 2010 [1929].[1963], p. 223) usa a expressão “discurso autoral/do autor” [авторская речь] com o mesmo sentido de “contexto autoral/do autor”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2023
  • Aceito
    15 Jul 2023
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