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Eu quero ser professor de matemática?! Algumas reflexões

I want to be a math teacher?! Some reflections

Resumo

Este artigo objetiva problematizar e compreender as principais motivações, os desafios e as perspectivas de um grupo de estudantes ingressantes do curso de Licenciatura em Matemática de uma universidade federal do sul do Brasil. A pesquisa teve a participação de treze estudantes e aconteceu no decorrer do primeiro semestre letivo do ano de 2022 e após o seu encerramento, no contexto da disciplina Introdução à Educação Matemática. Optou-se por integrar as abordagens qualitativa e quantitativa, buscando melhor compreender a problemática proposta e ampliar o escopo da pesquisa, sendo que, para isso, os instrumentos de produção de dados foram dois questionários, a escrita de uma carta e a entrevista. Os resultados apontam que, dos treze participantes, onze pretendem continuar no curso e ser professor de Matemática. As duas estudantes que não pretendem continuar no curso já desempenham atividades remuneradas e Matemática não era a primeira opção de curso. Cumpre dizer que elas estão entre aqueles com menor rendimento acadêmico. Por fim, como as disciplinas da área específica da Matemática detêm a maior reprovação e estudantes que desempenham atividades remuneradas apresentaram o rendimento descrito acima, é fundamental a atenção e o estudo e que estes dados sejam considerados na elaboração dos projetos pedagógicos do curso e nos planos de aula, principalmente tendo em vista a continuidade e conclusão do curso pelos estudantes, bem como a qualidade da formação do professor.

Ensino de Matemática; Formação de Professores; Licenciatura

Abstract

This article aims to problematize and understand the main motivations, challenges, and perspectives of a group of students entering the Mathematics Degree course at a federal university in southern Brazil. The research had the participation of thirteen students and took place during the first semester of 2022 and after its closure, in the context of the subject Introduction to Mathematics Education. It was decided to integrate qualitative and quantitative approaches, seeking to better understand the proposed problem and expand the scope of the research. For this purpose, the data production instruments were two questionnaires, a writing of a letter, and an interview. The results indicate that from the thirteen participants, eleven intend to continue in the course and become mathematics teachers. The two students who do not intend to continue in the course perform paid activities and mathematics was not their initial course option and are among those with the worst academic performance. Finally, considering that the disciplines in the specific area of Mathematics have the greatest disapproval and that students who perform paid activities have the worst academic performance, it is fundamental to pay attention, study and that these data are considered in the elaboration of the pedagogical projects of the course and in the plans classroom, especially given the continuity and completion of the course by students, as well as the quality of teacher training.

Mathematics Teaching; Teacher Training; Undergraduate Course

1 Introdução

O título deste artigo “Eu quero ser professor de Matemática!?” tem ao final dois pontos distintos (exclamação e interrogação) com a intenção de trazer à tona as múltiplas facetas que dialogam com a decisão de ingressar em um curso de Licenciatura em Matemática, ou seja, querer ser professor de Matemática da Educação Básica. Quem escolhe a docência? Mais especificamente, a docência na Matemática? E quais são as motivações para a escolha? Quem continua no curso após o primeiro semestre? O objetivo não é responder a tais questionamentos neste primeiro momento, em especial pela amplitude, mas, partindo deles, propor reflexões e elementos que permeiam o texto, trazendo possíveis respostas ao final, respostas essas considerando o público pesquisado.

Segundo Fiorentini (2003, p. 10), “[...] Dentre os profissionais da Educação, o professor de matemática talvez seja aquele que mais sofre críticas [...]”. Além das críticas comuns à profissão, recebe também aquelas específicas da área. Afinal, a Matemática é a disciplina com maiores índices de reprovação e com menores índices de aproveitamento em avaliações externas, conforme o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) de 2019 e 2021 (Brasil, 2022a). Ademais, historicamente, é identificada no imaginário social como difícil, feita para poucos, o que gera em alguns estudantes sofrimento e desejo de fuga (Santos; Almeida, 2022SANTOS, S. M.; ALMEIDA, I. M. M. Z. P. Medo de Matemática e Trauma na Relação com o Aprender: uma leitura psicanalítica. Bolema, Rio Claro, v. 36, n. 74, p. 1273-1292, 2022.).

A complexidade que envolve a profissão é indiscutível. De acordo com Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012., a profissão requer pelo menos teoricamente ampla qualificação, habilidade para lidar com crianças e adolescentes em processo de desenvolvimento (físico, psicológico, intelectual), conhecimentos sobre os processos de ensino e aprendizagem da Matemática. Dizem ainda os autores que todo esse processo se dá na Educação Básica, que é obrigatória e se desenvolve numa instituição social denominada escola; e sobre o qual agem fortes condicionantes internos e externos à instituição escolar. Ou seja, além dos fatores internos à escola, há também os externos que acabam interferindo na profissão docente.

Talvez, por tamanha complexidade e múltiplos condicionantes, a procura pela docência é cada vez menor pelos jovens. Para Passos, Martins e Arruda (2005), o panorama atual com relação à profissão de professor não é nada animador. Conforme Almeida, Tartuce e Nunes (2014), quase uma década após, o cenário continua preocupante, sendo isso apontado em pesquisas acadêmicas, na mídia e no senso comum. No entanto, por parte dos governantes deve ser mais que uma preocupação; deve se materializar em ações palpáveis de valorização da profissão docente, ao contrário do que acontece ultimamente, que é um enxugamento dos gastos para com a educação pública e uma falta de valorização da profissão docente.

