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"Sob o governo de gorilas": a perseguição aos funcionários homossexuais do Ministério das Relações Exteriores em tempos de AI-5

"Under The Rule of Gorillas": The Persecution of Homosexual Employees of Brazil's Ministry of Foreign Affairs in Times of AI-5

Resumo

Durante a ditadura hetero-militar brasileira, discursos que relacionavam as homossexualidades à subversão justificaram a remoção de pessoas LGBTQIA+ dos espaços públicos. Este artigo trata da repressão de funcionários homossexuais do Ministério das Relações Exteriores (MRE) após a implementação do Ato Institucional n. 5 (AI-5). São analisados documentos referentes aos casos da Comissão de Investigações Sumárias de 1969 (CIS 69) e da Comissão de Anistia vinculada ao MRE de 1986. Os resultados relativizam o corporativismo do MRE, ressaltando a matriz heterossexual da instituição.

Ditadura militar; Homossexualidades; Itamaraty; Repressão

Abstract

During the Brazilian hetero-military dictatorship, discourses that related homosexualities to subversion justified the removal of LGBTQIA+ people from public spaces. This article explores the repression of homosexual employees of the Ministry of Foreign Affairs (MRE) after the implementation of the severe Institutional Act No. 5 (AI-5) [a notorious decree known as the 'coup-within the coup']. Documents relating to the cases of the Commission of Summary Investigations of 1969 (CIS 69) and the Commission of Amnesty linked to the Ministry of Foreign Affairs of 1986 are analyzed. The results relativize the corporativism of the Ministry, highlighting the heterosexual matrix of the institution.

Brazilian military dictatorship; Homosexuality; Itamaraty; the Brazilian Ministry of Foreign Affairs; Repression

Introdução

A repressão moral foi característica da ditadura hetero-militar brasileira (Quinalha, 2017QUINALHA, Renan. Contra a moral e os bons costumes: as políticas sexuais da ditadura brasileira (1964 -1988). Tese (Doutorado em Relações Internacionais), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2017.). A ditadura utilizou-se de uma série de medidas repressivas para controlar a vida política e social no país. A cassação dos direitos políticos e a prisão arbitrária de diversos cidadãos, principalmente políticos, líderes sindicais, intelectuais e militares de oposição eram legitimadas pela propaganda oficial, que enquadrava a repressão como ferramenta necessária na luta contra a corrupção e a subversão. Neste contexto, a "homossexualidade foi associada com ameaças ao estado, à sociedade e à segurança nacional, que augurariam dissolução social e, no contexto da Guerra Fria, o triunfo da subversão comunista" (Cowan, 2014COWAN, Benjamin. Homossexualidade, ideologia e “subversão” no regime militar. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (org.) Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos, EdUFSCAR, 2014, pp.27-52.:29).

Segundo seus porta-vozes, o objetivo do Golpe de 1964 era a "reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil" (Brasil, 1964, grifo meu). Sob o regime autoritário, a moralidade se tornou um instrumento da violência estatal. De fato, os valores e comportamentos propagados por determinada moral são, sempre e necessariamente, de natureza política, porque os padrões de conduta hegemônicos que definem o que é aceitável são frutos de determinada distribuição social do poder (Quinalha, 2020QUINALHA, Renan. Censura moral na ditadura brasileira: entre o direito e a política. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, 2020, pp.1727-1755 [https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/44141 - acesso em: 03 ago. 2023].
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).

As homossexualidades e não conformidades de gênero foram caracterizadas como "tática insidiosa para promover uma revolução anticapitalista por meio do enfraquecimento dos pilares da nossa sociedade: a religião cristã e a família" (Quinalha, 2020QUINALHA, Renan. Censura moral na ditadura brasileira: entre o direito e a política. Revista Direito e Práxis, v. 11, n. 3, 2020, pp.1727-1755 [https://doi.org/10.1590/2179-8966/2019/44141 - acesso em: 03 ago. 2023].
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:1737). Segundo os Relatórios da Comissão Nacional da Verdade, "as ideias que relacionavam a homossexualidade à subversão" estavam presentes tanto nos "cursos da Escola Superior de Guerra, um centro ideológico fundamental para o regime militar", quanto nas agências de repressão e nas "divisões de censura de televisão, teatro, filmes e imprensa" (Brasil, 2014a:302).

Este artigo irá analisar de que maneira o Ministério das Relações Exteriores (MRE), principal e mais tradicional órgão formulador e executor da política externa brasileira, participou na repressão de seus funcionários homossexuais, após a implementação do Ato Institucional n. 5 (AI-5), em 1968. O AI-5 marcou a criação de um efetivo aparato de repressão pela ditadura (Fico, 2014FICO, Carlos. Prefácio. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (org.) Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos, EdUFSCAR, 2014, pp.13-16). No âmbito do MRE, o AI-5 foi utilizado para justificar a criação de uma Comissão de Investigações Sumárias (CIS 69), cujo objetivo explícito era "o rigoroso exame [...] dos casos comprovados de homossexualismo1 1 Utilizo o termo "homossexualismo" quando em referência direta aos documentos analisados neste artigo. Segundo Quinalha (2021:4), esta era a expressão "comumente utilizada pelos órgãos de repressão e vigilância da ditadura para se referir às práticas e identidades homossexuais. Originada no campo médico-científico, essa expressão, marcada pelo sufixo 'ismo', mantinha certa associação à ideia de uma doença ou transtorno". Somente em fevereiro de 1985, devido à pressão de movimentos sociais como o Grupo Gay da Bahia, o Conselho Nacional de Saúde removeu a homossexualidade da categoria de doenças tratáveis (Green, 2000). de funcionários do Ministério suscetíveis de comprometer o decoro e o bom nome da Casa, tendo em vista o possível enquadramento dos indiciados nos dispositivos do Ato Institucional n. 5" (Brasil, 2014a:197).

As interpretações tradicionais acerca das relações entre os funcionários do MRE destacam o corporativismo e o insulamento do Ministério (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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; Moura, 1999MOURA, Cristina Patriota de. Jovens Colegas: um estudo de carreira e socialização no Instituto Rio Branco. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Museu Nacional., Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1999.; Souza, 2018SOUZA, Hannah Guedes de. O Ethos do Itamaraty: análise sobre a instituição e a socialização dos diplomatas. Revista Espirales, [S.l.], v. 2, n. 3, 2018, pp.43-70 [https://revistas.unila.edu.br/espirales/article/view/1442 - acesso em: 03 ago. 2023].
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). Por exemplo, após o Golpe de 1964, o novo Ministro das Relações Exteriores impediu que a Comissão Geral de Investigações (CGI), instaurada pelo governo federal para cassar funcionários públicos contrários às políticas da ditadura, trabalhasse no interior do MRE. Ele estabeleceu internamente uma Comissão de Investigações Sumárias (CIS 64) para identificar funcionários de "tendências esquerdistas". Como consequência de seus trabalhos, "apenas" quatro diplomatas foram aposentados compulsoriamente devido a sua oposição à ditadura, embora o número de suspeitos fosse muito maior, o que é atribuído ao "tratamento leniente aplicado pelas chefias em relação aos possíveis esquerdistas, tendo em vista a natureza corporativa da instituição" (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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:30).

Não obstante, o relatório da CIS 69 recomendou a aposentadoria compulsória de sete diplomatas por "homossexualismo, conduta pública indecorosa", além de recomendar exames para a comprovação de condutas homossexuais de outros dez diplomatas. Conforme Foucault (1999)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis, Vozes, 1999., "o exame está no centro dos processos que constituem o indivíduo como efeito e objeto de poder, como efeito e objeto de saber" (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis, Vozes, 1999.:160). A constatação de que o corporativismo da instituição permitiu a preservação das carreiras de inúmeros diplomatas que se opunham às políticas da ditadura, mas não as daqueles que eram homossexuais, relativiza as interpretações acerca do corporativismo do MRE e chama atenção para a matriz heterossexual da instituição2 2 Butler (2018:210), utiliza o conceito de matriz heterossexual para designar como as identidades são formadas a partir de um "modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade". .

