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Oferta de projetos sociais e a ação das crianças: A construção de uma experiência de infância público-alvo

The offer of social projects and children's actions: Childhood experience and the construction of a “target population”

Resumo:

Este artigo propõe-se a refletir sobre as relações envolvidas na oferta de projetos sociais e na participação dos sujeitos para os quais são destinados. O ponto de partida do texto é analisar como se “constroem” os públicos destes projetos, questão que emergiu durante uma pesquisa de doutorado cuja atenção voltou-se para compreender como o público-alvo se relaciona com a oferta destas programações. O estudo foi desenvolvido através de uma pesquisa etnográfica numa vila popular de Porto Alegre. Assumiu-se que os sentidos dos projetos sociais resultam das relações que os envolvem situacionalmente e que os significados destes são construídos também pelas experiências das populações atendidas em suas programações. O artigo defende que, muito antes de uma equação envolvendo mera oferta e demanda, a construção dos públicos destas programações é uma relação. Para viabilizar esta análise, descreve-se procedimentos institucionais para “recrutar” públicos e também condutas do público-alvo diante destas programações.

Palavras-chaves:
Infância; Projetos sociais; Participação; Etnografia

Abstract:

This article seeks to reflect on the relations involved in the offer of social projects and the participation of subjects to whom they are destined. Our text begins with the analysis of the way the public of these projects is “constructed”, an issue that emerged during our doctoral research, focused on the understanding of ways in which the “target population” relates to these programs. The study was developed through ethnographic research in a working-class neighborhood in Porto Alegre. We suppose that the meanings that emerge from these social projects result from situational relations involving the experiences of the population attended by the programs. This article defends that, rather than a simple equation involving offer and demand, the construction of the target-group for these programs is the consequence of a relation. In pursuing this argument, we examine the institutional procedures to “recruit” the public, as well as the behavior of the “target public” facing these programs.

Keywords:
Childhood; Social projects; Participation; Ethnography

Como se “constroem” os públicos dos projetos sociais ofertados para crianças e adolescentes das periferias urbanas brasileiras? Muitas análises vêm dedicando-se a descortinar as concepções subjacentes às práticas destes projetos ou mesmo a denunciar os modelos de estado e de políticas públicas nos quais tais ações estariam imbricadas.

Situando-me numa perspectiva analítica alternativa, em minha tese de doutorado a atenção se voltou para compreender como as famílias e crianças, o chamado público-alvo, se relacionam com esta oferta crescente de projetos sociais. O estudo foi desenvolvido através de uma pesquisa etnográfica com moradores da Vila Fátima, na zona leste de Porto Alegre.1 1 Seu nome oficial é Vila Nossa Senhora de Fátima e integra o bairro Bom Jesus. Os dados desta pesquisa referem-se a um território de menos de 1 km² onde estimava-se residirem quase 30 mil pessoas, no período da pesquisa conforme dados da Prefeitura Municipal (Thomassim, 2010). Trata-se de um universo empírico cujo cotidiano é marcado por um volume considerável de ofertas – por parte de instituições sociais diversas – de programações esportivas, culturais e educacionais, invariavelmente voltadas às crianças e aos adolescentes.2 2 A expressão “crianças e adolescentes” foi incorporada em muitos momentos da minha tese, como referência genérica à população pesquisada. Neste texto passo a utilizar apenas “crianças” para referir-me aos meus interlocutores da pesquisa por entender que não implicará prejuízo e favorecerá a fluidez da leitura (ver Thomassim, 2010).

Adotando uma perspectiva relacional, meu ponto de partida teórico foi de que os sentidos que os projetos sociais assumem resultam das relações que os envolvem situacionalmente. Nesta abordagem, seus significados são construídos também pelas experiências das populações atendidas em suas programações. Meu objeto de estudo, assim, voltou-se tanto às interações estabelecidas entre público-alvo e os agentes das instituições, como também ao cotidiano das relações familiares, de vizinhança e de grupos de pares de crianças.

A questão específica sobre como se dá a conformação do “público” das programações só pôde ser tomada para uma reflexão específica em momentos avançados da pesquisa, ao deparar-me com uma variedade de práticas que concorriam para esta finalidade ou que interferiam em seu resultado. Entre estas, incluem-se desde as práticas institucionais de definição, acesso e recrutamento de seus públicos, até as mobilizações de pares resultantes de relações de amizade, passando por agenciamentos familiares e projetos pessoais.

Neste artigo, meu objetivo será mostrar que, muito antes de uma equação envolvendo ofertas (por parte de sujeitos ativos) e demandas (originadas de uma população passiva), a construção e conformação dos públicos destas programações é uma relação. Relação esta permeada tanto pelos limites das categorias que usamos para definir grupos sociais, como por concorrências pelo reconhecimento como parte do grupo atendido, ou ainda pela recusa ou desfeito a pertencê-lo.

Para viabilizar esta análise, dedico uma parte do texto para descrever procedimentos de instituições para “recrutar” seus públicos e, em sequência, coloco em cena condutas e discursos do público-alvo quando aderem, circulam ou escapam das programações a eles oferecidas. Por fim, proponho ainda pensarmos que essa dinâmica entre ofertas de programações e formas locais de interação pode ser analisada em efeitos que são relativamente autônomos aos eventuais resultados de cada projeto social isoladamente. Analisadas como dados de um contexto local coberto por uma constelação de discursos e práticas vinculadas aos projetos sociais, o próprio contexto dá os contornos de uma experiência social específica: a experiência de uma infância público-alvo, sugerida pela iminência com que as crianças que ali vivem são assim tomadas pelas programações e suas instituições sociais.

