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SEM VÍNCULO PERMANENTE - CONDIÇÕES DE TRABALHO DOS CONTRATADOS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DOS ESTADOS BRASILEIROS

No permanent link - Working conditions of contractors in the public administration of the Brazilian states

Sin vínculo laboral permanente - Condiciones de trabajo de los contratados en la administración pública de los estados brasileños

RESUMO

Este artigo tem como objetivo principal expor a extensão e a profundidade com que a regulamentação do contrato por tempo determinado, existente nos Estados Federativos, vem alterando as condições de trabalho na administração pública brasileira. Para a identificação desse fenômeno, recorre-se à última versão da legislação dos estados acerca dessas contratações. Foi possível constatar que os novos termos contratuais, colocados à parte crescente dos trabalhadores públicos brasileiros, afetam diversos aspectos de sua vida funcional (remuneração, direitos e garantias sociais, rescisão contratual etc.). Adicionalmente, comprova-se que esse fenômeno não é pontual ou restrito a poucos estados, mas nacional, apesar da maior frequência em algumas regiões.

Palavras-chave:
administração pública; contratos temporários; condições de trabalho; gestão de pessoas; gerencialismo

ABSTRACT

The main objective of this article is to explain the extent and depth with which the regulation of hiring for a fixed period, existing in the Federative States, changes the working conditions in the Brazilian public administration. To identify this phenomenon, the latest version of the legislation of the States regarding these contracts is used. It was possible to verify that the new contractual terms placed on the growing part of the Brazilian public workers impact on several aspects of their functional life (remuneration, social rights and guarantees, contractual termination, etc.). Additionally, it is proved that this phenomenon is not specific or restricted to a few States, but national, despite a greater occurrence in the States of the North and Northeast regions.

Keywords:
public administration; temporary contracts; working conditions; people management; managerialism

RESUMEN

El principal objetivo de este artículo es exponer el alcance y profundidad con que la regulación de los contratos de duración determinada, existente en los estados federados, viene modificando las condiciones de trabajo en la administración pública brasileña. Para identificar este fenómeno utilizamos la última versión de la legislación estatal relativa a estos contratos. Se pudo comprobar que las nuevas condiciones contractuales, aplicadas a un número creciente de trabajadores públicos brasileños, afectan varios aspectos de su vida laboral (remuneración, derechos y garantías sociales, rescisión contractual, etc.). Además, está comprobado que este fenómeno no es aislado ni restringido a unos pocos estados, sino a nivel nacional, a pesar de su mayor frecuencia en algunas regiones.

Palabras Clave:
administración pública; contratos temporales; condiciones de trabajo; gestión de personas; gerencialismo

INTRODUÇÃO

A administração pública, desde as reformas que se aprofundaram no Brasil nos anos 1990, tem, por iniciativa dos seus principais reformadores, se referenciado nas chamadas melhores práticas do mercado. Parte do diagnóstico dos problemas da administração pública aponta para a falta de austeridade nos gastos públicos, principalmente os gastos com pessoal. Na reforma administrativa que tramita no Congresso, nos anos recentes, a Emenda à Constituição n. 32/2020, foram retomados esse diagnóstico e propostas associadas às práticas de mercado, destacadamente quanto à contratação da força de trabalho (Agência Senado, 2020Agência Senado. (2020). Veja os principais pontos da reforma administrativa proposta pelo governo.https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/09/08/veja-os-principaispontos-da-reforma-administrativa-proposta-pelo-governo
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).

No nível dos estados da Federação, a composição da força de trabalho já se está transformando há anos, internalizando outros tipos de vínculo (temporários, terceirizados, cooperativados, voluntários etc.) em substituição aos funcionários concursados e nomeados de acordo com os Estatutos dos Servidores Públicos. Conforme a pesquisa Estadic, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2023aInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2023a). Pesquisa de informações básicas estaduais - Estadic (2021). https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/16770-pesquisa-deinformacoes-basicas-estaduais.html?edicao=35766
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), comparando 2021 e 2012 (ano de início da pesquisa), houve redução de 16% - 393.513 trabalhadores - dos servidores estatutários estaduais, saindo de 2,44 para 2,05 milhões, enquanto o contingente de servidores contratados apresentou crescimento de 14% - incremento de 56.763 trabalhadores - aumentando de 418.850 para 475.613 (IBGE, 2023aInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2023a). Pesquisa de informações básicas estaduais - Estadic (2021). https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/16770-pesquisa-deinformacoes-basicas-estaduais.html?edicao=35766
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, 2023bInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2023b). Pesquisa de informações básicas estaduais - Estadic (2012).https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv63406.pdf
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). Verifica-se, portanto, uma redução substanciosa no cômputo de estatutários e uma expansão considerável do contingente dos sem vínculo permanente.

A Constituição Federal de 1988, apesar de determinar, no artigo 37, inciso II, que a investidura em cargo ou emprego público se dá por meio de aprovação em concurso público, no inciso IX abriu exceção, possibilitando a contratação de trabalhadores por tempo determinado. Nesse inciso constitucional, leem-se situações em que é possível adotar esse tipo de contratação, mas se delega a cada ente da Federação o estabelecimento de lei específica que a regulamente, desde que observado o princípio constitucional relativo à necessidade temporária e excepcional (Constituição da República Federativa do Brasil, 2012).

O problema que desejamos abordar são a expansão das contratações por tempo determinado na administração pública brasileira e as diferentes condições regulamentadas em cada estado, permitindo dizer a que ponto já se terá chegado, sua amplitude, o quanto de atenção ao caráter de excepcionalidade está ocorrendo e como se reflete na vida profissional dos contratados, principalmente quando comparados aos estatutários. O objetivo principal deste estudo é, portanto, expor como a regulamentação nos Estados Federativos, tratando dos contratos por tempo determinado, se concretiza e o que significa, em extensão e profundidade, no que tange à remuneração e condições de trabalho de parte dos trabalhadores da administração pública brasileira. As causas desse processo - senão aquelas universais: motivações e interesses de mercado - não são o problema e o objetivo deste artigo, mas sim seus termos legais e a precarização do trabalho que promovem.