Este artigo está dividido em duas partes, além desta introdução e de uma conclusão. Na primeira parte, empreendo uma revisão bibliográfica sobre os impactos das gestões de Castello Branco (1964-1967), Costa e Silva (1967-1969), Médici (1969-1974), Geisel (1974-1979) e Figueiredo (1979-1985) sobre a sociedade brasileira, de modo geral, e sobre o MRE, mais especificamente. As duas principais referências citadas nesta seção são de Almeida (2008)ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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e Vizentini (2004)VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.: Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira desde 1977 e Professor do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), e Paulo Fagundes Vizentini foi Professor Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) até 2019 e atualmente é Professor Permanente da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME). Durante a gestão de Castello Branco e sob a chancelaria de Leitão da Cunha, a Comissão de Investigações Sumárias de 1964 (CIS 64) foi "leniente" com a maioria dos funcionários acusados de oposição ao novo regime ditatorial. A chancelaria seguinte, de Juracy Magalhães e Manuel Pio Corrêa, foi a responsável por criar as bases de um serviço de informações que serviu para vigiar os próprios diplomatas. Em 1968, Costa e Silva baixou o AI-5, abrindo caminho para a criação de um efetivo aparato de repressão política. Durante a gestão de Médici, o combate aos "terroristas comunistas" justificou a sistematização das torturas. As gestões de Geisel e Figueiredo foram marcadas pelas conjunturas doméstica e internacional desfavoráveis, o que incentivou a mobilização pela democratização.

Na segunda parte do artigo, analiso o caso da perseguição aos funcionários homossexuais do MRE pela CIS 69. Estes funcionários foram caracterizados como antagonistas do "decoro e [d]o bom nome da Casa" devido à sua "incontinência pública escandalosa"; ademais, devido à necessidade de viver sua sexualidade em segredo, os homossexuais eram vistos como alvos para os serviços de segurança de países comunistas (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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). Além de revisão bibliográfica de artigos científicos e de depoimentos em textos jornalísticos, analiso os documentos "Memorandum Secreto do Gabinete do Ministro das Relações Exteriores José de Magalhães Pinto para o embaixador Manuel Emilio Guilhon, de 15 de janeiro de 1969", e o "Relatório Secreto da CIS 69, de 7 de março de 1969", disponíveis no Arquivo da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2014b; 2014c), bem como a "Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos", de 1986, disponível no Sistema de Informações do Arquivo Nacional (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
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).

Esta opção metodológica se justifica porque os documentos são artefatos fundamentais nos espaços institucionais e burocráticos. Eles não só registram realidades pré-existentes, mas são tecnologias centrais na produção e fabricação das realidades que governam. Tradicionalmente, conferiu-se mais atenção ao conteúdo dos documentos, contudo, pesquisas mais recentes ressaltam também as dimensões material e estética dos documentos. Combinando ambas as abordagens, procura-se analisar o conteúdo de documentos em consonância com o modo como ele está inscrito em seu suporte material (Ferreira; Lowenkron, 2020FERREIRA, Letícia; LOWENKRON, Laura. Encontros etnográficos com papéis e outros registros burocráticos: possibilidades analíticas e desafios metodológicos. In: FERREIRA, Letícia; LOWENKRON, Laura (org.). Etnografia de documentos: pesquisas antropológicas entre papéis, carimbos e burocracias. Rio de Janeiro, E-papers, 2020, pp.5-16.). Com essa análise, espero contribuir para o entendimento dos impactos do AI-5 sobre a repressão da população LGBTQIA+ no Brasil.

Parte I: "Sob o governo de gorilas"

No dia 2 de abril de 1964, o deputado Ranieri Mazzilli, presidente da Câmara, assumiu a presidência da República, enquanto o Supremo Comando da Revolução (integrado pelos Comandantes em Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica) decretava o Ato Institucional n. 1 (AI-1). Conforme o texto do AI-1, o objetivo do Golpe de 1964 era "enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria" (Brasil, 1964BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, 1964 [http://www.planalto.gov.br//CCIVIL_03/AIT/ait-01-64.htm - acesso em: 24 out. 2021].
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, grifos meus).

O AI-1 conferiu ao Executivo poderes para expurgar as principais instituições do país dos funcionários contrários ao novo regime ditatorial, sob o pretexto de eliminar o "populismo subversivo" (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.:24). As medidas repressivas utilizadas consistiram principalmente em cassação de direitos políticos, exílio de opositores, transferência de militares nacionalistas para a reserva e prisão arbitrária de políticos, líderes sindicais, intelectuais e militares de oposição (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.)3 3 Em outubro de 1965, o Ato Institucional n. 2 (AI-2) extinguiu os partidos políticos e autorizou apenas dois novos movimentos políticos, a Arena (Aliança Renovadora Nacional, situacionista) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro, oposicionista), além de tornar indireta a eleição de presidente e vice. O AI-3, de fevereiro de 1966, tornou a eleição de governadores e vice-governadores também indireta. O AI-4 foi emitido em 7 de dezembro de 1966, convocando para a elaboração de uma nova Constituição, outorgada em 1967 (Vizentini, 2004). .

O autoritarismo de Estado da ditadura valeu-se de uma ideologia da intolerância que implicou a perseguição e tentativa de controle de grupos sociais tidos como perigosos ou subversivos. Segundo Quinalha (2014QUINALHA, Renan. A questão LGBT no trabalho de memória e justiça após a ditadura brasileira. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (org.) Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos, EdUFSCAR, 2014, pp.245-272.:267), foi "durante a ditadura [que] o discurso da homossexualidade como uma ameaça e um mal a ser extirpado por degenerar a moral e os bons costumes da família tradicional brasileira [foi] alçado ao primeiro plano nas instâncias de governo". Esse discurso, que caracterizava a homossexualidade como uma ameaça à segurança nacional e uma forma de subversão análoga à oposição ideológica comunista, foi produzido e propagado pelos egressos da Escola Superior de Guerra (ESG) e pelos agentes públicos vinculados às agências de espionagem e repressão, como o Sistema Nacional de Informações (SNI), o Destacamento de Operações Internas (DOI) - Centro de Operações e Defesa Interna (CODI) e a Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) (Brasil, 2014a,:302).

A Doutrina de Segurança Nacional, cunhada pelos teóricos da ESG, atualizava o conceito de Defesa Nacional, dando menor destaque à proteção das fronteiras e do território geográfico e enfatizando a luta contra o inimigo interno do próprio Estado (Pinheiro, 2018PINHEIRO, Douglas. Autoritarismo e homofobia: a repressão aos homossexuais nos regimes ditatoriais cubano e brasileiro (1960-1980). cadernos pagu (52), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2018 [https://doi.org/10.1590/18094449201800520013 - acesso em: 03 ago. 2023].
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). Na construção da imagem deste inimigo interno, a ditadura associou não somente o movimento homossexual, "mas também o feminista, negro e indígena, com protesto social, com degenerescência, devassidão sexual e um 'potencial revolucionário' generalizado, presumidamente para minar o estado e a sociedade" (Cowan, 2014COWAN, Benjamin. Homossexualidade, ideologia e “subversão” no regime militar. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (org.) Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos, EdUFSCAR, 2014, pp.27-52.:50).

Com a gestão de Humberto Castello Branco (1964-1967), o início da ditadura foi marcado por grandes mudanças no MRE, na esteira da experiência da Política Externa Independente (PEI) dos anos 1961-1964. Em 5 de abril de 1964, Araújo Castro transmitiu o cargo de Ministro das Relações Exteriores do Brasil ao embaixador Vasco Leitão da Cunha. Em um exemplo do corporativismo e insulamento institucional do MRE, Leitão da Cunha impediu que a Comissão Geral de Investigações (CGI)4 4 Criada pela ditadura em abril de 1964, a CGI era presidida por um general do exército e tinha por função promover o "realinhamento ideológico" de funcionários públicos ao regime ditatorial, isto é, cassar aqueles que não estivessem alinhados ao regime (Almeida, 2008). instaurada pelo governo federal trabalhasse no interior do MRE, mas estabeleceu uma Comissão de Investigações Sumárias interna (CIS 64) para identificar funcionários de "tendências esquerdistas" (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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; Souza, 2018SOUZA, Hannah Guedes de. O Ethos do Itamaraty: análise sobre a instituição e a socialização dos diplomatas. Revista Espirales, [S.l.], v. 2, n. 3, 2018, pp.43-70 [https://revistas.unila.edu.br/espirales/article/view/1442 - acesso em: 03 ago. 2023].
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).