Todavia, felizmente, a docência é ainda o sonho de alguns jovens e adultos, como dos treze participantes desta pesquisa. Neste sentido, este artigo tem como objetivo problematizar e compreender as principais motivações, os desafios e as perspectivas de um grupo de estudantes ingressantes do curso de Licenciatura em Matemática de uma universidade federal do sul do Brasil. A importância deste estudo, de natureza qualitativa e quantitativa, reside no fato de reunir em um único texto temáticas relevantes e ainda não abundantes na literatura brasileira, bem como propor um diálogo entre elas, com o objetivo de produzir conhecimento que favoreça conhecê-los, compreender as escolhas e aprender com elas em prol da formação do professor de Matemática.

2 Referencial teórico

As demandas do mundo contemporâneo são desafiadoras, exigindo conhecimentos para lidar com as situações que são apresentadas no dia a dia. Nesse âmbito, os conhecimentos são fundamentais, em especial os matemáticos, visto que o mundo é cada vez mais matemático. A Matemática ganha espaço neste cenário, pois produz modelos para descrever ou ajudar a compreender os fenômenos das mais diversas áreas (Tomaz; David, 2008TOMAZ, V. S.; DAVID, M. M. M. S. Interdisciplinaridade e aprendizagem da Matemática em sala de aula. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.). No entanto, segundo as autoras, a forma como a escola procura produzir conhecimento não atende muitas das exigências a que estão submetidos os indivíduos.

Obviamente, o professor é uma das variáveis mais importantes nesse contexto. E a respeito dos conhecimentos necessários para a profissão, são diversas as pesquisas e os pesquisadores que se debruçam para melhor compreensão da temática. A título de esclarecimento, destacam-se Gonçalves e Fiorentini (2005)GONÇALVES, T. O.; FIORENTINI, D. Formação e desenvolvimento profissional de docentes que formam matematicamente futuros professores. In: FIORENTINI, D.; NACARATO, A. M. Cultura, formação e desenvolvimento profissional de professores que ensinam matemática: investigando e teorizando a partir da prática. São Paulo: Musa, 2005., para os quais são quatro os eixos fundamentais na formação do professor de Matemática: formação matemática, formação geral, formação científico- pedagógica e a formação relativa à atividade profissional.

Segundo Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012., se, por um lado, encontra-se na literatura um volume razoável de estudos que tratam do conhecimento profissional para a docência na Matemática, por outro, tem-se pouca informação sobre o perfil do público que procura os cursos de Licenciatura em Matemática. Buscando contribuições nesse sentido, Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012. desenvolveram uma pesquisa com um grupo de 664 ingressantes em cursos de Licenciatura em Matemática nos anos de 2008, 2009 e 2010 de 18 instituições de Ensino Superior em 10 estados da federação.

Os ingressantes no curso de Licenciatura em Matemática, participantes da pesquisa, consoante Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012., têm o seguinte perfil: o número de homens e mulheres é praticamente o mesmo, 50% cada. 75% têm idade abaixo de 25 anos, mais de 80% são solteiros, o que se justifica pela baixa idade. Um terço terminou o Ensino Médio no ano anterior ao ingresso na licenciatura, sendo que 70% estudavam em escola pública e 52% em cidade diferente daquela em que cursa o Ensino Superior. Mais da metade dos estudantes, 56%, já havia prestado vestibular para outro curso; apenas três quartos do total da amostra foram aprovados no vestibular na primeira tentativa; e mais de 40% têm dúvidas se fariam o vestibular de novo para a Licenciatura em Matemática, caso não tivessem sido aprovados.

Também, sobre o perfil de estudantes, Gatti (2010) traz os resultados de uma pesquisa que compara as características de estudantes do curso de Pedagogia com as demais licenciaturas. Algumas características são as mesmas encontradas em Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012., idade, sexo e o tipo de escola na qual cursou o Ensino Médio. Observando os dados das demais licenciaturas, em que está inserido o curso de Matemática, a maioria, 51,6%, tem até 24 anos, 75% são mulheres e a maioria provém de escola pública, dados que não diferem muito daqueles apresentados por Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012.. Gatti (2010) aponta, ainda, que a maioria dos estudantes provém de famílias com renda entre 3 e 10 salários mínimos; os pais estudaram apenas até os Anos Iniciais do Ensino Fundamental; e uma parte considerável, 47%, quer, de fato, ser professor.

Numa outra perspectiva e com o foco exclusivamente nos estudantes de Matemática, Passos, Martins e Arruda (2005) buscaram identificar os motivos que justificam a escolha dos pesquisados pelo curso pretendido no Ensino Superior. Os resultados atestam razões diferentes para um mesmo estudante, ou a mesma razão para estudantes diferentes, por exemplo, o bom relacionamento com alguns professores, notadamente professores de Matemática, os quais foram decisivos para a decisão; a facilidade para aprender Matemática; o gostar de Matemática; e o incentivo por parte de familiares e professores.

A importância dos professores na escolha profissional é destacada sob diferentes aspectos pelos estudantes participantes da pesquisa de Passos, Martins e Arruda (2005). Segundo os autores, há registros opostos: “Tive uma professora que disse que eu jamais iria aprender Matemática, pois eu era burra” (p. 479). Numa perspectiva diferente, outro estudante traz o quanto o professor de Matemática foi decisivo para que ele, cada vez mais, gostasse de Matemática: “Sempre gostei de Matemática, e tive um professor que me fez apaixonar cada vez mais pela Matemática” (p. 480).