O debate sobre a precarização no serviço público já ocupa, há anos, a literatura acadêmica, mas o assunto tem se apresentado no nível da União (Gomes et al., 2012Gomes, C. D., Silva, L. B. e, & Sória, S. (2012, Junho). Condições e relações de trabalho no serviço público: O caso do governo Lula. Revista de Sociologia Política, 20(42), 167-181. DOI: https://doi.org/10.1590/S0104-44782012000200012
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) ou delimitado a uma esfera da política de saúde (Arnaud & Gomes, 2016Arnaud, I. M., & Gomes, V. L. B. (2016, Julho/Dezembro). Novas formas de gestão da força de trabalho do serviço público brasileiro e suas repercussões para o adoecimento mental: Um estudo sobre os servidores de uma instituição judiciária. BarBarói, 48, p.106. DOI: http://dx.doi.org/10.17058/barbaroi.v0i48.6949
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; Pialarissi, 2017Pialarissi, R. (2017, Janeiro/Março). Precarização do trabalho. Revista de Administração em Saúde, 17(66).), da assistência (Santos, 2020Santos, W. B. (2020, Janeiro/Junho). Flexibilização e precarização do trabalho no desmonte da política de assistência social. Revista Ser Social, Estado, Democracia e Saúde, 22(46). P. 153-170. DOI: 10.26512/ser_social.v22i46.25526
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), da segurança pública (Gama et al., 2020Gama, R. V. O., Ferreira, L. R., Coutinho, M. M., & Moreira, P. V. C. (2020). Precarização do trabalho: Análise sobre as condições laborais dos militares no âmbito estadual. P2P & Inovação, 6(1), 206-227. DOI: https://doi.org/1021721/p2p.2019v6n1.p206-227
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) ou simplesmente de um órgão (Magni, 2016Magni, A. C. (2016). Flexibilização e precarização nos serviços públicos: O caso do IBGE (Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Economia). http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/320950
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).

Mais recentemente, Migueis (2023)Migueis, A. C. (2023). Servidores públicos no Brasil: Lições da institucionalidade para compreensão e transformação da função pública. Lumen Juris. traz essa discussão com maior amplitude, comentando inclusive que “a consolidação dessas transformações de maneira desorganizada e errática” entre os “efeitos indesejáveis” produz “precarização” e “aprofundamento da desigualdade na administração pública” (p. 208) - preocupações centrais deste artigo.

Se não bastasse a necessidade de destacar essas extensão e profundidade para que se volte a atenção para o fenômeno como algo digno de cuidados, há em curso uma proposta de reforma administrativa federal que, em certa medida, pode ter prenunciados seus efeitos estudando-se a experiência dos Estados Federativos. São razões que se somam para motivar essa publicação.

Nas próximas seções discutiremos, brevemente, as bases conceituais que ampararam o nosso estudo e os procedimentos metodológicos. Em seguida, apresentaremos a situação existente nos estados, em cada aspecto funcional definido para o estudo (remuneração, direitos, condições de trabalho etc.), encerrando com as considerações finais em que destacamos os pontos mais preocupantes desse processo em expansão.

Trabalho e condições de trabalho

O trabalho e a venda da força de trabalho foram modernamente associados ao emprego, que assumiu uma posição central, em relação ao reconhecimento social (prestígio social intra e extragrupal), no que a situação oposta, o desemprego, se tornou parcial ou integralmente geradora de diversas desordens econômicas, políticas, sociais e psíquicas (Liedke, 2006Liedke, E. R. (2006). Relações de trabalho: Dicionário de trabalho e tecnologia. Ed. da UFRGS.).

Essa visão acerca da centralidade do emprego consolidou-se principalmente nos “anos gloriosos” do capitalismo (1945-1973), dado que a combinação de crescimento econômico e direitos sociais possibilitou maior segurança na relação contratual, apesar de não ter eliminado os vínculos atípicos, cabendo aos jovens e aos imigrantes as ocupações intermitentes e sub-remuneradas (Braga, 2015Braga, R. (2015). A política do precariado: Do populismo à hegemonia lulista. Boitempo Editorial.).

O modelo de acumulação fordista e o Estado de Bem-Estar Social, enquanto respostas à crise de 1929 e ao pós-Segunda Guerra, respectivamente, permitiram o desenvolvimento econômico e social de diversos segmentos e propiciaram o planejamento do futuro das gerações. Posteriormente, a crise econômica que se explicitou nos anos 1970, derrubando as taxas de lucro, desempregando, reduzindo drasticamente as receitas públicas e levando os governos à inação e decadência, recebeu hegemonicamente a avaliação de que se tratava de uma crise de Estado. Como tal, uma grande reforma deveria ser empreendida, não só para reduzir o tamanho e o papel do Estado, mas também suprimir suas práticas mais reconhecidas e as concepções que davam essência à regulação do próprio mercado. Acompanhando essa reforma, deu-se ampla reestruturação produtiva, com novas combinações que foram dos produtos aos processos, promovendo-se a despadronização e obsolescência ultrarrápida como regra (Toffler, 1985Toffler, A. (1985). A empresa flexível. Record.) e a melhoria contínua como novo conceito de qualidade (Juran, 1992Juran, J. (1992). Planejando para a qualidade. Pioneira.).

No contexto da reestruturação produtiva, a “estabilidade” da esfera produtiva foi substituída pela volatilidade e flexibilidade, palavras-chave para o entendimento de todo o processo da nova grande transformação, para lembrar Polaniy (2000)Polaniy, K. (2000). A grande transformação. Campus.. A evolução da base técnica toyotista, concebida para a diversidade e a variação, ao invés da produção fordista padronizada e em massa, envolveu crescentemente vários ramos e muitos aspectos da relação capital-trabalho, desde as práticas operacionais até os modos de gestão, e impulsionou a introdução gradativa de nova ordem regulatória.