A CIS 64 ouviu dezenas de funcionários acusados de "tendências esquerdistas", a maior parte jovens diplomatas, sendo quase todos liberados. Foram apenas quatro os aposentados compulsoriamente em 1964: o primeiro deles foi Jaime de Azevedo Rodrigues, por ter enviado um telegrama em desacato a Leitão da Cunha quando soube de sua nomeação para o cargo de chanceler do novo regime5 5 Os termos da mensagem de Rodrigues teriam sido: "Não posso acreditar que Você vá servir a um Governo de gorilas" (Castro, 2007apudAlmeida, 2008:8). ; além dele, foram afastados Antônio Houaiss e Jatir Almeida Rodrigues, que já haviam sido perseguidos em 1953 por suas posições de esquerda6 6 No início da Guerra Fria, já sob a pressão do antagonismo EUA-URSS, alguns diplomatas foram acusados de serem simpatizantes do bloco socialista, tendo sido objeto de inquérito sumário e sancionados em 1953, antes de serem absolvidos pela ação da Justiça, no ano seguinte. Foram estes Amaury Banhos Porto de Oliveira, Antônio Houaiss, Jatir de Almeida Rodrigues, João Cabral de Mello Neto e Paulo Augusto Cotrim Rodrigues Pereira (Almeida, 2008). ; e Hugo Gouthier Gondim, por suas ligações com os ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João Goulart (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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).

O tratamento aplicado pelas chefias em relação aos possíveis esquerdistas pode ser considerado relativamente "leniente", uma vez que "apenas" quatro sofreram represálias. Como efeito, Almeida (2008)ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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afirma que o impacto mais importante do golpe de 1964 sobre o MRE não foi a perseguição política aos diplomatas, mas a reorientação da política externa. Neste sentido, o pronunciamento de Castelo Branco na formatura da turma do Instituto Rio Branco, em julho de 1964, sinalizou o abandono de uma Política Externa Independente, em favor de uma diplomacia ideológica alinhada com os EUA (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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).

O segundo chanceler de Castelo Branco foi Juracy Magalhães, que assumiu em janeiro de 1966. Em seu discurso de posse, seu Secretário-Geral, o embaixador Manuel Pio Corrêa, deixou clara sua oposição à "política exterior tortuosa, escusa e indecorosa praticada pelo Brasil sob os Governos Jânio Quadros e João Goulart" (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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:11). Corrêa foi responsável por implantar no MRE as bases de um serviço de informações que serviu para vigiar tanto exilados políticos, quanto os próprios diplomatas (Setemy, 2018SETEMY, Adrianna. Do Serviço de Estudos e Informações (SEI) ao Centro de Informações do Exterior (CIEX): a institucionalização das políticas de informação e repressão ao comunismo no Itamaraty. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, 2018, pp.149-171 [https://doi.org/10.34019/2594-8296.2018.v24.20870 - acesso em: 03 ago. 2023].
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).

O Centro de Informações do Exterior (CIEX) e a Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores (DSI/MRE) se consolidaram rapidamente graças à sinergia entre "as velhas práticas do Itamaraty de controle às atividades consideradas subversivas" e as "novas orientações impostas pela Doutrina de Segurança Nacional e ao sistema de informações [...] organizado em nível federal após a instalação do regime militar" (Setemy, 2018SETEMY, Adrianna. Do Serviço de Estudos e Informações (SEI) ao Centro de Informações do Exterior (CIEX): a institucionalização das políticas de informação e repressão ao comunismo no Itamaraty. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, 2018, pp.149-171 [https://doi.org/10.34019/2594-8296.2018.v24.20870 - acesso em: 03 ago. 2023].
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:169). Esse serviço de informações foi utilizado em 1969 na coleta de informações que levou à aposentadoria compulsória de sete diplomatas e seis servidores administrativos do MRE por "homossexualismo, conduta pública indecorosa", conforme será explorado na Parte II deste artigo.

A gestão de Artur da Costa e Silva (1967-1969) representou uma recuperação parcial dos fundamentos da PEI, especialmente nos temas da agenda econômica, mas sem tratar de questões de reforma social ou política e diminuindo a ênfase anterior numa política de equidistância entre o Leste e o Oeste, privilegiando desta vez as relações Norte-Sul (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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).

No âmbito doméstico, crescia a resistência contra a ditadura. Em setembro de 1967, políticos tradicionais como Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda lançaram a Frente Ampla, visando explorar os novos espaços políticos de oposição. No início do ano seguinte, eclodiu o movimento estudantil, que saiu às ruas em grandes passeatas, enfrentando as forças da ordem. Após a morte do estudante secundarista Edson Luís de Lima Souto, a Igreja também passou a manifestar-se abertamente contra a falta de liberdade no país, e novas greves operárias eram organizadas, notadamente em Osasco e Contagem. Além disso, tornaram-se recorrentes os atentados com bombas em redações de jornais, instituições de oposição e quartéis militares, bem como casos de assalto a bancos, tentativas de sequestros e de assassinatos (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.).

Nesse cenário de resistência ativa por parte da população, o governo solicitou autorização do Congresso para processar o deputado Márcio Moreira Alves, que pregara um boicote às comemorações do dia da independência (7 de setembro de 1968). Face à recusa do Legislativo, Costa e Silva baixou o Ato Institucional n° 5 (AI-5), que colocou o Congresso em recesso por tempo indeterminado, suspendeu os direitos políticos e civis constitucionais e deu ao presidente plenos poderes para intervir em estados e municípios e legislar por decreto (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.). O AI-5 ainda suspendeu a concessão de habeas corpus e as garantias constitucionais de liberdade de expressão e reunião, permitiu demissões sumárias, cassações de mandatos e de direitos de cidadania e determinou que o julgamento de crimes políticos fosse realizado por tribunais militares, sem direito a recurso (Schwarcz; Starling, 2015SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2015. Recurso digital.).

Embora tenha havido violência desde os primeiros momentos da ditadura, um efetivo aparato de repressão política foi criado somente com o AI-5. Este aparato era fundado sobre os pilares de uma polícia política, da espionagem, da censura política e moral, da propaganda política e do julgamento sumário de supostos corruptos, e era legitimado por um discurso segundo o qual seria possível tornar o Brasil uma grande potência, desde que fossem eliminados os obstáculos, internos e externos, para tanto (Fico, 2014FICO, Carlos. Prefácio. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (org.) Ditadura e homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos, EdUFSCAR, 2014, pp.13-16).

Segundo Almeida (2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
https://www.academia.edu/5794095/066_Do_...
:29), o AI-5 foi feito para "evitar os constrangimentos da democracia, que se traduzem em dissenso, debate aberto, por vezes conflituoso, enfim, dificuldades para reformar o Estado ou a própria sociedade". Ele deveria servir para diminuir a resistência do corpo político e da opinião pública à introdução de medidas que a ditadura julgava indispensáveis para permitir a "decolagem" do Brasil rumo a um novo patamar de desenvolvimento econômico, tecnológico e material.

Em 31 de agosto de 1969, Costa e Silva sofreu uma trombose que viria a incapacitá-lo definitivamente. Uma Junta Militar assumiu o poder, integrada pelo General Lyra Tavares, o Almirante Augusto Rademaker e o Marechal do Ar Márcio de Souza e Melo, elementos da chamada "linha-dura"7 7 A expressão se refere à ala militar que defendia o endurecimento do regime ditatorial e a repressão aos seus opositores. , e esteve no poder por dois meses. Nesse período, extinguiu o mandato do vice-presidente para impedi-lo de assumir o cargo, baixou uma nova Lei de Segurança Nacional ainda mais rigorosa, introduzindo a pena de morte, e promoveu um novo expurgo nas Forças Armadas. Em outubro, a Junta indicou o General Emílio Garrastazú Médici, Chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), para o cargo de presidente (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.).

Durante a gestão de Emílio Gastarrazú Médici (1969-1974), o nacional-autoritarismo esteve no poder, com a burocracia estatal administrando o setor público da economia e responsabilizando-se pelo processo de desenvolvimento do país. Como forma de garantir a estabilidade política e o conservadorismo social no plano interno, fazia-se necessário obter um bom desempenho financeiro-comercial e diplomático no plano externo (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.).

A diplomacia da ditadura, ao longo da década de 1970, foi marcada por duas tendências: apoio às ditaduras de direita, militares ou não, e o rechaço a governos de esquerda, como o da Bolívia e do Chile. Ao mesmo tempo, militares de carreira passaram a ocupar diversos postos-chave do MRE. Generais foram designados embaixadores em diversos países da América Latina, mas também em Portugal e no Iraque - além do anticomunismo, os militares eram motivados pelas possibilidades de venda de equipamento militar e de observação direta de cenários com algum valor estratégico (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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).

