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Novas palavras na literatura amazônica

HARTLEY, L. P. O mensageiro. São Paulo: Nova Alexandria, 2003

“O passado é um país estrangeiro”. Escolhendo a metáfora do romance inglês O mensageiro, de L. P. Hartley (2003HARTLEY, L. P. O mensageiro. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.),1 1 “The past is a foreign country: they do things differently there” - a metáfora de Hartley (2003), que imbrica o tempo-espaço passado/estrangeiro, isto é, o Outro - como por vezes a Amazônia se apresenta para nós -, já foi também mote para a teoria da História (cf. Lowenthal, 1999). para iniciar um capítulo de seu livro de estreia, Arrabalde: em busca da Amazônia, João Moreira Salles (2022SALLES, J. M. Arrabalde: em busca da Amazônia. São Paulo: Cia. das Letras, 2022.) transmite gosto pela boa escrita. O mesmo apuro surge quando Salles ilumina trechos da obra com observações simples, coloquiais, mas de bem-vindo efeito literário. Por exemplo, antes de adentrar o bioma que o inspira: “Florestas não têm boa reputação no Ocidente. Nelas os homens se perdem, os lobos espreitam e mal se manifesta” (p.12).

Esse bem-vindo lançamento da Companhia das Letras pode ser incluído entre as melhores publicações já escritas sobre o grande bioma. Para aguçar o apetite de quem ainda não o leu, vale dizer que, após cada capítulo, fica-se com a impressão de que há ali dados incontornáveis. A seguir, a síntese de alguns indicadores recolhidos desse ambicioso e lúcido conteúdo.

Salles descreve uma cena que explica a trágica epopeia do regime militar, recrutando fazendeiros ou aspirantes, ofertando terras para plantar e enriquecer, desde que o ocupante consiga desmatar a floresta. Da varanda de sua confortável moradia, um senhor de 80 anos aponta o gado espalhado no imenso pasto, os estábulos, casas de moradores e outras benfeitorias. Exibida sua fazenda bem-equipada, com farta água de rios e igarapés, o pioneiro rural diz e repete: “Quando cheguei aqui, não havia nada!” (p.195). O nada, para ele, era a floresta, hoje transformada em pasto de uma boiada que se espalha por quilômetros. A cena resume a mentalidade dominante. João Moreira Salles ouviu a mesma frase de vários outros velhos ruralistas. A floresta é resto, arrabalde. Daí o título do livro, que, infelizmente, não comunica de imediato o seu excelente conteúdo.

O Brasil, desde o descobrimento, já perdeu 20% da floresta nativa na Amazônia. Isso não se deveu à marcha dos séculos, e sim a uma decisão desastrosa da ditadura militar em 1975. Até aquela data, somente 0,5% do bioma tinha sido derrubados. Hoje, a área devastada da Amazônia Legal corresponde à do território do Reino Unido. A despeito disso, é ali que o Brasil dispõe de 20% da água potável do planeta e 24% de toda a biodiversidade na face da terra.

O atual governo, segundo o autor, poderá salvar a Amazônia. Lula e Marina Silva “saberão fazê-lo novamente. Talvez nenhum país tropical disponha de infraestrutura técnica tão robusta quanto a nossa” (p.19). Potencialidades não faltam no manejo da madeira, no reflorestamento e, mais do que nunca, na bioeconomia, especialmente quando inclusiva, remunerando adequadamente os povos tradicionais e ribeirinhos.

O escritor mostrou-se otimista sobre “o reflorestamento das terras abandonadas para novos proveitos da natureza, para a engenharia baseada nas formas vivas, identificação de moléculas que curam, perfumam e embelezam, e para a agricultura de baixo carbono” (p.20). Há uma contradição, apenas aparente, entre esses prognósticos e uma afirmação na página seguinte: “Seria um erro e uma imoralidade tratar a floresta como um mero ativo econômico, reduzi-la a objeto de uso e domínio. Ela é um bem coletivo e, como tal, possui valor intrínseco. Não precisa servir a nada, nem ter a obrigação de ser útil” (p.21).