Os impactos no mundo do trabalho, ocasionados pelo regime de acumulação flexível, que confrontava diretamente a rigidez do fordismo (Harvey, 2008Harvey, D. (2008). Condição pós-moderna: Uma pesquisa sobre as origens da mudança social. Edições Loyola.), foram da objetividade dos custos de produção à subjetividade do trabalhador, fenômeno que se caracteriza como precarização do trabalho. Segundo Alves (2007)Alves, G. (2007). Dimensões da reestruturação produtiva: Ensaios de sociologia do trabalho. Praxis/Canal, 6, 298.:

A precarização é um processo social de conteúdo histórico-político concreto, de natureza complexa, desigual e combinada, que atinge o mundo do trabalho, principalmente setores mais organizados da classe do proletariado. É difícil falarmos de precarização de trabalhadores proletários que sempre viveram à margem da seguridade social e da legislação previdenciáriotrabalhista. A precarização possui um significado concreto: ela atinge o núcleo organizado do mundo do trabalho que conseguiu instituir, a partir da luta política e social de classe, alguma forma de controle sobre suas condições de existência através de mediações jurídicopolíticas. (p. 115)

A flexibilização no emprego alcançou diversas esferas do mundo do trabalho, das mudanças nas formas de remuneração à diversidade de situações laborais atípicas que proliferaram a partir da década de 1970, em alguns países, e dos anos 1990 em diante no Brasil (Antunes, 2015aAntunes, R. (2015a). Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. Cortez Editora.; Braga, 2015Braga, R. (2015). A política do precariado: Do populismo à hegemonia lulista. Boitempo Editorial.; Castel, 2013Castel, R. (2013). As metamorfoses da questão social: Uma crônica do salário (Vol. 6). Vozes. Constituição da República Federativa do Brasil. (2012). 35ª ed. Edições Câmara.; Galeazzi & Holzmann, 2006Galeazzi, I., & Holzmann, L. (2006). Precarização do trabalho. In: Dicionário de Trabalho e Tecnologia, 2, 259-265.; Justen & Gurgel, 2015Gurgel, C., & Justen, A. (2015). Teorias organizacionais e materialismo histórico. Organizações & Sociedade, 22(73), 199-221. doi:10.1590/1984-9230731
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Neves, 2022Neves, D. (2022). A exploração do trabalho no Brasil contemporâneo. Katálysis, 25(1), 11-21. DOI: 10.1590/1982-0259.2022.e82561
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).

Uma análise da precariedade e crescente precarização do trabalho no Brasil deve levar em consideração a construção histórica e social peculiar em que se insere o nosso país enquanto pertencente ao bloco dos países periféricos/dependentes. Essa condição, no contexto da divisão internacional do trabalho, restringe a competência desses países prioritariamente à produção de matérias-primas, alimentos in natura e bens de consumo não duráveis.

A situação da periferia, enquanto fornecedora de bens primários aos países centrais e consumidora de produtos acabados, frequentemente implica, do ponto de vista do capital, perdas, nas relações de troca. Para os fornecedores de bens primários, com trocas desiguais no mercado internacional, muitas vezes agravadas por termos cambiais extremamente adversos, faz-se necessário encontrar um meio pelo qual seja possível recompor a taxa de lucro, afetada pelas referidas perdas. Se o aumento da produtividade é dificultado pela necessidade de grandes investimentos e acesso às tecnologias, a superexploração da força de trabalho torna-se o meio utilizado para reduzir a perda de lucratividade (Marini, 2005Marini, R. M. (2005). Dialética da dependência. In: Traspadini, R. Ruy Mauro Marini: vida e obra. Expressão Popular.). Conforme expõe Marini (2005)Marini, R. M. (2005). Dialética da dependência. In: Traspadini, R. Ruy Mauro Marini: vida e obra. Expressão Popular.:

Chamada para contribuir com a acumulação de capital com base na capacidade produtiva do trabalho, nos países centrais, a América Latina teve de fazê-lo mediante uma acumulação baseada na superexploração do trabalhador. É nessa contradição que se radica a essência da dependência latino-americana. (p. 162)

O passado colonial e a formação da burguesia nos países dependentes são, também, pontos a serem considerados quando se trata de relações de trabalho nesses países. A redução do lucro financeiro, em face das relações de troca com os países centrais, e uma economia com fortes traços coloniais/escravistas, que estrutura uma sociedade de relações tradicionais e patriarcais, produziu uma burguesia frágil tanto em termos econômicos e ideológicos quanto politicamente. Esse cenário ensejou uma revolução burguesa marcada pela conciliação entre a burguesia e as oligarquias de origem colonial, o que significa dizer que as relações capitalistas vão se desenvolver sobre uma base administrativa que contempla, também, os interesses dos proprietários rurais, tendo o Estado como articulador e “guardião” dessa condição (Fernandes, 2012Fernandes, F. (2012). A revolução burguesa no Brasil. Globo.).

Portanto, as exigências colocadas às organizações privadas projetam-se no Estado, seja no que diz respeito ao seu poder extroverso, que faculta aos seus controladores a capacidade de promover mudanças que lhe são convenientes, seja no que toca aos fundos públicos, cada vez mais necessários ao desenvolvimento dos negócios. Essa condição remete a seguidos “ajustes fiscais” pelo lado da despesa, para o que a precarização do trabalho no aparelho do Estado é um caminho muito utilizado.

Acumulação flexível e contratos temporários na administração pública

Na administração pública, a crise dos anos 1970, interpretada predominantemente como uma crise do Estado, proporcionou o contexto favorável para a proposta de um governo que “funcionasse melhor e custasse menos”, que fosse “menos burocrático” e mais “gerencial”, tomando-se o mercado e suas empresas como modelos de eficiência. Medidas voltadas para a austeridade fiscal refletiam a busca governamental de soluções dos problemas por meio do “racionalismo econômico” e das ferramentas dessa lógica de mercado. Por meio da accountability, do planejamento estratégico, da fixação de metas e de outros recursos atribuídos à gestão empresarial, os administradores públicos passaram a reestruturar seus órgãos burocráticos implementando novas missões, fluxos e processos organizacionais, além da descentralização de certas decisões (Denhardt, 2015Denhardt, R. B. (2015). Teorias da administração pública. Cengage.).