Entre o foco nos vulneráveis e o recrutamento do público-alvo

Para muitas instituições, conceber e executar projetos em comunidades implica viver constantemente em uma dinâmica busca de recursos através de editais, desafios com pagamentos e manutenção de equipes, além do acesso e permanência de seu público. A pesquisa mapeou 24 projetos em funcionamento simultâneo no território da Vila Fátima, divididos entre programas de atendimento diário e de atendimento semanal, destinados a crianças em idade escolar e, entre estas, aquelas em situação de vulnerabilidade social.3 3 Numa primeira análise do universo estudado poderia se sugerir que crianças consideradas vulneráveis estariam supostamente contempladas por mais atividades do que a maioria, consideradas “apenas pobres”. Veremos, adiante neste texto, que os públicos tensionam tais categorias no cotidiano das instituições. Ver Fonseca e Cardarello (2009) para uma análise da produção de “frentes discursivas” que acabariam sugerindo sujeitos portadores de mais direitos humanos do que outros também em desvantagem social.

A literatura sobre políticas para infância contempla análises que constatam e criticam as recomendações do Banco Mundial, no que se refere à abordagem focalizada das políticas sociais (Rosemberg, 2002ROSEMBERG, Fulvia. Organizações multilaterais, estado e políticas de educação infantil. Cadernos de Pesquisa, São Paulo, n. 115, p. 25-63, mar. 2002.). Por sua vez, à época desta pesquisa ainda era pouco frequente que as análises focassem a forma como os agentes de instituições sociais lidam com metas sustentadas em conceitos ou categorias ambíguas.4 4 O trabalho de Fonseca e Cardarello (2009) mostra práticas e repercussões desta situação na Fundação Estadual do Bem-estar do Menor no Rio Grande do Sul.

Estes agentes, tendo sua população a ser atendida nominada de “crianças em situação de vulnerabilidade social”, durante a fase de implantação de suas ações precisavam lidar com um desafio prático: como atingir as crianças vulneráveis com suas programações? Buscando identificar quais sentidos eram acordados ou quais soluções encontradas nestes momentos de identificação de sua população-alvo, registrei três diferentes procedimentos institucionais, os quais ilustrarei brevemente a seguir.

“Todos são público-alvo”

“Tem que cuidar com as palavras: hoje não se fala mais pobres. É estigmatizante. Se diz em situação de vulnerabilidade social”. Ouvi da coordenadora de uma instituição social após ela ler o título de meu projeto de pesquisa.5 5 Meu projeto de pesquisa tinha, então, o título: “A participação de crianças pobres em projetos sociais de esporte, cultura e lazer”. Aspectos metodológicos envolvidos nesta experiência foram abordados no capítulo sobre a metodologia (ver Thomassim, 2010). Tal compreensão revela um dos procedimentos adotados por certos agentes para solucionar este desafio: “vulneráveis” não seriam um grupo entre uma população, mas a nova designação de uma população antes designada de outras formas. Neste sentido, “atingir” uma população de vulneráveis não envolveria necessariamente um processo específico de aferição das condições ou trajetória de vida das pessoas atendidas, senão que pertençam ao universo da vila. “Na prática, todos são vulneráveis”, me diz uma educadora referindo-se às crianças da vila, sugerindo que “ali” todas elas experimentam algum drama familiar, proximidade com violências, etc.

Neste procedimento, a rigor, qualquer criança poderia ser incluída nas programações, se atendidos critérios de idade, basicamente. No limite, as vagas disponíveis são ocupadas por ordem de chegada – e a “chegada”, entretanto, está relacionada aos demais procedimentos que serão descritos. O que se percebe, assim, é que entender todos da vila como vulneráveis, flexibilizando o “foco”, não impedirá que se imponham outros filtros, nem resultará numa ruptura com a perspectiva focalizante das políticas

A parceria para chegar ao público-alvo

Uma segunda prática institucional é a tentativa de atingir este público através da mediação de outros atores sociais, mais presentes no cotidiano da população local e que, por isso, conseguiriam identificar e encaminhar os casos dentro dos critérios. Como poucos projetos estabelecem, em seu início, formas de contato direto com as crianças e com suas famílias para divulgar suas ações, muitos realizam parcerias circunstanciais em função da divulgação de vagas, da seleção e da inscrição de crianças e adolescentes. Os projetos mais distantes das redes de relações locais ficam mais dependentes destas parecerias. As escolas e as instituições sociais já estabelecidas no bairro ou com mais tradição entre os moradores, são os espaços formais mais recorridos para propiciar o acesso das crianças as informações e vagas das novas programações.

Virgínia, de 10 anos nos, explica que foi diversas vezes pedir uma vaga no projeto de ensino de tênis (desenvolvido nas instalações de uma universidade) para a professora de sua escola responsável pela indicação de alunos. A professora, por sua vez, informa que realiza geralmente um sorteio entre os interessados. Já os realizadores do projeto informaram que o critério a ser levado em conta pela escola seria “o comportamento” da criança em sala, sendo que haveria vagas reservadas tanto para crianças “bem comportadas” e para aquelas com “comportamento problemático”.

De qualquer forma, o acesso dos projetos ao público-alvo de sua ação sempre carece de uma mediação e esta, por sua vez, é determinante na ocupação das vagas. Em alguns casos, a afinidade ou o interesse da criança com a atividade é o critério utilizado por alguns desses mediadores para assegurar uma vaga à criança.

Notadamente, a parceria institucionalizada de outro agente equaciona a tensão entre a oferta e a demanda antes da chegada ao projeto. Mas isso não ocorre necessariamente pela aplicação objetiva de critérios preestabelecidos, mas também negociando motivações, merecimentos e outros critérios formalizados ou não.

Tornando o público-alvo alvejável

Um terceiro procedimento registrado refere-se à tentativa de identificação do público-alvo mobilizando recursos humanos e conceituais para reconhecer e hierarquizar as condições e trajetórias sociais e familiares das crianças, recortando-as de um universo populacional maior de crianças pobres. Para que as “crianças vulneráveis” tornem-se alcançáveis – enquanto casos – é necessário que os agentes destas instituições se familiarizem e operem com categorias de enquadramentos técnicos e legais das situações, que são compartilhadas por uma rede cada vez mais institucionalizada e especializada de gestão da infância (Schuch, 2009SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto do pós-Eca. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2009.).