Entre tantas discussões e divisão de opiniões sobre a postura dos professores, sobre bons e maus profissionais, é indiscutível que estes marcam a vida dos estudantes, seja de maneira positiva, seja negativa. Segundo D’Ambrósio (2010), para alguns, o professor afetivo é bom, enquanto, para outros, é o conteudista. No entanto, o ideal é o aprender com prazer, o que se relaciona com a postura filosófica, sua maneira de ver o conhecimento e o estudante. “[...] Ninguém poderá ser um bom professor sem dedicação, preocupação com o próximo, sem amor num sentido amplo [...]” (D’ambrósio, 2010, p. 84).

A grande relevância de bons professores sustenta-se também na condição de que se aprende a ser professor com os professores que se teve ao longo da vida. Para exemplificar, toma-se como referência o caso do estagiário Allan, relatado por Fiorentini e Castro (2003)FIORENTINI, D.; CASTRO, F. C. Tornando-se professor de matemática: o caso de Allan em prática de ensino e estágio supervisionado. In.: FIORENTINI, D. (org). Formação de professores de matemática: explorando novos caminhos com outros olhares. Campinas: Mercado de Letras, 2003. P. 121-156.. Consoante os autores, Allan reproduzia um modelo pedagógico muito à imagem e semelhança do professor Paulo, seu professor na Educação Básica, sendo este profissional o ponto de partida de sua formação, o modelo básico, ao qual foram agregados outros conhecimentos ao longo da formação inicial.

Para Gatti (2010), é importante considerar as características dos estudantes, uma vez que estas têm peso sobre as aprendizagens e seus desdobramentos na atuação profissional. Ora, para além do ingresso na Licenciatura em Matemática, é preciso que os estudantes concluam o curso, querendo ser professor e com os conhecimentos suficientes para iniciar na carreira. Isso, porém, não afasta a necessidade da formação continuada, tendo em vista que o professor precisa (re)aprender constantemente.

Em se tratando de conhecimento, de acordo com Gatti (2010), os estudantes participantes de sua pesquisa são a maioria oriundos do ensino público e evidenciam carência no domínio de conceitos básicos. Eis um grande desafio a ser superado pelo Ensino Superior: acolher os estudantes, suprir as deficiências e proporcionar uma formação de qualidade. Esse debate é essencial, conforme Gatti (2010), para a melhoria da qualidade da formação desses profissionais, basilares para a nação e para propiciar um ensino com melhores oportunidades formativas às futuras gerações.

No entanto, ao mesmo tempo em que se reconhece o mérito das universidades e os seus desafios, elas são um mundo desafiador e complexo. E o primeiro ano de ingresso nessas instituições é um período crítico para a adaptação do estudante, sendo que experiências são cruciais para a permanência e o sucesso acadêmico dos estudantes (Teixeira et al., 2008TEIXEIRA, M. A. P. et al. Adaptação à universidade em jovens calouros. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 185-202, 2008.). Segundo os autores, uma pesquisa desenvolvida com 14 estudantes de diferentes cursos, com idades entre 18 e 22 anos, demonstra que o sucesso na adaptação depende de muitos fatores, alguns deles ligados diretamente ao contexto acadêmico e outros não.

3 Metodologia

A abordagem metodológica empregada em uma investigação pode ser qualitativa, quantitativa ou quali e quanti. Pesquisas qualitativas são entendidas como aquelas associadas a interesses subjetivos, enquanto as quantitativas respondem às exigências positivistas, cujo interesse é centrado no estabelecimento de leis causais (Kirschbaum, 2013KIRSCHBAUM, C. Decisões entre pesquisas quali e quanti sob a perspectiva de mecanismos causais. Revista brasileira de ciências sociais, São Paulo, v. 28, n.82, p. 179-193, 2013.). Embora distintas, as abordagens quali e quanti não são um binônimo antiético, conforme expressa Cano (2012)CANO, I. Nas trincheiras do método: o ensino da metodologia das ciências sociais no Brasil. Sociologias, Porto Alegre, v. 14, n. 31, p. 94-119, 2012..

Considerando o exposto e o objetivo desta investigação, empregou-se uma combinação das abordagens quali e quanti. Para Kirschbaum (2013)KIRSCHBAUM, C. Decisões entre pesquisas quali e quanti sob a perspectiva de mecanismos causais. Revista brasileira de ciências sociais, São Paulo, v. 28, n.82, p. 179-193, 2013., estudos quanti complementados por estudos quali podem contribuir para melhor interpretação e apresentação dos fenômenos, visto que, enquanto o primeiro se dedica a apresentar os dados de forma quantificada, o segundo se debruça na compreensão do que está exposto. A combinação de abordagens permite, como exposto por Borba, Almeida e Gracias (2018), o cruzamento dos achados, imprimindo maior confiabilidade aos resultados.

O contexto da investigação é uma universidade pública federal, localizada no Sul do Brasil. O ponto de análise envolve o curso de Licenciatura em Matemática Integral, mais especificamente na disciplina de Introdução à Educação Matemática (IEM). Essa disciplina é de cunho teórico, ministrada no 1º semestre do curso, com 4 créditos e tem como objetivo entender a Educação Matemática enquanto área de atuação profissional e de pesquisa e suas diferentes tendências teórico-metodológicas. Em outras palavras, a referida disciplina discute o ser professor de Matemática, os desafios que perpassam a escolha e o exercício da profissão.