A New Public Management (NPM) é a denominação desse movimento que internalizou na administração pública conceitos e práticas da administração privada. A NPM, segundo Hood (1995)Hood, C. (1995). The “New Public Management” in the 1980s: Variations on a theme. Accounting, Organizations and Society, 20(2/3), 93-109., de quem teria partido a designação, é um movimento que surge nas administrações públicas de países anglo-saxões, destacadamente a Inglaterra, Estados Unidos, Nova Zelândia e Austrália, que “reflete a elevada confiança no mercado e nos métodos do negócio privado” (p. 94). Suas principais características são: a visão do cidadão como cliente; a utilização de critérios de mercado para avaliação dos serviços públicos; a adoção de métodos empresariais de gestão (management) em organismos públicos; os custos controlados de maneira regular e cotidiana; e a eficiência considerada um valor normativo prioritário, com a avaliação dos servidores públicos por critérios de desempenho próximos dos utilizados pelas empresas privadas. A NPM orientou intervenções que foram desde a terceirização dos serviços públicos até a abolição da estabilidade dos servidores e mudanças nas relações de trabalho no serviço público, passando pelas privatizações, concessões e transferência de atividades para o Terceiro Setor (Costa, 2009Costa, F. L. (2009). Bases teóricas e conceituais da reforma dos anos 1990: Crítica do paradigma gerencialista. Revista Brasileira de Administração Política, 2(2),p. 79., pp. 95-96).

Essas iniciativas fazem parte da totalidade do capital sob acumulação flexível (Harvey, 2008Harvey, D. (2008). Condição pós-moderna: Uma pesquisa sobre as origens da mudança social. Edições Loyola.), que necessita articular a flexibilização no mercado e no Estado, enquanto espaços e momentos de produção e reprodução do modo e do sistema.

No Brasil, esse movimento de reestruturação da administração pública consolidou-se na década de 1990, principalmente a partir de 1995, com o Plano Diretor da Reforma do Estado (PDRAE). O PDRAE é um documento que reorganiza o espaço de atuação do Estado, atribuindo a este as funções “que lhe seriam próprias”, com a passagem das demais atividades para entes públicos não estatais - serviços não exclusivos - e para a iniciativa privada, quando se trata de produção de bens e serviços (Brasil, 1995, p. 45). Em paralelo, o Estado exerceu um papel decisivo no que tange à desregulamentação do mercado de trabalho (flexibilização das leis trabalhistas), conforme explicita Borges (2004)Borges, Â. C. (2004). Reforma do Estado, emprego público e a precarização do mercado de trabalho. Caderno CRH, 17(41). p.255-268.:

[...] o Estado brasileiro não apenas deu ao “mercado” ampla liberdade para contratar, usar e remunerar os trabalhadores, como, ao comportar-se, ele próprio, como mais um empregador obcecado pela redução dos custos de pessoal, deu seu aval à rápida e intensa precarização do mercado de trabalho. (p. 267)

A política de pessoal, aspecto de especial interesse para esse artigo, tem no PDRAE um papel de destaque, pois ali se considera que o Regime Jurídico Único em todos os órgãos, determinado pela Constituição Federal, foi um retrocesso ao modelo burocrático rígido que retirou do Poder Executivo a autonomia para a estruturação dos órgãos públicos e a flexibilidade operacional para gerenciar a administração indireta instituída pelo Decreto-Lei n. 200/67. Nesse sentido, os termos do Regime Jurídico Único relacionados ao artigo n. 10, que ratificou a ocupação dos cargos de servidores de carreira por meio de concurso público, e o artigo n. 21, que determinou a estabilidade no cargo decorridos dois anos de efetivo exercício, sendo alterado para três anos pela Emenda Constitucional n. 19/98, foram considerados os principais retrocessos em relação ao Decreto-Lei n. 200 que estabelecia em seus artigos 95, 96 e 97 ações junto aos servidores que potencializavam a sua produtividade e os assemelhavam aos trabalhadores do setor privado. Em resumo, no seu entendimento, havia tirado do País a possibilidade de caminhar rumo à administração gerencial, proposta central do Plano Diretor:

A legislação brasileira reflete a ausência de uma política de recursos humanos coerente com as necessidades do aparelho do Estado. É, em princípio, o aspecto da administração pública mais vulnerável aos efeitos da crise fiscal e da política de ajuste. A legislação que regula as relações de trabalho no setor público é inadequada, notadamente pelo seu caráter protecionista e inibidor do espírito empreendedor. São exemplos imediatos deste quadro a aplicação indiscriminada do instituto da estabilidade para o conjunto dos servidores públicos civis submetidos a regime de cargo público e de critérios rígidos de seleção e contratação de pessoal que impedem o recrutamento direto no mercado, em detrimento do estímulo à competência. (PDRAE, 1995, p. 27)

O diagnóstico realizado quanto aos servidores públicos foi de que o quadro era “excessivo, dispendioso, inadequado, ineficiente” e que as relações trabalhistas eram inadequadas e rígidas. A “adequação” da categoria de servidor público, proposta no PDRAE, passaria pela redução de custos por meio do enxugamento do quadro de pessoal - alcançada por meio de demissões, privatizações e terceirizações -, redução dos custos remuneratórios - empreendida por meio da determinação de um teto de gastos com pessoal (Lei de Responsabilidade Fiscal - Lei n. 101/2000 [2017Lei n. 101/2000. (2017). Estabelece normas de finanças públicas voltadas para a responsabilidade na gestão fiscal e dá outras providências. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/lcp/Lcp101.htm
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]), além do congelamento dos salários nominais, tendo em vista o equilíbrio fiscal. Para combater a rigidez das relações de trabalho, a estratégia utilizada foi a flexibilização, generalizando-se no âmbito do Estado as formas de contratação atípicas, sem concurso público, com remuneração fora dos planos de cargos e salários, definida de modo negocial, dependendo da correlação de forças e do jogo político (Borges, 2004Borges, Â. C. (2004). Reforma do Estado, emprego público e a precarização do mercado de trabalho. Caderno CRH, 17(41). p.255-268.).

