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Paralisia ascendente: Hematomielia estudo anatomo-clínico de um caso

Paralisia ascendente. Hematomielia estudo anatomo-clínico de um caso

Austregésilo Filho

Docente de Clínica Neurológica da Faculdade Nacional de Medicina. Chefe do Serviço de Doenças Nervosas do H. S. Francisco de Assis

SUMARIO

O Autor estuda um caso de hematomielia que clinicamente evoluiu sob a forma ascendente (membros inferiores, tronco, membros superiores, pescoço) e que anatomicamente correspondia a enfarte hemorrágico de pequenos vasos da região cervical da medula. Admite como mecanismo patogênico o angiospasmo seguido de vasodilatação e diapedese. Aceita a influência desencadeante do álcool na produção da sìndrome.

SUMMARY

The A. discusses a case of haematomyelia which clinically evolved in an ascending form (lower limbs, trunk, upper limbs, neck) corresponding anatomically to hemorragic infarction of little vessels of the cervical region of the spinal cord. The author considers the pathogenic mechanism as consisting of angiospasm followed by vasodilatation and diape-desis. He admits the influence of alcohol as a precipitating factor for the production of this syndrome.

Hematomielia é a hemorragia intramedular. Pode ser espontânea ou secundária, ou então surgir no curso de enfermidades diversas (infecções, intoxicações, carências, etc). Carateriza-se anatomicamente pela hemorragia em foco ou capilar; localiza-se em geral na substância parda comissural e na ponta posterior. São seus caracteres clínicos: instalação súbita de paralisia flácida, precedida ou não, de intensa dor de tipo central na coluna raqueana e sucedida, após prazo variável, de paralisia espasmódica e dissociação siringomiélica da sensibilidade.

Ollivier dAngers, em 1827, criou o termo hematomielia para significar hemorragia intramedular e separou-a do hematorraque. São clássicos os trabalhos de Buck, Bellingham, Minor e a tese de J. Lépine.

Os acidentes resultantes da descompressão rápida dos caixões de ar comprimido, os traumatismos e as explosões ocasionais pelaguerra demonstraram a freqüência destes tipos de hematomielia. A hematomielia c. mais freqüente no homem do que na mulher, aliás fato compreensível: o homem está mais exposto a acidentes que a mulher. E' mais comum na idade adulta. As causas mais freqüentes da hematomielia são as traumáticas (traumatismos vertebrais, cirúrgicos, ortopédicos, obstétricos, descompressões, caixão de ar comprimido, explosões). A hematomielia pode surgir no curso de infecção aguda (varíola, febre tifóide, enfermidades por vírus, etc.) ou de infecção crônica (tuberculose, abscesso medular, sífilis intersticial, etc.). A hemorragia medular ainda pode aparecer no curso de neoplasmas medulares, na siringomielia, nas hemopa-tias (hemofilia, anemia perniciosa, escorbuto, etc.) nas intoxicações (alcoolismo, etc). Alguns autores designam como hematomielias congestivas (Léri e J. Thiers) as que se instalam durante um esforço físico ou no curso da supressão do fluxo menstrual ou da crise hemorroidária. A hematomielia produzida pela refrigeração local foi provada experimentalmente.