Os instrumentos para produção de dados foram: 1) questionário com questões fechadas (objetivas), no Google Forms, com vistas a identificar o perfil dos ingressantes no curso, tanto aspectos pessoais (idade, gênero, cor e se desempenha atividade remunerada), quanto aspectos relacionados à vida estudantil (ingresso no curso superior após o término do Ensino Médio e se Matemática era a primeira opção de curso); 2) escrita de uma carta pelos estudantes – tarefa da disciplina – contando para uma pessoa querida e que está distante já há algum tempo (pessoa real ou imaginária) que está cursando Licenciatura em Matemática e o porquê escolheu o curso; 3) questionário com questões abertas (discursivas) e fechadas (objetivas), no Google Forms, a fim de verificar o rendimento acadêmico dos estudantes no primeiro semestre e a continuidade ou não no curso; e 4) entrevista semiestruturada via WhatsApp, com o objetivo de compreender a decisão de duas estudantes que mencionaram a não continuidade no curso.

Insta mencionar que a produção de dados aconteceu na ordem como os instrumentos foram citados no parágrafo anterior. O primeiro questionário e a carta foram ao longo do semestre, enquanto o segundo questionário e a entrevista aconteceram após o término do semestre. A entrevista com as duas estudantes, conforme já citado, foi realizada com o objetivo de compreender a decisão de não continuar no curso, visto que a justificativa não havia sido solicitada no questionário e entendeu-se a importância dela para o contexto desta pesquisa.

Na disciplina de IEM, estavam matriculados dezenove (19) acadêmicos, dos quais dezesseis (16) estavam cursando a disciplina no momento de aplicação do primeiro questionário e da escrita da carta, os quais participaram das duas propostas. No entanto, desse grupo, dois estudantes não eram ingressantes, e um ingressante evadiu do curso logo após. Por isso, os dados referentes a eles não foram considerados no contexto da pesquisa. Desse modo, os participantes da pesquisa são 13 acadêmicos, ingressantes no curso em 2022/1, matriculados na disciplina de IEM e que, além da escrita da carta, responderam aos dois questionários e dois deles foram entrevistados. Para preservar o anonimato, os participantes da pesquisa serão identificados pelo E de estudante, seguido das letras do alfabeto, designadas em ordem, portanto, Ea, Eb, Ec ...

Os dados produzidos por meio dos questionários (perguntas fechadas) foram analisados estatisticamente e apresentados no formato de tabelas. Já o conteúdo das cartas, as respostas dadas às questões abertas do segundo questionário e a entrevista foram analisados com o auxílio de nuvens de palavras, uma técnica na qual é difícil diferenciar a abordagem quali da quanti. Na nuvem, aparecem com destaque os termos com maior ocorrência no texto, porém, sob estes, pode ser lançada uma reflexão qualitativa, a partir da palavra no contexto da escrita (Borba; Almeida; Gracias, 2018). Nesse sentido, as palavras em realce na nuvem deram origem aos eixos de discussão e foram escritas permeadas pelos registros dos estudantes. Por fim, tabelas, nuvens, extratos das cartas e das entrevistas foram cruzados e discutidos à luz do referencial teórico, a ser apresentado na seção seguinte.

4 Resultados e discussão

Com base nos dados produzidos por meio do primeiro questionário, foi possível traçar um breve perfil do grupo de estudantes participantes desta pesquisa, conforme Quadro 1. Nesse perfil, optou-se por trazer dados como: gênero, idade, cor, se desempenham atividade remunerada, se migraram direto do Ensino Médio para o Ensino Superior e se o curso de Licenciatura em Matemática era a sua primeira opção. Embora outras características pudessem compor esse perfil, entende-se que estas são satisfatórias e auxiliarão na compreensão e discussão dos resultados acadêmicos obtidos por esse grupo no 1º semestre do curso.

Quadro 1
– Perfil dos estudantes

Os estudantes têm idade entre 18 e 22 anos. Dez (10) são do gênero feminino e três (3), do gênero masculino; dez (10) se autodeclaram da cor branca e três (3) da cor preta. Os três estudantes de cor preta são do sexo feminino. A feminização da docência não é um fenômeno recente, é desde a criação das primeiras Escolas Normais, no final do século XIX, quando as mulheres começaram a ser recrutadas para o magistério das primeiras letras, considerando o ofício docente como prorrogação das atividades supostamente maternas (Gatti, 2010). Os dados sobre a feminização na docência correspondem à realidade dos professores de Matemática. Segundo Ayres, Pereira e Novello (2021), aproximadamente 70% são do gênero feminino.

Ingressantes jovens, como os estudantes participantes desta pesquisa, segundo Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012., minimizam a ideia de que procuram a licenciatura como uma busca de segunda profissão, um bico, uma atividade complementar. O ideal é que a docência não seja um bico, mas sim uma carreira profissional. No entanto, essa situação nem sempre é uma simples escolha de quem a faz; por vezes, ela é fruto de necessidades financeiras que fazem com que o professor assuma outros compromissos profissionais concomitantemente à docência.

Entre os sujeitos participantes da pesquisa, seis (6) afirmaram exercer atividade remunerada, quatro (4) de forma regular e dois (2) apenas eventualmente. Os quatro estudantes que trabalham são do gênero feminino; três (3) são da cor preta e uma é da cor branca. Portanto, as três estudantes da cor preta trabalham. É cada vez maior o número de estudantes do Ensino Superior que estuda e trabalha, não somente no Brasil, mas também internacionalmente (Gualberto; Rodrigues, 2017). É uma tendência que requer olhares de todos os envolvidos com a formação de professores, perpassando pelo Projetos Pedagógicos do Curso até a prática pedagógica de cada professor.

