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Espaço literário e cultural franco-brasileiro

Ao analisar a condição paratópica do escritor - ela mesma uma forma de “margem” - D. Maigueneau (2000, p.99) a identifica com “todos os que parecem não ser incluídos nas linhas divisórias da sociedade: boêmios, judeus, mulheres, palhaços, aventureiros, índios americanos... a depender das circunstâncias”. Se a identificação entre o artista e o marginal foi consolidada pelos românticos, ela foi reforçada, desdobrada e problematizada pelas várias vertentes modernistas. O estar “de fora” manifesta-se num sem número de tópicas literárias, que vão das formas de gauchismo à exclusão econômica. Ao narrar o velório do pai, o protagonista de Angústia, de Graciliano Ramos, Luís da Silva, descreve-se como um adolescente invisível, deslocado “num canto, roendo as unhas, olhando os pés do finado, compridos, chatos amarelos” (Ramos, 2000RAMOS, G. Angústia (1936). Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2000., p.18). O situar-se num “canto” qualquer, normalmente “encolhido”, a observar os outros, será imagem representativa de sua personalidade arredia. Estar “de fora”, sobretudo olhar de fora, é como se configura a postura “gauche” drummondiana, também expressa pela topografia do “canto”, lugar onde o eu lírico do poema “A mesa” se situa no banquete imaginário que se faz ao pai: “[...]. Por exemplo: / ali ao canto da mesa, / não por humilde, talvez / por ser o rei dos vaidosos / e se pelar por incômodas / posições do tipo gauche, / ali me vês tu. Que tal?” (Andrade, 1951ANDRADE, C. D. de. Claro enigma (1951). São Paulo: Cia. das Letras, 2012., p.98). Canto, borda, margem. Apenas dois exemplos, e ambos da literatura brasileira modernista, vêm ilustrar como a Arte não só pode, como costuma ser expressão de um estar, ser colocado ou colocar-se à margem.

A representação artística da margem se faz de modo múltiplo e até inesgotável, pois, para além de símbolo de uma personalidade retraída, é também condição social; espaço gráfico e geográfico; estado mental. A margem se faz linguagem, e vice-versa: na condição de literatura, a linguagem está continuamente a se mover de um centro qualquer, seja ele a norma, a instrumentalização ou o poder.

Uma verdadeira tipologia e, portanto, também uma antologia da margem pode ser encontrada no dossiê Poética das margens no espaço literário e cultural franco-brasileiro. A publicação conta com quinze artigos escritos por doutorandos (muitos dos quais já, hoje, doutores) do Brasil e da França, e vem por isso contribuir para uma história de rica troca cultural entre esses dois países. Com participação da Universidade de São Paulo e as de Paris Nanterre e Paris 8 Vincennes-Saint Denis, e coordenação dos professores Eliane Robert Moraes (USP) e Camille Dumoulié (Paris Nanterre), o projeto resultou num trabalho de pesquisa e debates realizado entre 2015 e 2017. Promoveu, a partir da interação entre o Centre de Recherches en Littérature et Poétique Comparées de Paris Nanterre e o Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira da USP, dois colóquios por ano, um na USP e outro nas duas universidades francesas, num total de seis encontros internacionais; a criação de um blog1 1 Disponível em: <https://poeticadasmargens.wordpress.com/>. e a elaboração dos artigos que aqui se apresentam. Reunidos, esses textos compõem um dossiê publicado na revista Silène 2 2 Disponível em: <www.revue-silene.com>. Link para o dossiê: <http:// www.revue-silene.com/f/index. php?sp=colloque&-colloque_id=18>. Observe-se que, para dossiê, a revista emprega os termos “colloque” e o correspondente “simpósio”. e resultam das reflexões (num âmbito individual) articuladas à troca de ideias (num âmbito coletivo) entre os pesquisadores.3 3 Além dos coordenadores, os encontros contaram com a participação de um grupo de professores colaboradores, entre eles Gérard Dessons (Paris 8), Jean-Claude Laborie (Paris Nanterre), Juan Moreno (Universidad del Valle), e, no âmbito brasileiro, Álvaro Faleiros (USP), Laura Hosiasson (USP), Fernando Paixão (USP), Yudith Rosenbaum (USP), Simone Rufinoni (USP) e Jorge Wolff (UFSC). A coordenação editorial ficou a cargo de Julie Brugier e Thiago Mattos. A edição é bilíngue, tendo os ensaios sido traduzidos pelos próprios doutorandos, e conta com a apresentação dos coordenadores. O resultado é uma manifestação vívida da multiplicidade dos cruzamentos que atravessam a ideia de margem, e são atravessados por ela.