Essa operação é mais materializável quando os agentes das instituições sociais possuem acesso ao cotidiano das famílias moradoras da vila. Para uma instituição assistencial com 15 anos de atuação na vila, os critérios de vulnerabilidade são indicados por situações como “famílias com grande número de filhos, mães solteiras, adolescentes ou com HIV+, pais desempregados”, “de acordo com a avaliação do profissional responsável” (conforme documentos institucionais, datados de 2008).

Mas a identificação de “casos” não torna menor o desafio de acertar o foco dos programas. Quando a demanda é maior que a oferta, por exemplo, como é frequente, os funcionários responsáveis pela seleção de novos ingressos viam-se obrigados a ordenar prioridades de atendimento e de distribuição de vagas. Nos relatos que obtive desses profissionais, muitos se questionavam quanto a este procedimento dizendo que uma família precisava acumular desgraças para ter seu filho atendido nos programas. Alguns diziam sentir-se como se estivessem sugerindo “àquela mãe que expusesse seu filho ou filha a alguma outra situação de violação de direitos”, já que apenas a ausência de trabalho e renda era insuficiente para que tivessem a vaga. Nestas situações, é possível identificar que apesar da utilização de critérios mais refinados do que apenas a pobreza como indicador de vulnerabilidade, as demandas destes apenas pobres geravam tensões cotidianas na operacionalização dos programas.

Outra situação pode ilustrar que, para que os programas acertem seu “foco”, o que está em jogo não é tanto a precisão de critérios a respeito do que seja uma “situação de vulnerabilidade social”, mas a resposta do público a este enquadramento.

Os casos caracterizados “tipicamente” de vulneráveis seguidamente são referidos como aqueles com maiores problemas de adesão às programações. A infrequência pode indicar não reciprocidade da família ou mesmo da criança para com as expectativas da instituição que desenvolve o atendimento. É comum em algumas instituições que as médias de frequência de muitos casos fiquem abaixo de 50% durante diversos meses do ano.6 6 Estes dados foram obtidos consultando os registros de presenças das crianças participantes da pesquisa em alguns projetos, associados aos relatos de instituições sobre os problemas de assiduidade de crianças. Um abandono ou afastamento definitivo da criança do projeto, no entanto, para a maioria das instituições não é consumado antes de seis meses, tempo para novos esforços junto à criança e sua família. Essa conduta é justificada exatamente por se tratarem de casos “complexos” e é relatada como uma das situações que demanda mais envolvimento dos agentes.

É justamente este tipo de esforço para localizar e manter os sujeitos atendidos que permite perceber que o tal público-alvo não é estático, mas dinâmico. E, se bem observado, o que está em jogo nestas estratégias institucionais nem sempre é o acesso das crianças aos projetos, mas o acesso dos projetos ao seu público-alvo. Por isso, os três procedimentos descritos falam menos da realidade das crianças e mais das premissas em vigor na formulação de certas políticas sociais.

Diferente do que é comum ser interpretado, estas práticas não são indícios de “problemas de gestão” na execução dos projetos, mas sim de um paradoxo na lógica sobre a qual são fundados. Quando nominadas em termos genéricos, as tais crianças vulneráveis são inalcançáveis como grupo particular de crianças entre os pobres. Mas, mesmo quando definidas por quaisquer critérios que se possa utilizar, torna-se impraticável aos projetos manterem-se focados “nos mais” vulneráveis. A compreensão deste quadro exige reconhecer que, na sociedade brasileira, a desigualdade socioeconômica exerce ainda tensões decisivas no acesso às políticas (cf. Fonseca et al. 2009FONSECA, Cláudia; ALLEBRANDT, Débora; AHLERT, Martina. Pensando políticas para uma realidade que não deveria existir: “egressos” do sistema de abrigos. In: FONSECA, Claudia; SCHUCH, Patrice (Orgs.). Políticas de proteção à infância: um olhar antropológico. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2009, p. 41-63.).

Entretanto, para os objetivos deste trabalho e pelo espaço disponível, acentuo para análise o fato de que os esforços institucionais no sentido de nominar, delimitar e identificar pessoas de um determinando grupo social não garante a sua captura pelas ações sociais projetadas.7 7 Não desconsidero que, noutra perspectiva teórica, as situações descritas possam ser analisadas como práticas de governamento e de gestão da infância. Patrice Schuch formula o sentido desta noção, com base em Foucault e Rabinow, nos seguintes termos: “uma rede composta por elementos heterogêneos, que funcionam para definir e regular domínios e que têm, portanto, uma natureza fundamentalmente estratégica para a administração e o exercício de poder” (Schuch, 2009, p. 12). Conforme os dados da pesquisa, o público participante dos projetos resulta não tanto das denominações e critérios nominados idealmente pelas políticas. Os “participantes” chegam aos projetos por caminhos paralelos às estratégias institucionais e acabam sendo assumidos por estes como seu público-alvo (Thomassim, 2010THOMASSIM, Luís Eduardo Cunha. O público-alvo nos bastidores da política: um estudo sobre o cotidiano de crianças e adolescentes que participam de projetos sociais esportivos. 296 f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Programa de Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.).8 8 Em minha tese, procuro diferenciar as formas de acesso das crianças e famílias e as estratégias das instituições para alcançar seus públicos. As formas pelas quais as crianças têm acesso não correspondem necessariamente às estratégias institucionais. Para uma análise destes aspectos, dedico as próximas páginas do texto a explorar esta outra faceta da realidade pesquisada: as interações estabelecidas pelas crianças com o universo de projetos sociais ofertados a elas.

O público-alvo em ação

Um dos lugares simbólicos da Vila Fátima no imaginário da cidade, segundo análise que proponho, é de um território que expressa, a exemplo de outras localidades urbanas, o “problema social da criança”. Esse reconhecimento público se traduz num cenário local de multiplicação de ações sociais, materializando em seu território esta busca de diferentes atores pelo público-alvo e as inúmeras ambiguidades envolvidas nesta prioridade à criança (Fonseca e Cardarello, 2009FONSECA, Claudia; CARDARELLO, Andréa. Os direitos dos mais e menos humanos. In: FONSECA, Claudia; SCHUCH, Patrice (Orgs). Políticas de proteção à infância: um olhar antropológico. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2009, p. 219-251.).

