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Ação Coletiva Transnacional e o Sucesso na Construção de um Regime Internacional de Proteção da Pessoa Humana: Da Cruz Vermelha ao TPI* * Artigo recebidoem10 de abril de 2013 e aprovado para publicação em24 de setembro de 2014.

Transnational Collective Action and Successes in the Building Process of an International Regime for Human Protection: Red Cross to the ICC

Resumo

O objetivo geral do artigo é mapear eventos que revelam a importância da participação de indivíduos e de movimentos ativistas transnacionais na reformulação de normas e instituições internacionais. Indivíduos e movimentos sociais transnacionais exerceram papéis decisivos, tanto na origem da ideia de proteção de indivíduos por instituições internacionais, independentemente da representação estatal, quanto na ação e estratégia de interferência de redes transnacionais de advocacia pública para a institucionalização de mecanismos de defesa do indivíduo e grupos sociais no contexto da política internacional. A hipótese é que o indivíduo não apenas pode ser visto como objeto de proteção de normas internacionais, mas tem emergido como agente que interfere nas mudanças de regras e criação de instituições internacionais, mesmo sem instrumentos tradicionais de intervenção política, representação ou participação. Uma excursão histórico-analítica sobre motivadores e obstáculos à ação do indivíduo como sujeito interveniente na política internacional não leva à conclusão de que os Estados deixam de ser atores privilegiados, mas sugere que a consideração do papel de redes transnacionais de advocacia pública e do indivíduo como demandantes de mudanças políticas impacta nas relações internacionais.

Novos Movimentos Sociais; Redes Transnacionais de Advocacia Pública; Atores Não Estatais; Cruz Vermelha; Tribunal Penal Internacional

Abstract

The overall goal of this article is to map events that reveal the relevance of the participation of individuals and transnational activist movements in reshaping international norms and institutions. Individuals and transnational social movements have played decisive roles in both the origin of the idea of protecting the individual from international institutions, regardless of state representation, and in the action and strategy of interference transnational public advocacy networks in the institutionalization of defense mechanisms of the individual and social groups in the context of international politics. The hypothesis is that the individual can be seen not only as an object of protection of international law, but has emerged as an agent that interferes with the rule changes and the creation of international institutions, even without traditional instruments of political intervention, representation or participation. A historical-analytical tour about motivators and barriers to action of the individual as an agent in international politics does not lead to the conclusion that the states are no longer privileged actors, but suggests that consideration of the role of transnational public advocacy networks and the individual plaintiffs can impact international relations.

New Social Movements; Transnational Advocacy Networks; Non-State Actors; The Red Cross; International Criminal Court

Introdução

O conceito de inovação democrática é um novo termo da ciência política para explicar o aparecimento de instituições que têm sido desenhadas especificamente para aumentar instrumentos de participação de cidadãos no processo decisório (SMITH, 2009SMITH, Graham. Democratic Innovations: Design Institutions for Citizen Participation. Cambridge: Cambridge University Press, 2009.), participação que também se dá pela capacidade de indivíduos influenciarem a agenda de policy making, conforme salienta Setala e Schiller (2012)SETALA, M.; SCHILLER, T. Citizens' Initiatives in Europe: Procedures and Consequences of Agenda-Setting by Citizens. Nova York: Palgrave Macmillan, 2012.. A ideia de que a democracia passa, de tempos em tempos, por "perdas", desde a democracia direta, passando pela democracia representativa e agora no contexto de um mundo interconectado e globalizado, foi destacada por Dahl (1994)DAHL, R. A Democratic Dilemma: System Effectiveness Versus Citizen Participation. Political Science Quartely, v. 109, n. 1, p. 23-34, 1994., que descreve tais mudanças como "dilemas de sua expansão". Ao mesmo tempo em que demandas democráticas visam atingir uma massa maior de cidadãos, aumentam os riscos de seu controle e efetividade.

De acordo com o amplo estudo comparativo entre democracias europeias, Setala e Schiller (2012) identificam as diferentes escalas de influência e ações de cidadãos comuns, em que a participação não precisa ser atribuída apenas ao voto ou consulta direta, mas também à iniciativa de agenda. Na mesma linha da tese de Keck e Sikkink (1998)KECK, M. E.; SIKKINK, K. Activists beyond Borders. Advocacy Networks in International Politics. Londres: Cornell University Press, 1998., a mobilização de indivíduos, ONGs, organizações da sociedade civil e setores de agências governamentais e multilaterais vem ocorrendo em redes transnacionais de advocacia pública que, apesar se suas limitações, são networks com "flexibilidade organizacional" e "capacidade de produzir e disseminar informações e operar simultaneamente em países distintos e em diversas arenas políticas - lo cais, domésticas e internacionais" (RODRIGUES, 2002RODRIGUES, M. G. M. Redes transnacionais de advocacia pública: estraté gias e impactos - o Projeto Planafloro e o Painel de Inspeção do Banco Mundial. Contexto Internacional, Rio de Janeiro, v. 24, n. 1, p. 73-128, jan./jun. 2002., p. 74). Essa característica da transnacionalidade tem se relevado uma importante vantagem no cenário internacional, gerando possibilidades de interferência na discussão e elaboração de políticas domésticas e da política externa dos países de modo não tradicional, tais como a inclusão de temas nas agendas políticas em função de pressões de organizações intergovernamentais ou mesmo organizações não governamentais de alcance internacional (ONGIs).

Além das ONGIs, Keck e Sikkink (1998) destacam fortemente a ação de redes transnacionais e distinguem redes transnacionais de advocacia pública de outras possibilidades de networks em função do princípio universalista de direitos demandados, e não técnico, e da finalidade pública de seu alcance. Nas networks, indivíduos fazem diferença. O estudo destes novos atores não estatais, que são na verdade estrutura e agente ao mesmo tempo, está no contexto das reflexões sobre o crescimento do papel e do lugar do "indivíduo", visto como objeto de proteção e agente de mudança na política internacional. O reconhecimento de que o indivíduo pode ser sujeito e objeto de transformação das relações internacionais gera agendas de pesquisa em que mudanças políticas e participação podem andar juntas. Qual a dimensão do significado e valorização do indivíduo, não apenas como foco de proteção, mas também como ator relevante em processos de mudança de normas e criação de instituições internacionais? Seja em tempos de guerra ou de paz, mecanismos de proteção jurídica do indivíduo e da pessoa humana surgiram como fruto de demanda dos próprios indivíduos, agindo independentemente de seus Es tados. Mas como haveria engajamento e articulação de interesses fora do âmbito dos Estados? A participação de indivíduos em processos de transformação global pressupõe uma ação engajada em uma "sociedade civil global"?

