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CONSTITUIÇÃO, EMENDAS CONSTITUCIONAIS E POLÍTICAS PÚBLICAS: A ATENÇÃO GOVERNAMENTAL EM MUDANÇAS CONSTITUCIONAIS

Constitution, constitutional amendments and public policies: Unveiling government attention through constitutional changes

Constitución, enmiendas constitucionales y políticas públicas: La atención del gobierno a los cambios constitucionales

RESUMO

Entre 1988 e 2018, a Constituição Federal brasileira sofreu 105 alterações por meio da aprovação das Emendas Constitucionais. Diante desse fenômeno marcado pela alta taxa de emendamentos, este trabalho tem por objetivo mapear e analisar as mudanças na Constituição a partir dos diferentes tipos de políticas setoriais alvo dessas 105 Emendas ao longo dos 30 anos pós-promulgação da Constituição. Metodologicamente, o artigo adota a perspectiva de análise de conteúdo a partir da estrutura do Comparative Agendas Project (CAP). Como resultado, o artigo destaca o crescimento da Constituição na ordem de mais de 20%. Também foi observado o aumento de normatizações voltadas para a garantia de diferentes tipos de policy -sobretudo as políticas sociaisem detrimento da regulação da polity. Finalmente, as conclusões apontam para a importância de se olhar para a Constituição Federal como um lócus de formação da agenda, formulação de políticas e de defesa de prioridades de governos.

Palavras-chave:
agenda governamental; Constituição Federal; Emendas Constitucionais; dinâmica de políticas públicas; mudança em políticas públicas

ABSTRACT

From its enactment in 1988 until 2018, the Brazilian Federal Constitution underwent 105 changes through the approval of Constitutional Amendments. Given this high rate of amendments, this research aims to map and analyze the changes in the Constitution, focusing on the different types of sectoral policies targeted by these 105 amendments over 30 years. The study employs content analysis based on the Comparative Agendas Project (CAP) framework. The findings reveal that the Constitution expanded by more than 20% during this period. There was also an increase in policy regulations, particularly those aimed at guaranteeing various types of policies - primarily social policies - often at the expense of polity regulation. Finally, the conclusions highlight the importance of viewing the Federal Constitution as a locus for agenda formation, policy formulation, and the promotion of government priorities.

Keywords:
governmental agenda; Federal Constitution; Constitutional Amendments; policy dynamics; policy change

RESUMEN

Entre 1988 y 2018, la Constitución Federal brasileña sufrió 105 cambios mediante la aprobación de enmiendas constitucionales. Dado este fenómeno marcado por la alta tasa de enmiendas, este trabajo tiene como objetivo mapear y analizar los cambios en la Constitución a partir de los diferentes tipos de políticas sectoriales a las que se dirigen estas 105 enmiendas durante los 30 años posteriores a la promulgación de la Constitución. Metodológicamente, el artículo adopta la perspectiva del análisis de contenido a partir de la estructura del Comparative Agendas Project (CAP). Como resultado, el artículo destaca un crecimiento de la Constitución de más del 20%. También se observó un aumento de las regulaciones destinadas a garantizar diferentes tipos de policy -especialmente políticas sociales- en detrimento de la regulación de la polity. Finalmente, las conclusiones apuntan a la importancia de considerar la Constitución Federal como un lugar de formación de la agenda, formulación de políticas y defensa de las prioridades del gobierno.

Palabras clave:
agenda de gobierno; Constitución Federal; enmiendas constitucionales; dinámica de políticas públicas; cambio de políticas públicas

INTRODUÇÃO

A promulgação da Constituição Federal (CF) de 1988 é considerada, tanto no debate público nacional quanto nos espaços acadêmicos no Brasil e no mundo, um importante marco político, social, jurídico e institucional, quer seja pelas mudanças promovidas no processo de redemocratização do País, quer seja pelo novo desenho institucional de reestruturação do Estado, redefinindo o arcabouço político, administrativo e normativo por meio do conjunto de direitos fundamentais inseridos no corpo da CF. Alinhada aos ideais do constitucionalismo moderno, a Carta Constitucional brasileira de 1988 inseriu em seu texto regramentos voltados a assegurar ao povo brasileiro a manutenção do Estado democrático e da estabilidade institucional (Arantes & Couto, 2009aArantes, R. B., & Couto, C. G. (2009a). Uma Constituição incomum. In M. A. R. de Carvalho, C. Araújo, & J. A. Simões (Orgs.), A Constituição de 1988: Passado e futuro.(pp.17-51) Hucitec.).

A partir dessa nova Constituição detalhista quanto à descrição das liberdades, dos direitos civis e políticos e das instituições, em sua essência, o texto constitucional buscou recompor de maneira coerente a legalidade democrática corrompida e desfigurada por 21 anos de autoritarismo, dando início, a partir de sua promulgação - entendida como resultado de um amplo e importe debate realizado nas comissões da Assembleia Nacional Constituinte - à busca pela democracia substantiva nos quais se alteraria, de alguma forma, a própria distribuição social de poder. A Carta Constitucional de 1988 forneceu maior transparência e seguridade voltadas à preservação social, que são preceitos essenciais a um governo democrático (Carvalho, 2002Carvalho, J. M. (2002). Cidadania no Brasil: O longo caminho. Civilização Brasileira. Edições 70.; Novelino, 2019Novelino, M. (2019). Curso de Direito Constitucional (15a ed.).Juspodivm.; Reis, 1989Reis, F. W. (Junho, 1989). Estado, Economia, Ética, Interesses: Para a Construção Democrática do Brasil. Planejamento e Políticas Públicas, 1(1), 33-35. http://biblioteca.ijsn.es.gov.br/Record/3561
http://biblioteca.ijsn.es.gov.br/Record/...
; Silva, 2021Silva, V. A. da. (2021). Direito Constitucional brasileiro. Universidade de São Paulo.; Souza, 2008Souza, C. (2008). Regras e contexto: As reformas da Constituição de 1988. Dados - Revista de Ciências Sociais, 51, 791-823. https://doi.org/10.1590/S0011-52582008000400001.
https://doi.org/10.1590/S0011-5258200800...
).