Expressando essas diretrizes, a administração pública dos Estados Federativos tem assimilado um contingente cada vez maior de trabalhadores contratados temporariamente, conforme a pesquisa citada Estadic do IBGE (2023aInstituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2023a). Pesquisa de informações básicas estaduais - Estadic (2021). https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/16770-pesquisa-deinformacoes-basicas-estaduais.html?edicao=35766
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). De acordo com a pesquisa, no ano de 2021, comparando o contingente de servidores concursados e contratados, os sem vínculo permanente correspondiam a parcela considerável da força total de trabalho em diversos estados. No Espírito Santo, Paraíba e Santa Catarina, a proporção de trabalhadores com esse tipo de vínculo é superior a 40%. Apenas em seis estados (Rio Grande do Sul, Sergipe, Rondônia, Rio de Janeiro, Alagoas e Tocantins) os contratados temporariamente representam menos de 10% dos servidores estatutários e sem vínculo permanente.

A questão da proteção ao trabalho dos contratados na administração pública dos estados, assunto que voltará ao nosso debate, tem importância maior do que a princípio parece. Em muitas regiões do País, é o estado o grande agente econômico e grande empregador, como veremos na Figura 1.

Figura 1
Principal setor do PIB nos municípios - 2010/2020

Em 18 estados do Brasil (cerca de 67%), a administração pública é a principal atividade com maior valor adicionado bruto. Seus municípios têm a administração pública como principal setor do PIB. Todos os estados do Norte e Nordeste apresentam esse perfil, além de Minas Gerais e o Distrito Federal. Esses dados correspondem obviamente à ocupação da força de trabalho dos municípios, onde a administração pública é a principal empregadora. Assumir o risco de uma eventual contratação irregular é a alternativa possível para garantir a sobrevivência diante da falta de oportunidades. A repercussão disso no plano institucional e social é um problema que extrapola os limites da própria administração pública.

As motivações para que cada estado tenha mais ou menos contratados são diversas. Considerando a liberdade que cada estado possui para estabelecer as circunstâncias em que ocorrerá essa contratação, associado ao fato de que há um contingente significativo de trabalhadores submetidos a essas condições, torna-se importante verificar, nos instrumentos que formalizam essa relação, se há outros elementos de precarização do trabalho, para além da instabilidade do vínculo, e quais são eles.

Procedimentos metodológicos

Temos dois planos básicos de pesquisa: o plano bibliográfico e o documental.

No plano bibliográfico, recorremos a autores de diferentes áreas do conhecimento visando compreender o fenômeno de modo abrangente, tendo em conta que ele se coloca no quadro de crise da base técnica fordista e do sistema de regulação que se consolidou no pós-Segunda Guerra, tendo o keynesianismo e o Estado de Bem-Estar Social como referências (Mandel, 1990Mandel, E. (1990). A crise do capital os fatos e sua interpretação marxista. Ensaio.; Santos, 2004Santos, T. Dos. (2004). Do terror à esperança: Auge e declínio do neoliberalismo. Idéias & Letras.). Portanto, um fenômeno com dimensões que tocam o Estado, a sociedade e a relação entre esses espaços da vida social.

Quanto à pesquisa documental, a coleta de dados deu-se pela análise da última versão das regulamentações dos 26 estados brasileiros e do Distrito Federal, tratando dos contratos por tempo determinado. Conforme Gil (2018)Gil, A. C. (2018). Como elaborar projetos de pesquisa. Atlas., a pesquisa documental permite melhor visão acerca de determinado problema, em particular quando se trata de matéria legal. Nosso objetivo não poderia ser alcançado apenas com as extrapolações razoáveis que poderíamos fazer a partir da bibliografia, mas, ao contrário, exigiu o exame dos atos normativos específicos.

Foram analisados 130 documentos (constituições dos estados, regimes jurídicos, leis, decretos e medidas provisórias), conforme exposto abaixo.

Tabela 1
Base documental utilizada

O contingente de leis é superior ao quantitativo de estados porque: 1) alguns estados possuem lei geral de contratação temporária e foram editando leis complementares para alterar alguns artigos da lei-base; 2) outros estados editaram leis específicas por secretaria/atividade. É o caso de Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Rio Grande do Norte e Ceará. Nesses casos, comparamos a legislação de todas as atividades e verificamos as similaridades e diferenças.

Entre as diversas possibilidades de análise, adotamos a análise temática. Para Minayo (2007), “a análise temática consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifique alguma coisa para o objetivo analítico visado” (p. 316).

A partir da apreciação dos documentos e das questões que ressaltam deles, foram elencados os aspectos da vida funcional mais frequentemente afetados, que foram agrupados em categorias, tais como: tempo de contrato e prorrogação (seis meses, um ano, dois anos, três anos etc.); patamar salarial (maior ou menor que o valor pago aos estatutários, piso da categoria, valor aleatório etc.); garantias e direitos sociais (décimo terceiro, férias, vale-transporte, vale-alimentação etc.); condições e prazos para afastamento (licença médica, acidente em serviço, maternidade, paternidade etc.); condições para extinção do contrato sem indenização (pelo término do contrato, por iniciativa do contratado, pela realização de concurso público etc.); condições para extinção do contrato com direito a indenização (por conveniência da administração, término do contrato etc.); indenizações previstas por extinção do contrato (um salário e férias proporcionais, proporção de salários de acordo com o tempo de serviço etc.) e aspectos correlatos.

A partir da análise das regulamentações dos estados, que normatizam as contratações temporárias no âmbito da administração pública, buscamos evidenciar os aspectos de precarização que se anunciam no plano formal. Essa é a base para a elaboração dos contratos e para dirimir possíveis questionamentos jurídicos acerca da relação de trabalho e suas condições. Essa proposta de investigação alinha-se com a base teórica que trouxemos, uma vez que uma das dimensões da precarização do trabalho se dá no plano formal, sendo motivada pelas determinações das políticas neoliberais que enfocam justamente a redução e/ou supressão de direitos e garantias sociais conquistados principalmente no período dos “anos gloriosos” do capitalismo (1945-1973), fomentados pelas políticas keynesianas e do Estado de Bem Estar Social.

Iniciamos as investigações pelas constituições dos estados onde, com exceção do Paraná, Santa Catarina, Goiás e Ceará, se abordam de maneira genérica os termos da contratação temporária. Frequentemente, um artigo ou inciso determina que esses casos serão normatizados por lei específica.