Os quinze ensaios do dossiê se organizam em quatro blocos: 1. Rituais do corpo, 2. Literaturas menores, 3. Margens sociais, e 4. Práticas da escrita. O primeiro, “Rituais do corpo”, traz o corpo como subversão, tanto nos seus limites com o grotesco quanto no questionamento de modelos hegemônicos impostos pelo patriarcado. Trata-se dos ensaios “A orgia dos duendes uma dança macabra à brasileira”, de Juliana Schmitt (Universidade Federal de Juiz de Fora) e “Mecanismo da emoção amorosa: o gênero, a literatura e os seus duplos”, de Larissa Costa da Mata (Universidade de São Paulo). Enquanto o primeiro perfaz a historiografia do poema erótico-satírico de Bernardo Guimarães, obra de sua produção dita “irregular” (leia-se: marginal), inscrevendo-o na tradição da “dança macabra” medieval, o segundo recupera o vanguardismo do livro “sem gênero” de Flavio de Carvalho. “Mecanismo da emoção amorosa”, dada sua multidisciplinaridade - exemplo de quando a margem se concebe pela ausência, justamente, de limites classificatórios - é analisado a partir das relações estabelecidas entre uma apologia ao matriarcado e o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade.

O segundo, “Literaturas menores”, problematiza a literatura à margem do cânone, a qual guarda sempre a surpresa das leituras renovadas e promove reavaliações críticas desse mesmo cânone. Os ensaios reunidos nesse bloco comprovam que, se uma literatura menor é capaz de subverter e criar formas de crítica e resistência, as paraliteraturas, como a pornográfica e a popular dos cancioneiros se constituem como gêneros potentes de provocação das conceituações de “alta literatura”. Em “Um autor e um gênero marginais: a pornografia de Charles Duits”, Leonardo Alexander do Carmo Silva (Universidade Sorbonne Nouvelle (Crepal)/Universidade de São Paulo) percorre a obra de Duits para verificar sua incursão pela pornografia como movimento deliberado de “inclusão na exclusão”, trajetória que lembra inclusive a de Hilda Hilst, tanto mais que o autor francês também transgride as margens entre pornografia e sacralidade. Daniel Batista Lima Borges (Universidade Paris Nanterre), em “Produção escrita de literatura oral em Timor-Leste como literatura menor”, vale-se de sua experiência pessoal como professor no país asiático e do conceito deleuziano de literatura menor para avaliar a prática do estímulo à leitura das literaturas orais tradicionais - marginais em relação ao português escrito - como forma de fomentar o plurilinguismo, o qual, por sua vez, é tido por subversão da norma. Em “O Cancioneiro do Bairro-Alto (1864), uma poética do baixo: a criação de um cancioneiro erótico na literatura portuguesa moderna”, Pénélope Patrix (Universidade de Lisboa), volta-se à literatura considerada “sub” (subliteratura, pertencente ao submundo, expressa pelo sub- ou baixo calão), para reler o Cancioneiro do Bairro-Alto considerando seus expedientes literários. Por fim, em “O Enigma de Qaf de Alberto Mussa: reativação do cânone a partir da paraliteratura”, Juan Sebastian Rojas (Universidade de Cali), ilumina a literatura considerada “menor” ao concebê-la como forma de provocação e revigoramento da arte literária.