O objetivo deste trabalho reside em mapear e analisar as prioridades constitucionais presentes na CF original, de 1988, a partir da sistematização e análise percentual da atenção sobre as políticas públicas que compõem a Carta Magna, destacando as mudanças ocorridas em sua estrutura por meio das aprovações de 105 Emendas Constitucionais (ECs) e Emendas de Revisão, ao longo dos 30 anos de democracia brasileira (1988-2018). Por fim, o artigo analisa a dinâmica das mudanças constitucionais ao comparar as prioridades em políticas públicas presentes no texto constitucional original com o texto após a inclusão e exclusão de normatizações oriundas das ECs aprovadas até 31 de dezembro de 2018.

Para alcançar tais objetivos, são adotados diferentes recursos metodológicos e instrumentos de análise já muito bem desenvolvidos nos campos nacional e internacional. Baseado, sobretudo, na construção de bancos de dados que mapeiam e classificam os níveis de atenção governamental em diferentes variáveis por meio da análise de conteúdo, este artigo transforma trechos do texto constitucional e as ECs aprovadas em “códigos” ou categorias analíticas preestabelecidas. A construção do banco de dados é feita, portanto, a partir da análise de conteúdo e de instrumentos de codificação de dados (Bardin, 2011Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo.).

Após a sistematização e análise descritiva sobre a composição setorial de cada corpus documental isolado (CF/1988, cada EC aprovada e a CF em 2018), a análise segue de maneira comparada, contrapondo os achados a partir do tamanho, da distribuição de atenção sobre as diferentes variáveis e sobre o impacto das mudanças aprovadas entre a CF de 1988 e a CF emendada 30 anos depois, em 2018. Por fim, entre os achados mais relevantes, são discutidos o crescimento do texto constitucional, os setores de políticas públicas que ganharam mais atenção e aqueles que perderam atenção proporcional ao longo do tempo analisado. Num diálogo próximo com o que há de mais atual sobre mudanças constitucionais, são apontadas relações históricas, descritivas e causais sobre as mudanças na CF e no impacto causado por elas.

Este artigo está estruturado em cinco seções, para além desta introdução. A primeira tem o objetivo de posicionar o trabalho e o objeto de análise no campo dos estudos constitucionais, elucidando tipologias, formas de classificação e características da CF de 1988 e as possibilidades de alterações em seu texto. A segunda parte do artigo é dedicada à metodologia e à apresentação do Comparative Agendas Project (CAP), demonstrando os instrumentos e ferramentas metodológicas criadas e difundidas por esse projeto internacional para mapear e analisar a atenção sobre políticas públicas. Tais métodos são adaptados para o contexto brasileiro e aplicados neste artigo, sobre os textos constitucionais de 1988 e em 2018, e sobre as 105 ECs aprovadas no contexto brasileiro até 2018. Na seção seguinte, são apresentados e analisados os resultados dos bancos de dados construídos com base nos métodos de classificação da atenção sobre políticas públicas. São apontadas as políticas setoriais com maior e menor atenção no texto constitucional, as políticas com maior sucesso no processo de emendamento e, também, os setores mais modificados ao longo do tempo. Também são apresentadas e discutidas as principais alterações proporcionais na CF quando contrapostas a formação setorial da CF em 1988 e, após emendamentos, em 2018. A quinta e última seção apresenta as conclusões sobre a análise feita e os caminhos futuros que podem ser desenvolvidos a partir do banco de dados elaborado por esta pesquisa.

ASPECTOS TIPOLÓGICOS DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA

Quanto à origem, a CF de 1988 é considerada democrática porque se originou de um órgão constituinte composto de representantes do povo voltados, em tese, a reafirmar e assegurar a vontade e os interesses dos cidadãos brasileiros (Silva, 2021Silva, V. A. da. (2021). Direito Constitucional brasileiro. Universidade de São Paulo.). Essas características conversam com a vontade do constituinte de iniciar um novo estágio de maturidade política e de longevidade institucional já destacadas. Para além do aspecto democrático, outra característica fundamental da CF de 1988 está relacionada à sua estabilidade, elemento essencial para a compreensão dos processos de mudança constitucional.

Nesse sentido, no que compete à estabilidade, a CF de 1988 é de tipologia rígida, significando dizer que a alteração dos seus dispositivos depende de um procedimento dificultoso quando comparado com a classificação de constituições flexíveis. A Carta de 1988 estabelece, em seu art. 60, os procedimentos necessários para a alteração do texto constitucional. Após a submissão de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC), sua consolidação efetiva no corpo constitucional somente será concretizada após a aprovação em quórum qualificado de ⅗ dos votos dos membros do Congresso Nacional. A rigidez e a dificuldade de mudança constitucional se estabelecem pelas características de um sistema político multipartidário e pela estratificada composição do Congresso Nacional. Atingir o alto quórum qualificado de ⅗ dos votos dos membros do Congresso Nacional é tarefa difícil, mas não um impeditivo para a inserção de novos dispositivos ou a retirada de normatizações existente.