A precarização nos estados: Análise e discussão

A maioria das leis de contratação temporária dos estados estrutura-se em torno de categorias similares. Adotamos aquelas que consideramos mais relevantes para os objetivos propostos. Relembrando, essas categorias são o tempo e os termos de prorrogação do contrato, remuneração, direitos e garantias sociais, condições e prazos para afastamento, continuidade do contrato e sua extinção.

As próximas subseções serão dedicadas ao estudo dessas categorias.

Tempo de contratação: Prazo e prorrogação

Conforme veremos na Figura 2, os prazos dos contratos estipulados pelos estados variam de acordo com a natureza da atividade. Muitos extrapolam o período de dois anos, diferente do que é previsto para as contratações via CLT, onde o prazo máximo é de 24 meses, e a prorrogação abre precedente para que o trabalhador passe a um regime de contrato por prazo indeterminado.

Figura 2
Prazos mínimo e máximo de contratação por Estado - 2023

As situações que justificam os prazos máximos de contratação, por tempo superior ao limite dos dois anos, são as mais diversas possíveis: em Minas Gerais, o número de servidores insuficiente para a continuidade dos serviços da defesa social (Lei n. 18.185/2009 (2009), art. 4, § 1º, III) é a condição para manter vinculados por até oito anos trabalhadores temporários; já em Pernambuco a situação é mais generalizada. Ali, das 14 situações possíveis de necessidade temporária e de excepcional interesse público, que justificam as contratações temporárias, apenas duas (calamidade pública e emergências em saúde pública) têm prazo máximo de contratação de dois anos, enquanto as demais têm o prazo máximo de seis anos; nos outros estados (Espírito Santo, Distrito Federal, Mato Grosso, Amazonas, Maranhão, Paraíba, Bahia, Rio de Janeiro e Alagoas), cujos prazos máximos variam entre três e quatro anos, as justificativas vão da seleção de professores para o ensino básico até atividades de saúde pública, passando pelos projetos de pesquisa ou técnicas de notória especialização.

Os dados apresentados corroboram o comentário de que o estado se nivelou ao mercado enquanto empregador, banalizando as formas de contratação atípicas, a título de flexibilização e do atendimento às necessidades essenciais. Essa constatação é fortalecida quando verificamos nas legislações que apenas cinco estados têm previsão para redução de contratados: Rio de Janeiro, Amapá e Pará, que anunciam planejamento de concurso após contratações; Rio Grande do Sul, sinalizando essa possibilidade apenas na legislação da Secretaria de Administração de Recursos Humanos, para o Departamento de Perícia Médica e Saúde do Trabalhador; e Espírito Santo, que permite a contratação, mas com limites máximos de contratados estabelecidos na lei.

Quanto ao interstício para ser recontratado, conforme veremos na Figura 3, há os casos de Espírito Santo e Mato Grosso, que admitem a recontratação sem interstício, e outros estados que ou não deliberam em relação a essa questão nas suas legislações (Rio Grande do Sul, Tocantins, Ceará, Paraíba e Bahia) ou seguem períodos diferenciados.

Figura 3
Estados e interstício para recontratação - 2023

Figura 4
Remuneração dos contratados - 2023

Figura 5
Direitos e garantias sociais dos contratados temporariamente pelos Estados - 2023

Figura 6
Possibilidades de afastamento do trabalho (licenças) sem prejuízo da remuneração - 2023

Remuneração

Remuneração, direitos e garantias sociais são frequentemente os aspectos mais afetados, porque impactam diretamente o custo desse trabalhador para a organização.

No que tange à remuneração, a regulamentação estabelecida é um pouco mais uniforme do que o cenário encontrado nos prazos dos contratos:

A maioria dos estados (70%) estabelece como remuneração o salário-base do órgão contratante, aquele pago ao servidor em início de carreira. São exceções o Ceará, referenciado no mercado de trabalho, visto que a vinculação contratual é pela CLT; Rio de Janeiro, remunerando com base no piso regional da categoria; Paraíba, que regulamenta o máximo a ser pago - não superior ao estabelecido pela Constituição de 1988 -, sem determinar a remuneração-base; enquanto Paraná, Rondônia, Acre, Maranhão e Piauí definem o tipo de remuneração (salário-base do órgão contratante, por produtividade, valor pago pelo mercado de trabalho etc.) de acordo com o tipo de atividade, por exemplo: a) unidade produzida nos casos de contratação para recenseamentos, pesquisas estatísticas de campo, plantio e colheita (Paraná e Acre); b) com base no mercado de trabalho para as atividades em que seja exigida a execução do serviço por profissional de notória especialização, nas áreas de pesquisa cientifica e tecnológica.

Alguns estados também regulamentam gratificações. Em Minas Gerais, há previsão de pagamento de gratificação tanto para coleta de dados quanto por produtividade, caso o contratado esteja vinculado à categoria funcional que tenha acordo de resultados a serem alcançados (Lei n. 18.185, de 4 de junho de 2009 [2009Lei n. 18.185, de 4 de junho de 2009. (2009). MG. https://www.almg.gov.br/consulte/legislacao/completa/completa.html?ano=2009#=18185&tipo=LEI
https://www.almg.gov.br/consulte/legisla...
, art. 8, § 2º e § 3º]). No Paraná, estendem-se aos contratados as gratificações concedidas aos estatutários, de acordo com atividades específicas, além de gratificação por assiduidade (Lei n. 108, de 18 de maio de 2005 [2005Lei n. 108, de 18 de maio de 2005. (2005). PR. http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.do?action=exibir&codAto=7352
http://www.legislacao.pr.gov.br/legislac...
, art. 8)]. No Distrito Federal, apenas os professores têm direito às mesmas gratificações concedidas aos professores estatutários (Distrito Federal, 2008, art. 7, § 3º). No Maranhão, a legislação proíbe o pagamento de gratificação para professores contratados, no ensino básico e profissionalizante, direito concedido aos estatutários (Lei n. 11.131/2019Lei n. 11.131, de 15 de outubro de 2019. (2019). MA. http://stc.ma.gov.br/legisladocumento/?id=5612
http://stc.ma.gov.br/legisladocumento/?i...
, Art. 7o, § 1º).