No plano doméstico, o combate aos "terroristas comunistas" permitiu à ditadura aperfeiçoar os mecanismos de repressão e censura. As capacidades dos guerrilheiros eram exageradas pelo governo, com o objetivo de legitimar os novos mecanismos de repressão e de criar um clima de intimidação contra qualquer oposição, real ou potencial. Salvaguardadas pela censura, as Forças Armadas e a polícia criaram órgãos especiais de repressão, que praticavam prisões arbitrárias, tortura, sequestros e mortes (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.). Com efeito, embasada no AI-5, a gestão de Médici tornou "sistemática a prática da tortura nos quartéis e, com ela, o ato de produzir um fluxo contínuo de exilados, refugiados e 'emigrantes políticos', tanto voluntários como involuntários, para o exterior" (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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:20).

Seu sucessor foi Ernesto Beckmann Geisel (1974-1979). Geisel fora chefe da Casa Militar durante a gestão de Castelo Branco e em seguida ocupou o cargo de presidente da Petrobras. Desde 1973, após o Primeiro Choque do Petróleo, a conjuntura nacional era de instabilidade e insatisfação popular. O projeto de desenvolvimento do regime ditatorial até então se baseara na importação de energia e de tecnologia, bem como no influxo de capitais estrangeiros, que foram todos prejudicados pelo aumento vertiginoso do preço do petróleo causado pela intervenção da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.).

A política externa levada a cabo pelo chanceler Antônio Azevedo da Silveira, sob o lema de um "pragmatismo responsável e ecumênico", deveria lidar com a conjuntura internacional adversa. Para tanto, houve uma aproximação com os países árabes, que se materializou no apoio aos votos antissionistas na ONU e em uma intensa política exportadora de produtos primários, industriais e serviços, em troca do fornecimento de petróleo. Frente ao insatisfatório relacionamento com os EUA, investiu-se na cooperação com a Europa Ocidental, o Japão e, inclusive, a República Popular da China. No âmbito regional, o apoio ao regime militar argentino implantado em 1976 facilitou a aproximação entre os países (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.).

No plano doméstico, a partir de 1975, uma onda de prisões e assassinatos de opositores ao regime ditatorial, como o jornalista Vladimir Herzog e o sindicalista Manoel Fiel Filho, por exemplo, mobilizou diversos setores da sociedade em prol da democratização. No final de 1978, o AI-5 foi extinto pela Emenda Constitucional n. 11; o habeas corpus foi restabelecido para presos políticos, a censura prévia foi suspensa e a independência do Poder Judiciário foi restaurada. Ainda assim, a mesma Emenda garantiu novos poderes para o Poder Executivo decretar medidas de emergência para controlar e reprimir a oposição (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.).

O último militar a ocupar a Presidência durante o regime ditatorial foi João Batista Figueiredo (1979-1985). Ele era aliado de Geisel e assumiu a gestão por um mandato ampliado, de seis anos, com o objetivo de consolidar o processo de abertura política e democratização. Entretanto, alguns setores militares se opunham radicalmente ao fim do regime. Entre 1976 e 1981, alguns militares envolvidos com a "burocracia da violência", isto é, os órgãos de repressão, "saíram da sombra dos quartéis e protagonizaram uma escalada terrorista que incluiu atentados a bomba contra jornais, livrarias, universidades e instituições identificadas com a oposição, e ainda sequestros e espancamento de opositores" (Shwarcz; Starling, 2015:678).

Durante sua gestão, a situação econômica e política mundial se tornou ainda mais adversa para o Brasil, devido ao Segundo Choque do Petróleo, em 1979, e à crise da dívida externa, decorrente da elevação das taxas de juros pelo governo Reagan, dos EUA, em 1981 (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.). Figueiredo "não propôs uma mudança no curso da política externa brasileira, mas somente uma adaptação aos novos ambientes externo e interno, leia-se a crise da dívida [...] e o processo de abertura e crise político econômica do regime" (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.:277). Dessa forma, a política externa "universalista" do chanceler Ramiro Saraiva Guerreiro limitou-se a tentar "manter a autonomia do Brasil num cenário crescentemente desfavorável" (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.:277).

O cenário interno foi marcado pelas campanhas pela Anistia e pelas "Diretas Já!". A Campanha da Anistia surgiu em 1975, quando foi criado o "Movimento Feminino pela Anistia". Em 1977, com a eclosão de manifestações estudantis em diversas cidades do país, a campanha ganhou maior fôlego. Finalmente, em 1978, formou-se o "Comitê Brasileiro pela Anistia", que exigia uma anistia "ampla, geral e irrestrita" (Fico, 2012FICO, Carlos. História do Tempo Presente, eventos traumáticos e documentos sensíveis: o caso brasileiro. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, v. 28, n. 47, 2012, pp.43-59 [https://doi.org/10.1590/S0104-87752012000100003 - acesso em: 03 ago. 2023].
https://doi.org/10.1590/S0104-8775201200...
).

Neste contexto, a Lei da Anistia foi sancionada em 28 de agosto de 1979, mas excluiu aqueles "condenados pela prática de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal" (Brasil, 1979BRASIL. Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, 1979 [https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6683.htm - acesso em: 05 maio 2022].
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). Além disso, perseguidos políticos da sociedade civil e violadores de Direitos Humanos do aparato burocrático-repressivo da ditadura foram indiscriminadamente beneficiados. A lei foi revista em 1985, de modo a assegurar tratamento mais eficiente às vítimas de demissões e aposentadorias compulsórias durante a ditadura, conforme será explorado a seguir.

Parte II: a perseguição aos funcionários homossexuais do MRE em tempos de AI-5

Se, em outros países do mundo, as revoltas anticapitalistas de 1968 inspiraram a eclosão de um movimento homossexual já no final da década de 1960, no Brasil, a ditadura criou obstáculos concretos para a organização das pessoas LGBTQIA+. Conforme aponta Quinalha (2018QUINALHA, Renan. Uma ditadura hetero-militar: notas sobre a política sexual do regime autoritário brasileiro. In: GREEN, James Naylor; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa (org.) História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo, Alameda, 2018, pp.15-38.:38), "a ditadura os rotulou [aos homossexuais] como sócios menores do movimento comunista internacional. Outras vezes os classificou como agentes de ruptura da moralidade social". Da mesma forma, o embaixador Guilherme Luiz Leite Ribeiro reconhece que, em 1969, "os homossexuais não eram aceitos pela sociedade como hoje em dia e a maioria não expunha as suas tendências, razão pela qual, segundo o pensamento da época, [diplomatas homossexuais] seriam presas fáceis dos serviços de segurança de países comunistas" (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
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:15).

A carreira diplomática, isto é, a trajetória profissional no serviço exterior brasileiro, é também um modo de vida. Moura (1999MOURA, Cristina Patriota de. Jovens Colegas: um estudo de carreira e socialização no Instituto Rio Branco. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Museu Nacional., Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1999.:1) aponta que "no Brasil, ser diplomata significa estar vinculado a uma instituição burocrática onde o indivíduo ingressa em uma carreira estruturada, com regras explícitas de seleção e ascensão funcional" que implicam um processo de ressocialização, que compreende "uma modelagem social, a internalização de um ethos e a aquisição de um habitus" (Moura, 1999MOURA, Cristina Patriota de. Jovens Colegas: um estudo de carreira e socialização no Instituto Rio Branco. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Museu Nacional., Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1999.:3, grifos no original).

Dessa forma, a entrada na carreira diplomática implica uma ruptura de vínculos com a família, grupos de amigos e antigos vizinhos, enquanto promove o relacionamento mais intenso entre os próprios diplomatas (Moura, 1999MOURA, Cristina Patriota de. Jovens Colegas: um estudo de carreira e socialização no Instituto Rio Branco. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Museu Nacional., Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1999.). Moura (1999MOURA, Cristina Patriota de. Jovens Colegas: um estudo de carreira e socialização no Instituto Rio Branco. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Museu Nacional., Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1999.:89) realça que a categoria "Casa", quando usada oficialmente pela instituição para se definir, adquire um caráter "sagrado" e "familiar", que relaciona cada um de seus membros à "totalidade", fortalecendo a instituição enquanto comunidade moral que tem sua base no monopólio de produzir "funcionários da carreira de diplomata do serviço exterior".

