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Entre poéticas e escrevivências para a infância: o projeto literário negro-feminino na cena literária brasileira contemporânea

Between poetics and living-writing for childhood: the black-female literary project in the contemporary brazilian literary scene

Entre poéticas y las escrivencias para la infancia: el proyecto literario negro-femenino en la escena literaria brasileña contemporánea

Resumo

O presente artigo busca ressaltar a importância da literatura infantil negro-brasileira de autoria feminina, destacando sua poética insubmissa. Para tanto, fez-se necessário investigar a autoria e como ela apresenta suas obras do ponto de vista da crítica social. Assim, compreendeu-se que os projetos literários de Kiusam de Oliveira e Cidinha da Silva se fazem extremamente necessários para uma educação antirracista e antissexista, o que se dá em diálogo com as epistemologias decoloniais que centralizam o/a negro/a na cena literária como protagonista. Com base em um trabalho com as questões étnico-raciais e de autoria atravessadas pela interseccionalidade entre raça, classe e gênero, Kuami e O mundo no black power de Tayó contribuem para uma guinada subjetiva capaz de demonstrar as potencialidades dessa literatura.

Palavras-chave:
literatura infantil contemporânea; literatura negro-brasileira; autoria negro-feminina

Abstract

This article seeks to emphasize the importance of black-Brazilian children’s literature by female authorship, highlighting its unsubmissive poetics. Therefore, it was necessary to investigate authorship and how it presents its works from the point of view of social criticism. It was understood that the literary projects of Kiusam de Oliveira and Cidinha da Silva are extremely necessary for an anti-racist and anti-sexist education, which takes place in dialogue with the decolonial epistemologies that centralize black people in the literary scene, as protagonist. Based on a work with ethnic-racial issues and authorship crossed by the intersectionality between race, class, and gender, Kuami and O mundo no black power de Tayó contribute to a subjective shift capable of demonstrating the potential of this type of literature.

Keywords:
contemporary children’s literature; black-Brazilian literature; black-female authorship

Resumen

Este artículo busca resaltar la importancia de la literatura infantil negra-brasileña de autoría femenina, destacando su poética insumisa. Así, fue necesario investigar la autoría y cómo se presentan sus obras desde el punto de vista de la crítica social. Así, se entendió que los proyectos literarios de Kiusam de Oliveira y Cidinha da Silva son necesarios para una educación antirracista y antisexista, que ocurre en diálogo con las epistemologías decoloniales que centran la persona negra como protagonista en la escena literaria. A partir de un trabajo con cuestiones étnico-raciales y de autoría atravesada por la interseccionalidad entre raza, clase y género, Kuami y O mundo no black power de Tayó contribuyen para a un giro subjetivo capaz de demostrar el potencial de esta literatura.

Palabras clave:
literatura infantil contemporánea; literatura negra-brasileña; autoría negra-femenina

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, de forma mais marcada e crescente, a literatura infantil negro-brasileira tem se ampliado e estado cada vez mais próxima dos universos de análise e crítica literária, passando a ocupar um lugar que, historicamente, foi questionado por ser destinado a crianças e ter um caráter pedagógico atrelado desde sua gênese e, de maneira menos incisiva, nas últimas décadas. Nessa direção, com base em um trabalho que se circunscreve nas autorias, nas temáticas e na publicização dessa produção literária, ampliam-se as concepções do que pode tematizar a literatura infantil e como suas obras possibilitam uma mobilização específica em torno da constituição do próprio eu-leitor — crianças que estão em processo de formação e têm a possibilidade de serem afetadas por essas leituras. Assim, é importante considerar a incursão de temáticas emergentes e sensíveis como, por exemplo, racismo, questões de gênero e sexualidade, imigração, política, entre outras, que são recorrentes na cena literária contemporânea e cada vez mais próximas do universo vivencial das crianças.

A produção literária destinada às crianças e assinada por mulheres negras, que partem de um local de fala racializado, torna-se uma poética insubmissa ao conjugar o que elas realizam por meio de seus projetos literários e como contribuem, ao mesmo tempo que cunham um escopo teórico e analítico pelo do qual se viabilizam categorias e dispositivos que servem de subsídio para refletir sobre tais temáticas e suas poéticas. Nesse bojo, é importante considerar como os engajamentos sociais e político-acadêmicos dessas mulheres negras, considerando-se as populações minoritárias de representação política, problematizam o texto literário como tema ou motivo de uma crítica social engajada.