Sociedade Civil Global e Networks Transnacionais

Citando Edwards (2004EDWARDS, M. Civil Society. Cambridge: Polity Press, 2004., p. vi), o tema da "sociedade civil global" emerge como "uma nova big idea do século XXI", independentemente das diferentes possibilidades de interpretação sobre o alcance do conceito e da ideia de uma sociedade civil que ultrapassaria bar reiras materiais e institucionais dos Estados nacionais. Considerando-se aqui uma definição mínima e livre de polêmicas, "sociedade civil global" pode ser compreendida como um domínio no qual as pessoas formam relações e desenvolvem elementos de identidade fora do papel próprio de cidadãos de um Estado em particular (KEANE, 2003KEANE, J. Global Civil Society? Cambridge: Cambridge University Press, 2003., p. 23). Fazem parte deste contexto de transformações fatores históricos da globalização, tais como o aumento da interdependência e as transformações nas relações sociais que contam com um novo aparato tecnológico de comunicação e criação de networks sociais, que envolvem um incremento de possibilidades de ação coletiva em dois níveis: nacional e transnacional.

Desde a década de 1970, várias análises apareceram na tentativa de se desenhar a dinâmica e a estrutura de movimentos sociais e ações coletivas, mas foi recentemente que o interesse acadêmico cresceu no sentido de se buscar identificar relações entre movimentos sociais e networks transnacionais. Em suma, não há controvérsia na literatura sobre o fato de que a participação de indivíduos em ativismos transnacionais é fortalecida e viabilizada pela ação de networks so ciais (DIANI; McADAM, 2003DIANI, M.; McADAM, D. (Ed.). Social Movements and Networks. Nova York: Oxford University Press, 2003.) e, mais evidentemente, desde a década de 1990, de redes transnacionais de advocacia pública. Segundo Keck e Sikkink (1998), redes transnacionais de advocacia pública se diferenciam de movimentos sociais de caráter transnacional pelas suas funções e oportunidades estratégicas. Considerando-se a existência de uma fragmentada arena nacional de disputas, grupos de interesse constituem práticas mútuas de ação estratégica além das fronteiras nacionais para fortalecerem seu campo de ação a partir de vias de articulações transnacionais. Assim, tais redes transnacionais de advocacia pública se definem como estruturas de comunicação e compartilhamento de ideias e princípios transnacionais. Seus instrumentos de persuasão não são os tradicionais das instituições políticas, pois procuram contribuir para a mudança de percepção sobre identidades, interesses, preferências; visam transformar discursos, posicionamentos, atitudes e, se absolutamente bem-sucedidas, chegam a interferir na mudança de procedimentos, policies e comportamentos (KECK; SIKKINK, 1998, p. 3).

Segundo Ann Mische (2003)MISCHE, Ann. Relational Sociology, Culture, and Agency. In: SCOTT, J.; CARRINGTON, P. (Ed.). Sage Handbook of Social Network Analysis. Londres: Sage, 2011., é preciso ir além do consenso de que network e cultura são temas importantes para se compreender os novos movimentos sociais e avançar no sentido de identificar que networks sociais não são apenas espaços de trocas culturais ou formação cultural, mas sim espaços de interação comunicativa constituídos culturalmente. Em outras palavras, ativismos transnacionais são relation-building activities e é possível avançar na busca de demonstrações empíricas e históricas de como ativismos transnacionais geraram mais do que novas possibilidades de participação e interferência na política, em valores ou instituições; mas sim, são já fruto de novas culturas jurídicas. Refletem o resultado da constituição de novas éticas e uma nova estética de comunicação e relacionamento, gerando com isso novas demandas democráticas e de direito. As networks são estruturas comunicativas e apresentam estratégias e métodos de organização e eficiência muito particulares. Keck e Sikkink (1998) identificaram que a densidade ou a força de uma rede transnacional de advocacia pública impacta sobre o resultado de sua ação e está diretamente relacionada a sua eficácia, caracterizando-se por possuir atores com fortes conexões com o tema, que demanda proteção, di reitos ou reconhecimento. Densidade, segundo as autoras, pressupõe um fluxo confiável de informações, acesso a outras redes, bem como habilidade de comunicação e exposição.

Exatamente por não se tratar de um mecanismo tradicional da política ou dos instrumentos constitucionais democráticos, mas sim de ação transnacional, resultados efetivos da ação de redes de advocacia pública podem ser reconhecidos em diferentes estágios: "(1) estabelecendo critérios para o debate e incluindo temas em agendas políticas (que podem ser governamentais ou intergovernamentais) de discussão e decisão; (2) encorajando discursos compromissados tanto de sociedades civis quanto de Estados; (3) provocando mudanças procedimentais, tanto no nível doméstico quanto internacional (por exemplo, a necessidade de consulta popular ou a representação de ONGIs em organizações internacionais (OIs) como a Organização das Nações Unidas [ONU]); (4) afetando políticas concreta e diretamente; e (5) influenciando mudanças de comportamento de atores -alvo (KECK; SIKKINK, 1998, p. 201). Pode-se reparar que tais estágios pressupõem níveis diferenciados de influência e capacidade de interferência, mas que não desqualificam a ação das redes caso sua efetividade alcance apenas o primeiro estágio. Inclusive porque, dependendo do tema de política internacional, o primeiro estágio é fundamental.