Como no tipo cerebral, a hemorragia medular pode ser devida à rotura de um vaso ou à diapedese. Nos traumatismos diretos, em que se comprova a rotura da parede vascular, o mecanismo patogênico é claro. Nos traumatismos indiretos, com repercussão sobre a medula espinhal, é possível admitir-se o seguinte mecanismo patogênico: angiospasmo, com ou sem amolecimento, vasodilatação e diapedese1 1 . Jefferson diz textualmente: " haematomyelia... is usually associated with marked softening, and is a hémorragie softening rather than a pure, central blood-clot" Brit. Med. Journ. Vol.2 pág. 1.125. . Não discutiremos aqui as doutrinas patogênicas da hemorragia medular, por isso que são as mesmas da hemorragia cerebral e nós já as estudamos em outra publicação2 2 . Med. Cir. e Farm. (Rio de Janeiro), julho, 1944. . Convém, contudo, assinalar que a hemorragia medular é muito menos freqüente que a cerebral, e William Son3 3 . Citado por Richardson J-C. - Spontaneous Haematomyelia: a short review and a report of cases illustrating intramedullary angioma and syphilis of the spinal cord as possible causes. Brain 65:17 (março) 1938. explica o fato como devido às artérias medulares serem longas, estreitas, tortuosas e menos sujeitas a fortes pressões4 4 . O. Lange admite que a hemorragia medular permaneça na substância nervosa devido à contenção da pia-máter e à maior resistência do parênquima. Rev. iSieurol. e Psychiat. S. Paulo. 1:157 (março) 1935. .

As lesões anatômicas habitualmente encontradas podem ser reunilas em dois grupos: as que são responsáveis pela hemorragia e as que são conseqüência desta. O primeiro grupo compreende as lesões que o agente nocivo é capaz de produzir (fratura vertebral com rompimento da medula espinhal, etc.) e o segundo reúne, não só a lesão atual (hemorragia, enfarte hemorrágico, etc, com as suas conseqüências) mas também, todas as alterações evolutivas e secundárias (proliferação glial, necrose do tecido nervoso, degeneração secundária; etc).

Macroscòpicamente, no corte transverso da medula, nota-se foco hemorrágico localizado na comissura parda, freqüentemente invadindo a ponta posterior. Ahemorragia estende-se a vários segmentos, tendo o tipo tubular. O tipo anular é muito mais raro e "não tem tradução clínica"5 5 . Bodechtel, J. - Handbuch In. Mediz. 5:940, 1939. . A sede mais freqüente da hematomielia é a intumescência cervical. Microscopicamente, nos cortes recentes, encontram-se alterações das células e fibras nervosas, da glia e do mesênquima. As alterações das células nervosas são do tipo "isquémico"; as hemácias extravasadas podem estar normais ou alteradas, dependendo da época em que é feito o exame. O aspecto, neste período, é o do "enfarte hemorrágico". E' possível assinalar-se, nas formas subagudas, No período leucocitário do amolecimento", de Spatz. No período crônico pode-se encontrar cavidades com ou sem resquícios da hemorragia, glia com aspecto histológico cicatricial e degenerações secundárias (ascendentes e descendentes).

A sintomatologia depende da causa produtora da hemorragia, mas há sinais e sintomas que dão as caraterísticas da síndrome. O início é súbito, em minutos ou horas, sem febre, sem perda de consciência, indicando acidente vascular. Instala-se paraplegia ou tetraplegia flácida, ocasionalmente com distúrbios sensitivos (parestesias, dor na coluna raqueana, dor de tipo central, anestesia dos esfincteres) e vasomotores. Em dias ou semanas, constitui-se o conjunto sintomático da hematomielia: hemiplegia, paraplegia, tetraplegia espasmódicas com atrofia freqüente. A dissociação da sensibilidade, de tipo siringomiélico, é a regra.

As formas clínicas podem dividir-se segundo a causa, em secundárias e primitivas (estas últimas podem ser traumáticas6 6 . G. Guillain descreve três variedades evolutivas de hematomielia traumática conseqüente a mergulho com fundo insuficiente: a forma grave (mortal), a forma menos grave (que ocasiona reliquat) e a forma benigna (em que as alterações nervosas são transitórias). Veja "Le danger des plongées par fond insuffisant. L'hématomiélie des plongeurs". Études Neurologiques, 5. a série, pág. 323, 1933. e espontâneas); segundo a sede da lesão, em cervical, dorsal, etc.; segundo a exteriorização clínica, em tetraplégica, paraplégica, tipo ascendente, formas com atrofia, etc. A evolução é variável. O indivíduo pode morrer subitamente nos casos de hemorragia cervical alta, assim como pode curar quase completamente, passado o choque medular.