O bloco “Margens sociais” dedica-se à concepção de margem como exclusão, num espectro que vai da imposição de padrões taxonômicos e culturais à marginalidade socioeconômica. Luiza Destri (Universidade de São Paulo), em “Prometeo di periferia: uma história de margem na poesia de Murilo Mendes”, trata da migração, interna na poesia muriliana, de uma visão da margem como positividade criadora do poeta, visto como “mago”, a uma sua tomada de consciência como artista periférico: um Prometeu, mas à margem do cânone europeu que o formou. Pierre Boizette (Universidade Paris Nanterre), em “Reapropriando-se da margem: a poética da indisciplina na obra de V. Y. Mudimbe” propõe importante reflexão epistemológica sobre como e de que “lugar” se define o que é margem, para problematizar as próprias noções de disciplina, representados e representantes, sujeitos e colonizados, a partir da obra do congolês Valentin-Yves Mudimbe. Renato Martins (Universidade de São Paulo), no ensaio “Por uma poética da diferença em Visão do paraíso, de Sérgio Buarque de Holanda”, volta-se à obra do intelectual brasileiro para revisitar uma “poética da diferença”, que reveste o “outro”, o “diferente” ou “novo” (considerando o contexto exatamente da descoberta de um “Novo Mundo”), de enigma e misticismo. Em “Repensar a marginalidade a partir do conceito de desfiliação do sociólogo francês Robert Castel: o exemplo de Notre-Dame de Paris”, Marie-Agathe Tilliette (Universidade Paris Nanterre) aplica à obra hugoana o conceito de Castel a fim de recolocar em questão as diferenças entre condição (de excluídos ou marginalizados) e processo (desfiliados). Fechando o bloco, o artigo “Leituras da margem social em literatura: violência e marginalidade em La Belle Créole de Maryse Condé”, de Julie Brugier (Universidade Paris Nanterre), parte da figura do bode expiatório, à luz do antropólogo René Girard, para investigar como ela, ao pressupor a ideia de unanimidade ou consenso, tem como efeito a coesão social; o bode expiatório tem força tanto desintegradora quanto reintegradora, portanto.

O último dos quatro conjuntos, “Práticas da escrita”, traz os artigos que exploram tradução, transferência, processos metalinguísticos e marginalia, afinal, um dos sentidos do conceito de “margem”. Thiago Mattos (Universidade de São Paulo), em “Traduzir a margem e à margem: duas reescritas de Mon cœur mis à nu”, de Charles Baudelaire, aborda os desafios enfrentados por quem traduz uma obra inacabada, entre os quais a questão de como traduzir o que o poema faz, ou seja, o ritmo do rascunho, além do que ele diz. A margem como lugar inventado, símbolo do inapreensível e do surpreendente, é analisada por Christian Galdón (Universidade Paris 8) em “A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa: o terceiro espaço da significância”. Galdón parte das considerações de Derrida sobre o oblíquo para tratar do espaço imprevisto inaugurado no conto rosiano, mas também para refletir sobre a poética do autor de Primeiras estórias, igualmente avessa às abordagens binárias e cartesianas. As transferências culturais, ao promoverem o deslocamento de contextos e a consequente ressignificação de obras literárias, ultrapassam margens e inauguram outras, como mostra Raísa França Bastos (Universidade Paris Nanterre) no artigo “A margem à prova da transferência nos textos do ciclo carolíngio”. Ao fim do bloco e do dossiê, encontra-se o artigo “Marginália, poesia e dança”, de Aline Novais Almeida (Universidade de São Paulo), em que as anotações do leitor crítico que foi Mário de Andrade, feitas em edição princeps de As metamorfoses, de Murilo Mendes, revelam a atenção dedicada ao tema da dança pelo autor de Macunaíma, cujas pesquisas sobre música e danças brasileiras são notórias.

A par da coerência da organização, que reúne os ensaios por afinidades de temas e abordagens, chama a atenção o modo como os textos dialogam entre si, inclusive extrapolando os limites - ou margens - de cada bloco. A publicação, caracterizada pela diversidade e heterogeneidade de autores e perspectivas teóricas, leva, quando considerada em seu conjunto, à percepção de que um artigo é capaz de iluminar as reflexões propostas por outro(s), ainda que tratem de assuntos diversos. Tome-se o caso dos ensaios sobre Bernardo Guimarães e Charles Duits, por exemplo, sobre um brasileiro e um francês nascidos com um século de intervalo (1825 e 1925, respectivamente), que, no entanto, têm suas obras consideradas sob o ponto de vista de uma produção marginal em relação a elas mesmas. Em Duits, a produção pornográfica, entendida como uma forma de paraliteratura, é a que lhe permite ir além de clichês e atingir a liberdade almejada e obtida por meio da sátira. Embora distante no tempo e no espaço, a obra de Guimarães poderia ser vista sob óptica análoga, já que A orgia dos duendes é tida por uma realização “irregular”, em oposição à centralidade de Cantos da solidão (1852) e A escrava Isaura (1872). Ainda que se considerem as devidas distinções, como a existente entre o bestialógico de Guimarães e o pornográfico de Duits, os ensaios exploram tais gêneros como exercícios centrífugos em relação ao cânone e deflagram a existência de fronteiras e margens no interior da obra de um mesmo artista.