Entre 1988 e 2018, mais de 3.900 PECs foram elaboradas pelos atores políticos com a intenção de alterar a CF brasileira. Dessas, somente 105 conseguiram sucesso na tramitação e aprovação. Uma taxa de cerca de 2,7% de aprovação, justificando, assim, a característica rígida do nosso processo de mudança constitucional. Ainda assim, é importante retomar os estudos que apontam que, mesmo com a baixa taxa de aprovação de PECs, os últimos 30 anos da nossa CF tornaram-na mais extensa em tamanho e em conteúdo, de modo que, com um olhar atento sobre a “produção legislativa pós-1988, é possível afirmar, sem exagero, que o país permaneceu numa espécie de agenda constituinte, como se, paradoxalmente o processo de reconstitucionalização não houvesse se encerrado em outubro daquele ano” (Couto & Arantes, 2006Couto, C. G., & Arantes, R. B. (2006). Constituição, governo e democracia no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, (61), 41-62. https://doi.org/10.1590/S010269092006000200003.
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, p. 41). Ou seja, mesmo que rígido e dificultoso, o processo de mudança constitucional não vem obstando as centenas de emendas aprovadas desde a sua promulgação (Moraes, 2019Moraes, A. (2019). Direito Constitucional. Atlas.; Silva, 2021Silva, V. A. da. (2021). Direito Constitucional brasileiro. Universidade de São Paulo.).

No que concerne ao corpo constitucional, isto é, ao seu tamanho propriamente, relacionado ao aspecto tipológico da extensão, Elster (2012)Elster, J. (2012). The optimal design of a Constituent Assembly. Cambridge University Press. busca estabelecer uma relação entre tamanho ideal e força da CF.

Entre as suas observações, ele destaca a argumentação percorrida por Condorcet:

“Se um corpo não é suficientemente numeroso, é necessariamente fraco, porque, nas ocasiões onde a coragem é necessária, todos temerão ser comprometidos pessoalmente. Mas o problema de um corpo muito numeroso é que ele tem uma força independente daquela que deve à sua qualidade de assembleia representativa, ou seja, uma força baseada sobre o crédito particular de seus membros e decorrente apenas de sua união. O corpo numeroso pode abusar dessa força; pode derivar dela uma forma de independência. Existe, portanto, um meio-termo de que é importante, e às vezes difícil, agarrar.” (Elster, 2012Elster, J. (2012). The optimal design of a Constituent Assembly. Cambridge University Press., p. 49 como citado em Condorcet, 1788, p. 366, tradução realizada pelo autor)

O trecho destacado evidencia a busca pelo tamanho ou modelo ideal de uma Constituição, e estabelece que não é, isoladamente o tamanho que faz uma Constituição ser funcional. Não só a compreensão de fatores que evidenciam a ação, mas também é importante a determinação de aspectos essenciais que levam a uma Constituição e como ela se delimita. Uma boa Constituição é como um complexo maquinário, com diversas engrenagens e conjuntos de peças que fazem o seu funcionamento (Elster, 2012Elster, J. (2012). The optimal design of a Constituent Assembly. Cambridge University Press.).

No processo de desenho constitucional brasileiro, a escolha deu-se por uma Constituição democrática, rígida e longa, com a inclusão de dispositivos que vão além da estruturação do Estado, dos poderes e dos direitos civis e políticos. Conforme notado por Arantes e Couto (2008b)Arantes, R. B., & Couto, C. G. (2008b). A Constituição sem fim. In S. Diniz & S. Praça (Orgs.), Vinte anos de Constituição (pp. 31-60). Paulus., as políticas públicas (policies) contidas e inseridas na CF ao longo do tempo evidenciam um modelo submetido a constante promoção de alterações e de mudanças constitucionais. Assim, pode-se destacar que, a despeito da ideia de rigidez constitucional, a CF de 1988 não parece ter atingido a estabilidade institucional esperada, considerando a quantidade de dispositivos constitucionais inseridos ao longo dos anos em seu corpo textual.

Observa-se que, para além dos ideais de estabilidade e longevidade, a Carta de 1988 teve como nota diferenciadora das demais a constitucionalização não apenas dos direitos e garantias fundamentais, mas também da agenda governamental de políticas públicas, deixando ao legislador infraconstitucional pouco poder decisório quanto às políticas já constitucionalizadas. Essa característica, conforme apontado por Arantes e Couto (2008b)Arantes, R. B., & Couto, C. G. (2008b). A Constituição sem fim. In S. Diniz & S. Praça (Orgs.), Vinte anos de Constituição (pp. 31-60). Paulus., é ponto fundamentalmente relevante para reafirmação do compromisso do constituinte em relação à institucionalização de um sistema de mecanismos de defesa para o cidadão, composto não apenas de direitos e garantias fundamentais, e pela estruturação do estado e da relação dos poderes, mas avançando em agendas de propostas de políticas públicas que, para além de dar cumprimento a estas, integram efetivamente os dispositivos constitucionais (Couto & Arantes, 2006Couto, C. G., & Arantes, R. B. (2006). Constituição, governo e democracia no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, (61), 41-62. https://doi.org/10.1590/S010269092006000200003.
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; Lima, 2016Lima, G. de M. (2016). Constitucionalização de políticas públicas e emendamento constitucional no Brasil (Tese de doutorado em Administração Pública e Governo, Fundação Getulio Vargas, Escola de Administração de Empresas de São Paulo).).