Em 1926, quando se construía o dique da Ilha das Cobras, Costa Rodrigues, Deolindo Couto e nós, a convite do Dr. Castello Branco, tivemos oportunidade de examinar vários casos de hematomielia conseqüente à descompressão rápida de caixão dear comprimido. Êstes casos foram reunidos em um artigo do Dr. Castello Branco, publicado no ano seguinte. Em épocas sucessivas vimos vários outros doentes, quer no Serviço do Dr. Motta Maia, no Hospital Miguel Couto, quer na Clínica Neurológica serviço do prof. Austregésilo), todos conseqüentes a traumatismo ou descompressão súbita. Em outubro de 1943, internamos na Clínica Neurológica da Faculdade Nacional de Medicina (serviço do prof. Austregésilo) um caso de hematomielia "espontânea", cuja evolução foi do tipo ascendente.

OBSERVAÇÃO

E. R., preta, 41 anos, viúva, cozinheira, residente à rua Barão de Mesquita. A doente veio enviada pelo Hospital de Pronto Socorro.

A patroa de E. R. informa que no dia 8 de outubro a sua cozinheira, ao tentar levantar uma criança, queixou-se de fraqueza e dor no membro superior direito.

No dia seguinte, a empregada não apareceu para trabalhar, por ter sido internada no Hospital de Pronto Socorro. Segundo a enferma conta, no dia 8 sentira-se mal, ficara tonta, confusa e fora levada para o Hospital. No dia seguinte pela manhã, notara que "as pernas estavam como que mortas, sem movimento e sem sensibilidade " e à tarde a paralisia e a anestesia ascenderam ao tronco, às mãos, aos antebraços, e os esfincteres já não funcionavam. No dia 11, pela manhã, a paralisia dos quatro membros e do tronco era completa.

No Hospital de Pronto Socorro colhemos as seguintes informações: " Diagnóstico: Etilismo agudo. Quadriplegia, tendo começado por paraplegia. Reflexos abolidos. Esboço do sinal do leque à esquerda. Anestesia nos membros inferiores e no tronco até uma linha que passa pelo umbigo; anestesia nos membros superiores exceto numa faixa interna (braquial cut. int. acessório). Rigidez da nuca. Punção: liqüido céfalo-raquidiano límpido e incolor. Radiografia normal".

Queixa-se atualmente da tetraplegia, da abolição da sensibilidade, da paralisia dos esfincteres e de discretos distúrbios" da palavra. Nega peremptoriamente que tenha bebido álcool no dia que adoeceu. De seu passado nada informa que tenha maior interesse para o caso. Entretanto, a sua patroa informa que a nossa observada costumava beber de vez em quando, chegando a fiacr embriagada, mas que, em sua casa, nunca a surpreendera bebendo, nem cometera atos que pudessem ser atribuídos ao alcoolismo.