Logo no parágrafo seguinte, entretanto, ele esclarece: “Ocorre que ela é útil. Essa utilidade precisa ser identificada, estudada, descrita, gratificada. Isso é projeto de Estado, dever do País. A ciência demonstra que a Amazônia é essencial à estabilização do clima” (p.21). Essa argumentação dialética é um dos prazeres de leitura que a obra oferece.

Impressiona o relato de um almoço na zona rural de Paragominas. Ali se revela o agronegócio não apenas como atividade mercantil, mas um “modo de estar no mundo”, representado por veteranos e jovens proprietários. A matéria-prima do encontro equivale a um ensaio de boa sociologia. A descrição é tão real que podemos quase “ouvir” o sotaque dos comensais a expor suas opiniões e visões de mundo. O mais velho fala de suas práticas retrógradas, com o gado à solta em léguas de pasto, e o mais novo descreve a pecuária intensiva. Na TV ligada, o som misturado às palavras, um show de música sertaneja. O escritor nomeia as canções de sofrência e seus intérpretes. O texto se refere, por igual, com os nomes completos, aos personagens reunidos. Trajes que vestem, cinturões de fivelas douradas com suas iniciais, botas e chapéus texanos. Destaca, na parede, uma cabeça de touro provavelmente comprada na Flórida. Nada, absolutamente nada naquela cavaqueira relaciona-se com a floresta ali perto. A mata, em silêncio, é a grande ausente durante horas de fala caipira sobre os meios de enriquecimento.

Muito adiante, juntam-se aos boiadeiros novos personagens: madeireiros, políticos e plantadores de soja, reunidos em outras paragens. O narrador introduz na conversa o que ouviu sobre os impactos de uma nova política ambiental período 2004-2012. Marina Silva e Lula voltam à história. Diz o madeireiro: “Sabe quando foi que sentimos a presença do Estado aqui? Foi em 2004. Foi como se o governo dissesse ‘olha, cheguei, estou presente, aqui não é seu não, é da União e nós vamos pôr ordem nisso’” (p.217).

O capítulo prossegue apresentando uma política pública que se impõe ao ruralismo antiquado. Deixo os detalhes para o leitor conhecer por seus próprios meios. A técnica no livro é de romance, e dos bons. Com ajustes na composição ter-se-ia, pela primeira vez na ficção brasileira, o agronegócio atual.

Nas páginas magníficas de Arrabalde, é possível descobrir intensos episódios da vida científica, de tal modo que chegamos a supô-los fabulações. Busco aqui, mesmo correndo o risco da simplificação, resumir um enredo cuja heroína era uma jovem estudante de ciências que buscava entender por que numa árvore de grande porte podem conviver de 600 a 700 espécies, misturadas, talvez competitivas, talvez colaborativas.

Chamava-se essa moça Suzanne Simard. Tinha 22 anos e uma ideia na cabeça para responder se as florestas se organizavam graças à competição ou à cooperação entre as árvores. Ela cumpria o doutorado e confrontaria, com as suas ideias, os sábios da Universidade. Suspeitava e queria apostar tudo na cooperação.

Era consensual na comunidade dos doutores em ciências agrárias o princípio da competição entre vegetais. Mesmo assim, Simard insistia em sua pesquisa sobre redes simbióticas que irmanavam, na profundeza dos solos, árvores e fungos. Durante um ano ela fez experimentos e leu desbragadamente. Não entrarei aqui em detalhes de sua exaustiva investigação: chego logo ao momento em que ela aproximou um contador Geiger das folhas de uma bétula, árvore muito conhecida na Europa, que recebeu, na ocasião, uma carga radioativa. O ponteiro medidor saltou para o lado direito, mostrando que a planta incorporara os isótopos. Eis como Salles descreveu a hora gloriosa da descoberta: “Não custava tentar. Quando o contador se aproximou da árvore, os pulsos dispararam. Surpresa. ‘Estávamos ouvindo a bétula se comunicar com o abeto’ - escreveu Suzanne Simard em seu livro de memórias, contando a descoberta que mudou a ciência, provando que bétulas e abetos trocavam carbono fotossintético através da rede” (p.118).2 2 Ver Simard et al., 1997.