Seguindo este modelo de mensuração da ação e interferência de indivíduos e ativismos transnacionais na política internacional, pode-se considerar uma análise criativa da perspectiva do empoderamento do indivíduo na busca da participação nas mudanças políticas interna cionais. Assim, este artigo analisa a relevância dada ao papel da participação de indivíduos e movimentos ativistas transnacionais na reformulação de normas e instituições internacionais de proteção humanitária e de direitos humanos, através do estudo da constituição da mais antiga organização internacional, a Cruz Vermelha, e do Tribunal Penal Internacional. Tais instituições são o resultado e parte do processo de empoderamento dos indivíduos na política internacional, ao mesmo tempo.

Por que Estudar Instituições Internacionais de Proteção de Direito Humanitário e Direitos Humanos?

Segundo Glasius e Kaldor (2002)GLASIUS, M. Expertise in the Cause of Justice: Global Civil Society Influence on the Statute for an International Criminal Court. In: ______; KALDOR, M.; ANHEIER, H. (Ed.). Global Civil Society 2002. Oxford: Oxford University Press, 2002., um dos principais critérios para se avaliar o crescimento das condições de ação e do papel da "sociedade civil global" é o crescimento do direito internacional público, ou seja, o aumento do número de tratados e do volume de regras internacionais existentes. A institucionalização de direitos conduz de modo mais abrangente avanços no campo da negociação política, o que se confere pelo aumento da diversidade de direitos demandados. A circulação e atuação da sociedade civil no âmbito internacional requer reconhecimento jurídico de direitos, ao mesmo tempo em que depende de reconhecimento jurídico e representação para a sua atuação.

Por outro lado, se a democracia é a via de ação e participação dos indivíduos no âmbito da política nacional, as redes transnacionais de advocacia pública são um mecanismo estratégico de articulação de interesses da sociedade civil além das fronteiras nacionais. Normas e instituições internacionais funcionam como um asfalto da ação transnacional da sociedade civil. Assim, a ação de indivíduos em movimentos sociais transnacionais também é geradora da regulamentação e institucionalização internacional. Ao mesmo tempo em que o aumento de normas, regras e direitos de proteção de indivíduos propicia demanda de interesses, gera legitimidade e representação da sociedade civil. Evidentemente, instrumentos de proteção jurídica ou de punição política e judiciária internacionais não são vistos como substitutos dos instrumentos democráticos nacionais, mas sim co mo garantias e complementações fundamentais aos instrumentos da política doméstica dos Estados. Até mesmo porque, naturalmente, os tratados não garantem o sucesso da ação da sociedade civil no ambiente internacional, mas criam condições de organização e reconhecimento de sua atuação, bem como garantem um efeito ampliado para suas conquistas políticas. Sendo assim, é importante verificar a correlação entre a proliferação de ideais democráticas transnacionais e o povoamento de regras de direito internacional e de instituições internacionais (governamentais e não governamentais). No caso específico de ONGIs, pode-se verificar mais visivelmente a relação da valorização da ação dos indivíduos, e não apenas dos Estados soberanos, com a construção de mecanismos de defesa de direitos particulares que revelam a encarnação da existência de princípios e valores jurídicos gerais abstratos, tais como igualdade e humanidade.

Segundo a tese de Glasius e Kaldor (GLASIUS et al., 2001; GLA SIUS, 2002), o crescimento do número de tratados concluídos e ratificados precede o crescimento da sociedade civil global e, especificamente, a década de 1990 representa um marco no aumento de tra tados internacionais acordados e registrados nas Nações Unidas. O crescimento de 1990 para cá é ainda mais significante: dados do Yearbook das organizações internacionais registram que o número de ONGIs aumentou de 6 mil em 1990 para 50 mil em 2006.1 1 .Cf. <http://www.uia.be>. Acesso em: 25 ago. 2014. Da mesma forma, é possível verificar que o aumento das ONGIs corresponde ao aumento da regulação internacional pela via do direito e das instituições, bem como o aumento de OIs (atualmente em torno de 8 mil, também segundo o Yearbook das organizações internacionais. A Organisation for Economic Co-operation and Development (OECD) reportou que as organizações da sociedade civil (OSCs) se tornaram importantes players na assistência ao desenvolvimento global, responsáveis atualmente por aproximadamente US$ 15 bilhões em assistência internacional (dados de 2006).2 2 .Cf. <http://oecd.org>. Acesso em: 25 ago. 2014.

Mas para que consideremos o efetivo empoderamento das ONGIs e sua capacidade de agir como atores intervenientes nas relações internacionais, o status consultivo na ONU deve ser considerado, e o aumento, não apenas das ONGIs, mas principalmente de sua participação como órgão consultivo, pode ser verificado na Tabela 1.

Tabela 1
ONGIs com Status Consultivo no Comitê Econômico e Social da ONU3

O significativo aumento do número de ONGIs com status consultivo na ONU também está refletido no correspondente crescimento da participação de organizações sociais e indivíduos representando interesses em fóruns internacionais alternativos aos encontros intergovernamentais (GLASIUS et al., 2001). O crescimento do número de tratados internacionais, de fóruns internacionais e do número de ONGIs (com ou sem status consultivo na ONU) são eventos que têm sido estudados separadamente, mas que de fato estão fortemente correlacionados. Pode-se considerar o aumento de possibilidades de participação da sociedade civil organizada na vida política interna cional como um dos resultados da institucionalização do sistema internacional, o que gera vias de regulação e organização, não apenas dos Estados, como tem sido destacado pela literatura de política internacional sobre a nova ordem pós-Guerra Fria, mas também de setores organizados da sociedade civil e dos indivíduos. Isto porque não há condições para o aumento da ação das organizações interna cionais e articulação transnacional da sociedade civil sem a devida regulamentação e jurisdição internacional que reconheça sua participação. Dentre as temáticas de articulação de interesses internacio nais de proteção que figuram com maior destaque, no entanto, ainda está a proteção aos direitos humanos. Keck e Sikkink (1998) argumentam que a importância do ativismo internacional contemporâneo em torno dos direitos humanos é comparável à importância do ativismo abolicionista, em que participavam organizações e indivíduos cuja penetração transnacional foi decisiva para os seus resultados.4 4 .É possível comparar os movimentos antiescravagistas, sem mencionar o fundamento humanitário do argumento abolicionista, com ativismos contemporâneos no que se refere também, por exemplo, às formas alternativas de financiamento que se dava muito frequentemente graças a contribuições pes soais; além disso, estes movimentos valorizavam a divulgação das ideias, persuasão, circulação de informação e denúncias; e, finalmente, tinham uma inserção transnacional quase impensável diante das condições históricas do século XIX (tecnologia de comunicação e informação).