Por extensão, a "família de procriação" do diplomata também deve atender aos requisitos da instituição. Segundo a autora, "até alguns anos atrás era necessário pedir permissão escrita do MRE para casar-se" e "há casos conhecidos de proibições de casamentos no período militar" de diplomatas com pessoas consideradas "subversivas", como artistas de esquerda (Moura, 1999MOURA, Cristina Patriota de. Jovens Colegas: um estudo de carreira e socialização no Instituto Rio Branco. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Museu Nacional., Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1999.:83). Ainda hoje permanece "uma pressão coletiva para que os casamentos sejam efetuados com pessoas que satisfaçam certos critérios de 'aceitabilidade' que se referem a grau de escolaridade, 'sofisticação', sociabilidade", de modo que há uma preferência pelo casamento entre diplomatas" (Moura, 1999MOURA, Cristina Patriota de. Jovens Colegas: um estudo de carreira e socialização no Instituto Rio Branco. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Museu Nacional., Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, 1999.:83).

No contexto deste artigo, a constatação de que o corporativismo da instituição permitiu a preservação das carreiras de inúmeros diplomatas que se opunham à política da ditadura, mas não as daqueles que eram homossexuais, relativiza as interpretações acerca do corporativismo do MRE, chamando atenção para a matriz heterossexual da instituição, que notadamente promove a heterossexualidade compulsória.

No Brasil, a heterossexualidade compulsória se desenvolveu inicialmente em torno da noção cristã de "sodomia", que foi trazida pelos portugueses durante o período colonial. Em Portugal, a tradição e a religião católica tinham grande importância na produção e execução do Direito. Desde 1447 o crime por "sodomia" constava no "Código Afonsino", a compilação jurídica do reino. Em 1521, o "Código Manuelino" atualizou a tipificação de diversas leis. Com isso, a "sodomia" passou a ser equiparada ao crime de lesa-majestade de modo que, além da pena de morte pelo fogo, foram acrescentados o confisco dos bens e a infâmia sobre os filhos e descendentes do condenado. Devido à relação colonial, esse foi o primeiro Código Penal aplicado no território brasileiro (Trevisan, 2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.).

Contudo, foi o "Código Filipino" o que mais impactou o Brasil, porque vigorou de 1603 até 1830. Este Código, ao contrário dos anteriores, não excluiu as mulheres como capazes de cometer o crime de "sodomia". Ademais, ele previa penalidades para homens "em trajos de mulher" e para mulheres "em trajos de homem". Em 1830, o Brasil Império independente elaborou um novo Código Penal, em que se eliminou da legislação a figura jurídica da sodomia, devido à influência do Código Napoleônico de 1810, que fizera o mesmo na França. Apesar disso, durante o período Imperial brasileiro surgiram os crimes "por ofensa à moral e aos bons costumes", que também foram usados para reprimir as homossexualidades e não conformidades de gênero (Trevisan, 2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.).

Com o Código Penal Republicano de 1890, passou-se a reconhecer os crimes de "ofensa à moral e os bons costumes" como "crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias" ou "ultraje público ao pudor". Neste momento, o novo Estado brasileiro, de inspirações liberais e positivistas, passou a se preocupar com as formas de controle e gestão da população. Com ele, "em lugar do dogma cristão, passou a imperar o padrão de normalidade" definido em termos de uma matriz heterossexual (Trevisan, 2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.:177).

No Brasil, o médico-higienista foi a figura central das políticas governamentais que visavam a normalização das famílias, visando "melhorar a raça" e "engrandecer a pátria". A medicina higienista abandonou quaisquer justificativas religiosas em prol do exercício de um controle da população em nome da ciência e de sua suposta neutralidade (Trevisan, 2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.). Segundo Trevisan (2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.:180), o "homossexualismo", enquanto categoria científica, surgiu em 1869, criada pelo médico austro-húngaro Karl Maria Kertbeny, e "pretendia a obtenção de enfoques mais rigorosos e menos subjetivos" sobre o tema.

A medicina substituiu as prescrições de castigos para aqueles que não se enquadravam nas normas de conduta cristãs pela proposta de cura e da correção de seu comportamento desviante da norma. Dessa forma, ela não pode ser estudada como um mero conjunto de descrições médicas, mas deve ser analisada no contexto das prescrições políticas, decisões econômicas e modelos de ensino que ela implica (Foucault, 2001FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro, Forense, 2001.).

Válido ainda hoje, o Código Penal de 1940 manteve o crime por ultraje ao pudor, "quando o ato obsceno for praticado publicamente ou o objeto obsceno for exposto ao público". Durante a ditadura, a promulgação da Lei n. 5.250, de 9 de fevereiro de 1967, conhecida como Lei de Imprensa, "impunha pena de três meses a um ano de detenção e multa de um a vinte salários mínimos para quem divulgasse pela mídia fatos considerados atentatórios à moral pública e aos bons costumes" (Trevisan, 2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.:170). Foi por meio dela que o regime ditatorial reprimiu as primeiras revistas e programas de rádio e TV relacionados à luta pelos direitos homossexuais no Brasil (Quinalha, 2021QUINALHA, Renan. Lampião da Esquina na mira da ditadura hetero-militar de 1964. cadernos pagu (61), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2021 [https://doi.org/10.1590/18094449202100610004 - acesso em: 03 ago. 2023].
https://doi.org/10.1590/1809444920210061...
; Trevisan, 2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.).

Entre 1964 e 1973, estima-se que 4841 pessoas perderam direitos políticos ou foram cassadas, aposentadas ou demitidas pela ditadura (Shwarcz; Starling, 2015). No contexto político-repressivo que se seguiu à decretação do AI-5, o Ministro das Relações Exteriores de Costa e Silva, José de Magalhães Pinto, emitiu um Memorandum Secreto para o chefe do Departamento de Administração do MRE, o embaixador Manoel Emílio Pereira Guilhon. Esse documento determinava que houvesse "rigoroso exame, no âmbito da Comissão de Investigações sob sua presidência, dos casos comprovados de homossexualismo de funcionários do Ministério" (Brasil, 2014a:197).

A Comissão de Investigações Sumárias de 1969 (CIS 69) foi presidida pelos embaixadores Antônio Cândido da Câmara Canto, Carlos Sette Gomes Pereira e pelo próprio Manoel Emílio Pereira Guilhon. Segundo o "Memorandum Secreto do Gabinete do Ministro das Relações Exteriores José de Magalhães Pinto para o embaixador Manuel Emilio Pereira Guilhon, de 15 de janeiro de 1969" (Figura 1), o objetivo da CIS 69 era enquadrar os "indiciados nos dispositivos do Ato Institucional n° 5". O documento possui apenas uma página, que conta com um carimbo de "SECRETO" em seu canto superior direito, além da assinatura do chanceler José de Magalhães Pinto.

Figura 1
: Memorandum Secreto do Gabinete do Ministro das Relações Exteriores José de Magalhães Pinto para o embaixador Manuel Emilio Guilhon, de 15 de janeiro de 1969

Esse documento atesta que, ao invés de perseguir "esquerdistas", como fizeram outros Ministérios na época, o MRE mirou nos funcionários homossexuais, porque seu comportamento afrontaria "o decoro e o bom nome da Casa". O "Relatório Secreto da CIS 69, de 7 de março de 1969" levou ao afastamento, por meio de aposentadoria compulsória, de sete diplomatas e seis servidores administrativos sob a alegação de "homossexualismo", além de determinar que outros dez diplomatas e dois servidores fossem "submetidos a cuidadoso exame médico e psiquiátrico, por Junta especial, constituída por médicos do Itamaraty, do Serviço de Biometria Médica e do Centro Médico da Aeronáutica" para a comprovação de condutas homossexuais (Brasil, 2014b, grifo no original).

O surgimento da medicina clínica e das práticas psiquiátricas está associado ao que Foucault (1999)FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis, Vozes, 1999. conceitua como poder disciplinar, que é aquele que se aplica sobre o corpo do indivíduo. O termo "disciplina" se refere ao conjunto de técnicas e procedimentos com os quais se busca comparar, diferenciar, hierarquizar, homogeneizar e excluir comportamentos, visando à normalização, isto é, a adequação dos corpos a uma norma (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis, Vozes, 1999.:153). O sucesso do poder disciplinar se deve ao uso combinado de três instrumentos que lhe são característicos: a vigilância hierárquica, a sanção normalizadora e o exame. Segundo o autor, "o exame é um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir" (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis, Vozes, 1999.:154). Ele se dá de forma altamente ritualizada, porque "nele vêm-se reunir a cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da verdade" (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis, Vozes, 1999.:154). Como efeito, o exame faz "a individualidade entrar num campo documentário", isto é, faz com que cada indivíduo constitua um "caso", que é ao mesmo tempo "um objeto para o conhecimento e uma tomada para o poder" (Foucault, 1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis, Vozes, 1999.:157, 159).