A problemática central e as primeiras motivações deste artigo deram-se em virtude da necessidade de um levantamento das produções literárias infantis produzidas por mulheres negras nas últimas duas décadas, principalmente após a promulgação da Lei Federal nº 10.639, em 2003, que tornou obrigatório o trabalho com a História e Cultura Africana e Afro-brasileira no âmbito da educação básica; e, posteriormente, de uma crítica que privilegiasse essa autoria conjugada com suas próprias experiências de vida. O trabalho centrou-se em autoras inscritas como sujeitas de suas próprias histórias, cujas escrevivências podem e são tematizadas no texto infantil como mecanismo de empoderamento, de autoconscientização e de autopertencimento, pois tal especificidade — a escrita negro-feminina — traz para o texto literário atitudes e práticas que colocam a experiência de ser e estar mulher negra no Brasil e todos os seus problemas como motivo e projeto da produção literária, o que culmina em uma desobediência epistêmica.

Nesse bojo, objetivamos analisar o projeto literário negro-feminino em duas produções literárias infantis do escopo da literatura negro-brasileira contemporânea e como as autoras Kiusam de Oliveira e Cidinha da Silva1 1 Selecionaram-se as escritoras Cidinha da Silva e Kiusam de Oliveira pelos seguintes crivos: a primeira característica debruça-se sobre a autoria — mulheres negras; a segunda, protagonismos negros, preferencialmente o feminino. Posteriormente, com base em três categorias que são identificadas nas narrativas analisadas: fenótipos, racismo e protagonismo feminino negro. Considera-se, ainda, a especificidade de as escritoras serem tanto literatas quanto teóricas, o que potencializa a crítica social por meio da literatura. fazem uma crítica social por intermédio de suas obras, sob a ótica das epistemologias decoloniais. Para tanto, faz-se necessário recorrer às discussões de Santiago (2000)SANTIAGO, Silviano (2000). O entre-lugar do discurso latino-americano. In: SANTIAGO, Silviano. A literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 9-27., Evaristo (2007)EVARISTO, Conceição (2007). Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza. p. 16-21., Duarte (2014)DUARTE, Eduardo de A. (2014). Literatura Afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XX. Rio de Janeiro: Pallas., Mbembe (2014)MBEMBE, Achille (2014). Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona. e Debus (2017)DEBUS, Eliane (2017). A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens. São Paulo: Cortez/Centro de Ciências da Educação.. A metodologia é de revisão bibliográfica, caracterizada como análise crítica qualitativa, tendo como corpus de análise as citadas escritoras negras e suas produções literárias. Nesse tensionamento, é importante observar que essas poéticas são atravessadas por questões críticas oriundas da decolonialidade e pela interseccionalidade entre raça, classe e gênero.

Desse modo, compreendem-se os projetos literários negro-femininos como possibilidades de desconstrução do imaginário coletivo eurocentrado, já que eles se apropriam das perspectivas decoloniais de discussão e crítica à colonialidade e suas inúmeras faces de realização, na direção de essa autoria representar suas personagens pela tematização negro-brasileira e afro-diaspórica, via de regra, interseccionalizando raça, classe e gênero. Isso contribui significativamente para a (re)construção do processo de pertencimento étnico-racial e de gênero, com base na leitura de narrativas infantis e de como estas podem contemplar um novo horizonte de expectativas durante o processo de formação identitária.

LITERATURA INFANTIL NEGRO-BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA

A matéria narrada que compõe a literatura negro-brasileira, fortemente marcada e circunscrita nas experiências do existir que levam ao ser e estar negra/o no Brasil, na América Latina, no Caribe ou mesmo nas diversas diásporas inscritas em nós e que revestem o continente africano, corrobora a especificidade da literatura de ser um território fértil e um caminho promissor no trabalho com as temáticas e, direta e/ou indiretamente, possibilitar o afetar, o mobilizar, o refundar. É também a movimentação das estruturas sociais para a inserção de realidades, que por muitos séculos foram esquecidas, silenciadas e, quando mencionadas, reforçaram estereótipos e estigmas cujo processo foi de burlar e negligenciar as representações, resultado de uma sucessão de ações oriundas das políticas do cotidiano que ainda atuam em função das formas contemporâneas de opressão.