As crianças estão envolvidas com diferentes papéis e em certas circunstâncias relacionadas a dinâmica dos projetos sociais na Vila Fátima. Neste tópico priorizo uma perspectiva que enfoca as relações sociais entre as crianças como objeto de estudo, levando em conta, inclusive, sua repercussão no âmbito das políticas dirigidas a infância. Esta abordagem tem sido bastante estimulada pela proposição de que “as crianças não são simplesmente sujeitos passivos frente às estruturas e processos sociais” (Prout e James, 1990PROUT, Alan; JAMES, Allison. A new paradigm for the sociology of childhood? Provenance, promis e and problems. In: JAMES, Allison; PROUT, Al (Orgs.). Constructing and reconstructing childhood. London: The Falmer, 1990. p. 7-34., p. 8). Uma preocupação, entretanto, mesmo entre os autores que postularam a capacidade de agência das crianças diante das relações sociais tem sido a simplificação das análises. O desafio que se coloca nesta análise diz respeito ao peso que seria adequado atribuir a estas práticas.

Diante disso, Alan Prout (2005)PROUT, Alan. The future of childhood. London, New York: Routledge Falmer, 2005. defende a necessidade de indicar como esta agência se dá, ao invés de reduzir-se ao seu pressuposto e à sua constatação. Neste sentido, utilizo-me das recomendações oferecidas por Pires, no sentido de que “a agência não deve ser levada ao extremo, como também não deve deixar de ser contemplada”, ou seja, é preciso “averiguar até que ponto ela está presente” (Pires, 2007PIRES, Flávia. Ser adulta e pesquisar crianças: explorando possibilidades metodológicas na pesquisa antropológica. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 50, n. 1, p. 225-270, jan.-jun. 2007., p. 32). A partir do contato com o cotidiano das crianças, proponho então o estranhamento de situações as quais foram tomadas como emblemáticas para refinar a abordagem que pretendi dar às relações em foco. A ideia é colocar em debate as margens de manobra que permitem às crianças atuarem com relativa autonomia inserindo-se nas relações sociais das quais são participantes ativas (Cohn, 2005COHN, Clarice. Antropologia da criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.).

Usufruindo da agenda semanal de programações

Fazer-se constar simultaneamente na lista de diversos projetos, para Miro, era uma decorrência de sua peregrinação por programações que lhe despertavam interesses. Entre seus doze e treze anos de idade, assim como outros meninos e meninas do bairro, Miro administrava uma agenda semanal de participações em vários projetos sociais. Frequentava uma instituição socioassistencial de atendimento diário próximo a sua casa, um projeto social com programação vinculada ao esporte em uma universidade no bairro vizinho, a oficina de futebol de uma programação de contraturno na sua escola, além de frequentar atividades do Projeto Escola Aberta, nas tardes de sábados e domingos. O ano de 2008 ainda não estava encerrado: passou a frequentar os treinos da escolinha de futebol do São José, um clube tradicional da cidade, nas manhãs de terças e quintas-feiras; começou a trabalhar como ajudante numa estofaria, nas segundas, quartas e sextas-feiras pela manhã; ingressou numa oficina de comunicação comunitária no horário noturno, como parte da programação do projeto de escola de turno integral.

Para muitos agentes sociais o cotidiano das crianças – a casa, a rua, a vizinhança – é sempre tomado como polo negativo ou vulnerável de sua socialização, enquanto as relações encontradas nos projetos seriam um contraponto, onde experimentariam valores e relações positivas. No entanto, o caso narrado brevemente chamava mais atenção pela mobilização do próprio Miro – no sentido de experimentar as atividades dos projetos sociais –, do que por uma realidade em risco, premente de ajuda externa para ser subtraído de um círculo de relações problemáticas. Tais experiências tornaram-se parte do seu cotidiano, e não parênteses em relação a este. Ou seja, no contexto pesquisado, os projetos sociais nem sempre são novidades que irrompem a realidade das crianças e das famílias, mas espaços mais ou menos acessíveis que atravessam o campo de possibilidades de suas experiências cotidianas.

Rejeitar-se como público-alvo

As interações do público-alvo com as instituições e seu impacto nas programações se fazem presentes em inúmeras situações banais, que escapam da excepcionalidade e nas quais se percebe um espaço de análise em aberto. Ao acompanhar experiências sucessivas de implantação de novos projetos, passei a valorizar um conjunto de situações que se colocavam de forma regular. Trata-se das dificuldades em realizar as ações planejadas, gerando queixas entre os agentes dos projetos, adaptações e até cancelamentos de programações. Na maioria das vezes, as crianças tinham participação nestas situações frustrantes, mas raramente isso adquiria algum significado maior para adultos envolvidos.

Seguindo a inspiração dos estudos sociais com crianças, busquei hipóteses que contemplassem também – além das causas alheias às crianças – as lógicas operadas por elas e que poderiam produzir efeitos nas políticas. Dentinho, por exemplo, de 10 anos, sempre encontrado por mim em pequenas calçadas da vila, justificava-se ao amigo dizendo que preferia soltar pipa a “ficar em atividades”, referindo-se ao seu desinteresse na programação oferecida no contraturno escolar.

Da mesma forma, analisando respostas de um questionário aplicado nas escolas a respeito da relação entre os deslocamentos e as brincadeiras das crianças, encontrei dados indicando que abaixo de dez anos, a maioria das crianças declara preferência por brincar ou se divertir em lugares muito pequenos e próximos de casa (pátios, calçadas ou becos). Enquanto isso, crianças maiores demonstravam maior interesse na circulação, mas geralmente citam espaços de maior prestígio, como praças fora do bairro ou escolinhas e clubes.