Se conferirmos a participação da sociedade civil global no momento que precedeu a criação do Estatuto de Roma, podemos conferir exemplos que fortalecem tal correlação. O Tribunal Penal Interna cional (TPI), inicialmente, foi pensado como uma jurisdição autônoma e permanente que pretendia funcionar para a proteção de direitos humanos a ser pleiteada por indivíduos, independentemente de seus Estados. Durante o processo da criação do Estatuto de Roma que seria aprovado em 1998 (entrando em vigor em 2002), a sociedade civil organizada esteve presente e ativa, devidamente afinada com a cultura institucional, com a valorização do direito internacional e com os procedimentos oficiais, formais e jurídicos que estavam sendo adotados para a defesa dos direitos humanos através da criação de um Tribunal Penal permanente. Isto porque, neste caso, a sociedade civil global não estava na posição de denunciar, mas sim de apoiar e divulgar a iniciativa em curso. Na verdade, neste caso, a participação da sociedade civil global se deu em todas as fases e em quase todos os aspectos de discussão sobre o TPI, desde a agenda anterior que fez surgir o Estatuto até a elaboração dos princípios gerais, da composição das regras do Tribunal, da definição dos crimes, das regras para persecução e julgamento.5 5 .Cf. Rome Estatute of the International Criminal Court. Disponível em: <http://untreaty.un.org/cod/icc/rome/proceedings/contents.htm>. Acesso em: 25 jan. 2013. Um dos sintomas de sua participação direta e alinhada com a Conferência de Roma, além da elaboração e articulação anterior, é que não houve um fórum paralelo da sociedade civil global ao fórum oficial, como é comum acontecer.

O Papel dos Ativismos Transnacionais nos Eventos Precedentes à Criação do TPI

A instalação do TPI em 2002 se deve, em grande parte, ao empenho e ao ativismo de atores não estatais: organizações e indivíduos. Esta Corte Internacional, de caráter permanente, surgiu como instrumento de penalização e responsabilização individual de atos criminosos contra a pessoa humana (independentemente da condição de obediência ou mando, política ou jurídica, reconhecida pelo regime político do país daquele que comete diretamente os crimes contra a humanidade).

Glasius (2002, p. 137 ss.) procura detalhar de que forma as negociações para a criação do TPI ficaram marcadas como um resultado de interações de atores de vários setores da sociedade e do governo, tais como: acadêmicos e intelectuais, membros de ONGs domésticas e internacionais, representantes governamentais, parlamentares, indivíduos engajados em movimentos sociais etc. Glasius (2002) destaca que em muitos casos indivíduos exerceram várias funções, usando mais do que "um chapéu", ou seja, em um momento falavam como parlamentares, em outro como acadêmicos (professores universitá rios especializados em direitos humanos) e em outro como membros ou presidentes de alguma ONG, associação ou fundação. Por tudo isso, o projeto e o engajamento de setores de sociedades civis e indivíduos na criação do TPI espelham a importância do ativismo político transnacional atualmente, ao mesmo tempo em que refletem a dificuldade da aceitação da representação do indivíduo como sujeito autônomo e capaz no ambiente extraestatal.

Em outras palavras, uma curta história sobre a criação de uma Corte Penal Permanente representa de modo exemplar, ao mesmo tempo, a importância da atuação da sociedade civil global no processo de negociação e planejamento do Estatuto de Roma e a mudança de perspectiva a respeito do papel do indivíduo nas relações jurídicas e políticas internacionais, promovida pelo mesmo Estatuto. Assim, além de se valorizar a atuação da sociedade civil global neste caso, evidenciam-se as implicações jurídicas e políticas que estão em questão a partir de quando a sociedade internacional de Estados admitiu o aparecimento de uma agência judiciária internacional não governamental.

Lembrando a característica excepcional do TPI, que é uma instituição que não pretende proteger ou regular interesses interestatais ou governamentais, mas sim interesses de cidadãos, vale destacar dois pontos de reflexão fundamentais. O primeiro é a relação da sociedade civil global com a democracia: ela é fruto e fonte de democracia ao mesmo tempo. Em segundo lugar, ela exerceu um papel fundamental na instalação do TPI - também porque é fruto e fonte ao mesmo tempo do direito internacional. É neste segundo ponto que este artigo se detém mais cuidadosamente.

Se o TPI procurou trazer um novo status jurídico para o indivíduo na esfera internacional de relações jurídicas, isto é consequência e causa ao mesmo tempo do aumento da importância da figura do "indivíduo" na política internacional. Como este aumento se explica, onde se localiza e quais são as suas consequências para a ordem interna cional é o que não está muito claro nem devidamente explorado pela literatura por razões sumarizadas a seguir.

Primeiramente, não é possível, em uma ordem institucionalizada, como é o sistema internacional contemporâneo, imaginar-se uma via de ação de indivíduos, grupos de interesse ou movimentos sociais, que transponha fronteiras nacionais, sem que estejam amparados por regras mínimas democráticas em suas próprias nações, como aquelas que garantem a liberdade de opinião, associação e informação. Além disso, a legitimidade atribuída àqueles que são considerados "integrantes" de uma pressuposta sociedade global está referida aos valores democráticos, logo, ações violentas e atores não estatais que não defendem interesses baseados em igualdade e na liberdade não estão incluídos neste mais abrangente conceito de sociedade civil global.

Em segundo lugar, é possível reconhecer a agenda precedente do Estatuto de Roma a partir da ação relevante de alguns indivíduos e algumas organizações não estatais em especial. Quando se analisa o planejamento do Estatuto de Roma e mesmo sua inspiração, pode-se verificar que há uma história paralela a ser contada sobre as mudanças jurídicas do status do indivíduo e o quanto esta mudança se deve ao próprio ativismo político, a movimentos sociais e a ações individuais de personagens anônimos.