O Quadro 1 indica que 8 estudantes passaram gradativamente do Ensino Médio para o Ensino Superior, enquanto 5 tiveram um hiato de tempo entre um nível e outro do ensino. Esse tempo foi de dois anos para os estudantes Ef, Eg e Em, 3 anos para Ea e 5 anos para Ed. A predominância de estudantes jovens nos cursos de Licenciatura em Matemática que ingressaram na academia imediatamente após a conclusão do Ensino Médio e não exercem atividade remunerada pode ser observada no perfil do grupo participante do estudo em tela. Embora a maioria tenha informado não exercer atividades remuneradas, cabe destacar o já identificado por Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012., qual seja, a presença de estudantes que conciliam atividades de estudo e trabalho.

A última coluna do Quadro 1 expõe uma informação importante para o contexto da discussão: para dez dos estudantes, Licenciatura em Matemática era a primeira opção de curso e para três (3), não. A escolha profissional e a inserção no mundo do trabalho são cada vez mais complexas e não estão relacionadas somente às características pessoais, mas, sobretudo, ao contexto histórico e ao ambiente sociocultural no qual o jovem vive (Almeida; Tartuce; Nunes, 2014). Buscando melhor compreender essa escolha, a nuvem de palavras, apresentada na Figura 1, construída a partir do conteúdo das cartas (com exceção de conjunções e artigos), exibe as palavras mais recorrentes e que serão analisadas a partir dos seus extratos de origem.

Figura 1
– Cartas sobre o porquê da escolha do curso

Desse modo, são três eixos de discussão: 1) O interesse pela Matemática; 2) A disposição para ensinar Matemática; e 3) O incentivo social e familiar. Esses eixos se cruzam, se aproximam, no sentido de que um licenciando apresenta mais de uma motivação para a escolha e a mesma motivação é apresentada por diversos deles. Nessa perspectiva, Passos, Martins e Arruda (2005) aduzem que são muitos os tipos de escolhas, variados os desejos e diferentes os caminhos que levam as pessoas a se tornarem professores.

No primeiro eixo, destacam-se registros1 1 Os recortes analisados comportam a transcrição diplomática dos registros realizados pelos estudantes. que sublinham o interesse pela Matemática como principal motivação para a escolha do curso, uma característica identificada também na pesquisa de Passos, Martins e Arruda (2005). Segundo os autores, os acadêmicos participantes da pesquisa, desde a infância, gostavam de cálculos e desafios, sendo esse um dos fatores que concorreram para a escolha do curso. Nesse âmbito, a estudante Ee destaca a intenção de cursar uma graduação desde a infância, porém o Ensino Médio foi determinante para a decisão, o que também é exposto por Ei.

O meu sonho em entrar pra universidade virou realidade, estou cursando matemática, que é o que eu sempre quis. Como a senhora sabe eu tenho esse sonho desde criança, [...] no segundo ano do ensino médio descobri que era realmente isso que eu queria. Eu sempre gostei muito da matemática e odiava o português, estou realizada com a minha escolha.

(Trecho da carta elaborada pelo estudante Ee do curso de Licenciatura em Matemática, 2022).

Meu sonho era trabalhar com crianças e ajudar elas de alguma maneira, chegando no ensino médio me apaixonei cada vez mais pela matemática [...] acabei percebendo que minha paixão é na verdade a matemática e hoje estou muito feliz com minha escolha.

(Trecho da carta elaborada pelo estudante Ei do curso de Licenciatura em Matemática, 2022).

Além de Ee e Ei, Em também frisa o quanto está confortável em relação à escolha do curso, o que é relevante frente à tamanha evasão no ensino superior brasileiro. Afinal, considerando o pequeno número de brasileiros que chegam a esse nível do ensino, desistências e abandonos precisam ser estudados para que ações sejam realizadas em prol da sua amenização. Outro aspecto identificado no registro de Em refere-se ao fato de que quanto mais ele aprende matemática, mais tudo se encaixa e faz sentido.

Gosto bastante de números, gosto de lógica e sou apaixonado pelo modo de como a matemática é a base de tudo, [...] fico maravilhado de como tudo se encaixa conforme vou aprendendo mais sobre a matemática. [...] eu estou muito confortável na minha escolha: ser professor de matemática.

(Trecho da carta elaborada pelo estudante Em do curso de Licenciatura em Matemática, 2022).

Os registros dos estudantes possibilitam perceber que o interesse pela Matemática, enquanto área de conhecimento, foi decisivo para a escolha do curso. A par da situação, Moreira et al. (2012)MOREIRA, P. C. et al. Quem quer ser professor de matemática?. Zetetiké, Campinas, v. 20, n. 1, p. 11-33, 2012. problematizam: “[...] a profissão docente em si fica em segundo plano, quando se pensa no motor que leva à decisão pela licenciatura em matemática, pois seria razoável imaginar que “gostar de matemática” levasse à escolha do bacharelado”. Gostar de Matemática é suficiente para ser professor de Matemática? Essa é uma questão complexa, que leva ao segundo eixo de discussão: a disposição para ensinar Matemática.

Mais que gostar de Matemática é preciso gostar de ensinar Matemática, ou seja, gostar da docência, o que foi destacado pelo estudante Em quando escreveu estar confortável na escolha da profissão professor de matemática. De maneira similar, destaca-se o registro de El, que descobre sua paixão pela Matemática e associa a ela a paixão pela profissão. Ademais, o licenciando está feliz, pois descobriu a sua vocação e encontrou um propósito de vida, o que reflete uma concepção idealizada da profissão e que merece reflexão.