Florestan Fernandes, na década de 40, em trabalho sobre o que chamava de folclore infantil, publicou centenas de páginas registrando brincadeiras de crianças em bairros populares paulistas (Fernandes, 2004FERNANDES, Florestan. Folclore e mudança social na cidade de São Paulo. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004.). Seja naquela época e contexto, seja em uma variedade de cenários de bairros populares brasileiros, as “brincadeiras de rua” marcam boa parte das infâncias de crianças pobres. Apesar de dividir espaço com os videogames, no contexto da pesquisa etnográfica na Vila Fátima, tais brincadeiras parecem estar ainda tão vivas como foram para outras gerações. Mas parece ser também na Vila Fátima da última década que algumas crianças, ao escolherem estar brincando na rua, podem estar escolhendo não participar de outra programação próxima a sua casa, ofertada por alguma instituição social.

Participar sem frequentar

Se a participação num projeto não é a rotina de todos, a convivência com essas ações sociais compõe um cenário familiar para muitos. Na aplicação de um levantamento sucinto, entre estudantes de ensino fundamental de escolas do bairro, notamos que o número de respostas que indicavam participação em alguns projetos era superior ao número de vagas realmente existentes nos projetos referidos. Essa “inconsistência” dos dados acabou gerando a seguinte questão para a pesquisa: O que as crianças estão “dizendo” quando informavam uma participação inexistente?

O projeto Show de Bola, por exemplo, aparecia com um reconhecimento público cujo alcance era muito superior do que o número de participantes. Investindo em pequenas entrevistas coletivas com as crianças e nos momentos mais informais propiciados pela etnografia, era possível facilmente identificar duas explicações básicas. O grande número de citações que o projeto Show de Bola recebera dos estudantes no pequeno questionário indicava, para alguns destes, uma forma de manifestar o interesse em frequentá-lo. Em outros casos, tratava-se de crianças que haviam frequentado as atividades dos projetos em anos anteriores, o que lhes rendia legitimidade para tal resposta.

Entre tantos fatores que motivam a visibilidade deste projeto, podemos apontar o uniforme que os meninos seguidamente exibem no bairro e um ônibus com o nome do projeto estilizado em suas laterais que circula diariamente, duas vezes por turno, para buscar e levar as crianças para as atividades desenvolvidas em instalações fora do bairro, em uma universidade. Tais instalações seriam, inclusive, fator que repercutia no interesse das crianças.

Para um conjunto de outras crianças, assim, o que parecia estar em jogo seria experimentar algum prestígio advindo desta participação, mesmo que imaginariamente. Algumas falas das crianças que estão “fora” recorriam até a incluí-las em atividades nunca frequentadas pelas mesmas. Era o caso de Gustavo, de 12 anos, quando conversávamos do lado de fora do portão da escola, com outras crianças. Vanessa listava as oficinas de meio ambiente, esportes e artes, que frequentava pelo programa “Cidade Escola”. Israel estava fazendo tempo em frente à escola, mas seu destino eram as atividades do atendimento socioeducativo. Gustavo, por sua vez, estava apenas aguardando o início de sua aula. Mas em meio à conversa, e frente ao estímulo para que tivessem algo a contar-nos, dizia que: “eu fui o primeiro a ir no Show de Bola”, do qual teria saído para não ficar “longe de casa”. Gustavo também informava frequentar os projetos “do professor Sérgio” e o Escola Aberta.

As informações de Gustavo não eram verdadeiras, pois como eu sabia sua mãe o preferia por perto, ainda que na rua. Entretanto, entre as outras crianças, obrigou-se a incluir-se em atividades que não frequentara de fato, mas das quais tinha informações básicas a ponto de ninguém questioná-lo.

Explorando a análise de situações como esta foi possível entender que, mais do que conhecer nomes, locais e atividades dos projetos, as crianças que não frequentam as programações podem saber detalhes sobre as regras de comportamento e a moralidade dos projetos e até as penalidades aplicadas aos que comentem atos de indisciplina. Através das relações entre pares, no bairro e na escola, e de redes de parentesco, também as expectativas que os projetos expressam sobre as crianças e seus comportamentos tornam-se conhecidas daquelas que nunca os frequentaram.

Os projetos ganham existência no imaginário das crianças, onde os que participam buscam usufruir de prestígio e os que estão fora fazem planos sobre quais programações irão frequentar. Tais planos podem até remeter-se a programações não existentes de fato, ou muito distantes – “minha mãe vai me colocar no projeto do Ronaldinho” – mas se expressam estimuladas pelo clima de conversas sobre onde realizar atividades além da escola, da rua e da casa.

Isto permite às crianças, ao buscarem vaga em programações, tentarem adequar-se ao “perfil” que, segundo sua interpretação, os projetos valorizam. Mas, acima de tudo, permite que as crianças dominem e façam uso dos discursos mais ouvidos nos projetos: “é bom pra gente não ficar na rua”, “agente tem que valorizar as oportunidades”, “e é de graça”, “pra ter um futuro melhor”. Com estas falas, as crianças ocupam os lugares destinados à elas pelos discursos públicos adultos.

Encontramos crianças que desejam e que não desejam integrar os projetos, mas é possível que ambas possam reproduzir e produzir representações sobre estes nas relações e espaços que frequentam. Os projetos são, assim, conhecidos de um número muito maior de crianças do que aqueles que os frequentam.

Um caminho certamente fértil para a análise seria destacar como as crianças manifestam o que Fraga chamou de “bom-mocismo”, após deparar-se com “sujeitos [que] já se encontravam capturados pela moral da obediência” (Fraga, 2000FRAGA, Alex Branco. Corpo, identidade e bom-mocismo: cotidiano de uma adolescência bem-comportada. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., p. 111). O autor empreende uma análise dos elementos envolvidos na constituição de “bons moços” e de “boas moças”, cujos comportamentos pareceram relacionados “ao discurso obediente que opera a ligação entre o modo de vida dos alunos e as premissas básicas da escola, da família e da Igreja; [ou ainda,] à uma narrativa que funde à voz dos(as) alunos(as) à voz normalizadora dessas instituições” (Fraga, 2000FRAGA, Alex Branco. Corpo, identidade e bom-mocismo: cotidiano de uma adolescência bem-comportada. Belo Horizonte: Autêntica, 2000., p. 112).