Diante desse contexto e tomando a palavra-poética de Conceição Evaristo (2007, p. 21)EVARISTO, Conceição (2007). Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.). Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza. p. 16-21. de que a escrita é resultado de um dinamismo próprio das sujeitas da escrita e de suas autoinscrições no interior do mundo, em consonância com a discussão da escrevivência como uma atitude “e uma prática que coloca a experiência como motivo e motor da produção literária” (Duarte, 2014, p. 11DUARTE, Eduardo de A. (2014). Literatura Afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XX. Rio de Janeiro: Pallas.), o percurso discursivo crítico construído nesta discussão segue a lógica de pensar a literatura infantil contemporânea, especificamente a produção autoral que tematiza o universo negro-brasileiro, sob a ótica de bases epistêmicas contra-hegemônicas e partindo de seus próprios parâmetros e perspectivas estéticas.

Nesse bojo, é importante destacar que a crítica de tradição europeia e, posteriormente, norte-americana, definida nesta discussão como crítica ocidentocêntrica, tal como a reconhecemos, não dá conta de analisar as dimensões e particularidades das narrativas negro-brasileiras. Isso sugere mudanças para se desvincular da estética colonial e das estruturas que foram postas como superiores às demais, o que potencializa a construção de uma crítica da totalidade baseada no contexto no qual essa literatura se forja, em diálogo com o que discorre Mignolo (2003)MIGNOLO, Walter (2003). Histórias locais/projetos globais: colonialidade, saberes subalternos e pensamento liminar. Tradução de Solange Ribeiro de Oliveira. Belo Horizonte: Editora UFMG., de ser este um exercício de desobediência paralelamente à necessidade do direito de aprender a desaprender para reaprender.

Conceição Evaristo (2020, p. 35)EVARISTO, Conceição (2020). A Escrevivência e seus subtextos. In: DUARTE, Constância L.; NUNES, Isabella R. (org.). Escrevivências: a escrita de nós: reflexões sobre a obra de Conceição Evaristo. Rio de Janeiro: Mina Comunicação e Arte, 2020. p. 26-47. discorre sobre a ideia de suas autoinscrições no interior do mundo e da escrevivência2 2 Termo cunhado pela escritora Conceição Evaristo e apresentado pela primeira vez em 1995, durante o Seminário Mulher e Literatura. Segundo a autora, é a junção entre as palavras escrever e viver, objetivando traduzir as experiências da população negra, especificamente das mulheres, por meio de narrativas literárias que valorizem suas subjetividades, o que colabora para a construção de uma identidade positivada por meio da experiência de fruição literária. , como uma atitude, indicarem elementos muito importantes no trato com a subjetividade em convergência com a objetividade, uma vez que essa [a escrevivência] dota de sentido, entre a unidade e a coerência, um mundo já sem sentido e desumanizado. Essa subjetividade, corporificada na literatura, não se furta à necessidade de ter de escolher e agir diante do mundo, possibilitando um agir diante do meio circundante.

Se “falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra” (Santiago, 2000, p. 17SANTIAGO, Silviano (2000). O entre-lugar do discurso latino-americano. In: SANTIAGO, Silviano. A literatura nos trópicos: ensaios sobre dependência cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2000. p. 9-27.), a literatura infantil negro-brasileira contemporânea, produzida nos espaços marginais e periféricos por mulheres negras, torna-se uma resposta em desobediência à colonialidade, ao mesmo tempo que supera o lugar de narrativas literárias historicamente obliteradas pelo discurso hegemônico. De certo modo, o percurso teórico (re)construído pelas epistemologias decoloniais e os diálogos resultantes das produções literárias contemporâneas objetivam romper com a engrenagem de apagamentos dos oprimidos e de suas produções literárias, culturais, linguísticas e antropológicas, como também aglutinam para dirimir os mecanismos de produção das invisibilidades dirigidas pelo racismo estrutural que apaga negras e negros de todos os espaços, incluindo o literário.