A Criação da Cruz Vermelha e do TPI à Luz da Participação de Indivíduos e da Sociedade Civil Global

Gustave Moynier foi um dos fundadores do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV), que se reuniu pela primeira vez em 1863. Jurista genebrino, presidente de uma associação beneficente, Moynier propôs uma comissão de cinco membros para estudar uma proposta que surgiu de questionamentos colocados pelo autor de um livro publicado em 1862, de autoria de Henry Dunant, desde sua experiência de ajuda pessoal a feridos até seu inconformismo com os horrores da guerra (BOSSIER, 1985BOSSIER, Pierre. From Solferino to Tsushima: History of the International Committee of the Red Cross. Genebra: Henry Dunant Institute, 1985.).

A iniciativa de Moynier e seu engajamento na fundação do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, em 1863, baseou-se na experiência de outra figura histórica, sua experiência individual, suas impressões e impacto de suas ideias registrado em livro: Henry Dunant. O CICV foi uma instituição criada, a princípio, para viabilizar propostas humanitárias de socorro básico a feridos de guerra. Um ano depois, acontecia a Convenção de Genebra com fins semelhantes, inicialmente com 55 países dando início à história do direito humanitário.

Para compreender a inspiração da criação do direito internacional humanitário, é preciso retornar à história de Dunant, um homem de negócios que se tornou um ativista, e sua experiência na ocasião das guerras de independência da Itália. Ao retornar de uma audiência com Napoleão III, Dunant presenciou em Solferino a situação precária com que mulheres e pessoas comuns procuravam acolher cerca de 9 mil feridos, alguns tratados dentro de igrejas para receber curativos, alimento e o cuidado necessário. Consternado com a situação, Dunant juntou-se aos voluntários e prestou ele mesmo assistência àqueles feridos, independentemente da origem ou nacionalidade ou qualquer questão identitária. Esta experiência pessoal de Dunant, relatada aqui muito sumariamente, deflagrou, ao longo dos seus desdobramentos, a criação do primeiro regime de ajuda humanitária.6 6 .Ver: International Committee of the red cross - ICRC (disponível em: <http://www.cicr.org>. Acesso em: 25 ago. 2014); Société Henry Dunant (disponível em: <http://www.shd.ch>. Acesso em: 25 ago. 2014); Association Henry Dunant + Gustave Moynier 1910-2010 (disponível em: <http://www.dunant-moynier.org/Texts.aspx?p>. Acesso em: 25 ago. 2014).

Henry Dunant foi autor de uma obra publicada em 1862, intitulada Lembranças de Solferino, em que relata a sua experiência de voluntário ao cuidar, de modo improvisado, de feridos de guerra. Seu livro foi traduzido para várias línguas na Europa e inspirou significantes iniciativas de ajuda humanitária internacional. Dunant provocou uma reflexão inédita, conduzindo o leitor a refletir sobre algumas perguntas jamais feitas antes. Dunant questionou se autoridades militares de diferentes nacionalidades não poderiam formular algum princípio internacional "convencional e sagrado" que, uma vez aprovado e ratificado, serviria de base para sociedades de assistência aos feridos em diversos países (MOORHEAD, 1999MOORHEAD, Caroline. Dunant's Dream. War, Switzerland and the History of the Red Cross. Nova York: Carroll & Graf Publishers, 1999.). Dunant questionou ainda se não se deveria, durante um período de paz e tranquilidade, fundar sociedades de ajuda cuja finalidade seria prestar ou fazer com que fosse prestada, em tempo de guerra, assistência a feridos, mediante a ajuda de voluntários dedicados e qualificados. Esta intrigante inquietação de Dunant iria se desenvolver, com a interferência de Moynier, no impulso à institucionalização e regulação de um Direito Internacional Humanitário (DIH). O que se tornou emblemático neste caso foi que inquietudes, inicialmente de um só indivíduo que resolveu escrever sobre sua vida e experiências, suas memórias e conturbações, propagaram-se e foram determinantes para a elabo ração das normas que seriam consolidadas nas Convenções de Genebra.

A regulação de normas humanitárias que se centravam inicialmente nas necessidades das vítimas dos conflitos e depois se estenderam, após a Primeira Guerra Mundial, à proteção de prisioneiros, surge de inspirações diplomáticas que se somaram, na verdade, ao longo de um século. Em suma, ideias sobre proteção do indivíduo e da pessoa humana contra a guerra entre Estados, bem como a criação de certa organização de autoridades militares de diferentes nacionalidades e formulação de algum princípio internacional "convencional e sagrado" que, uma vez aprovado e ratificado, devesse servir de base para sociedades de assistência aos feridos em diversos países, renderam a Dunant o primeiro Prêmio Nobel da Paz, em 1901 (BOSSIER, 1985). As Convenções de Genebra e seus Protocolos Adicionais são a essência do DIH hoje. Trata-se de um feixe de normas que rege a conduta dos conflitos armados e busca limitar seus efeitos para o sofrimento humano, além de visar a proteção de pessoas que não participam dos conflitos (civis, profissionais de saúde e de socorro); também inclui os que não mais participam das hostilidades (soldados feridos, doentes, náufragos e prisioneiros de guerra).7 7 .Convenções de Genebra - CICV. Disponível em: <http://www.icrc.org/ por/war-and-law/treaties-customary-law/geneva-conventions/index.jsp>. Acesso em: 10 mar. 2013. Diferente de di reitos humanos, o DIH é considerado um direito convencionado pelas partes que se comprometem em respeitar a pessoa humana mesmo em tempos de guerra entre Estados ou em situação de perseguição por motivos de raça, nacionalidade, grupo social ou opinião política (incluindo-se aí o direito dos refugiados e direito de asilo).

Ao longo do século XIX, houve uma série de congressos e conferências internacionais realizados em Genebra, com adoção de tratados multilaterais, impulsionados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, desde a Convenção sobre Melhorar a Sorte dos Feridos nos Exércitos em Campanha, de 1864, até outras convenções surgidas já em tempos da ONU, no período pós-guerra.