Mas no universo desta pesquisa pode ser interessante relativizar essa abordagem. Os dados da observação etnográfica das crianças em variados espaços do cotidiano nos permitem acionar outras referências. Penso que, no contexto em que as crianças experimentam suas interações, pode ser útil remeter aos estudos de Delma Pessanha Neves, com avós que sustentam seus netos através da mendicância e de benefícios assistenciais. Ao invés de capturadas pela moral das instituições, a autora situa as condutas destas como operadas a partir de um

saber cotidianamente construído para a administração de novos modos de inserção social. Tendo internalizado as regras da dominação pessoal, têm desenvolvido uma sabedoria no sentido de demonstrar a carência e a disponibilidade para a recepção da ajuda, de tal forma verbalizada que impõem a tomada de posição do interlocutor (Neves, 2006NEVES, Delma Pessanha. As idosas provedoras e o enraizamento familiar. In: BRITES, Jurema; FONSECA, Claudia (Orgs.). Etnografias da participação. Santa Cruz: Edunisc, 2006, p. 359-379., p. 374).

Quero chamar atenção para a ideia de que o envolvimento das crianças com os projetos sociais está permeado de práticas e circunstâncias que constroem e negociam os sentidos destas experiências. Essa posição se confronta com leituras que consideram que o conteúdo destas experiências é determinado pelos sentidos enunciados pelos gestores e dirigentes das políticas para infância.

Para o aprofundamento de algumas reflexões, proponho enfatizar análises sobre o significado destas práticas em dois tipos de resultados distintos. Um deles diz respeito a formas de participação das crianças no âmbito das políticas e programações a elas destinadas. O outro tema sobre o qual mobilizo os resultados deste trabalho diz respeito à particularidade da experiência de infância vivida em contextos como o estudado.

Das formas de participação à participação itinerante em projetos sociais

As crianças vivem diante um repertório de possibilidades de envolvimento com as programações fora do turno escolar, cujos sentidos estão em produção no cotidiano. Busquei tipificar quatro formas de interação decorrentes de diferentes experiências vividas, enfatizando particularidades de sentidos que elas remetem. Identifiquei estas formas de participar como “participações compulsórias”, “participações como interesse pela atividade”, “participações como convívio” e “participações como projeto ou investimento” (Thomassim, 2010THOMASSIM, Luís Eduardo Cunha. O público-alvo nos bastidores da política: um estudo sobre o cotidiano de crianças e adolescentes que participam de projetos sociais esportivos. 296 f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Programa de Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.).9 9 É necessário considerar, como indicam alguns dados, que um mesmo sujeito pode viver estas experiências simultaneamente.

Acredito que esta pluralidade de formas e sentidos de interação com as programações pode ser apreendida analiticamente como um padrão mais amplo de interações que proponho nomear de participação itinerante. Essa noção tem o propósito de dar conta de um conjunto de situações cujas explicações estão longe de serem meros casos isolados. A infrequência, o abandono/evasão e a participação simultânea de crianças e adolescentes nas programações sociais, como interpretamos, mantêm relação entre si e com outras dinâmicas. Mesmo sendo conhecidas de muitos gestores e agentes das instituições, em geral estas situações são tratadas apenas no âmbito de problemas de gestão, sempre a partir de um olhar normativo. Tal abordagem tem por pressuposto que tais práticas seriam um não comprometimento do seu público-alvo e, não, como proponho nesta análise, uma relação que resulta da própria interação do grupo social com as políticas que lhe são ofertadas.

Alguns estudos já ofereceram elementos para pensar que a relação das crianças e adolescentes pobres com as instituições sociais estão imbricadas em dinâmicas que extrapolam apenas as razões institucionais (Fonseca, 1995FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.; Gregori, 1997GREGORI, Maria Filomena. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.).10 10 Fonseca (1995) mostra que, para muitas famílias, a busca da Febem para a internação das crianças até que suas condições familiares melhorassem indicava que, sob ótica destas, a instituição seria um tipo de internato dos pobres. Gregori (1997), em estudo sobre meninas e meninos nas ruas de São Paulo, identificou que o próprio apoio institucional disponível a estes acabava por favorecer suas representações quanto à independência que a rua lhes proporcionava. Ambas as análises enfatizam práticas de grupos de usuários que se constroem inter-determinadas com o lugar destas instituições. As autoras também enfatizam a movimentação das crianças e adolescentes – seja através de uma circulação de crianças na rede de parentesco (Fonseca, 1995), seja através da “dinâmica da viração” –, na qual meninos e meninas permanecem presos a um tipo de circularidade de relações de sociabilidades e de espaços institucionais da rua (Gregori, 1997). Estes trabalhos oferecem pistas para sugerir particularidades do contexto em estudo. É neste atual cenário das políticas para infância que as crianças aprendem a mediar seus interesses com as expectativas que as instituições possuem delas, fazendo suas autoimagens corresponderem às imagens construídas por outros atores. Em termos de relações de poder podemos arriscar interpretar certas condutas do público-alvo a partir do que James Scott chama de formas cotidianas de resistência, ou seja, “as armas comuns de grupos relativamente sem poder” (Scott, 2002SCOTT, James C. Formas cotidianas de resistência camponesa. Raízes – Revista de Ciências Sociais e Econômicas, Campina Grande, v. 21, n. 1, p. 10-31, jan.-jun. 2002., p. 12).