Em algumas páginas esclarecedoras e pontuadas de suspense, usando informações de Simard, Salles explica o fenômeno e conclui algo muito frequente no âmago das matas na Amazônia: “Em vez de ver as árvores como agentes individuais, que competem por alguns recursos entre si, ela considerou a floresta um ‘sistema cooperativo no qual as árvores conversam’, produzindo uma inteligência colaborativa que ela chamou de sabedoria da floresta” (p.119). Há nesse conto sobre o modelo organizativo das matas virgens algo que pode sensibilizar os jovens brasileiros no aprendizado de ciências, mostrando que é possível encantá-los com as performances da natureza.

Em Arrabalde, conhecemos novas abordagens históricas e antropológicas sobre a Amazônia pré-descobrimento - o que remete a obra em análise ao exame de especialistas. Com a expectativa de excelente receptividade, Moreira Salles agrega convicções próprias às fontes que nutriram sua prosa, todas declaradas e confiáveis.

Esta resenha não pode reproduzir o que há de epifânico e instrutivo nas 400 páginas deste livro memorável. Mas é impossível não rir de satisfação no Epílogo, quando o autor, atualizando com grande competência o pessimismo de Graciliano ou de Euclides,3 3 Cf. as obras-primas de Ramos (2019 [1938]) e Cunha (2019 [1902]). Este último também produziu um estudo, não finalizado, sobre a Amazônia (Cunha, 2003). assim começa as suas despedidas: “A despeito da retórica ufanista, o Brasil é pouca coisa. Não é potência econômica, nem científica, nem tecnológica, nem política. Longe disso. Quinhentos anos depois da chegada dos portugueses ao litoral baiano, não temos o que mostrar ao mundo” (p.317).

Quando uma constatação indignada começa a brotar no espírito do leitor brasileiro, o escritor se estende numa larga contrafação do próprio texto crítico, e sem desmentir nenhum item das lamúrias acima. Adiante, três breves trechos de uma longa e robusta argumentação em defesa dessa pátria nossa tão aviltada recentemente e, apesar disso, merecedora de todas as paixões:

[...] O que sobra então? O que distingue o país e o torna único? É simples. Temos a maior biodiversidade e a maior quantidade de carbono estocado em matéria orgânica do planeta. Mais do que importante, esse é um patrimônio crucial.

[...] Levada adiante, a ideia de um Brasil que retira de seu patrimônio natural, e da Amazônia em particular, o fundamento de sua identidade e de seu destino, que transforma o arrabalde em nossa casa, por assim dizer, impõe ao País uma tarefa magnífica.

[...] Pouco importa se o objetivo é fantasioso e difícil de alcançar. O que importa é o rumo. Para um país que sempre sonhou baixo, é uma linda ambição, apta a evitar que, no futuro, uma criança olhe para um mogno e acredite que esta diante de uma pilha de tábuas de compensado. (p.317)


Pintura facial Waurá, Terra indígena Xingu, 2016.

João Moreira Salles abre espaço para uma informação inquietante. Desenha um cenário inspirado em estudos produzidos nos Estados Unidos, que não traz boas notícias ao agronegócio brasileiro. Argumenta o autor que, apenas com a carne e a soja, a Amazônia Legal não terá fôlego para o futuro. Um dramático alerta emerge desse exercício acadêmico.

O trabalho empreendido por pesquisadores americanos demonstra que a Amazônia produz um volume irrisório de produtos com excelente desempenho na pauta global de exportação. As já referidas soja e carne, somadas ao milho, algodão e minérios, não bastam. Os itens amplamente vendidos lá fora são minimamente produzidos no bioma. Em 2018, a pauta destes itens de exportação na região abrange 662 produtos originários da floresta, mas em escala precaríssima. Faltam igualmente contatos, domínio técnico e controle de qualidade.

Os exemplos são preocupantes: em pimenta, a Amazônia perde para o Vietnã; em castanha, perde para a Bolívia; e em “grude de peixe” perde para a Tanzânia e a Guiana. Esse nome exótico, “grude”, refere-se ao colágeno extraído das nadadeiras dos peixes. O bioma da Amazônia concentra a maior diversidade de peixes de água doce do planeta, não aproveitados comercialmente. Três dos seus rios - Negro, Trombetas e Madeira - guardam uma ictofauna superior à de todos os rios da Europa. O desafio é conciliar a pesca com a preservação da indiscutível contribuição dos peixes para o equilíbrio dos ecossistemas aquáticos.