Ao longo do século XX, a "psiquiatrização" das homossexualidades foi reiterada por autoridades médicas e policiais brasileiras. Para esses profissionais, "combater e controlar o homossexualismo também era resolver um problema social", de modo que "acabou sendo inevitável o intercâmbio da Justiça e das ciências com o aparelho policial" (Trevisan, 2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.:188). Assim, no Brasil, vários sistemas de controle participaram da repressão às homossexualidades, "tornando tênue a fronteira entre a intervenção jurídico-psiquiátrica e a ação da polícia" (Trevisan, 2018TREVISAN, João Silvério. Devassos no Paraíso: a homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 4. ed. Rio de Janeiro, Objetiva, 2018. Recurso digital.:194).

O "Relatório Secreto da CIS 69, de 7 de março de 1969" (Figura 2) articula "embriaguez", "esquizofrenia", "homossexualismo", "indisciplina", "insanidade" e "uso de entorpecentes" como desvios da norma de comportamento esperado de funcionários do MRE que ameaçavam a segurança e as relações exteriores do Brasil. O documento conta com cerca de dez páginas, todas marcadas com o carimbo de "Secreto" em seu canto superior esquerdo. A sexta página do documento, em que constam os nomes de dez diplomatas e dois servidores que deveriam ser submetidos a exame médico e psiquiátrico para a comprovação de condutas homossexuais, conta com anotações à caneta associadas aos nomes de alguns dos indivíduos. Assinam o relatório os presidentes Antônio Cândido da Câmara Canto, Carlos Sette Gomes Pereira e Manoel Emílio Pereira Guilhon, bem como Fernando Antônio de Oliveira Santos Fontoura, identificado como "Secretário da Comissão" (Brasil, 2014c:10).

Figura 2
: Páginas selecionadas do Relatório Secreto da CIS 69, de 7 de março de 1969

É interessante notar que figuram nessas listas diversos membros de elites políticas tradicionais, incluindo dois descendentes de José Bonifácio de Andrada, o "primeiro chanceler do Brasil": Martim Francisco Lafayette de Andrada e José Bonifácio Lourenço de Andrada8 8 Agradeço aos comentários dos pareceristas anônimos que chamaram minha atenção para este fato, além de terem contribuído sobremaneira para a versão final deste artigo. Ainda assim, assumo qualquer equívoco persistente como de minha inteira responsabilidade. . Ao todo, 17 diplomatas, 8 oficiais de chancelaria e 25 servidores administrativos foram afastados, conforme ilustram os Gráfico 1 e Gráfico 2 abaixo.

Gráfico 1
: Número de diplomatas afastados pela CIS 69 e sua justificativa

Gráfico 2
: Número de pessoal administrativo e outros afastados pela CIS 69 e sua justificativa

Dentre os funcionários afastados em 1969 por serem homossexuais, Raul José de Sá Barbosa e Ricardo Joppert foram entrevistados por Franco (2009)FRANCO, Bernardo Mello. Itamaraty usou AI-5 para investigar vida privada e expulsar diplomatas. O Globo, 28 jun. 2009, p. 10. O País [https://shorturl.at/rCLRS - acesso em: 03 ago. 2023].
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, 40 anos depois da CIS 69. Barbosa contou que era Primeiro-Secretário e servia na embaixada do Brasil em Jacarta quando recebeu um telegrama com a notícia da aposentadoria compulsória. Em suas palavras: "Fui vítima de preconceito. Cortaram minha carreira, destruíram minha vida. Minha turma de Rio Branco tinha 15 pessoas. Todos viraram embaixadores, menos eu" (Franco, 2009FRANCO, Bernardo Mello. Itamaraty usou AI-5 para investigar vida privada e expulsar diplomatas. O Globo, 28 jun. 2009, p. 10. O País [https://shorturl.at/rCLRS - acesso em: 03 ago. 2023].
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:10). O mesmo aconteceu com Joppert, que era segundo-secretário:

Em abril de 1969, ele servia no consulado de Gotemburgo quando foi convocado a voltar às pressas para o Brasil. Ao embarcar num avião da Varig, leu num exemplar do GLOBO a notícia da sua aposentadoria. Tinha apenas 28 anos. — Nunca escondi que era homossexual. Na época isso era visto como problema, porque a sociedade não estava preparada para encarar as minorias — analisa ele, que foi reintegrado em 1986 e hoje serve no Museu Histórico e Diplomático, no Rio (Franco, 2009FRANCO, Bernardo Mello. Itamaraty usou AI-5 para investigar vida privada e expulsar diplomatas. O Globo, 28 jun. 2009, p. 10. O País [https://shorturl.at/rCLRS - acesso em: 03 ago. 2023].
https://shorturl.at/rCLRS...
:10).

Segundo Langaro (2019LANGARO, Janaína Júlia. Um estudo da repressão contra homens homossexuais dentro do Ministério das Relações Exteriores a partir da sua Comissão de Anistia. Revista Aedos, v. 11, n. 24, Porto Alegre, 2019, pp.49-61 [https://seer.ufrgs.br/index.php/aedos/article/view/92266 - acesso em: 03 ago. 2023].
https://seer.ufrgs.br/index.php/aedos/ar...
:54), as demissões e aposentadorias compulsórias da CIS 69 "f[izeram] parte da violência institucional da máquina pública em favor da manutenção do regime e simboliza[vam] a existência de padrões de comportamentos esperados". Entre os aposentados compulsoriamente pela CIS 69, também estava o poeta e então Primeiro-Secretário Vinicius de Moraes. O Relatório Secreto da Comissão afirma que a conduta do poeta-diplomata era "incompatível com as exigências e o decoro da carreira diplomática, mas em atenção aos seus méritos de homem de letras e artista consagrado [...] a Comissão propõe o seu aproveitamento no Ministério da Educação e Cultura" - uma salvaguarda que não foi estendida aos funcionários homossexuais (Brasil, 2014c:6).

A Lei da Anistia, n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, determinou que "o retorno ou a reversão ao serviço ativo" de servidor civil ou militar seria analisado por requerimentos "processados e instituídos por comissões especialmente designadas pela autoridade a qual caiba a apreciá-los", mas não assegurou a reversão aos postos ocupados por quem perdera o emprego ou fora aposentado no serviço público por força da ditadura (Brasil, 1979BRASIL. Lei n° 6.683, de 28 de agosto de 1979, 1979 [https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6683.htm - acesso em: 05 maio 2022].
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LE...
).

A primeira Comissão de Anistia criada para tratar da questão foi instalada no Ministério do Trabalho em janeiro de 1980. Os funcionários públicos demitidos ou aposentados compulsoriamente durante a ditadura dispunham de 120 dias para encaminhar suas petições de requerimento de anistia. Entretanto, o processo era complexo e não foi bem-sucedido: primeiro, era necessário requerer a anistia; em seguida, encaminhava-se outro requerimento para a reversão ao serviço ativo; então, era necessário se submeter a um exame médico cujo resultado deveria ser compatível com o último exame da época anterior à punição; ainda, para que a readmissão ou reversão fosse efetivada, era preciso que houvesse vaga e que existisse interesse público na reintegração do anistiado. Além disso, muitos perseguidos políticos não solicitaram a anistia porque temiam represálias, uma vez que o país continuaria sob a gestão militar até 1985 (Mezarroba, 2003MEZARROBA, Glenda. Um acerto de contas com o futuro: a anistia e suas consequências - um estudo do caso brasileiro. Dissertação (Mestrado em Ciência Política), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2003.).

A Lei da Anistia foi revista em 1985, já sob o governo de José Sarney. Dessa vez, garantiu-se a reversão ao serviço ativo daqueles que assim desejassem (Brasil, 1985BRASIL. Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, 1985 [https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc26-85.htm - acesso em: 05 maio 2022].
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Co...
). Nos termos da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, houve a instalação da Comissão de Anistia vinculada ao MRE de 1986. Ela foi composta pelo Embaixador Paulo Monteiro Lima, o Ministro de Segunda Classe Marco Cesar Meira Naslausky e o Primeiro-Secretário Ricardo Carvalho do Nascimento Borges (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:94).

As Atas da Comissão de Anistia vinculada ao MRE de 1986 atestam a manutenção do preconceito contra homens homossexuais (Figura 3). Elas foram redigidas entre os meses de maio e agosto de 1986, visando examinar os casos de 64 funcionários do MRE demitidos ou aposentados durante a ditadura. Apesar de a primeira página da documentação mencionar seu "caráter secreto", as páginas do arquivo não são estampadas com quaisquer carimbos de "secreto" (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:1).