METODOLOGIA: MAPEANDO A ATENÇÃO SOBRE POLÍTICA PÚBLICAS NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E NAS EMENDAS CONSTITUCIONAIS

Este artigo está fundamentalmente baseado na metodologia e na estrutura teórico-metodológica do CAP, que consiste num processo de construção de banco de dados elaborado a partir da análise de conteúdo via sistema de codificação da atenção governamental sobre políticas públicas.

A metodologia conta com uma matriz analítica cujas variáveis são compostas por 21 categorias distintas (Master Codebook) que representam 21 políticas setoriais diferentes, permitindo aos pesquisadores mapear e analisar a atenção sobre políticas públicas em diferentes corpus documentais. Neste estudo, essas categorias são aplicadas ao texto constitucional original, de 1988, ao texto constitucional de 2018, após emendas, e às 105 ECs aprovadas, cotejando as continuidades e descontinuidades de diversas políticas públicas presentes na atual CF brasileira e distribuição da atenção do legislador constitucional entre as mais diversas políticas públicas brasileiras.

O Master Codebook é composto por 21 códigos, ou categorias analíticas, que representam 21 políticas setoriais diferentes (Tabela 1).

Tabela 1
Codebook

O desenho da pesquisa é constituído a partir do uso de diferentes abordagens e instrumentos metodológicos que permitem mapear e categorizar o aparecimento de temas centrais nos documentos selecionados, sendo capazes de demonstrar e organizar o lócus da atenção dos atores governamentais na formação e nas modificações da CF de 1988.

É, portanto, uma pesquisa que combina elementos da análise de conteúdo, aplicado por meio do processo de codificação de informações e construção de bancos de dados, seguidos por análises longitudinais, que consideram mudanças ao longo do tempo, e por análises comparadas, que contrapõem as versões de 1988 e de 2018, após 105 emendas aprovadas, da CF brasileira.

Três documentos são analisados: 1) CF promulgada em 1988, 2) as 105 ECs aprovadas, incluindo 99 oriundas de PECs (de 1992 a 2018), e as seis Emendas de Revisão aprovadas em 1994; 3) Constituição.

Nessa perspectiva metodológica, as informações coletadas de documentos governamentais recebem “códigos” que categorizam o conteúdo daquele corpus documental de acordo com o aparecimento de uma política pública setorial. No caso da CF, o texto constitucional é fragmentado de acordo com cada elemento ou dispositivo, como: caput do artigo, inciso, alínea e parágrafo, separando o texto corrido em diversas “quasi-sentence” diferentes, conforme Tabela 2.

Tabela 2
Quasi-sentence como unidade analítica na Constituição Federal
Tabela 3
Organização das Emendas Constitucionais aprovadas

Para cada sentença criada (coluna descrição), é atribuído um código que relaciona o conteúdo daquela sentença a uma das 21 categorias de políticas públicas existentes. A separação do texto em sentenças, definida metodologicamente como a unidade de análise, amplia a capacidade analítica uma vez que separa e destaca os diferentes setores de políticas presentes no texto constitucional. O mesmo processo de codificação é feito com cada EC aprovada, mas, neste caso, os dados são agregados de duas formas diferentes. Na primeira análise, cada EC é definida como uma única unidade de análise a ser codificada e, por se tratar de um instrumento utilizado e aprovado ao longo do tempo, a perspectiva longitudinal é inserida por meio da data de promulgação da EC, conforme tabela a seguir:

No entanto, cada EC, inicialmente adotada como uma unidade de análise, altera diferentes trechos da Constituição, conforme Tabela 4.

Tabela 4
Unidades de análise dentro de Emenda Constitucional n. 23 de 1999

A Ementa da EC/23 de 1999 altera os artigos 12, 52, 84, 91, 102, e 105 da CF, criando o

Ministério da Defesa e dando providências. Individualmente a EC n. 23 seria classificada com o código 16, de defesa, mas, ao abrir cada dispositivo alterado, é possível aprofundar a análise e codificar cada uma das seis alterações feitas pela sua aprovação. Dessa forma, para além de codificar o conteúdo geral de cada uma das ECs, também foi desagregado cada dispositivo alterado em cada EC, assim como feito no corpo dos textos constitucionais.

De 105 emendas aprovadas, a desagregação resultou em 872 alterações em 797 sentenças diferentes da CF brasileira, sejam elas no caput do artigo, no inciso, parágrafo ou na alínea, incluindo as revogações. Vale a pena destacar que 75 sentenças foram alteradas mais de uma vez (de duas a quatro alterações), conforme Tabela 5.

Tabela 5
Número de dispositivos que sofreram alteração textual via aprovação de Emenda Constitucional

O processo de codificação, realizado pelo sistema double blind, resulta na construção de bancos de dados que mostram a quantidade proporcional de atenção de cada documento analisado sobre as 21 categorias predefinidas. Uma vez constituído o banco de dados, a pesquisa adota uma perspectiva analítica qualiquanti, apontando proporcionalmente tópicos que constituem a CF de 1988, os principais temas abordados, além categorizar as 99 ECs aprovadas ao longo do tempo, e, por fim, permite analisar as mudanças da CF original para a CF emendada em 2018, 30 anos após sua promulgação original.