Gustave Moynier, inspirado na Convenção de Genebra, e totalmente ancorado na proposta do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, também foi pioneiro em defender outra iniciativa fundamental neste grande projeto de criação de um regime de proteção humanitária, que seria garantido pela criação de uma Corte internacional para julgar os crimes cometidos contra a Convenção de Genebra (TRINDADE et al., 1996TRINDADE, A. A. C. The Interdependence of All Human Rights - Obstacles and Challenges to their Implementation. International Social Science Journal (Special: Human Rights: 50th Anniversary of the Universal Declaration), n. 158, p. 513-523, 1998.; TRINDADE, 1998). Imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, havia um breve consenso geral na sociedade internacional de que era necessário haver regras internacionais que fossem capazes de prevenir genocídios e que os Tribunais ad hoc não eram medidas perfeitas para realizar tal função, mas remédios paliativos. O próprio Tribunal de Nuremberg estabeleceu standards para o debate sobre a necessidade de se criar mecanismos em que o indivíduo pudesse ser plenamente responsável diante de tribunais internacionais, já que só esta perspectiva traria também a possibilidade de superar-se a representação e proteção do Estado na prevenção de crimes contra a humanidade (ROBERTSON, 2000ROBERTSON, G. Crimes Against Humanity. The Struggle for Global Justice. Nova York: Penguin Books, 2000.; KRIEGER, 1998KRIEGER, D. The Nuremberg Promise and the International Criminal Court. Nuclear Age Peace Foundation. Dec. 1998. Disponível em: <http://www.wagingpeace.org/articles/1998/12/00_krieger_nuremberg-icc.htm>. Acesso em: 25 jan. 2013.
http://www.wagingpeace.org/articles/1998...
). Entre 1949 e 1954, a Comissão de Direito Internacional, uma Comissão de experts da ONU, já se preocupava em codificar os crimes contra a paz e a segurança da humanidade, mas a Assembleia das Nações Unidas abortou a iniciativa, em razão de desacordos existentes sobre a definição de alguns crimes, entre eles o de agressão (BASSIOUNI, 1999 apud GLASIUS, 2002).

Em 1989, Trinidad e Tobago formalmente propuseram à Assembleia Geral da ONU o estabelecimento de uma Corte Internacional de Justiça com jurisdição para perseguir e punir indivíduos e entidades que violassem normas internacionais (SCHABAS, 2001SCHABAS, W. A. An Introduction to the International Criminal Court. Nova York: Cambridge University Press, 2001.). O crime organizado em torno do tráfico internacional foi um importante foco da defesa desta agência judiciária em debate naquele momento. A Comissão de Direito Internacional (CDI) da ONU ganhou novo fôlego, com isto, para retomar trabalhos já iniciados anteriormente no sentido de buscar uma solução para a impunidade dos crimes de traficantes, organizados em networks transnacionais de ação.

Os julgamentos sobre a limpeza étnica da Iugoslávia (1993) e o genocídio de Ruanda (1994) engrossaram o impulso de se retomar o debate sobre o projeto do Estatuto de Roma, e em 1994 a CDI encerrou seus trabalhos e recomendou que os Estados se organizassem em Conferência Internacional para tornarem o projeto da Corte um Tratado a ser submetido aos Estados para assinatura. O que se seguiu foi que países europeus e caribenhos aceitaram a ideia de fazer uma Conferência Internacional rapidamente e outros países resistiram - mas ainda assim ficou decidida a criação de um comitê para estudar o projeto. Os representantes que se uniram em um Comitê Preparatório (PrepCom) trabalharam por três anos, enquanto os adeptos ao Tratado cresceram, até que, na sexta e última sessão do PreCom (no período de 16 de março a 3 de abril de 1998), encorajados por membros e organizações da sociedade civil (em contraste com a falta de apoio dos membros permanentes do conselho de Segurança da ONU), divulgaram os preparativos e a agenda para a Conferência de Roma (WARE, 1997WARE, A. Preparatory Committee of the Establishment of an International Criminal Court (ICC PrepCom), Report on War Crimes and Weapons Systems, December 1-12, 1997.).

A Conferência de Roma ocorreu entre 15 de junho e 17 de julho de 1998. Alguns atores não governamentais foram os responsáveis em não deixar-se apagar o debate sobre o tema da Corte Penal Permanente ao longo de todo esse processo. Entre os atores que exerceram papel de destaque, estão: a Internation Law Association (uma das mais antigas defensoras de um projeto nesta direção), a Association International de Droit Pénal e o World Federalist Movement. A estratégia de campanha destes e de outras organizações, que precedeu a criação do TPI, envolve também a ação de indivíduos isoladamente. Segundo Marlies Glasius (2002), em resumo, indivíduos e atores não estatais foram importantes na promoção de lobbies realizados com representantes governamentais (que tomou lugar, principalmente, com a criação do PreCom), na elaboração de documentos usados na Conferência, na condução de debates públicos, na contribuição financeira, na organização de manifestações públicas e na divulgação junto à imprensa dos acontecimentos relevantes. Organizações como World Federalist Movement, Ford Foundation, MacArthur Foundation e outras contribuíram com fundos para manter as atividades e o estabelecimento da Corte.

Papéis e ações, não aceitos tradicionalmente na política formal, são importantes instrumentos de influência para os atores não estatais quando interagem transnacionalmente. É preciso destacar principalmente o papel de consultorias especializadas e da mídia na divulgação e informação, além de ações públicas de impacto social e midiático. Foi fundamental a participação destes atores através da elaboração de documentos de experts em direito internacional e direitos humanos, com o objetivo de informar e influenciar, não apenas o público articulado em ONGIs, mas também pessoas comuns, acadêmicos e representantes de Estados com argumentos legais e políticos, com dados e análises das condições, possibilidades, críticas e perspectivas da realidade política internacional sobre a proteção de direitos. Alguns atores não estatais em especial se revelaram protagonistas neste processo, tais como a Anistia Internacional, a Human Rights Watch, o International Service for Human Rights, a International Commission of Jurists e o Lawyers Committee for Human Rights (GLASIUS, 2002, p. 150).