A característica de denúncia que integra parte da produção literária negro-brasileira é interpretada e condiz com a especificidade de ser a literatura um mecanismo potencial na ruptura com o racismo, o sexismo, a homofobia e com as divisões de classes, haja vista seu poder de alimentar o imaginário e de trabalhar com o desenvolvimento do cognitivo — assim como o (re)fundamento de saberes e epistemologias corporificado nas dimensões críticas do texto literário, o que subjaz às noções e diálogos propostos pelas intersecções entre raça, classe e gênero. Nesse sentido, Maria Aparecida Cruz de Oliveira (2019, p. 79)OLIVEIRA, Maria Aparecida Cruz de (2019). Representações decoloniais: as meninas negras no romance afro-brasileiro contemporâneo. 178f. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2019. Disponível em: https://oasisbr.ibict.br/vufind/Record/UNB_34f5bce34ca7527476588cb01ba4960f. Acesso em: 20 abr. 2021.
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discorre sobre o poder da arte e, especialmente, da literatura como movimento decolonial:

A arte pode ser instrumento de colonização das subjetividades, mas ela também pode trazer em sua estética uma proposta para descolonizar, por exemplo, as subjetividades das mulheres negras, dos homens negros e das crianças negras. É o caso da literatura afro-brasileira de autoria feminina, que está imbuída de elementos discursivos que afirmam a importância da “autodefinição” e da “autoavaliação” das mulheres negras (Oliveira, 2019, p. 79OLIVEIRA, Maria Aparecida Cruz de (2019). Representações decoloniais: as meninas negras no romance afro-brasileiro contemporâneo. 178f. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2019. Disponível em: https://oasisbr.ibict.br/vufind/Record/UNB_34f5bce34ca7527476588cb01ba4960f. Acesso em: 20 abr. 2021.
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).

Nessa esteira, a literatura pode tanto colonizar seus leitores com base em uma estética cristalizada e hegemônica quanto descontruir esses universos, oferecendo narrativas protagonizadas por sujeitos e sujeitas que estiveram às margens do cânone. Ressalta-se que um contingente de obras foi, historicamente, usado a serviço e como mecanismo de fortalecimento da colonização dos oprimidos, como pontua Cuti (2010)CUTI, Luís Silva (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro.. Para Oliveira (2019)OLIVEIRA, Maria Aparecida Cruz de (2019). Representações decoloniais: as meninas negras no romance afro-brasileiro contemporâneo. 178f. Tese (Doutorado em Literatura) – Universidade de Brasília, Brasília, 2019. Disponível em: https://oasisbr.ibict.br/vufind/Record/UNB_34f5bce34ca7527476588cb01ba4960f. Acesso em: 20 abr. 2021.
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, é perceptível que as produções contemporâneas estejam mais empreendidas nas pautas identitárias, o que fortalece, no âmbito da literatura infantil, a possibilidade de trabalho com temáticas necessárias e urgentes, considerando-se o abismo social entre brancos, negros, indígenas e pessoas não heterossexuais.

Se as minorias de representação social foram sendo oprimidas, silenciadas e exterminadas de forma física e subjetiva, como é o caso das temáticas negro-brasileiras e indígenas entrelaçadas por seus vieses culturais e antropológicos, estas só vieram à tona, representadas positivamente, a partir dos avanços políticos conquistados pelos movimentos sociais nas últimas décadas do século XX e, de forma mais recorrente, pelas potencialidades das Leis nº 10.639/03 e 11.645/08 nas primeiras décadas do século XXI. Todavia, tais leis não foram capazes de ampliar de modo considerável a divulgação da produção africana, negro-brasileira e indígena tal como se esperou, o que pode ser confirmado pelo mercado editorial brasileiro, que demonstrou insuficiência no que diz respeito à quantidade de títulos (Debus, 2006DEBUS, Eliane (2006). Festaria de brincança: a leitura literária na Educação Infantil. São Paulo: Paulus.).