Acabei percebendo que minha paixão é na verdade matemática, então troquei de faculdade e agora estou fazendo a faculdade de matemática [...]. E hoje estou muito feliz com minha escolha, acho que descobri a minha vocação que é ser professor de matemática [...] Hoje em dia sou uma pessoa muito mais feliz do que a alguns anos atrás, talvez por ter achado o meu propósito de vida.

(Trecho da carta elaborada pelo estudante El do curso de Licenciatura em Matemática, 2022).

Segundo Freire (1991)FREIRE, P. A educação na cidade. São Paulo, Cortez, 1991., ninguém nasce marcado para ser educador, tampouco começa a ser educador em um determinado momento da vida. O indivíduo se torna educador permanentemente por meio da prática e da reflexão sobre a prática. Como destacam Silva, Júlio e Oliveira (2021), ser professor de Matemática não pode ser interpretado como algo previamente construído, mas é, isto sim, uma noção que só existe a partir da significação atribuída pelos sujeitos. Assim, a concepção acerca da profissão docente e da Matemática, as crenças e as experiências prévias constituem elementos fundamentais não só para a escolha da profissão, mas integram um processo complexo e dinâmico de constituição identitária.

Para Sarmento (2013)SARMENTO, T. Aprender a profissão em diferentes espaços de vida. Revista de Educação, Campinas, v. 18, n. 3, p. 237-248, 2013., os contextos mais influentes para a escolha profissional são a família, os amigos, a escola de formação inicial e os pares com os quais se relacionam informalmente. Nesse cenário, destaca-se a terceira linha de discussão, que é o incentivo social e familiar, com ênfase nos familiares (pais, mães e avós) e nos professores. A participante Ei, ao revisitar memórias de infância, descreve, de maneira carinhosa, os primeiros indícios de atuação como professora, nas brincadeiras com a sua avó. Além disso, o apoio dos pais mostrou-se significativo.

Mas percebi que tudo começou quando eu era pequena nas férias na casa da vó Cristina lá quando eu "ensinava" ela do meu jeito, o desejo de ser professora começou a surgir. E assim tomei minha decisão com muito apoio do meu pai e da minha mãe dizendo que sempre estariam do meu lado não importa o que aconteça.

(Trecho da carta elaborada pela estudante Ei do curso de Licenciatura em Matemática, 2022).

Consoante Passos, Martins e Arruda (2005), a construção da identidade, além de ter seu início em tempos mais remotos, como na infância e/ou na adolescência, tem raízes imersas na questão familiar, pois é vultosa a opinião dos pais quanto à escolha profissional, que tanto pode ser positiva, quanto negativa. No caso da estudante Ei, o apoio dos pais foi positivo. Semelhantemente, o registro de Ef enfatiza a alegria dos pais com a escolha.

Aqui em casa adoraram a ideia, eles só não queriam que eu ficasse na lavoura igual eles, sofrendo segundo eles. Se estou bem, eles estão bem, é o que dizem, então estou tranquilo.

(Trecho da carta elaborada pelo estudante Ef do curso de Licenciatura em Matemática, 2022).

De acordo com o registro do participante Ef, a profissão docente é valorizada pelos familiares enquanto possibilidade de mudança, possibilidade de uma vida melhor, diferente daquela vivida pelos pais. Em Passos, Martins e Arruda (2005), encontra-se, entre os depoimentos dos participantes, um que cita que os professores da sua família, embora não sejam ricos, não passam fome, pois essa é uma profissão que sempre encontra campo de trabalho. Na verdade, no concernente ao professor de Matemática, este é ainda mais necessário no mercado.

Sarmento (2013SARMENTO, T. Aprender a profissão em diferentes espaços de vida. Revista de Educação, Campinas, v. 18, n. 3, p. 237-248, 2013., p. 244) afirma que “[...] a escolha da profissão é muitas vezes justificada pela socialização prévia que se tem com a mesma - a opção faz-se numa altura em que ainda se é aluno -, e sobretudo pelas memórias afetivas que se possui de algum professor”. Corroborando a discussão, Passos, Martins e Arruda (2005) expressam que as escolhas são marcadas pelas relações e, entre elas, sobressai-se a figura do professor. A figura desse profissional é destacada nos registros dos participantes Em e Ed, segundo os quais houve docentes que se tornaram referências e isso favoreceu diretamente a escolha pela docência.

Tive professores muito bons que contribuíram para essa escolha, desde a minha professora de matemática do fundamental que sempre me dava listas extras de exercícios por eu terminar antes de todos, quanto um professor de biologia, que apesar de não ser da mesma área, acabou me mostrando que a carreira de professor vai além de um profissional encarregado de dar aula.

(Trecho da carta elaborada pelo estudante Em do curso de Licenciatura em Matemática, 2022).

Minha professora de matemática do ensino médio... o quanto eu elogiava ela pela excelente profissional que ela era. Acabou que ela foi a “culpada” por essa escolha, me motivou muito a querer ser como ela, a conseguir administrar a aula como ela conseguia, com todo amor que ela tinha pela profissão e passar todo conhecimento dela para nós.

(Trecho da carta elaborada pelo estudante Ed do curso de Licenciatura em Matemática, 2022).

Os estudantes Em e Ed elucidam a importância dos seus ex-professores para a escolha. De mais a mais, Ed cita que deseja ser como a sua professora. Essa declaração é muito significativa, haja vista que, conforme Passos, Martins e Arruda (2005, p. 479), “[...] Os professores dos Ensinos Fundamental e Médio, muitas vezes, não têm consciência do que podem provocar em seus pequenos pupilos [...]”. No caso de ambos os estudantes, os professores provocaram sentimentos positivos, mas o contrário também acontece. Um licenciando participante da pesquisa de Passos, Martins e Arruda (2005) assume que escolheu o curso de Matemática para provar ao seu ex-professor que é capaz de aprender Matemática, diferentemente do que esse profissional pensava.