RESULTADOS

A codificação da CF de 1988 gerou um banco de dados com 1.816 informações categorizadas entre os 21 tipos de políticas retratadas na Tabela 1.

Tabela 6
Percentual de atenção na composição da Constituição Federal de 1988

Como é de se esperar, os resultados mostram centralidade temática em códigos que estruturam o Estado, suas funções e sistemas, representados pelo código 20 - Governo e Administração Pública - que apresenta majoração de 28,99% de expressão, seguida por assuntos que envolvem o sistema judiciário, representando 18,10%, e direitos civis e políticos com 11%. Somando esses três indicadores aos valores encontrados sobre questões de defesa e organizações das Forças Armadas (3,4%) e definições territoriais (2,4%), as temáticas mais relacionadas à polity apresentam um percentual de atenção de 64% dos dispositivos constitucionais voltados à estruturação do Estado e do sistema político, número próximo aos 69% achados nos estudos de Arantes e Couto (2008a)Arantes, R. B., & Couto, C. G. (2008a, Setembro). Por que muda e como muda a Constituição? Problemas de controle sobre a agenda governamental. 32º Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, Minas Gerais..

Na análise elaborada por meio da metodologia do CAP, 34% dos dispositivos do texto constitucional aparecem como objeto de 17 tipos de políticas públicas distintas, considerado, assim, alto o grau de diversidade de temas abordados, com destaque para o aparecimento de políticas econômicas (11%), políticas de trabalho, emprego e renda (5,8%), regulamentações bancárias e sistema financeiro (2,8%), políticas de educação (2,6%) e de habitação (2,4%). Conforme demonstrado na tabela anterior e ilustrado na Figura 1, chama atenção a diversidade de políticas setoriais que são instituídas na Carta Constitucional, promovendo o agendamento de diversas políticas públicas na Constituição de 1988.

Figura 1
Atenção às políticas setoriais na Constituição Federal de 1988

No passo seguinte, são apresentados os resultados das análises feitas nas 105 ECs aprovadas, considerando as 99 Emendas aprovadas via PECs e as seis Emendas de Revisão, tendo como objetivo identificar quais setores foram mais modificados via ECs aprovadas.

Conforme Tabela 7, é importante destacar as prioridades sobre os setores de governo e administração pública, representando 20,41%, e sobre os temas de Judiciário e sistema de justiça, representados por 12,24% do total de emendas aprovadas, replicando os indicadores de maior atenção da Constituição de 1988. No entanto, quando analisado o percentual de políticas setoriais a partir da agregação dos códigos propostos, notamos um crescimento no percentual de temas inseridos na Constituição que se referem ao regramento de políticas públicas, em diversos setores. Enquanto as ECs relacionadas a temas de estrutura e sistema político somam 46%, as ECs que versam sobre políticas públicas somam 64%, com destaque para as políticas de setores como macroeconomia (19,5%), energia (4,2%), saúde (4,2%), políticas sociais (3,6%) e cultura (3,3%).

Tabela 7
Percentual de atenção na composição das Emendas Constitucionais aprovadas

Na Figura 3 são apresentadas as ECs aprovadas em cada governo ao longo do tempo. A primeira informação relevante diz respeito ao total de emendas aprovadas por governo. É importante notar uma certa constância, ainda que em patamar elevado, no número de ECs aprovadas entre os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), primeiro e segundo mandatos, Luiz Inácio Lula da Silva, primeiro e segundo mandatos, e Dilma Rousseff, primeiro mandato. Nesse período de 20 anos, de 1995 a 2014, foram 80 ECs aprovadas, uma média de 16 aprovação de ECs por governo, ou quatro emendas por ano nesse período.

Figura 2
Atenção às políticas setoriais nas Emendas Constitucionais aprovadas de 1992 a 2018

Figura 3
Emendas Constitucionais por categoria, por governo

Figura 4
Atenção às políticas setoriais na Constituição emendada até 2018

Juntos, os dois governos de FHC foram os que mais promoveram alterações na Constituição, 35 no total. As mudanças vieram em diversos setores, sobretudo aqueles pautados em ideias reformistas, da economia - com a aprovação e prorrogação da CPMF, da reforma da administração pública e da previdência, da desregulamentação do sistema financeiro, abertura de capital e de atuação de empresas internacionais no mercado nacional em diversos setores - telecomunicações, recursos minerais; redefinição em setores estratégicos como as políticas energéticas de gás e de petróleo. Outras políticas setoriais também foram alvo de reformas constitucionais no governo FHC, como o setor da educação e a criação do Fundef, e do Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza e de Moradia (FCEP), direito social fundamental, investimentos mínimos em saúde.

A agenda de reformas constitucionais não se encerrou com o turnover e mudança de governo, sob a eleição de Lula, do PT, em 2003. No entanto, quanto ao teor das reformas aprovadas, não se pode dizer que elas tenham tido o mesmo padrão que as 35 reformas aprovadas pelo seu antecessor. Foram, no total, 28 emendas aprovadas durante os oito anos de governo

Lula (2003-2010), 14 emendas igualmente distribuídas em cada um dos seus dois governos. Entre as semelhanças com FHC, permanecem o alto grau de emendamento e o foco nos dois principais setores: macroeconomia e governo e administração pública.