Nesse bojo, Duarte (2014, p. 12)DUARTE, Eduardo de A. (2014). Literatura Afro-brasileira: 100 autores do século XVIII ao XX. Rio de Janeiro: Pallas. e Debus (2017, p. 31)DEBUS, Eliane (2017). A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens. São Paulo: Cortez/Centro de Ciências da Educação. mencionam que a gênese da literatura negro-brasileira se deu tanto pela necessidade de tematização positivada quanto pela autoria negra, para além do/a negro/a como tema ou como escritor(a), que empreendeu seus projetos literários segundo suas próprias lógicas de reexistências, de suas estéticas e sob seus próprios parâmetros, seguindo formas mais elaboradas de expressão em relação às suas histórias e demandas. Assim, objetivou-se com esses movimentos galgar lugares, seja por meio das representações literárias positivadas em virtude das pautas sociais e identitárias oriundas do Movimento Negro e do Feminismo Negro, por exemplo, seja pelo que pode a literatura na construção ética de um mundo plural e mais justo.

Anteriormente a essa discussão, Cuti (2010, p. 28)CUTI, Luís Silva (2010). Literatura negro-brasileira. São Paulo: Selo Negro. discorreu sobre a ampliação da temática negra e, consequentemente, enfatizou que a presença de escritores/as negros/as se deu pelo surgimento de leitores/as negros/as no horizonte de expectativas desse escritor, compreendendo esse deslocamento como resultado dos projetos literários, alinhado à importância dos movimentos sociais contra a discriminação racial. Isso demandou um entusiasmo para a constituição efetiva dessa temática no âmbito da literatura brasileira enquanto contracorrente de sua trajetória. Nesse intento, buscando compreender a literatura negro-brasileira como corpus não somente literário, mas histórico, antropológico, geográfico, limiar e insurgente, tal produção corporifica experiências de negras e negros sobre as quais paira a imposição da memória ancestral, como bem define Rosana Paulino (2018)PAULINO, Rosana (2018). A Costura da Memória. Rio de Janeiro: Museu de Arte do Rio de Janeiro. Disponível em: https://rosanapaulino.com.br/. Acesso em: 12 out. 2022.
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3 3 Exposição de Rosana Paulino intitulada Rosana Paulino: a costura da memória, na Pinacoteca de São Paulo, de 2018 a 2019, com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery. , como suturas nos corpos marcados pela experiência do Atlântico Vermelho — mesmo naqueles que não o vivenciaram fisicamente, mas que sofrem o racismo cotidiano, tendo em vista as atualizações modernas das formas de dominação exercidas pela colonialidade.

A produção literária negro-brasileira é resultado de um dinamismo próprio oriundo das experiências da negritude, cuja subjetividade pretende demonstrar e motivar a ascensão social de negros e negras, principalmente com a iniciativa do coletivo Quilombhoje e dos Cadernos Negros, que se tornaram grandes espaços de publicação, veiculação, visibilidade, leitura e incentivo à autoria negra. Compreender, portanto, a produção literária de mulheres negras como um projeto em desenvolvimento é refletir e problematizar as mudanças de paradigmas e a insubmissão política, sexista, discursiva, artística e literária de sujeitas étnicas do discurso que se apropriam do espaço literário como lócus político-acadêmico de lutas e conquistas, na continuidade de suas antecessoras. Entoar cantos e cantigas, poesias e poemas, narrativas e outros gêneros literários possibilita um mergulho num Brasil que também é negro, indo das manifestações religiosas ao léxico que se utiliza diariamente na produção de sentidos.

AUTORIA NEGRO-FEMININA E SUAS TEMÁTICAS

Os caminhos trilhados pelas poéticas insubmissas que rompem com a lógica colonial que tenta se manter e tomar corpo em todos os campos realizam-se e fortalecem-se quando mulheres negras assumem a autoria e se autoinscrevem/autorrepresentam de seus lugares de fala, imprimindo em suas narrativas de um mundo cultural, simbólico e fenomenológico. Inspirado nas tradições negro-brasileiras e afrodiaspóricas, esse movimento de (re)fazer a trajetória negra no Brasil, baseado na revisitação histórica e do expediente decolonial, fortalece as lutas individuais e coletivas em prol da diversidade étnica, racial e de gênero, pensadas via interseccionalidade, num movimento de reconstrução das trajetórias que foram historicamente apagadas e negadas a este grupo, o que fortalece a escrita como arma política e acadêmica.