As cartas trazem diversas justificativas para a escolha do curso, mas nem sempre as escolhas são racionais, pautadas na lógica e razão. A título de esclarecimento, Passos, Martins e Arruda (2005) discorrem que opções e sentimentos em relação ao tornar-se professor, na verdade, parecem apontar para algo que vai além da explicação racional, ou seja, algumas justificativas parecem ser incompreensíveis até mesmo para aquele que a fala. Ainda segundo os autores, frases como sempre gostei de Matemática ou gosto de saber que uma pessoa entendeu algo que eu tentei ensinar, de fato, podem nada explicar, porque frequentemente nós não sabemos por que gostamos de uma coisa ou outra.

Avançando na discussão, o ingresso na universidade é permeado de desafios que têm impacto na vida, para além de questões profissionais, implicando uma série de transformações, inclusive nas amizades (Teixeira et al., 2008TEIXEIRA, M. A. P. et al. Adaptação à universidade em jovens calouros. Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 12, n. 1, p. 185-202, 2008.). Dizem ainda os autores que, enquanto na Educação Básica, cobra-se responsabilidade e desempenho, na universidade, é o acadêmico que precisa gerir sua vida estudantil com autonomia. Com isso, o aproveitamento acadêmico no primeiro semestre nem sempre é o esperado, o que para alguns pode ser um desestímulo para a continuidade no curso. A esse respeito, conforme Quadro 2, quatro (4) estudantes obtiveram aprovação em todas as disciplinas cursadas no semestre. São eles: Ed, Ef, Ek e Em, sendo que três deles foram após prestar exame.

Quadro 2
– Perfil x rendimento acadêmico no primeiro semestre

O Quadro 2 permite algumas considerações, quais sejam: Eb teve o menor aproveitamento no semestre, pois, devido ao trabalho, deu continuidade a apenas duas disciplinas, sendo aprovado em uma delas. Em relação a reprovações no semestre, Ea, Ec, Eg e Eh obtiveram a mesma quantidade de reprovações, três. Em seguida, vem El, com duas reprovações. Por fim, com uma reprovação, aparecem Eb, Ee, Ei e Ej. Outras considerações possíveis são que, entre os estudantes com menor aproveitamento no semestre, estão os que trabalham. Também estão nesse grupo as duas estudantes Ea e Eg, que não tinham a Matemática como primeira opção de curso.

O primeiro semestre do curso de Licenciatura em Matemática da universidade pública (contexto desta pesquisa) tem 6 disciplinas, a saber: Laboratório de Ensino de Matemática I (LEMA I); Introdução à Educação Matemática (IEM); Profissão Docente; Matemática Elementar: Funções; Matemática Elementar: Funções Transcendentais; Matemática Elementar: Medida e Forma em Geometria. A Figura 3 apresenta um panorama do aproveitamento dos estudantes nessas disciplinas, sendo que Profissão Docente teve aprovação geral, seguida de LEMA I e IEM, com os mesmos resultados. Com menor aproveitamento, estão as disciplinas de Matemática Elementar: Funções Transcendentais; Matemática Elementar: Medida e Forma em Geometria.

Estudos recentes sugerem que, em cursos de áreas exatas, estão concentrados os maiores índices de reprovação e evasão acadêmica. Silva et al. (2022)SILVA, D. B.; FERRE, A. A. O.; GUIMARÃES, P. S.; LIMA, R.; ESPINDOLA, I. B. Evasão no ensino superior público do Brasil: estudo de caso da Universidade de São Paulo. Avaliação: Revista da Avaliação da Educação Superior, Campinas, v. 27, n. 2, p. 248-259, 2022. utilizam dados da Universidade de São Paulo (USP) no período de 2010 a 2020 para evidenciar que cursos de graduação nas áreas de Ciências Exatas apresentaram as maiores taxas de evasão. Os autores sugerem algumas ações institucionais que visam reverter o quadro, entre elas a criação de grupos que atuem, especificamente, na recepção dos estudantes ingressantes, proporcionando trocas de experiências e fomentando a autonomia, autoestima e autoconfiança deles nessa fase.

As estudantes Ea e Eh, mulheres, de cor preta, que desempenham atividades remuneradas, estão entre aqueles com o menor rendimento acadêmico. Ademais, não tinham a Matemática como primeira opção, nem pretendem continuar no curso. A relação entre evasão do curso e este não ser a primeira opção é citada por Santos et al. (2019)SANTOS, J. V. Q. et al. Fatores interferentes na evasão e retenção nos cursos de Matemática e Bacharelado em Ciência e Tecnologia da UFVJM. Revista Vozes dos Vales, Teófilo Otoni, n. 16, p. 1-30, 2019., segundo os quais os estudantes não se identificam com a proposta. A Figura 2 traz em evidência os termos com maior ocorrência, considerando a transcrição das entrevistas em que as estudantes Ea e Eh justificam a não continuidade no curso.