No campo macroeconômico, os principais alvos de reforma foram as políticas tributárias, juros, previdência, mudanças nos bens da união e dos territórios. No campo administrativo, aparecem questões sobre pacto federativo, fusão, desmembramento e fundo dos municípios brasileiros, políticas de remuneração de servidores e a Reforma do Poder Judiciário. As maiores diferenças, no entanto, ficam por conta das mudanças pontuais em políticas públicas e o aparecimento de repactuações no setor da educação, com o Fundeb, na constitucionalização de políticas de irrigação e do uso de recursos naturais, a política nacional de cultura, que entrou com grande impacto nos preceitos constitucionais. Destaque deve ser dado às políticas sociais voltadas para juventude, erradicação da pobreza e combate à fome, inserindo pautas fortemente defendidas em sua agenda via emendas constitucionais.

Entre as principais Emendas aprovadas no período de 2007 a 2010, segundo mandato do Presidente Lula, destaque deve ser dado às questões estruturais da polity, assuntos relacionados aos direitos civis e reconhecimentos de cidadania brasileira; a reestruturação do estado e do pacto federativo, com a regulamentação da criação, fusão, incorporação e desmembramento de munícipios, novas definições na composição da Câmara Municipal, estabelecendo critérios de proporção de habitantes e vereadores, bem como questões macroeconômicas correlatas, como o teto das despesas legislativas e o aumento do Fundo de Participação dos Municípios (FPM).

No campo das policies, destaques são dados para a EC n. 59/2009, promulgando a obrigatoriedade do ensino dos quatro a 17 anos, ampliando programas suplementares para todas as linhas da educação básica, assegurando o seu acesso de maneira gratuita a todos e incluindo aqueles que não tiveram acesso na idade adequada. Já a EC n. 67/2010 estabeleceu por tempo indeterminado o FCEP, que tem como objetivo o acesso a níveis dignos de subsistência e da melhoria da qualidade de vida. Por fim, a EC n. 64/2010, que é a mais emblemática no governo Lula 2, introduzindo a alimentação como direito social.

No primeiro governo da Presidenta Dilma Rousseff (de 2011 a 2014), cresce o número de emendas aprovadas em relação ao seu antecessor, o Presidente Lula. Foram aprovadas 17 ECs, demonstrando, sobretudo, continuidade dos programas do governo do PT. Exemplo dessas alterações para implementação de agendas de governo pode ser notado com a EC n. 84/2014, que promoveu aumento da entrega de recursos da União para o FPM. No período, temos a promulgação da EC n. 70/2012, que estabeleceu critérios para o cálculo e correção dos proventos por aposentadoria por invalidez dos servidores públicos. A EC n. 71/2012 é um marco na questão das políticas públicas vinculadas à cultura, já alvo de EC n. 48/2005 no governo Lula, agora instituindo o Sistema Nacional da Cultura. A EC n. 72/2013, que foi chamada de PEC das Domésticas, garantiu direitos trabalhistas a esse grupo de trabalhadoras. A EC n. 76/2013 promulgou a abolição da votação secreta nos casos de perda de mandato de deputado e senador e na apreciação de vetos, garantindo à sociedade uma maior transparência dos seus representantes políticos.

No segundo governo da Presidenta Dilma, de 2015 ao seu afastamento e impeachment, em maio e agosto de 2016, respectivamente, foram promulgadas 11 ECs. Novamente, as principais áreas são a macroeconomia, a administração pública e o sistema judiciário. Os temas de maior importância tratados são a aposentadoria compulsória para servidores públicos e a possibilidade de desfiliação partidária, sem prejuízo do mandato. Cabe, também, destaque para a EC n. 86/2015, que torna obrigatórias a execução da programação orçamentária e a cobrança de imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre a prestação de transporte interestadual e municipal. No campo das policies, a EC n. 90/2015 incluiu o transporte como um direito social, e a EC n. 85/2015 atualiza o tratamento das atividades de ciência, tecnologia e inovação na CF. Por fim, no governo Temer, que se inicia com o afastamento e consequente impeachment da Presidenta Dilma, e perdura até 2018, foram aprovadas quatro ECs. A EC n. 93/2016 prorrogou a desvinculação das receitas da União até 2023. A EC n. 96/2017 determina que a prática desportiva com animais é prática cruel, a menos que seja manifestação cultural. A EC n. 97/2017 instituiu uma limitação para coligações e, por fim, a EC n. 95/2017, considerada uma medida emblemática do governo, institui o teto de gastos públicos pelo período de 20 anos.

A Figura 3 demonstra a atenção percentual dos 10 maiores setores de políticas alvos de ECs que promoveram mudanças na CF de 1988, separadas por presidentes. Destaque deve ser dado para a curva em U, caracterizada pelas extremidades com picos altos, demonstrando temática concentrada e baixa capacidade, e centro achatado e com muitas barras baixas, representando maior diversidade acompanhada de crescimento da capacidade de emendamento.

O último resultado a ser apresentado nesta seção demonstra os indicadores de atenção no texto constitucional em 2018, exatamente 30 anos após a promulgação da Constituição original, em outubro de 1988. Resgatando os princípios metodológicos já esclarecidos anteriormente, a análise de texto constitucional é diferente daquela realizada nas ECs. Aqui, no texto constitucional após 105 emendamentos, a unidade de análise adotada refere-se a cada elemento que compõe a Carta Magna, a saber: o caput do artigo, os incisos, parágrafos e alíneas, conforme demonstrado na Figura 2. Como realizado na Tabela 7, quando demonstrada atenção setorial sobre a Constituição original, de 1988, a Tabela 8 demonstra os resultados sobre o aparecimento de 21 tipos de políticas setoriais na Constituição em 2018.