O termo resistência, neste cotejamento, pode ser interpretado como sinônimo da escrita de mulheres negras, e baseadas nele elas atuam na contracorrente do que foi, secularmente, idealizado como justificativa de opressão e contra o porquê de elas serem, via de regra, colocadas para segundo plano, como frágeis e destinadas ao lar. Nesse avanço, essa poética insubmissa rompe com a lógica cis-heteropatriarcal branca que busca, por meio de vários mecanismos, mantê-las em cativeiros sociais em nome dos bons costumes e em prol da família. São discursos arraigados que tomam proporções em tempos tão difíceis como os contemporâneos, de ameaças democráticas e possíveis movimentos distópicos em virtude da ascensão da extrema direita em vários países da América Latina, como o Brasil, a título de ilustração.

No tocante à tematização, é importante mencionar que a ferida, o lamento, o silêncio e a conjugação do eu e do nós são especificidades da produção literária negro-feminina, ainda que incutidas de forma a argumentar e demostrar tais traços na autoria literária em análise e seus projetos literários, com vistas à identificação de uma relação possível entre a escrevivência e o conceito de autoria em jogo. É o que se observa em Exuzilhar (2022SILVA, Cidinha da (2022). Exuzilhar. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas.), que compila uma seleção de suas melhores crônicas: “Você me deixe, viu? Eu vou bater meu tambor!” (2008) e “Oh margem! reinventa os rios!” (2011.2), ambos de autoria de Cidinha da Silva.

Além da identificação das dificuldades vivenciadas pelas personagens, narradores/as e escritoras negras utilizam-se do expediente de novas categorias teóricas, como a autobiografia e a autoficção, com base em suas vivências e projetam no texto literário as experiência de ser e estar negra, cujas vozes se confundem a fim de potencializar o teor das narrativas e a possibilidade de autoidentificação de seus leitores. Nessa direção, a dimensão da autoidentificação, por sua vez, atua na possibilidade de os leitores refletirem sobre seus lugares no mundo, tomando a importância da representatividade negra como possibilidade para a construção da identidade e do empoderamento.

Da relação entre autoria e narrativa, tendo como base as escritas autobiográficas e autoficcionais, retomamos o conceito de escrevivência, cunhado por Evaristo para refletir acerca das histórias de vida de mulheres negras que gestam uma maternidade coletiva quando cuidam dos seus filhos e dos filhos de outras mulheres negras. É isso que se observa na poética de Carolina Maria de Jesus, especificamente na obra Quarto de despejo: diário de uma favelada (2004JESUS, Carolina Maria de (2004). Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Francisco Alves.), que se dá paralelamente a uma literatura combativa e insubmissa de temas incutidos nas suas vivências, geralmente nas escritas, ao mesmo tempo que funda uma epistemologia que produz conhecimentos sobre e desde as populações negras, principalmente se apropriando, contemporaneamente, dos lugares de fala étnica e racialmente demarcados.

Embora a ficção não tenha compromisso com a realidade, tampouco com a verdade, é importante enfatizar que o discurso ficcional da literatura negro-brasileira cobre uma lacuna historicamente deixada pela crítica, principalmente quando esta desconsiderou a autoria negra. Os lugares de encubação e de fala, desde Maria Firmina dos Reis, sempre atuaram como espaços de exercício consciente de escolhas na elaboração do enredo e de suas personagens, definindo-se como um movimento de construção de personagens positivadas pela ótica da própria existência negra que experiencia a matéria narrada, o que significa dizer que ela está ali, presentificada, no adensamento de embates, no centro da cena. Contemporaneamente, negros e negras ocupam o protagonismo, ao mesmo tempo que as narrativas apresentam atributos antes relacionados somente às personagens brancas como, por exemplo, o sentimento, a inteligência, a constituição da família nuclear negra. É um giro de perspectiva que burla uma lógica estigmatizadora que representou os negros sempre como fábulas plenas do exotismo, do sexual, de fraqueza etc.