Figura 3
: Mandato, universo e conclusões da Comissão de Anistia vinculada ao MRE de 1986

As readmissões e reversões de funcionários acusados de "homossexualismo" pela CIS 69 foram condicionadas à realização de uma entrevista, a cargo do Primeiro-Secretário Ricardo Carvalho do Nascimento Borges. Além disso, caso o resultado da entrevista fosse positivo, os funcionários deveriam se submeter a um exame médico, a cargo de uma Junta médica chefiada pelo médico Antonio Teixeira de Sousa, Chefe do Serviço de Assistência Médica e Social do MRE, e composta pelos médicos Diomedes Ferreira, do Escritório de Representação do MRE no Rio de Janeiro, e André Luiz Silveira Miranda, psiquiatra responsável por carimbar os exames (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
).

Dentre aqueles aposentados compulsoriamente por "homossexualismo" pela CIS 69, constam nas Atas da Comissão de 1986, disponíveis na "Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos", somente os casos dos diplomatas Mozart Janot Júnior e Ricardo Joppert, do servente Dionysio Fernandes Borges, do auxiliar de bibliotecário Eloy Antonio Xavier e dos oficiais de chancelaria José Adonias de Araújo Neto, José Eduardo Brasil Vivacqua, José Maria Delgado Tubino e Ori Vargas Fortes, que serão explorados a seguir.

Segundo a Documentação, Mozart Janot Júnior já ultrapassara a idade-limite para a reversão (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
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) e Ori Vargas Fortes "informou não estar interessado na reversão ao serviço ativo" (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:87), de modo que foram mantidos na aposentadoria.

Dyonisio Fernandes Borges e José Eduardo Brasil Vivacqua também foram mantidos na aposentadoria. Segundo a Documentação, em 1980, Borges e Vivacqua foram submetidos a exame médico, psiquiátrico e psicológico no Centro de Medicina Aeroespacial da Aeronáutica por sugestão da Comissão de Anistia criada pela Lei n. 6.683/79. No caso de Borges, o Centro "expediu diagnóstico comprovando a alegação de homossexualidade patológica" e, no caso de Vivacqua, "diagnosticou a existência de 'transtorno esquizóide de personalidade'", de modo que seus pareceres foram de "incapaz para o fim a que se destina". A Comissão de 1986 referendou as decisões, informando que, em ambos os casos, "a reversão do funcionário seria contrária aos interesses da Administração" (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:44), o que demonstra a persistência da homofobia na burocracia estatal brasileira, mesmo durante o processo de anistia.

Ricardo Joppert, que fora aposentado pela CIS 69 sob a alegação de "homossexualismo, incontinência pública escandalosa", também fora submetido a exame médico, psiquiátrico e psicológico no Centro de Medicina Aeroespacial da Aeronáutica em 1980. O parecer foi de que ele era "apto para as funções a que se destina". Ainda assim, a Comissão de 1986 julgou indispensável para a reversão da aposentadoria do diplomata que ele se submetesse a uma nova inspeção médica, "tendo em vista que aquela realizada quando da Anistia de 1980 poderia não mais refletir o estado atual de saúde do funcionário" (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:41).

Eloy Antonio Xavier também foi submetido ao exame médico sugerido pela Comissão de Anistia de 1980, que o considerou "apto para as funções a que se destina". Ainda assim, a Comissão de 1986 julgou que sua reversão "poderia ser condicionada apenas ao resultado de entrevista e, caso positiva, de nova inspeção médica" (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:44).

Quanto a José Adonias de Araújo Neto e José Maria Delgado Tubino, não há menções de que tenham sido submetidos a exames médicos em 1980. Devido aos diversos comentários elogiosos encontrados em seus boletins de avaliação de antes de serem compulsoriamente afastados do MRE, a Comissão de 1986 "decidiu informar que sua reversão poderia ficar condicionada apenas ao resultado de entrevista e, caso positiva, de inspeção médica" (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:46, 47, 51).

Ainda de acordo com a documentação, as entrevistas compreendiam perguntas sobre "o rumo que o funcionário imprimiu à sua vida profissional após o afastamento do serviço público", "eventuais problemas com polícia ou justiça", uma "descrição sucinta de vida pessoal" e sobre a "consciência que tem das tarefas que exerceria em seu cargo, caso revertesse, bem como grau de envolvimento com a 'Casa'" (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:59-60). Todas as entrevistas dos funcionários acusados de "homossexualismo" pela CIS 69 realizadas pela Comissão de Anistia vinculada ao MRE em 1986 foram consideradas positivas. Em seguida, os funcionários foram submetidos ao exame médico.

As cerca de 168 páginas que compõem a "Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos" incluem os relatórios dos exames realizados para a readmissão dos funcionários (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:125-142). Estes relatórios registravam a "Identificação" do paciente, por "Nome", "Idade", "Cor", "Sexo", "Estado Civil", "Naturalidade" e "Residência", bem como sua "História Clínica", sua "História Patológica Pregressa", sua "História Familiar" e sua "História Social"; e um "Inventário por Sistemas", que compreendia avaliações do "Aparelho respiratório", do "Aparelho cardiovascular", do "Aparelho gastrointestinal", do "Aparelho genito-urinario", do "Aparelho musculo-esqueletico" e do "Sistema nervoso", além de um "Exame do Coração", um "Exame dos pulmões", um "Exame do abdome", um "Exame das extremidades", um "Exame neurológico" e um "Exame psiquiátrico", este último sendo aquele com maior espaço destinado às anotações do médico. Por fim, a "Impressão diagnóstica" ao final do documento era uma decisão alternativa entre "Apto para as funções a que se destina" e "Inapto para as funções a que se destina", sendo seguida pela assinatura dos três médicos e do carimbo de André Luiz Silveira Miranda, psiquiatra.

Todos os funcionários examinados foram considerados "aptos para as funções" a que se destinavam (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
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:65-66). Não obstante os diagnósticos positivos, diversos exames registram, na seção destinada ao "Exame psiquiátrico", os "maneirismos" de fala, expressão e/ou gesticulação "compatíveis com o homossexualismo" de alguns dos funcionários (Brasil, 2016BRASIL. Documentação recolhida no arquivo do MRE acerca da Comissão de Anistia e de Presos Políticos. Referência EDS 13, Atas de Reunião, Lista de Funcionários do Itamaraty punidos por motivação política. Código de Referência: BR RJANRIO CNV.0.VDH.00092002421201316. Sistema de Informações do Arquivo Nacional, 2016 [https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/Pesquisa_Livre_Painel_Resultado.asp?v_CodReferencia_id=1319629&v_aba=1 - acesso em: 02 maio 2022].
https://sian.an.gov.br/sianex/Consulta/P...
:126, 128, 132). Cabe, ainda, ressaltar que os documentos eram destinados à circulação entre os médicos e os burocratas do MRE, excluindo os funcionários de qualquer protagonismo em sua produção, o que reforça a violência simbólica desse controle normalizante.

Considerações finais

O movimento LGBTQIA+ tem se consolidado, ao longo da história, como um bastião de oposição a qualquer tipo de opressão ou normatividade. Por isso, a ditadura hetero-militar brasileira viu-se compelida a enquadrar as homossexualidades e não conformidades de gênero como formas de subversão análogas à oposição ideológica comunista.

Este artigo se baseou na análise de documentos secretos do MRE de 1969 e 1986, de modo a contribuir para o entendimento dos impactos do AI-5 sobre a repressão da população LGBTQIA+. Especificamente, analisei o papel do MRE na repressão de seus funcionários homossexuais durante a ditadura. Os resultados relativizam as interpretações acerca do corporativismo do MRE, chamando atenção para a matriz heterossexual em que se baseia a construção das identidades dos membros da instituição.

De fato, ainda que o corporativismo do MRE possa ter permitido preservar as carreiras de muitos diplomatas que se opunham politicamente à ditadura, considerando que "apenas" quatro diplomatas foram aposentados compulsoriamente por suas "tendências esquerdistas" pela CIS 64, o mesmo não ocorreu com aqueles que eram homossexuais. Após a instauração do AI-5, o MRE criou uma Comissão de Investigações Sumárias (CIS 69) para identificar seus funcionários homossexuais e aposentá-los compulsoriamente.