Para além da busca da proteção do homem sem garantias dadas pelo seu próprio governo, também para outras temáticas políticas de caráter internacional, a sociedade civil que se organiza é multinacional e multifacetada, composta por representantes de ONGIs e indivíduos, grupos independentes de ativistas e grupos que defendem interesses classistas, pacifistas, feministas etc. Assim, o sucesso de uma manifestação ou protesto público na busca do exercício de denúncia e pressão para que autoridades estatais mudem de atitude ou mantenham seus compromissos funciona como estratégia de ação coletiva de caráter transnacional. Um bom exemplo disso foi a iniciativa da No Peace Without Justice ao organizar em Roma, na ocasião da Conferência, um "tapete humano" que foi amplamente divulgado pela imprensa. Uma imagem impressionante de pessoas deitadas nas ruas pacificamente, representando os genocídios. As manifestações públicas funcionam como chamarizes para a imprensa e o objetivo principal é também que seja uma forma de comunicar a reação da sociedade civil organizada. Segundo Keck e Sikkink (1998), entre os mecanismos de influência e persuasão, está a criação de símbolos e imagens que chamem a atenção da opinião pública, grupos sociais, grupos políticos e governos. Assim, o impacto das imagens divulgadas cumpriu um importante papel identificado pela teoria, dando visibilidade e criando um evento novo que marcou o apelo dos representantes da sociedade civil.

Possivelmente, o grau de mobilização social ganhou tal proporção porque o estabelecimento do TPI foi discutido também em perspectivas revolucionárias para o direito internacional público. A ideia era que este significasse o maior avanço na direção de uma norma internacional centrada no indivíduo, que excluiria a intermediação de governos, ao mesmo tempo em que a Corte não apenas serviria à defesa de direitos humanos, mas também daria efetividade a campos do direito internacional, como o direito humanitário.8 8 .Ainda que alguns objetivos não tenham sido alcançados, como o de dar independência ao TPI em relação ao Conselho das Nações Unidas, a causa movimentou ativistas de direitos humanos. Por tudo isso, não é de se espantar o quanto o tema atraiu a ação e mobilização de muitos advogados, juristas e parlamentares. Seja por razões políticas e ideológicas, seja em função de compromissos civis e sociais. Cerca de metade das ONGIs e outras organizações da sociedade civil (OSCs) existentes se mobilizam em torno da defesa de direitos humanos, meio ambiente e direito das mulheres.

Segundo Glasius (2002, p. 141 ss.), das 236 OSCs representadas em Roma, aproximadamente metade delas eram de associações jurídicas e de ONGs (domésticas e internacionais) especializadas em di reitos humanos. Os demais grupos eram formados de organizações de mulheres, organizações pela paz e resolução de conflitos, representantes de igrejas ou organizações religiosas etc.9 9 .Para mais detalhes sobre os grupos presentes e sobre características e ações dos grupos da sociedade civil global que atuaram na aprovação do Estatuto de Roma, cf. Glasius (2002, p. 140-144). Ativistas de di reitos das mulheres tiveram um papel relevante na defesa da criação do novo Tribunal. O tema do estupro, que sempre foi considerado uma das "armas de guerra" contra grupos mais frágeis da sociedade combatida, apareceu com grande destaque. Exemplos históricos, como os do massacre de Nanquim em 1937 e outros casos como o da Iugoslávia, em que estupros foram cometidos como componente de limpeza étnica, foram marcados e reconhecidos como ações criminosas que sempre existiram em situação de extrema violência e guerra. Por tudo isso, ativistas dos direitos das mulheres vêm passado a se empenhar cada vez mais enfaticamente na consideração da vulnerabilidade feminina para abusos sexuais em situações de guerra.

Atores e representantes da sociedade civil fizeram parte do processo formal da elaboração e aprovação do Estatuto e agiram também na trilha da formalidade jurídica e política. Este é um dos principais sintomas que contrastam a campanha pelo TPI de outras ações contestatórias de política internacional. Um exemplo disso é que a Anistia Internacional manteve uma vigília de 24 horas no aguardo do fechamento do encontro, para reforçar seu endosso, suas expectativas e esperanças na forma encontrada para a prevenção e a punição dos violadores dos direitos humanos.

Depois do TPI, e apesar de seus avanços e recuos, outra grande inovação sobre o tratamento e proteção do indivíduo contra ações de governos e Estados veio com os novos estudos de segurança e reenquadramento do conceito de "segurança humana". Pacifistas e defensores de direitos humanos viram na renovação da percepção do problema da segurança uma nova via de construção de instrumentos garantidores de direito à dignidade e a uma vida "livre de ameaças" e, mais uma vez, histórias de ativismos e o papel de OSCs fazem diferença.

Conclusões

Os exemplos históricos de criação de associações internacionais contra, por exemplo, a escravidão, ou pela organização e regulamentação do trabalho, defesa do sufrágio universal ou defesa da paz mundial (CHATFIELD, 1997CHATFIELD, Charles. Intergovernmental and Nongovernmental Associa tions to 1945. In: SMITH, J. et al. (Ed.). Transnational Social Movements and Global Politics. Solidarity Beyond the State. Nova York: Syracuse University Press, 1997. p. 19-41. , p. 20 ss.), são ricos e emblemáticos sinais de participação pela ação e, principalmente, do quanto indivíduos e grupos articulados transnacionalmente (segundo limites tecnológicos e logísticos históricos) foram capazes de mudar o rumo de políticas públicas estatais. Apesar de esta ser uma tendência que se pode verificar desde o século XIX,10 10 .Alguns exemplos dados por Chatfield (1997) são a criação da Associação Cristã de Moços (ACM) e a do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, ambas em 1863. a brusca intensificação das estratégias de ação coletiva amparadas em conexões transnacionais, bem como a crescente organização da sociedade civil em ONGIs ao longo da década de 1990, é também fruto da expansão da globalização, para além do eixo econômico, e da complexidade crescente da ordem mundial no fim do século XX (CHATFIELD, 1997, p. 28 ss.).