Apesar de a maioria dos estados utilizar como base de remuneração o mesmo valor que é pago aos estatutários, essa isonomia não se mantém no transcorrer do tempo contratual: a) não há, para o contratado, regulamentação quanto à obrigatoriedade e ao período de reajuste da remuneração; b) em toda legislação é especificado que não se podem tomar os direitos e vantagens individuais dos servidores estatutários como base para os contratados. Exemplo disso são os editais para professor substituto das universidades, onde há exigência mínima de formação (muitas vezes especialização ou mestrado) e o ranking dos candidatos é realizado mediante títulos e produção acadêmica, porém a remuneração do candidato selecionado não será enquadrada de acordo com o seu nível de titulação, tanto no início do contrato quanto se, ao longo do período, o contratado alcançar outro nível de titulação (doutorado, por exemplo), como ocorre com os concursados. Essas duas condições levam os contratados a ter remuneração inferior à de um estatutário, exercendo função similar, além de ampliar essa diferença no decorrer do tempo. O enquadramento do contratado é fixado pelo edital do processo seletivo e permanece ao longo da execução do contrato.

Direitos e garantias sociais

Em relação aos direitos e garantias sociais, a situação é mais grave, visto que diversos estados sequer os preveem.

Chama atenção o baixo número de estados com garantias mínimas para os servidores contratados: a) apenas 33% preveem férias (Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul, Pernambuco e Alagoas); b) somente 26% têm previsão de pagamento de décimo terceiro salário (Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais, Santa Catarina, Mato Grosso do Sul e Pernambuco); c) apenas 18,5% preveem pagamento de adicional noturno (Espírito Santo, Minas Gerais, Paraná, Mato Grosso do Sul e Pernambuco); d) simplesmente 15% tratam de adicional por insalubridade e periculosidade (Rio de Janeiro, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Alagoas). O Estado do Espírito Santo prevê o adicional por insalubridade e a Paraíba, por periculosidade.

Os Estados de Mato Grosso, Tocantins, Pará, Maranhão e Piauí foram generalistas, estendendo aos contratados as garantias dos servidores estatutários, desde que não sejam aquelas de cunho individual e não contrariem o aspecto temporal do contrato. Essa possibilidade pode não ser tão favorável ao contratado, uma vez que esse aspecto abrangente pode dar margem a diversas interpretações quanto ao que caracterizaria efetivamente vantagens individuais e contrariedade do aspecto temporal Uma vez não estabelecido em contrato e o servidor requerendo, por via judicial, ficará novamente à mercê de interpretações jurídicas. Exemplificamos com a legislação do Pará:

Art. 4º - O regime jurídico dos servidores contratados é de natureza administrativa, regendo-se por princípios de direito público, aplicando-se-lhes, durante o exercício da função ou a realização do serviço, naquilo que for compatível com a transitoriedade da contratação, os direitos e deveres referidos no Estatuto dos Funcionários Públicos, contando-se o tempo da prestação de serviço para o fim do disposto no art. 33, § 3º, da Constituição do Estado do Pará. (Pará, 1991Lei n. 07, de 25 de setembro de 199 (1991) PA. Regula o art. 36 da Constituição do Estado do Pará, dispondo sobre contratação por tempo determinado para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público. http://www.sead.pa.gov.br/sites/default/files/Lei_Compl._no_07-91Servidor_Temp..pdf
http://www.sead.pa.gov.br/sites/default/...
, p. 1)

Vale destacar que 11 estados (41% do total) não instituem regulamentação acerca de direitos e garantias sociais para os contratados (Rio Grande do Sul, Distrito Federal, Acre, Amapá, Rondônia, Amazonas, Roraima, Rio Grande do Norte, Paraíba, Sergipe e Bahia). É uma condição preocupante, porque a lei é a base para a construção do contrato e, se essas proteções não estão previstas, não há obrigatoriedade de incluí-las. Mais que isso: o gestor não pode praticá-las, sob pena de estar cometendo irregularidade. Nove desses estados (82% dos 11) são do Norte e do Nordeste e, dos cinco estados mais generalistas sobre o assunto, quatro deles pertencem àquelas regiões.

Entre os direitos sociais, destaca-se, a seguir, o afastamento sem prejuízo da sua remuneração. A maioria dos estados (63%) não possui qualquer regulamentação sobre essa condição.

No caso de afastamento do trabalhador sem prejuízo da sua remuneração, além do grande contingente de estados que não deliberam acerca dessa questão (17 estados, cerca de 63% do total), apenas seis (Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Maranhão) têm previsão de afastamento para tratamento de saúde ou por acidente ocorrido em serviço. Quase a mesma quantidade de estados tem alguma previsão quanto às licenças mais comuns (maternidade, paternidade ou falecimento na família). O Estado de São Paulo é o único que aborda a questão dos afastamentos de maneira genérica, expondo na lei a possibilidade de licenças abonadas, porém determina que os detalhes dessa regulamentação serão informados em decreto. O Ceará, como é o único estado que contrata via CLT, prevê que os afastamentos seguirão esse regime.

Condições para a extinção do contrato

O rompimento do vínculo pode ocorrer em diversas situações, e não somente pelo término do prazo contratual ou pela resolução da situação emergencial que justificou a contratação. A legislação também se ocupa das condições de rompimento que seriam passíveis de pagamento de indenização ou não.

Iniciaremos a análise pelas condições de extinção de contrato sem direito a indenização.

A maioria dos estados (74%) garantiu, como historicamente tem acontecido, que não houvesse indenização para os casos em que é o contratado quem solicita o desligamento do contrato. Em todas as leis, há um inciso reforçando que esses casos devem ser informados pelo contratado com pelo menos 30 dias de antecedência. Mas quatro estados (Amapá, Pará, Sergipe e Bahia) não preveem a rescisão contratual.