O "Relatório Secreto da CIS 69, de 7 de março de 1969" recomendou a aposentadoria compulsória de sete diplomatas e seis servidores administrativos sob a alegação de "homossexualismo", além de sugerir exames para a comprovação de condutas homossexuais de outros dez diplomatas e dois servidores. Isso corrobora o argumento de Quinalha (2018)QUINALHA, Renan. Uma ditadura hetero-militar: notas sobre a política sexual do regime autoritário brasileiro. In: GREEN, James Naylor; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa (org.) História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo, Alameda, 2018, pp.15-38. que identifica que o cerne da política sexual da ditadura era expulsar a população LGBTQIA+ dos espaços públicos. Ademais, este artigo procurou ilustrar a associação, durante a ditadura, mas também ao longo do processo de anistia, entre a burocracia estatal brasileira e a produção de saber-poder médico-psiquiátrico no controle normalizante das subjetividades dos funcionários do MRE, argumentando que a matriz heterossexual da instituição limita seu corporativismo, seguindo as propostas de Foucault (1999FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 20. ed. Petrópolis, Vozes, 1999.; 2001) e Butler (2018)BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. Recurso digital..

Este artigo também buscou contribuir para a compreensão dos impactos do AI-5 sobre a repressão da população LGBTQIA+. Um dos obstáculos para este tipo de pesquisa é que "são mais raros documentos relativos ao intervalo de 1970 a 1974, que permitiriam entender melhor como se deram as perseguições que se seguiram ao AI-5" (Quinalha, 2018QUINALHA, Renan. Uma ditadura hetero-militar: notas sobre a política sexual do regime autoritário brasileiro. In: GREEN, James Naylor; QUINALHA, Renan; CAETANO, Marcio; FERNANDES, Marisa (org.) História do movimento LGBT no Brasil. São Paulo, Alameda, 2018, pp.15-38.:34). Isso porque boa parte desses documentos "está irremediavelmente perdida pela destruição proposital e sistemática de uma parcela significativa" da documentação referente ao período mais violento da ditadura (Setemy, 2018SETEMY, Adrianna. Do Serviço de Estudos e Informações (SEI) ao Centro de Informações do Exterior (CIEX): a institucionalização das políticas de informação e repressão ao comunismo no Itamaraty. Locus: revista de história, Juiz de Fora, v. 24, n. 1, 2018, pp.149-171 [https://doi.org/10.34019/2594-8296.2018.v24.20870 - acesso em: 03 ago. 2023].
https://doi.org/10.34019/2594-8296.2018....
:150). Não obstante, fontes de documentos que contribuem para superar esse obstáculo e expandir a pesquisa na área são os relatórios da Comissão Nacional da Verdade (Brasil, 2014a) e o Sistema de Informações do Arquivo Nacional.

Pesquisas futuras podem se aprofundar na análise do processo histórico de formação da matriz heterossexual que conforma as identidades dos membros do MRE, bem como na existência de outras formas de exclusão que expliquem a ausência de mulheres9 9 Para uma análise histórica da exclusão das mulheres do MRE, ver Tomas (2020). , pessoas indígenas, negras, travestis e transsexuais, por exemplo, em papéis de protagonismo na instituição. Também é necessário analisar os impactos da exclusão desses grupos sociais sobre a formulação e a execução da agenda da política externa brasileira, de modo a corrigir essa falha e contribuir para a construção de uma política externa verdadeiramente democrática.

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Fontes

  • 1
    Utilizo o termo "homossexualismo" quando em referência direta aos documentos analisados neste artigo. Segundo Quinalha (2021QUINALHA, Renan. Lampião da Esquina na mira da ditadura hetero-militar de 1964. cadernos pagu (61), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2021 [https://doi.org/10.1590/18094449202100610004 - acesso em: 03 ago. 2023].
    https://doi.org/10.1590/1809444920210061...
    :4), esta era a expressão "comumente utilizada pelos órgãos de repressão e vigilância da ditadura para se referir às práticas e identidades homossexuais. Originada no campo médico-científico, essa expressão, marcada pelo sufixo 'ismo', mantinha certa associação à ideia de uma doença ou transtorno". Somente em fevereiro de 1985, devido à pressão de movimentos sociais como o Grupo Gay da Bahia, o Conselho Nacional de Saúde removeu a homossexualidade da categoria de doenças tratáveis (Green, 2000GREEN, James Naylor. “Mais amor e mais tesão”: a construção de um movimento brasileiro de gays, lésbicas e travestis. cadernos pagu (15), Campinas-SP, Núcleo de Estudos de Gênero-Pagu/Unicamp, 2000, pp.271-295.).
  • 2
    Butler (2018BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2018. Recurso digital.:210), utiliza o conceito de matriz heterossexual para designar como as identidades são formadas a partir de um "modelo discursivo/epistemológico hegemônico da inteligibilidade do gênero, o qual presume que, para os corpos serem coerentes e fazerem sentido (masculino expressa macho, feminino expressa fêmea), é necessário haver um sexo estável, expresso por um gênero estável, que é definido oposicional e hierarquicamente por meio da prática compulsória da heterossexualidade".
  • 3
    Em outubro de 1965, o Ato Institucional n. 2 (AI-2) extinguiu os partidos políticos e autorizou apenas dois novos movimentos políticos, a Arena (Aliança Renovadora Nacional, situacionista) e o MDB (Movimento Democrático Brasileiro, oposicionista), além de tornar indireta a eleição de presidente e vice. O AI-3, de fevereiro de 1966, tornou a eleição de governadores e vice-governadores também indireta. O AI-4 foi emitido em 7 de dezembro de 1966, convocando para a elaboração de uma nova Constituição, outorgada em 1967 (Vizentini, 2004VIZENTINI, Paulo Fagundes. A política externa do regime militar brasileiro: multilateralização, desenvolvimento e construção de uma potência média (1964-1985). Porto Alegre, Ed. UFRGS, 2004.).
  • 4
    Criada pela ditadura em abril de 1964, a CGI era presidida por um general do exército e tinha por função promover o "realinhamento ideológico" de funcionários públicos ao regime ditatorial, isto é, cassar aqueles que não estivessem alinhados ao regime (Almeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
    https://www.academia.edu/5794095/066_Do_...
    ).
  • 5
    Os termos da mensagem de Rodrigues teriam sido: "Não posso acreditar que Você vá servir a um Governo de gorilas" (Castro, 2007CASTRO, Flávio Mendes de Oliveira. Caleidoscópio: cenas da vida de um diplomata. Rio de Janeiro, Contraponto, 2007.apudAlmeida, 2008ALMEIDA, Paulo Roberto de. Do alinhamento recalcitrante à colaboração relutante: Itamaraty em tempos de AI-5. In: FILHO, Oswaldo Munteal; FREIXO, Adriano de; FREITAS, Jacqueline Ventapane (org.). Tempo Negro, temperatura sufocante: Estado e Sociedade no Brasil do AI-5. Rio de Janeiro, Editora PUC-Rio/Contraponto, 2008, pp.65-89. Recurso digital [https://www.academia.edu/5794095/066_Do_alinhamento_recalcitrante_%C3%A0_colabora%C3%A7%C3%A3o_relutante_o_Itamaraty_em_tempos_de_AI_5_2008_ - acesso em: 03 ago. 2023].
    https://www.academia.edu/5794095/066_Do_...
    :8).
  • 6
    No início da Guerra Fria, já sob a pressão do antagonismo EUA-URSS, alguns diplomatas foram acusados de serem simpatizantes do bloco socialista, tendo sido objeto de inquérito sumário e sancionados em 1953, antes de serem absolvidos pela ação da Justiça, no ano seguinte. Foram estes Amaury Banhos Porto de Oliveira, Antônio Houaiss, Jatir de Almeida Rodrigues, João Cabral de Mello Neto e Paulo Augusto Cotrim Rodrigues Pereira (Almeida, 2008).
  • 7
    A expressão se refere à ala militar que defendia o endurecimento do regime ditatorial e a repressão aos seus opositores.
  • 8
    Agradeço aos comentários dos pareceristas anônimos que chamaram minha atenção para este fato, além de terem contribuído sobremaneira para a versão final deste artigo. Ainda assim, assumo qualquer equívoco persistente como de minha inteira responsabilidade.
  • 9
    Para uma análise histórica da exclusão das mulheres do MRE, ver Tomas (2020)TOMAS, Luah Batina. Prejudice, marriage and motherhood: national and international perceptions on the 1938 prohibition of women in Brazilian foreign service. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais), Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2020..

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Set 2023

Histórico

  • Recebido
    22 Nov 2021
  • Aceito
    14 Jun 2022
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