O tema da democracia nas relações internacionais, neste contexto, no entanto, ainda é dos mais difíceis de se advogar. Mas os novos debates sobre o surgimento de uma jurisdição permanente internacional como o TPI, e o aumento das redes transnacionais de advocacia pública e sua efetividade, mesmo sem abalarem o estrelato dos Estados nas relações internacionais, os desafiam a se adaptarem às novas formas de ação estratégica na realização de seus interesses no ambiente internacional.

Segundo Dahl (1994), as grandes transformações históricas da democracia estão sempre relacionadas a uma "mudança em escala". Desde a democracia direta grega, foram-se perdendo as melhores condições de realização da democracia devido às necessárias adaptações às dimensões e alcance do poder da polity. Assim, o dilema democrático refere-se à capacidade de os cidadãos exercerem controle democrático sobre as decisões do governo versus a capacidade de o sistema responder satisfatoriamente às preferências coletivas de seus cidadãos (DAHL, 1994, p. 28). Caso Dahl esteja correto em sua análise sobre os desafios contemporâneos da realização de uma democracia em "larga escala", a intensificação da globalização é vista como um fator problemático e facilitador ao mesmo tempo, quando consideramos o aumento do acesso à informação por meios tecnológicos e midiáticos de comunicação, que têm produzido novas estratégias de associação política em moldes sofisticados de ins titucionalização.

Embora mais difícil de se conceituar, a democracia contemporânea (DAHL, 1999) propicia, mais do que debates, meios de participação transnacional diferentes daqueles tradicionais da política doméstica. O aumento dos ativismos transnacionais, que dependem e se fortalecem por intervenções individuais, o processo de funcionamento das redes transnacionais de advocacia pública e a nova jurisdição do TPI são marcos fundamentais para a reflexão sobre o novo tratamento dado ao indivíduo no sistema internacional - não mais apenas como objeto de proteção, mas como ator participante no processo de mudança. Tal participação, entretanto, não se dá pela representação tradicional ou pelo voto, mas por ações coletivas. Na mesma proporção que os Estados se tornam constitucionais e democráticos e as sociedades mais complexas, algumas associações da sociedade civil passaram a se organizar em instituições formais e se conectar por redes transnacionais de advocacia pública.

Tantas transformações nas relações internacionais ainda não representam ameaças à persistência dos Estados, em função da capacidade de resiliência e tolerância do princípio da soberania na organização do sistema internacional (KRASNER, 2001KRASNER, S.D. Abiding Sovereignty. International Political Science Re view, v. 22, n. 3, p. 229-251, 2001.). O Estado soberano ainda configura a mais efetiva forma de organização política e traz segurança para o desenvolvimento econômico e para a experiência democrática, mesmo tendo que ser flexível e se ajustar no alcance dos seus poderes e extensão de suas funções, na revisão da definição de suas fronteiras e capacidade de controle. No entanto, ao mesmo tempo, é necessário reconhecer que estes novos temas de relações internacionais sugerem novos valores e papéis aos indivíduos e suas práticas de articulação política, como causa e consequência, ao mesmo tempo, da ampliação do debate sobre participação e democracia em todos os setores da vida política.

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  • WARE, A. Preparatory Committee of the Establishment of an International Criminal Court (ICC PrepCom), Report on War Crimes and Weapons Systems, December 1-12, 1997.
  • 1
    .Cf. <http://www.uia.be>. Acesso em: 25 ago. 2014.
  • 2
    .Cf. <http://oecd.org>. Acesso em: 25 ago. 2014.
  • 3
    .As organizações não governamentais podem requerer, junto ao Conselho Econômico e Social da ONU (ECOSOC), o reconhecimento de "entidades consultivas" sob três modalidades: 1. Status consultivo geral, auferido a ONGIs que atuam em diversas áreas, além de atuarem em amplas regiões geográficas; 2. Status consultivo especial, aquele destinado a ONGIs que desempenham atividades em uma área específica; 3. Roster, aquelas que poderão ser consultadas, segundo a necessidade do ECOSOC.
  • 4
    .É possível comparar os movimentos antiescravagistas, sem mencionar o fundamento humanitário do argumento abolicionista, com ativismos contemporâneos no que se refere também, por exemplo, às formas alternativas de financiamento que se dava muito frequentemente graças a contribuições pes soais; além disso, estes movimentos valorizavam a divulgação das ideias, persuasão, circulação de informação e denúncias; e, finalmente, tinham uma inserção transnacional quase impensável diante das condições históricas do século XIX (tecnologia de comunicação e informação).
  • 5
    .Cf. Rome Estatute of the International Criminal Court. Disponível em: <http://untreaty.un.org/cod/icc/rome/proceedings/contents.htm>. Acesso em: 25 jan. 2013.
  • 6
    .Ver: International Committee of the red cross - ICRC (disponível em: <http://www.cicr.org>. Acesso em: 25 ago. 2014); Société Henry Dunant (disponível em: <http://www.shd.ch>. Acesso em: 25 ago. 2014); Association Henry Dunant + Gustave Moynier 1910-2010 (disponível em: <http://www.dunant-moynier.org/Texts.aspx?p>. Acesso em: 25 ago. 2014).
  • 7
    .Convenções de Genebra - CICV. Disponível em: <http://www.icrc.org/ por/war-and-law/treaties-customary-law/geneva-conventions/index.jsp>. Acesso em: 10 mar. 2013.
  • 8
    .Ainda que alguns objetivos não tenham sido alcançados, como o de dar independência ao TPI em relação ao Conselho das Nações Unidas, a causa movimentou ativistas de direitos humanos.
  • 9
    .Para mais detalhes sobre os grupos presentes e sobre características e ações dos grupos da sociedade civil global que atuaram na aprovação do Estatuto de Roma, cf. Glasius (2002, p. 140-144).
  • 10
    .Alguns exemplos dados por Chatfield (1997) são a criação da Associação Cristã de Moços (ACM) e a do Comitê Internacional da Cruz Vermelha, ambas em 1863.
  • *
    Artigo recebidoem10 de abril de 2013 e aprovado para publicação em24 de setembro de 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2015

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2013
  • Aceito
    2014
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