Exame direto: Trata-se de mulher de estatura mediana, relativamente bem nutrida, orientada no meio, lugar e tempo. Apresenta-se em decúbito dorsal, imóvel. Estando paralítica dos 4 membros, não pode ficar em pé, nem sentada, nem esboçar qualquer movimento, quer com o tronco. Presentes os reflexos corneoconjun-tival, faríngeo e do véu do paladar. Os reflexos tendíneos estão abolidos nos membros inferiores e, nos superiores, só estão presentes e vivos o bicipital de ambos os lados (C5 C6) e o tricipital (C6 C7). O reflexo masseterino está vivo e o supra-orbitário, normal. Não apresenta sinal de Babinski nem os fenômenos de Rosso-limo e de Mendel-Bechterew. Não há clono nem reflexos de automatismo e defesa. Hipotonia muscular intensa nos 4 membros e no tronco (palpação do músculo, extensão e flexão, e prova do balanceamento dos segmentos). Ao nível do pescoço nota-se pequena rigidez nos músculos da nuca quando se procura fletir a cabeça sobre o peito. A doente refere ausência de qualquer sensibilidade no tronco e nos 4 membros. Não tem dormências, formigamentos, nem dôres. "Está como morta do pescoço para baixo". Sensibilidades superficial e profunda abolidas em tôdas as suas modalidades nos membros inferiores e no tronco até a altura de D2 à direita e D4 à esquerda; os limites superiores não são nítidos. Há hipoestesia superficial e profunda importante nos membros superiores e hipoestesia ligeira na parte superior do tronco (Figura 1). Astereognosia. Sistema nervoso vegetativo: a pressão das massas musculares supra-escapülares não provoca resposta pilomotora. Retenção dos esfincteres vesical e anal. Exame dos aparelhos e órgãos especiais. Pulso 110. Temperatura: 37°, 4C. Abdome tenso, timpânico. Bexiga distendida, rija. Ouve bem pela prova da voz cochichada. Provas de Rinne e Weber normais.. Sente bem o cheiro do café. A gustação não está alterada e a língua realiza todos os movimentos: protrusão, para os lados, para cima, etc. A palavra não está normal, pois que a paciente não fala alto e há ligeira disartria. As pupilas, em miose relativa. Os olhos realizam todos os movimentos (para cima, para baixo, para os lados, convergência isolada e conjuntamente). As pupilas reagem à luz e acomodam à distância. E. R. distingue bem os objetos (dedos) nos diversos campos visuais (temporais, nasais, etc.). Psiquismo - Está perfeitamente orientada. Sabe onde está, de onde veio, em que ano estamos; erra, entretanto, a data exata (dia 12). A atenção é boa. A memória não parece grandemente alterada; não fizemos testes porque a enferma já apresentava sinais de fadiga. A imaginação, a percepção, a associação de idéias, o julgamento estão relativamente íntegros.


No dia 13 de outubro, pela manhã, além dos distúrbios acima referidos, verificamos que os mesmos se tinham elevado, atingindo centros bulhares. Motividade voluntária - É grande a dificuldade de realizar movimentos com a cabeça. Abre a bôca, mas incompletamente. Consegue movimentar a língua, mas tem dificuldajde de elevá-la. Os demais músculos da face estão íntegros. Refletividade - Os reflexos bicipitais estão presentes e os tricipitais, diminuídos. O reflexo masseterino está vivo. Não houve modificações nos demais reflexos. Tonicidade - Só há aassinalar que a rigidez da nuca está quase desaparecida. Sensibilidade - Progrediu a alteração sensitiva. À direita a anestesia atingiu a clavícula (C4) e à esquerda íité 5 dedos abaixo da clavícula. Há anestesia total no membro superior direito, e até acima da dobra do cotovelo à esquerda; daqui para cima há hipoestesia acentuada. A zona de hipoestesia estende-se até o terço inferior do pescoço (C3). Esjinctcres - continua a retenção esfincteriana. Pares cranianos - A palavra está mais disártrica, engasga-se um pouco. O psiquismo continua inalterado. A enferma repete a história de sua enfermidade com absoluta fidelidade. Tem noção da gravidade de seu estado. Temperatura: 38°, 1C.

Nesse mesmo dia, às 15,30 horas, a paciente faleceu, sendo a necropsia feita pelo Dr. Paulo Elejalde no dia 14 de outubro e o estudo histológico do sistema nervoso feito por Austregésilo Filho.