Como se lê na Figura 7, há muitas situações de extinção do contrato sem direito a indenização, agravando a precarização do vínculo: cerca de 41% dos estados (11 deles) adotam a rescisão contratual por conveniência do órgão público, sem necessidade de aviso prévio ou pagamento de indenização; o Rio de Janeiro prevê rescisão contratual sem indenização para os contratados que apresentarem acima de 15 dias consecutivos de ausência justificada para si ou 10 dias consecutivos por doença de cônjuge, ascendentes ou descendentes (Lei n. 6.901, de 2 de outubro de 2014 [2014Lei n. 6.901, de 2 de outubro de 2014. (2014). RJ. http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei.nsf/f25edae7e64db53b032564fe005262ef/0480c14a0f05c36b83257d6d005bc52b?OpenDocument&Highlight=0,6901
http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/contlei....
, art. 12, IX]); no Amazonas, a possibilidade de extinção do contrato por infração contratual está relacionada, inclusive, ao não atingimento de metas acordadas, sem qualquer referência à avaliação das causas da inadimplência (Lei n. 2.607, de 29 de junho de 2000 [2000Lei n. 2.607, de 29 de junho de 2000. (2000). AM. https://sapl.al.am.leg.br/sapl_documentos/norma_juridica/7062_texto_integral
https://sapl.al.am.leg.br/sapl_documento...
, art. 9, III]); em Goiás, há a possibilidade de rescisão do contrato motivada por recomendação do interesse público (Lei n. 13.664, de 27 de julho de 2000 [2000Lei n. 13.664, de 27 de julho de 2000. (2000). GO. http://www.gabinetecivil.goias.gov.br/leis_ordinarias/2000/lei_13664.htm
http://www.gabinetecivil.goias.gov.br/le...
, art. 11, II, d]); no Ceará, o mesmo pode acontecer por motivo “de força maior“ (Ceará, 2000Lei n. 22, de 24 de julho de 2000. (2000). CE. Dispõe sobre a contratação de docentes, por tempo determinado, para atender necessidade temporária de excepcional interesse público nas escolas estaduais. https://apeoc.org.br/wp-content/uploads/2016/11/lei-compl-2000.pdf
https://apeoc.org.br/wp-content/uploads/...
, art. 11, IV); no Tocatins, o contratado pode ter seu contrato rescindido sem indenização caso seja considerado inapto para a função ou não mais necessário na função (Tocantins, 2009, art. 30, § 1º).

Figura 7
Extinção do contrato sem direito à indenização - 2023

Há possibilidades de rescisão por conveniência da administração, com indenização, na legislação de 13 estados (48% do total): Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná, Distrito Federal, Mato Grosso do Sul, Amapá, Rondônia, Amazonas, Roraima, Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte e Alagoas. Os valores pagos são diferentes em cada estado, variando de um salário à metade do que caberia ao contratado até o término do contrato. Em muitos casos, o estado sequer prevê pagamento de férias e décimo terceiro proporcionais, na indenização. Cabe lembrar que, pelo regime jurídico a que estão submetidos, esses trabalhadores não têm direito a auxílio-desemprego nem FGTS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo que pudemos observar, na regulamentação dos estados voltada para as contratações por tempo determinado, as condições de trabalho na administração pública para esse segmento de trabalhadores sem vínculo permanente é predominantemente adverso em todos os aspectos: remuneração; longo tempo em que assim podem ser mantidos; omissão de direitos e garantias sociais (férias, décimo terceiro, adicionais de insalubridade e periculosidade, licenças sem perda de remuneração etc.); rescisão contratual por conveniência da administração pública, sem previsão de pagamento de indenização; maior exposição a situações de assédio e segregação; e, finalmente, pela desassistência aos casos como doenças e acidentes. Trata-se de profunda desigualdade de condições de trabalho, reproduzindo-se o panorama de precarização do mercado.

Essa situação não é pontual ou restrita, apesar de a frequência maior desses problemas se encontrar nos estados do Norte e do Nordeste. Reflete o alinhamento, nos níveis de governo, aos preceitos da NPM ou um movimento mimético sobredeterminado por um misto de orientação teórico-ideológica e restrições fiscais.

O fato é que nossas análises revelam que a administração pública vai se constituindo em modelo que, em certos casos, extrapola as restrições do mercado. A mais recente reforma trabalhista, apontada, com razão, como o aprofundamento da precarização, a despeito de trazer várias mudanças no mínimo polêmicas, não acolhe, por exemplo, situações de rompimento do contrato pelo empregador sem indenização nem subtrai do trabalhador direitos relacionados com doenças ou ainda licenças por maternidade e paternidade.

A necessidade de redução do déficit público, o equilíbrio fiscal e outras preocupações, como o próprio cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal, são razoáveis motivos para a contenção dos gastos com pessoal. Mas os padrões modernos de relações de trabalho têm direitos que representam avanços civilizatórios, cuja essência está na humanização da vida. Sem falar das possíveis consequências na prestação do serviço e reflexos negativos no conjunto da economia.

Quando o estado, agente principal da criação desses padrões, não os considera para mais de ¼ dos trabalhadores sobre o contingente de estatutários e quase 20% do total dos trabalhadores públicos estaduais, é mais uma preocupação a ser levada em conta.

Neste ponto, outras questões se abrem como possibilidades de investigação. Seja para aprofundar o exame das consequências de a esfera pública manter uma força de trabalho significativa sem acesso a direitos e garantias sociais fundamentais, seja para identificar que alternativas existem para obter o equilíbrio fiscal, sem o sacrifício de valores sociais, que no final também são valor público.

Ao trazermos esse quadro geral da situação ao conhecimento e à reflexão, por via de uma publicação de elevado impacto, esperamos que o assunto ganhe o relevo necessário para - além de inspirar novos estudos - ser olhado como um problema. Ademais, como tivemos ocasião de comentar na Introdução, há pontos em comum da proposta de reforma administrativa federal com a experiência dos estados descrita neste artigo, em particular no que diz respeito às contratações fora dos padrões estatutários. São problemas evidenciados no nível dos estados que precisam ser evitados em todos os níveis do poder público.

  • Avaliado pelo sistema double-anonymized peer review.

REFERÊNCIAS

Editado por

Editores convidados: Felix Lopez, Mariana Batista, André Marenco e Alexandre Gomide

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Mar 2023
  • Aceito
    11 Set 2023
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