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Traduzindo Leopardi

DOSSIÊ TRADUÇÃO LITERÁRIA

Traduzindo Leopardi

Ecléa Bosi

Professora emérita da Universidade de São Paulo. É autora de Memória e sociedade (Companhia da Letras, 2002) e O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social (Ateliê, 2003). @ – ecbosi@usp.br

RESUMO

O texto apresenta a versão de "Il sabato del villaggio" de Giacomo Leopardi e alguns comentários sobre aspectos semânticos e estilísticos do poema.

Palavras-chave: Literatura italiana, Giacomo Leopardi, Tradução, Teoria literária.

O SÁBADO DA ALDEIA

Giacomo Leopardi

(trad. Ecléa Bosi)

Vem chegando do campo a donzelinha,

Quando se põe o sol,

Com seu feixe de erva e traz na mão

Um maço de rosas e violetas

E com elas enfeita

Amanhã, dia de festa,

Os cabelos e o seio.

Das vizinhas ao meio,

Sobre a escada a fiar, uma velhinha,

Naquele ponto onde se perde o dia;

E recordando vai do seu bom tempo

Quando em dias de festa se adornava

E ainda fresca e esbelta

Costumava dançar entre os que foram

Seus companheiros da idade mais bela.

Já todo o ar se embruma,

Volta azul o sereno e as sombras voltam

Das colinas e tetos,

Ao branquejar da recém-vinda lua.

O sino prenuncia

Que vem chegando a festa

E àquele som dirias

Que o coração conforta.

Os meninos gritando

Na pracinha em tropel

Daqui e dali saltando

Fazem grato rumor:

No entanto volta à sua parca mesa

Assobiando, o lavrador,

Pensando vai no dia do repouso.

E quando em volta toda luz se apaga

E tudo o mais se cala,

Ouve o martelo dar, e ouve a serra;

O carpinteiro vela

Da oficina fechada à lamparina

E se apressa e se esforça

Por terminar a obra antes da aurora.

Este dos sete é o mais amável dia

De esperança e alegria;

Amanhã, tristeza e tédio

Trarão as horas e ao mesmo trabalho

Cada um voltará seu pensamento.

Rapazinho travesso,

Esta idade florida

É como um dia de alegria pleno,

Dia claro, sereno,

Que prenuncia a festa de tua vida.

Goza, menino meu; estado suave,

Leda estação é esta.

Nada mais te direi; mas a tua festa

Não te pese ao chegar mesmo que tarde.

Comentário

Dedico esta versão a José Paulo Paes, tradutor de Leopardi.

Aplicando reflexões do mesmo Leopardi, sobre perdas e ganhos, vejamos o que se salvou na tradução.

"Il sabato del villaggio" descreve um quadro de costumes da época: profissões, personagens, o cenário das ruas e praças, o mundo do lazer e do trabalho no tempo de Leopardi. A cidade – suponho que seja Recanati – se torna compreensível para nós. Sobretudo, torna-se visível tanto no original como, espero, na tradução.

Quanto movimento nas oposições!

A tradução conserva elementos pictóricos do texto: a moça que vem do campo carregando um feixe de ervas e um pequeno maço de flores, trazendo em seus braços os dois emblemas, o do trabalho e o da festa. Eis o primeiro contraste.


Vem em seguida a diferença entre o passado e o presente, entre o velho e o moço. A velha recorda enquanto a jovem se prepara para a festa.

É a mocinha, a donzelletta, que abre a cena e desencadeia com seus passos, em direção ao centro, o clima da festa. E Leopardi, estilista sóbrio, repete cinco vezes a palavra festa nesta poesia breve, assinalando o contraste entre o trabalho e a diversão.

A velha fia junto às vizinhas, postada no mais alto degrau da calçada, naquele ponto onde se perde o dia. E elas conversam sobre antigas festas enquanto a noite chega justamente atrás da anciã.

As sombras vão caindo ao clarear da recém-vinda lua.

Anoiteceu, e o lavrador volta assobiando para a sua ceia modesta, mas o artesão, encerrado na oficina, vai passar a noite trabalhando, pois tem urgência de acabar a obra. Encerrado, enquanto todos saem para a praça e vão participar da festa. Talvez o artesão seja o próprio Leopardi que observa solitário, como nos confessa em La sera del dì di festa, Vaghe stelle dell'Orsa....

Mas ele sente o contraste entre o sábado e os outros dias da semana: "Este dos sete é o mais amável dia".

Contraste dentro do próprio sábado: é o dia da festa e a véspera do fim. O italiano de Leopardi assume a musicalidade grave do entardecer. Como traduzir as arcadas de violoncelo dos últimos versos? Impossível. Mas alguma coisa se salvou daqui e dali. Algumas rimas continuaram, de algum modo, para compensar a música interna leopardiana.

Há momentos na tradução que talvez fiquem na lembrança do leitor: E quando em volta toda luz se apaga – E tudo o mais se cala – Ouve o martelo dar, e ouve a serra...

O português é suave e brando, língua propícia a descrever estados da natureza ou da alma com gradações que vão delicadamente se transformando. O italiano é mais incisivo, especialmente o leopardiano, guardando melhor a concisão latina.

O poeta elegeu duas personagens para abrir e fechar o poema: a mocinha do início e o menino travesso do final, o garzoncello scherzoso, que ele destaca do grupo de brincalhões. Chama a atenção para o contraste entre o stato soave, a stagion lieta e a vida adulta. E termina com uma prece votiva pelo futuro do menino:

Godi, fanciullo meio, stato soave,

Stagion lieta è cotesta.

Altro dirti non vo'; ma la tua festa

Ch'anco tardi a venir non ti sia grave.

Certas traduções parecem recobrir um móvel estupendo com tecido rústico. Esse tecido vai-se rompendo com o tempo, se esgarçando e, pelos rasgos da memória, aparece o original, estofo precioso. Em versos de Leopardi inequívoco transparece o latim originário.

Com o passar dos anos o tradutor esquece a sua versão, mas os versos originais ardem como fogo em sua memória e se repropõem enquanto ele viver.

Recebido em 11.9.2012 e aceito em 21.9.2012.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Nov 2012
  • Data do Fascículo
    Dez 2012
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