Generalidades: Cadáver do sexo feminino, de côr preta; cabelos encarapinhados; estado de nutrição geral bom; pêlos, presentes e com distribuição normal nas regiões axilares e pubiana. Solução de continuidade irregular e com perda da epiderme na região escapular direita. Rigidez cadavérica presente. Córneas ligeiramente opacificadas. Dentes em mau estado de conservação. Tecido músculo-adiposo aumentado nos quadris e nas coxas. Cavidade raqueana: Dura-máter lisa e brilhante na superfície externa, mostrando os vasos durais congestionados; superfície interna da dura-máter lisa e brilhante; seios venosos contendo pequena quantidade de sangue fluido. Superfície externa da dura-máter raqueana com aspecto habitual. Encéfalo: leptomeninges lisas,, finas e transparentes. Vasos da base de aspecto normal; vasos da convexidade congestionados. Aos cortes: os ventrículos tinham tamanho habitual, distinguiam-se bem as estruturas, sendo as circunvoluções bem constituídas, notando-se apenas pouco grau de congestão vascular, aspecto este que se estendia até o bulbo. A medula mostrava, na porção cervical, consistência bem diminuída, aos cortes desta região havia apagamento da estrutura e saída de material pastoso de côr vermelhada. O restante da medula tinha boa consistência, notando-se ao corte a estrutura comum. Cavidade tóraco-abdominal - Tecido gorduroso subcutâneo aumentado; alças intestinais distendidas por gases; tecido gorduroso do epíploo aumentado; fígado ligeiramente recalcado para cima e para fora; baço nos seus limites normais; área cardíaca parcialmente descoberta; apêndice livre de aderências; cavidades pleurais sem nada de particular; saco peri-cárdico contendo liqüido ligeiramente amarelado e em quantidade normal. O útero está aumentado de volume, de côr vermelho-sangüínea e saliente na cavidade pélvica, apresenta aderências bilaterais com o reto e o intestino grosso descendente, formando um bloco que ocupa esta cavidade. A bexiga encontra-se vazia; após abertura mostra mucosa revestida por material vermelho-sangüíneo. Coração - Pericárdio fino, liso e transparente, de côr pardo-acastanhada. Orifício aórtico mede 6 cm.; valvas finas e transparentes, porção inicial da artéria com pequenas placas amareladas. Orifício mitral mede 9 cm.; valvas de aspecto normal. Orifício tricúspide mede 10 cm.; valvas nada apresentam de anormal. Orifício pulmonar mede 7 cm.; valvas e porção inicial da artéria com aspecto habitual. Miocárdio de côr pardo-acastanhada, de consistência firme, mede 12 mm. no ventrículo esquerdo e 3 no direito. Pulmão direito: Pêso 350 grs. Pleura fina e lisa, côr rósea com retículo de antracose. Crepitação presente no lobo superior e muito aumentada no inferior. Aos cortes, superfície de côr vermelho-vinhosa dando pela expressão saída a sangue escuro e liqüido arejado. Diagnóstico: congestão e edema. Pulmão esquerdo - peso 435 grs. Aspecto análogo ao precedente. Fígado: Peso 1.004 grs. Cápsula fina e lisa de côr róseo-amarelada; aos cortes, superfície embaçada de côr pardo-clara, de consistência firme. Vesícula biliar contendo bile fluida de côr pardo-ouro. Diagnóstico: Inchação turva. Baço: Pêso 100 grs. Consistência amolecida, côr vermelho-vinhosa escura, traves conjuntivas pouco visíveis; à raspagem dá saída a grande quantidade de sangue e polpa. Rim direito: peso 175 grs. Cápsula fina e lisa. côr róseo-amarelada; aos cortes, superfície de côr róseo-amarelada, distinguindo-se bem as estruturas; mucosa dos cálices e bacinetes congestionadas. A cápsula destaca-se com facilidade, deixando uma superfície lisa. Rim esquerdo: peso 175 grs. Aspecto idêntico ao anterior. Bexiga: parede espessada, mucosa irregular com inúmeras sufusões hemorrágicas. Útero: Fibromioma.