Nessa relação, as iniciativas sociais ofertadas às crianças e adolescentes deste bairro, retroalimentam formas de participação social de seu público-alvo, não apenas diretamente nas atividades, mas também em suas repercussões simbólicas no cotidiano. Mas esta análise só torna-se consistente se nosso objeto de estudo de estudo ultrapassa o limite do espaço de relações interior a cada projeto particular. É no contexto do bairro e das relações cotidianas que as crianças podem produzir mais ou menos coletivamente a mediação das experiências que vivem nas programações.

Assim, a itinerância das crianças seria a expressão de múltiplos fatores: desde a oferta fragmentada de ações sociais; as relações familiares dos grupos populares e suas experiências de interação com as instituições sociais; o cotidiano de crianças no bairro, sendo a casa e a rua espaços cuja demarcação de limites não é rígida nem fixa, em muitos sentidos, favorecendo a interação dos pares de crianças, mas sem que isso ocorra em oposição às interações intergeracionais.11 11 Tal prática precisa ser entendida no seio de uma experiência de vizinhança marcada pela intensidade de interações sociais, associada à própria “interdependência funcional” das moradias (ver Fonseca, 2000).

Da participação em projetos às experiências de uma infância público-alvo

Um conjunto de movimentos que envolveram acordos internacionais e a fundação de organismos especializados e reformas legais concorreram para a expansão de certa ideia de infância, carregada de positividades a serem preservada dos problemas da vida adulta e das injustiças. Diversas abordagens sobre o tema chamam atenção para o desencontro entre essa representação universal e as condições de vida de muitos grupos de crianças em todo o mundo. A partir desta constatação, enquanto alguns estudos centram as análises na distância entre um ideal de infância e a vida concreta das crianças, outros autores têm preferido colocar em debate a própria representação de uma infância universal.

Segundo Fonseca e Schuch (2009SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto do pós-Eca. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2009., p. 14), no contexto brasileiro, “a permanência de clivagens profundas em termos étnicos, raciais, de gênero e de classe, associadas ao fraco poder de sedução do estado em relação às políticas de normalização, tornou difícil a penetração de uma noção de ‘infância universal' para além da norma jurídica”. Nesse sentido, permaneceriam coexistentes na realidade brasileira, diversas representações de infância, traduzidas de experiências particulares de condições sociais que crianças e jovens vivenciam quando pertencentes a determinados grupos sociais. Fonseca e Schuch citam como exemplo, entre outros, o estudo de Hecht (1998)HECHT, Tobias. At home in the street: street children of Northeast Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1998., no nordeste brasileiro, em que distingue a infância de classe média e dos grupos populares como uma infância nutrida e outra provedora, respectivamente. Poderíamos referir também o estudo de Martins (1993)MARTINS, José de S. (Org.). O massacre dos inocentes: a crianças sem infância no Brasil. São Paulo: Hucitec, 1993. entre crianças migrantes nos meios rurais, no qual a infância se qualifica pelo que vem depois, referindo-se a herança da terra. Neste caso, segundo Martins, se trataria de uma infância como preparação para o futuro, e este futuro, por sua vez, se localizava no novo espaço para onde a família migrou.

É nesta mesma perspectiva que propomos pensar na particularidade de uma experiência de infância definida pela condição de ser público-alvo de certas políticas. Poderia ser ainda temerário estranhar esta experiência em sua particularidade, dada a generalização com que programações fora do turno escolar vêm atingindo crianças no Brasil inteiro. Mas é importante reter a imagem de um contexto que a oferta pulverizada de programações para crianças ganha alta visibilidade sem, ao mesmo tempo, universalizar-se como alternativa para a maioria.

Neste sentido, embora a participação em projetos sociais seja um fenômeno específico, até com reduzido alcance, produzem-se sobre ele discursos variados e mobilizam-se em torno dele atores também variados. Enquanto as instituições veem-se diante de metas de atendimento a atingir, precisando viabilizar estratégias de recrutamento do seu público, as relações familiares e as relações entre pares repercutem a oferta de projetos para além das estratégias institucionais. A consequência poderia até ser mencionada apenas pela lista de espera por mais vagas em alguns projetos. Mas é a presença simbólica dos projetos no contexto da vila, que acontece em paralelo a sua materialização em atividades e que envolve mais do que os sujeitos que delas participam, que define os elementos de uma experiência particular de infância.

Essa experiência de uma infância público-alvo se define pela confluência destes dois fatores. Um correspondente a existência de diferentes práticas institucionais destinadas às crianças pobres e o outro vinculado a práticas e experiências de infância próprias nos grupos populares urbanos. O que resulta desta confluência não é a anulação de um tipo de prática pela outra, mas uma nova configuração de práticas possibilitadas pelas tensões, adesões e reações, estabelecidas no espaço social da vila, onde as relações de sentidos não podem ser presumidas de fora do cotidiano dos sujeitos.

Comparada com infâncias de outras gerações e lugares, essa especificidade consistiria, em primeiro lugar, na ampliação das alternativas de ocupações fora do horário escolar. Com um tempo marcado por outros ritmos além daquele da escola, da família e da casa, as crianças não ficam apenas mais “ocupadas”, elas estabelecem contatos simultâneas com espaços socializadores diversificados. Precisando conhecer regras e expectativas de comportamentos adequados a cada espaço, elas aprendem não apenas a negociar sua própria imagem, mas os próprios códigos morais distintos destes ambientes diversos. Neste sentido, a ideia de uma experiência de infância público-alvo quer indicar, também, a repercussão desta prática mediadora: entre como as crianças são vistas e como elas fazem-se ver para acessar espaços; mas também entre diferentes códigos de conduta (das práticas esportivas, de instituições religiosas, das políticas assistenciais estatais, dos grupos familiares e de pares).

Toda criança pobre moradora do bairro que pesquisamos é, potencialmente, um alvo de uma ação social. Mesmo não havendo vagas para todas as crianças, a oferta de programações variadas é tratada pelas famílias como alternativa para sanar demandas ligadas aos cuidados e ocupação das crianças. Mas a oferta também estimula a busca das famílias e das crianças por oportunidades de aprendizados, pela realização de projetos pessoais ou ainda por experiências novas em meio aos grupos de amizade. Os projetos passam desta forma, a situar-se num horizonte de possibilidades dentre outras formas de viver a infância como uma criança pobre.