Tabela 8
Percentual de atenção na composição da Constituição emendada até 2018

ANÁLISE

Após 30 anos e 105 emendas, a CF em 2018 é, evidentemente, diferente daquela aprovada e promulgada em 1988, resultante de um longo e diverso processo constituinte. O objetivo desta análise é identificar, de maneira comparada, quais foram os setores mais modificados e quais as principais alterações proporcionais na Constituição quando contrapomos a formação setorial da Constituição em 1988 e, após emendamentos, em 2018.

A análise aponta para três principais aspectos, conforme demonstrado na Tabela 9. O primeiro aspecto diz respeito ao crescimento da Constituição no que se refere ao número de dispositivos. Para aprofundar tal análise sobre a capacidade da Constituição, é preciso retomar o Quadro 5, que detalha a quantidade de dispositivos modificados ao longo dos 30 anos. Foram, ao todo, 872 modificações em artigos, incisos, alíneas e parágrafos. Desses, 58 revogações e 797 alterações textuais. Vale a pena recordar que determinados dispositivos foram alterados mais de uma vez, entre duas e quatro vezes ao longo do período analisado.

Tabela 9
Análise comparada: CF/1988 e CF após emendas 2018

Mesmo com tantas revogações, é possível perceber um crescimento de 406 dispositivos constitucionais em 30 anos, um aumento de mais de 20% da Carta Magna. De 1.816 regramentos previstos em 1988, a Constituição em 2018 apresenta 2.222 elementos constitucionais, considerando cada artigo, inciso, alínea e parágrafo. Conforme relatado por Arantes e Couto (2008b)Arantes, R. B., & Couto, C. G. (2008b). A Constituição sem fim. In S. Diniz & S. Praça (Orgs.), Vinte anos de Constituição (pp. 31-60). Paulus., percebemos que o processo constituinte parece não ter terminado, dessa vez elaborado por meio de ECs. A Tabela 9 compara a composição das Constituições em 1988 e em 2018, destacando os indicadores que sofreram variação maior ou igual a 0,4%.

Em azul, estão destacados os setores que cresceram proporcionalmente em 2018, quando comparados à atenção na Constituição original, de 1988. Esses setores são governo e administração pública (3%), justiça e sistemas de justiça (2%) e cultura, esporte e lazer (1,4%). Os resultados de crescimento, sobretudo dos dois primeiros setores, mostram um direcionamento para reconfigurações da Constituição no sentido de reconfiguração do Estado e dos sistemas administrativo, do executivo, do legislativo e das estruturas do Poder Judiciário, de repactuações federativas, das funções do Estado, dos funcionários públicos e das instituições do Estado. Há, portanto, um modesto crescimento dos indicadores da polity, que passam, de acordo com a metodologia aplicada, de 64%, em 1988, para 66,5%, em 2018.

Destoando dessa tendência, a grande constitucionalização de políticas de cultura, sobretudo durante os governos Lula e Dilma, com as ECs n. 48, n. 71 e n. 75, aprofunda o agendamento de prioridades governamentais via CF por meio de ECs. Nesse sentido, outras políticas setoriais também ganharam espaço na CF em 2018, após os 105 emendamentos. Saúde, educação, energia e políticas sociais têm variação positiva de 0,1% até 0,3%, oriundas de emendas que instituem, prorrogam ou modificam fundos obrigatórios (Fundeb, Fundef, FCEP) e dispõem sobre direitos, como o direito à alimentação, ampliam a educação básica obrigatória, inserem temas relacionados à juventude e dispõem sobre estruturas do sistema de saúde e seus profissionais.

No sentido oposto, oito são os setores que perderam atenção proporcional maior ou igual a 0,4% após as mudanças constitucionais promovidas entre 1992 e 2018. O setor que mais perdeu atenção foi o de sistema bancário, instituições financeiras e comércio interno, com redução de 1,5%. A desregulamentação do setor foi ocasionada pela aprovação da EC n. 40/2003, proposta por José Serra (PEC n. 21/97) e aprovada cinco anos depois, logo no início do primeiro governo Lula, em 2003, que deu nova redação ao caput do art. 192, além de promover a supressão dos oito incisos e três parágrafos. Entram na lista de setores que perderam atenção percentual a economia (0,8%), os direitos civis e sociais (1,9%) - nesse setor, a redução é devida ao aumento do número de dispositivos, sem promoção de grandes alterações nesse setor. As emendas relacionadas alteram dispositivos existentes, sem incluir ou excluir normas. Proporcionalmente, portanto, de 1.816 para 2.222 unidades de análise, o setor perde atenção e reduz a sua participação na Constituição após emendas. Transporte, trabalho, habitação, defesa e território também entram na lista de setores com reduções no percentual de atenção na nova redação da Constituição em 2018, ainda que o impacto de algumas alterações, como na previdência, no reconhecimento dos direitos de empregadas domésticas, ou mesmo na criação de instituições de defesa, como o Ministério da Defesa (EC n. 23/1999), seja ponto relevante promovido pelas emendas aprovadas.

A Figura 5 ilustra a comparação entre o percentual de cada um dos 21 setores de políticas públicas nas duas versões da CF brasileira, em 1988 e em 2018.