Figura 2
– Entrevista justificando a não continuidade no curso

O pronome eu tem enorme destaque na nuvem e relaciona-se com as inúmeras vezes nas quais as estudantes se referem a elas, responsabilizando-se pelos seus próprios rendimentos no primeiro semestre. O eu vem seguido da palavra não, em expressões frequentes como: Eu não consegui estudar, eu não consegui me dedicar. São comuns às duas estudantes, que indicam aspectos semelhantes para justificar a não continuidade no curso. Elas citam o nível de dificuldade e a falta de afinidade com o curso, o qual exige muito estudo e dedicação, o que nem sempre é possível devido à jornada de trabalho. Para Santos et al. (2019)SANTOS, J. V. Q. et al. Fatores interferentes na evasão e retenção nos cursos de Matemática e Bacharelado em Ciência e Tecnologia da UFVJM. Revista Vozes dos Vales, Teófilo Otoni, n. 16, p. 1-30, 2019., é comum que estudantes mais jovens tenham uma imagem distorcida sobre o curso que pretendem fazer e aquilo que causa decepção é um fator negativo para a permanência no curso.

As duas estudantes, Ea e Eh, mencionam, em suas falas, o trabalho. Inclusive, esta é uma palavra em destaque na nuvem. Segundo elas, é difícil trabalhar e estudar, pois o trabalho é cansativo e não há tempo suficiente para os estudos. Neste sentido, a estudante Eh se questiona na tentativa de entender o seu aproveitamento no semestre.

Mas o primeiro semestre foi muito difícil, foi mais de uma prova no mesmo dia. Eu não consegui fazer tudo, estudar o suficiente, por questão de eu trabalhar, meu horário era pouco [...]. Era muito conteúdo para lembrar, para estudar e eu precisava trabalhar e chegava cansada. Não foi fácil mesmo (Entrevista com estudante Ea, 2022).

Eu não me encontrei na matemática, eu não imaginava que era assim. Quero trocar de curso, entrar numa coisa que eu gosto. Não sei se eu não me encontrei porque eu não foquei tanto devido ao trabalho, e daí foi muito difícil ou se é por ser tão difícil que eu não consegui e encontrar e me dedicar (Entrevista com estudante Eh, 2022).

A despeito de haver muitos fatores que concorrem para o (in)sucesso acadêmico, desempenhar atividades remuneradas pode ser um dificultador em potencial. Esse fato é apontado por 75,7% dos entrevistados de dois cursos: Bacharelado em Ciência e Tecnologia (BC&T) e Licenciatura em Matemática. Eles acreditam que a atividade remunerada é um aspecto prejudicial no desempenho acadêmico. Nessa perspectiva, a pesquisa de Andriola, Andriola e Moura (2006) apontou que 40% dos estudantes evadem por incompatibilidade entre horários de trabalho e de estudo.

A produtividade nos cursos de graduação é baixa, conforme o censo do Ensino Superior de 2019. Consoante a pesquisa, em dez anos (2010 – 2019), apenas 40% dos que iniciaram um curso concluíram (Brasil, 2022b). É uma situação preocupante, que aponta para um problema estrutural do Brasil. Logo, são urgentes políticas públicas para aumentar a produtividade, afinal, mais que acesso ao Ensino Superior, é preciso que os brasileiros possam concluir seus cursos e desempenhar a profissão escolhida com qualidade. Aqui em especial, destaca-se a grande relevância da formação de bons professores de Matemática, os quais possam, além de ensinar os conteúdos necessários, apresentar aos estudantes a importância e a beleza dessa área do conhecimento.

5 Considerações finais

É oportuno e fundamental problematizar e compreender as principais motivações, os desafios e as perspectivas de um grupo de estudantes ingressantes do curso de Licenciatura em Matemática de uma universidade federal do Sul do Brasil − objetivo deste artigo. Isso porque não passam despercebidas a baixa produtividade dos cursos de graduação no país e a pequena procura pela docência, uma profissão essencial para a sociedade, mas complexa e cada vez menos atrativa. E ser professor de Matemática, quem ainda quer ser?

Dos treze participantes da pesquisa, onze pretendem continuar o curso e ser professor de Matemática. Destes onze, a maioria é do gênero feminino, cor branca, idade entre 18 e 22 anos; não desempenha atividades remuneradas, progredindo do Ensino Médio para o Superior e, com exceção de um, todos os demais tinham a Matemática como primeira opção. Os outros dois ingressantes, que não pretendem continuar no curso, são do gênero feminino, cor preta, idade 18 e 22 anos, desempenham atividades remuneradas. Uma delas passou do Ensino Médio para o superior e não tinha a Licenciatura em Matemática como primeira opção de curso.

Em relação às motivações para a escolha do curso, merece relevo o interesse pela Matemática, enquanto área do conhecimento, disposição para ensinar Matemática, destacando aqui o gosto pela docência e o incentivo social e familiar, em especial pai, mãe, avós e professores. Já os rendimentos acadêmicos são distintos de estudante para estudante. Enquanto quatro deles foram aprovados nas seis disciplinas, uma estudante foi aprovada em apenas uma, e quatro, em apenas três disciplinas. A propósito, as quatro estudantes que desempenham atividades remuneradas estão no grupo do menor rendimento acadêmico.

Acredita-se que, no apanhado de dados, dois em especial se sobressaem e necessitam de atenção e estudo. De antemão, merecem ser considerados na elaboração dos projetos pedagógicos do curso e nos planos de aula, levando em conta que as disciplinas da área específica da Matemática detêm o maior índice de reprovação e estudantes que desempenham atividades remuneradas apresentaram os menores rendimentos acadêmicos. Embora tais constatações não sejam novidade, o que é feito ou o que poderá ser feito para amenizar essas dificuldades? Ora, a reprovação é um empecilho e uma desmotivação para a continuidade no curso. Isso, pois, representa um cenário para novas pesquisas.

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  • 1
    Os recortes analisados comportam a transcrição diplomática dos registros realizados pelos estudantes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2023
  • Aceito
    28 Jun 2023
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