Com referência à cadeia de valor, em janeiro de 2022, de acordo com a tabela do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o preço mínimo da castanha-do-brasil em casca no Amazonas é de R$ 2,90 o quilo, valor que pode chegar a R$ 7,00 no início da safra. Esse produto, rico em selênio, corretamente beneficiado e embalado, é vendido a até R$ 80 por quilo em supermercados. Nesse caso, a participação do extrativista no preço pago pelo consumidor final variaria de 4% a 9%. A melhor distribuição da renda entre os agentes na cadeia de valor é determinante para a elevação do nível de bem-estar das comunidades locais e para a conservação da natureza (Marcovitch, 2023MARCOVITCH, J. “É preciso criar um novo modelo para agregar valor aos produtos da floresta”. Época Negócios, 16.2.2023. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/colunas/noticia/2022/02/e-preciso-criar-um-novo-modelo-para-agregar-valor-aos-produtos-da-floresta.html>. Acesso em: 14 jul. 2023.
https://epocanegocios.globo.com/colunas/...
).

Urge, sim, uma revolução cientifica e comercial na grande floresta para torná-la geradora de bem-estar para as comunidades locais e, simultaneamente, competitiva em escala global. Fecha-se este Arrabalde com a certeza de que foram lidas novas palavras na literatura sobre a Amazônia. Também com a convicção de que os meses passados por João Moreira Salles em Belém do Pará talvez representem um dos tempos mais úteis de toda a sua vida significativa.

Referências

  • CUNHA, E. da. Amazônia: um paraíso perdido. Manaus: Edua, 2003.
  • ______. Os sertões. São Paulo: Cia. das Letras, 2019 [1902].
  • HARTLEY, L. P. O mensageiro. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.
  • LOWENTHAL, D. The Past Is a Foreign Country. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.
  • MARCOVITCH, J. “É preciso criar um novo modelo para agregar valor aos produtos da floresta”. Época Negócios, 16.2.2023. Disponível em: <https://epocanegocios.globo.com/colunas/noticia/2022/02/e-preciso-criar-um-novo-modelo-para-agregar-valor-aos-produtos-da-floresta.html>. Acesso em: 14 jul. 2023.
    » https://epocanegocios.globo.com/colunas/noticia/2022/02/e-preciso-criar-um-novo-modelo-para-agregar-valor-aos-produtos-da-floresta.html
  • RAMOS, G. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2019 [1938].
  • SALLES, J. M. Arrabalde: em busca da Amazônia. São Paulo: Cia. das Letras, 2022.
  • SIMARD, S. et al. Net Transfer of Carbon Between Ectomycorrhizal Tree Species in the Field. Nature, v,388, p.579-82, 1997. DOI: https://doi.org/10.1038/41557
    » https://doi.org/10.1038/41557

Notas

  • 1
    The past is a foreign country: they do things differently there” - a metáfora de Hartley (2003HARTLEY, L. P. O mensageiro. São Paulo: Nova Alexandria, 2003.), que imbrica o tempo-espaço passado/estrangeiro, isto é, o Outro - como por vezes a Amazônia se apresenta para nós -, já foi também mote para a teoria da História (cf. Lowenthal, 1999LOWENTHAL, D. The Past Is a Foreign Country. Cambridge: Cambridge University Press, 1999.).
  • 2
    Ver Simard et al., 1997SIMARD, S. et al. Net Transfer of Carbon Between Ectomycorrhizal Tree Species in the Field. Nature, v,388, p.579-82, 1997. DOI: https://doi.org/10.1038/41557
    https://doi.org/10.1038/41557...
    .
  • 3
    Cf. as obras-primas de Ramos (2019RAMOS, G. Vidas secas. Rio de Janeiro: Record, 2019 [1938]. [1938]) e Cunha (2019______. Os sertões. São Paulo: Cia. das Letras, 2019 [1902]. [1902]). Este último também produziu um estudo, não finalizado, sobre a Amazônia (Cunha, 2003).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Abr 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2024

Histórico

  • Recebido
    14 Jul 2023
  • Aceito
    25 Ago 2023
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