Figura 5
Análise comparada: CF/1988 e CF após emendas 2018

CONCLUSÃO

Este artigo apresentou e discutiu as principais transformações da CF de 1988 após três décadas de existência, apontando suas principais mudanças em políticas setoriais ao longo do tempo pela via das ECs, as quais são produtos de um crônico processo de emendamento, como destacado por Arantes e Couto (2008aArantes, R. B., & Couto, C. G. (2008a, Setembro). Por que muda e como muda a Constituição? Problemas de controle sobre a agenda governamental. 32º Encontro Anual da ANPOCS. Caxambu, Minas Gerais., 2008bArantes, R. B., & Couto, C. G. (2008b). A Constituição sem fim. In S. Diniz & S. Praça (Orgs.), Vinte anos de Constituição (pp. 31-60). Paulus.).

Os números demonstrados por este artigo evidenciam um aumento considerável na quantidade de dispositivos que foram acrescentados na Carta Constitucional, mesmo considerando aqueles que foram revogados ao longo dos anos.

A CF original, promulgada em 1988, apresentava 1.816 dispositivos. Ao longo dos 30 anos seguintes, sofreu alterações provenientes de 105 ECs aprovadas, sendo 99 ECs via PECs e seis ECs de Revisão, representando uma taxa anual de 3,5 emendas. Tais emendas, que têm capacidade para modificar diversos dispositivos simultaneamente, proporcionaram mudanças em 872 dispositivos, sendo 58 revogações e 406 medidas de adição à CF de 2018. O resultado dessas ações é externalizado no aumento de mais de 20% da Carta Magna em 2018, constituindo 2.222 dispositivos.

Tais mudanças na CF, sobretudo aquelas direcionadas para a policy, promovendo a inclusão de políticas públicas específicas no texto constitucional, para além de reformas estruturais da polity, das normas e regras do jogo e da estruturação dos poderes e dos direitos civis e políticos, evidenciam ser de extrema importância para os estudos da agenda governamental olhar para a CF como sendo um lócus de formação da agenda, formulação de políticas e de defesa de prioridades de governos. As mudanças na Constituição via ECs são impulsionadas, por um lado, pela necessidade de atualizar a Carta Constitucional para evitar inconstitucionalidades julgadas pelo Poder Judiciário. Nesses casos, a dinâmica das políticas públicas pode ser evidenciada pelo crescimento e queda na atenção de setores estruturais, tais como as inúmeras mudanças promovidas em “governo e administração pública” (+3%), em “justiça e sistemas de justiça” (+2,2%) e em “sistema bancário, instituições financeiras e comércio interno” (-1,5%).

Por outro lado, as emendas não são utilizadas apenas para modernização do aparato normativo e das estruturas do Estado, de seus poderes ou da economia. Conforme demonstrado nas análises, o emendamento é marcado, também, pela inserção de agendas de governo no corpo constitucional, conduzindo temas e assuntos presentes nos planos de governo por meio de mudanças constitucionais. Essa forma de atuação, via emendas constitucionais e não via aprovação no campo infraconstitucional, visa garantir a maior permanência de alguns temas, tornando-os políticas de Estado, e não de governo. Isso ocorre devido à maior dificuldade de modificação da Constituição quando comparada às mudanças de leis, por exemplo (Couto & Arantes, 2006Couto, C. G., & Arantes, R. B. (2006). Constituição, governo e democracia no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais, (61), 41-62. https://doi.org/10.1590/S010269092006000200003.
https://doi.org/10.1590/S010269092006000...
).

Exemplos dessas inserções podem ser notados em diversas políticas setoriais, com destaque para as políticas de cultura, esporte e lazer (+1,4%), ganhando maior expressividade no corpo da CF em 2018, quando comparado ao texto original da CF de 1988, assim como ocorreu com os setores da educação (+0,3), saúde (+0,2) e das políticas sociais (+0,2). O aumento proporcional na incidência de determinadas políticas públicas no corpo da Constituição é marcado pela inserção das agendas de governos eleitos que optaram por garantir a permanência desses temas para além de seus mandatos, atuando na esfera constitucional ao invés da infraconstitucional.

A despeito de essas reformas constitucionais estarem diluídas no tempo, conforme explanado anteriormente, a Carta Magna apresenta uma taxa média anual de 3,5 emendas, corroborando a ideia segundo a qual quanto mais uma Constituição tende a lidar com políticas públicas, maior ela é. E quanto maior ela é, mais ela obriga governos a governarem por meio de emendamento constitucional (Arantes & Couto, 2008bArantes, R. B., & Couto, C. G. (2008b). A Constituição sem fim. In S. Diniz & S. Praça (Orgs.), Vinte anos de Constituição (pp. 31-60). Paulus.). Diante dessa significativa taxa de emendamento, a Carta de 1988 vem confirmando o seu espectro prolixo quanto às matérias ali elencadas e flutuantes em relação às mudanças de políticas setoriais, resultando em um desbalanceamento de atenção despendida quanto às políticas públicas. O artigo contribui no entendimento da constituinte, fornecendo à literatura uma maior compreensão sobre o dinamismo das políticas públicas e das incidências temáticas na promoção de políticas públicas à Constituição. Os dados analisados trazem à luz a peculiar situação experimentada pela CF de 1988, na qual algumas políticas são exortadas, enquanto outras são reprimidas às vontades políticas ao longo dos sucessivos governos, subordinando o seu conteúdo às vontades partidárias e ideológicas.

  • Este artigo tem coautoria de membro do Corpo Editorial da RAE, foi avaliado em double-anonymized peer review com isenção e independência.

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Editado por

Editor responsável: Andrea Leite Rodrigues

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Abr 2023
  • Aceito
    17 Out 2023
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