Ocorre ainda que veios temáticos afins ou até o mesmo autor possam ser abordados por ângulos e a partir de recortes distintos, o que aponta, ainda uma vez, para a problematização proposta pelo tema comum: haveria formas mais ou menos marginais, ou métodos mais ou menos canônicos de aproximação de uma obra? O caso dos dois artigos que tratam da poesia de Murilo Mendes é capaz de fornecer pistas sobre essa questão, até por se encontrarem em seções distintas do dossiê: enquanto a análise da tópica do poeta como artífice periférico em relação à centralidade do poder, feita em “Prometeo di periferia: uma história de margem na poesia de Murilo Mendes”, encontra-se na terceira parte do dossiê (“Margens sociais”), a das leituras realizadas por Mário de Andrade de obras do poeta mineiro, em “Marginália, poesia e dança”, encontra-se na quarta (“Práticas de escrita”). Debruçadas sobre a obra de Murilo Mendes, as autoras partem de diferentes pressupostos teóricos - o conceito de “estilo tardio” e a crítica genética - para realizar suas investigações. A autora do primeiro ensaio considera dois poemas murilianos sobre margem para neles distinguir a visão do poeta sobre o próprio ofício e sua relação com a política. Se num deles, chamado justamente “Margens”, o poeta é o marginal-criador, mago-demiurgo eufórico, no outro, “Hans Magnus Enzensberger”, é o marginal-periférico, melancólico e disfórico. Já no segundo ensaio citado, marginal é o registro da leitura feita por outro poeta, Mário de Andrade. A problematização da fronteira estabelecida entre as produções de um autor polígrafo, como o de Macunaíma, faz indagar onde terminaria o leitor crítico e começariam o estudioso de cultura brasileira e o escritor de literatura. Ou questionar qual o limite entre a esfera privada em que se dão as anotações marginais e a pública, onde elas se revelam. Mário de Andrade não viveu para ler os poemas de Murilo Mendes sobre margem, que são da década de 1960. Entre as tantas questões que suscitam, os artigos nos levam a imaginar que, se ele tivesse tido essa oportunidade, possivelmente se reconheceria em ambos: na marginalidade iconoclasta expressa na Pauliceia desvairada e na reflexiva entrevista no Livro azul, ou no próprio Macunaíma, herói marginal lúbrico que cede lugar ao deslocado melancólico.

Não por acaso, a imagem empregada por Deleuze para definir o conhecimento em rede, o rizoma, é a de um “rio que rói suas margens” (Deleuze; Guattari, 1995DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v.1., p.36). Ao mesmo tempo em que divide ou limita, a margem se dispõe a ser questionada, subvertida, implodida, mesmo porque, estar nela implica assumir algum grau de distanciamento crítico. Assim, os quinze artigos reunidos em Poética das margens se tocam, complementam e, sobretudo, dialogam entre si - numa ruptura de fronteiras que o próprio projeto de intercâmbio cultural pressupõe - quando concebem margem como espaço, mas também como linguagem; como assunto, mas também como disposição mental; como condição social, mas também como postura frente ao mundo. O projeto e o dossiê realizam o que a Arte e o exercício intelectual permanentemente propõem: trazem ao centro a discussão acerca de um conceito que o desestabiliza, promovendo atualização, movimento, deslocamentos.

Referências

  • ANDRADE, C. D. de. Claro enigma (1951). São Paulo: Cia. das Letras, 2012.
  • DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. v.1.
  • MAINGUENEAU, D. Discurso literário. São Paulo: Contexto, 2012.
  • RAMOS, G. Angústia (1936). Rio de Janeiro; São Paulo: Record, 2000.

Notas

  • 1
    Disponível em: <https://poeticadasmargens.wordpress.com/>.
  • 2
    Disponível em: <www.revue-silene.com>. Link para o dossiê: <http:// www.revue-silene.com/f/index. php?sp=colloque&-colloque_id=18>. Observe-se que, para dossiê, a revista emprega os termos “colloque” e o correspondente “simpósio”.
  • 3
    Além dos coordenadores, os encontros contaram com a participação de um grupo de professores colaboradores, entre eles Gérard Dessons (Paris 8), Jean-Claude Laborie (Paris Nanterre), Juan Moreno (Universidad del Valle), e, no âmbito brasileiro, Álvaro Faleiros (USP), Laura Hosiasson (USP), Fernando Paixão (USP), Yudith Rosenbaum (USP), Simone Rufinoni (USP) e Jorge Wolff (UFSC). A coordenação editorial ficou a cargo de Julie Brugier e Thiago Mattos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2021
  • Aceito
    24 Maio 2021
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