Dito de outra forma, ser “uma criança público-alvo” pode render acessos a espaços sobre os quais até será possível atender – e até estender – algumas expectativas do participante. Mas, estando esta oferta de programações presa a um padrão de ações sociais focais e imediatistas, tem se mostrada também distante de assegurar-se ao seu público como um direito associado à cidadania.

  • 1
    Seu nome oficial é Vila Nossa Senhora de Fátima e integra o bairro Bom Jesus. Os dados desta pesquisa referem-se a um território de menos de 1 km² onde estimava-se residirem quase 30 mil pessoas, no período da pesquisa conforme dados da Prefeitura Municipal (Thomassim, 2010THOMASSIM, Luís Eduardo Cunha. O público-alvo nos bastidores da política: um estudo sobre o cotidiano de crianças e adolescentes que participam de projetos sociais esportivos. 296 f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Programa de Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.).
  • 2
    A expressão “crianças e adolescentes” foi incorporada em muitos momentos da minha tese, como referência genérica à população pesquisada. Neste texto passo a utilizar apenas “crianças” para referir-me aos meus interlocutores da pesquisa por entender que não implicará prejuízo e favorecerá a fluidez da leitura (ver Thomassim, 2010THOMASSIM, Luís Eduardo Cunha. O público-alvo nos bastidores da política: um estudo sobre o cotidiano de crianças e adolescentes que participam de projetos sociais esportivos. 296 f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Programa de Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.).
  • 3
    Numa primeira análise do universo estudado poderia se sugerir que crianças consideradas vulneráveis estariam supostamente contempladas por mais atividades do que a maioria, consideradas “apenas pobres”. Veremos, adiante neste texto, que os públicos tensionam tais categorias no cotidiano das instituições. Ver Fonseca e Cardarello (2009)FONSECA, Claudia; CARDARELLO, Andréa. Os direitos dos mais e menos humanos. In: FONSECA, Claudia; SCHUCH, Patrice (Orgs). Políticas de proteção à infância: um olhar antropológico. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2009, p. 219-251. para uma análise da produção de “frentes discursivas” que acabariam sugerindo sujeitos portadores de mais direitos humanos do que outros também em desvantagem social.
  • 4
    O trabalho de Fonseca e Cardarello (2009)FONSECA, Claudia; CARDARELLO, Andréa. Os direitos dos mais e menos humanos. In: FONSECA, Claudia; SCHUCH, Patrice (Orgs). Políticas de proteção à infância: um olhar antropológico. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2009, p. 219-251. mostra práticas e repercussões desta situação na Fundação Estadual do Bem-estar do Menor no Rio Grande do Sul.
  • 5
    Meu projeto de pesquisa tinha, então, o título: “A participação de crianças pobres em projetos sociais de esporte, cultura e lazer”. Aspectos metodológicos envolvidos nesta experiência foram abordados no capítulo sobre a metodologia (ver Thomassim, 2010THOMASSIM, Luís Eduardo Cunha. O público-alvo nos bastidores da política: um estudo sobre o cotidiano de crianças e adolescentes que participam de projetos sociais esportivos. 296 f. Tese (Doutorado em Ciências do Movimento Humano) – Programa de Pós-Graduação em Ciência do Movimento Humano, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2010.).
  • 6
    Estes dados foram obtidos consultando os registros de presenças das crianças participantes da pesquisa em alguns projetos, associados aos relatos de instituições sobre os problemas de assiduidade de crianças.
  • 7
    Não desconsidero que, noutra perspectiva teórica, as situações descritas possam ser analisadas como práticas de governamento e de gestão da infância. Patrice Schuch formula o sentido desta noção, com base em Foucault e Rabinow, nos seguintes termos: “uma rede composta por elementos heterogêneos, que funcionam para definir e regular domínios e que têm, portanto, uma natureza fundamentalmente estratégica para a administração e o exercício de poder” (Schuch, 2009SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça: antropologia dos modos de governo da infância e juventude no contexto do pós-Eca. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2009., p. 12).
  • 8
    Em minha tese, procuro diferenciar as formas de acesso das crianças e famílias e as estratégias das instituições para alcançar seus públicos. As formas pelas quais as crianças têm acesso não correspondem necessariamente às estratégias institucionais.
  • 9
    É necessário considerar, como indicam alguns dados, que um mesmo sujeito pode viver estas experiências simultaneamente.
  • 10
    Fonseca (1995)FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995. mostra que, para muitas famílias, a busca da Febem para a internação das crianças até que suas condições familiares melhorassem indicava que, sob ótica destas, a instituição seria um tipo de internato dos pobres. Gregori (1997)GREGORI, Maria Filomena. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997., em estudo sobre meninas e meninos nas ruas de São Paulo, identificou que o próprio apoio institucional disponível a estes acabava por favorecer suas representações quanto à independência que a rua lhes proporcionava. Ambas as análises enfatizam práticas de grupos de usuários que se constroem inter-determinadas com o lugar destas instituições. As autoras também enfatizam a movimentação das crianças e adolescentes – seja através de uma circulação de crianças na rede de parentesco (Fonseca, 1995FONSECA, Cláudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.), seja através da “dinâmica da viração” –, na qual meninos e meninas permanecem presos a um tipo de circularidade de relações de sociabilidades e de espaços institucionais da rua (Gregori, 1997GREGORI, Maria Filomena. Viração: experiências de meninos nas ruas. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.).
  • 11
    Tal prática precisa ser entendida no seio de uma experiência de vizinhança marcada pela intensidade de interações sociais, associada à própria “interdependência funcional” das moradias (ver Fonseca, 2000FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: etnografia das relações de gênero e violência em grupos populares. Porto Alegre: Editora da Ufrgs, 2000.).

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Jul 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2013

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2013
  • Aceito
    09 Out 2013
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