Estudo histopatológico dos centros nervosos: Medula - Região cervical - Macroscopicamente, nota-se que a substância parda comissural e as pontas posteriores estão alteradas (figs. 2 e 3). Microscopicamente evidenciam-se (por ampla coloração, pelo método de Nissl) alterações importantes do tecido nervoso dos vasos e da meninge mole. Os vasos estão túrgidos, cheios de hemácias bem configuradas (fig. 4-a). Alguns capilares e pré-capilares estão tortuosos e de parede espessada, deixando escapar glóbulos vermelhos (fig. 4-b). No corpo da ponta posterior direita notam-se hemácias extravasadas por diapedese, tendo a sua morfologia e as suas afinidades tintoriais perturbadas: glóbulos vermelhos de diâmetro ecoloração variáveis. As meninges moles estão difusamente infiltradas por lin-fócitos. As células das pontas posteriores estão muito alteradas: a coloração celular está desaparecida, às vezes, entretanto, nota-se núcleo pequeno, intensamente corado, de regra deslocado para a periferia. Em alguns pontos quase só existem sombras celulares (fig. 5-a). Corpos amilóides são vistos nas vizinhanças dos focos de hemorragia (fig. 5-b).





Resumo da observação: Numa mulher de 41 anos de idade instalou-se paralisia dos membros inferiores, precedida de pródromos dolorosos no membro superior direito. No dia seguinte, os distúrbios sensitivos e motores se estenderam ao tronco; 24 horas mais tarde, as alterações atingiram os membros superiores e, no 5.° dia de enfermidade, depois de se instalarem distúrbios da fonação e da deglu-tinação, a paciente faleceu. Esteve subfebril durante os dois dias que permaneceu internada na Clínica Neurológica. A autópsia veio confirmar tratar-se de hema-tomielia " espontânea" tubular, da região cervical.

COMENTÁRIOS

A hematomielia "espontânea" é rara. Vários autores (Richardson, por exemplo) admitem que este tipo de hemorragia seja secundário a um processo vascular congênito (angioma) ou adquirido (sífilis). O nosso caso não confirma nenhum desses tipos e orienta-se no sentido de processo vascular crônico não específico.

A evolução clínica merece especial comentário: pródromos dolorosos no membro superior direito, paralisia inicial dos membros inferiores, seguida de paralisia do tronco, dos membros superiores, do pescoço e de morte com sintomas bulhares; tudo em 5 dias. A primeira impressão que se teve foi de mielite aguda ascendente.

Recebido para publicação em 24 de julho de 1944

Rua Goulart, 62 - apart. 81 - Copacabana - Rio de Janeiro (D.F.)

  • 1
    . Jefferson diz textualmente: " haematomyelia... is usually associated with marked softening, and is a hémorragie softening rather than a pure, central blood-clot" Brit. Med. Journ. Vol.2 pág. 1.125.
  • 2
    . Med. Cir. e Farm. (Rio de Janeiro), julho, 1944.
  • 3
    . Citado por Richardson J-C. - Spontaneous Haematomyelia: a short review and a report of cases illustrating intramedullary angioma and syphilis of the spinal cord as possible causes. Brain 65:17 (março) 1938.
  • 4
    . O. Lange admite que a hemorragia medular permaneça na substância nervosa devido à contenção da pia-máter e à maior resistência do parênquima. Rev. iSieurol. e Psychiat. S. Paulo. 1:157 (março) 1935.
  • 5
    . Bodechtel, J. - Handbuch In. Mediz. 5:940, 1939.
  • 6
    . G. Guillain descreve três variedades evolutivas de hematomielia traumática conseqüente a mergulho com fundo insuficiente: a forma grave (mortal), a forma menos grave (que ocasiona
    reliquat) e a forma benigna (em que as alterações nervosas são transitórias). Veja "Le danger des plongées par fond insuffisant. L'hématomiélie des plongeurs". Études Neurologiques, 5.
    a série, pág. 323, 1933.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      02 Mar 2015
    • Data do Fascículo
      Dez 1944
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