Destarte, ainda sobre a autoria, Miriam Alves (2010, p. 44)ALVES, Mirian (2010). BrasilAfro Autorrevelado: Literatura Brasileira Contemporânea. Belo Horizonte: Nandyala. explica que a produção literária negro-brasileira vem, igualmente, da necessidade de falar sobre as próprias vivências e representa uma descendência de quem vivenciou essas posições de subalternidade. Por isso, escreve/inscreve-se de dentro, como resultado de uma experiência particular ou histórica, na qual se utiliza de uma gramática do cotidiano de uma dureza impiedosa e realista. As motivações da questão, dada a contextualização, levam-nos a refletir acerca da construção da subjetividade no texto literário infantil negro-brasileiro como uma possibilidade para a desconstrução de estigmas e estereótipos associados aos negros e fortalecidos pela colonialidade, embora não se possa generalizar todo e qualquer ato como resistência.

As poéticas negro-femininas reconstroem esses/as sujeitos/as e refundam o cânone literário ou constroem um paracampo, possibilitando a entrada e permanência num universo antes negado. No caso da literatura brasileira, a iniciativa crítica atua como movimento de reescrita pautado pelo resgate de escritores/as e de suas poéticas insubmissas. Nessa direção, a autoria negra retoma as ancestralidades por meio de um discurso comprometido com sua história, com suas formas de reexistências diárias e seu comprometimento com um futuro em que os leitores, crianças negras, especificamente, sintam-se pertencidos. A escrita e a vida dessas autoras assumem uma dimensão própria, específica, de denúncia e representação por intermédio do texto literário. Figueiredo (2020, p. 12)FIGUEIREDO, Eurídice (2020). Por uma crítica feminista: leituras transversais de escritoras brasileiras. Porto Alegre: Zouk. pontua que: “Na literatura não há enunciados conclusivos, definitivos. Ainda que o real não possa ser ‘representado’ porque o real e a linguagem pertencem a ordens diferentes, a literatura aceita o desafio de realizar o impossível e ser, ao mesmo tempo, realista e irrealista”.

Segundo a autora, as representações das vidas real e ficcional são possibilidades da literatura contemporânea, principalmente se consideradas as categorias emergentes de análise autobiografia e autoficção, cujas identidades e localizações das protagonistas perpassam pelo espaço sociossimbólico e incutem nas narrativas representações e tematizações específicas, em que os protagonismos dissidentes são responsáveis por alterar o perfil de protagonismo das últimas décadas na cena literária brasileira.

No tocante às especificidades da escrita negra e insubmissa, Lívia Natália de Souza (2018, p. 29)SOUZA, Lívia Natália (2018). Uma reflexão sobre os discursos menores ou a escrevivência como narrativa subalterna. Revista Crioula, n. 21, p. 25-43, jun. 2018. https://doi.org/10.11606/issn.1981-7169.crioula.2018.146551
https://doi.org/10.11606/issn.1981-7169....
circunscreve-a como marcador teórico

que identifica como se constituem as formas de expressão da escrita negra contemporânea. Partindo do pressuposto de que, quando escrevem, os autores negros estão não sublimando a vida pela escrita, mas expressando — no sentido deleuziano do termo — aquilo que a literatura hegemônica recalca na sua representação.

Nessa direção, a marcação étnica é de suma importância para a construção das identidades dos leitores negros que passam a se autoidentificar com as narrativas e seus protagonismos.

É possível dizer, ainda, de acordo com Debus (2017)DEBUS, Eliane (2017). A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens. São Paulo: Cortez/Centro de Ciências da Educação., que após a Lei 10.639/03 se ampliou a possibilidade de autoidentificação e de autopertencimento, via empoderamento étnico-racial, na área da literatura, bem como na relação interdisciplinar com outras áreas de conhecimento — como a História, por exemplo —, na tentativa de se alargarem os horizontes identitários e na busca de referenciais para a (re)construção do eu: “O texto literário partilha com os leitores, independentemente da idade, valores de natureza social, cultural, histórica e/ou ideológica por ser uma realização da cultura e estar integrado num processo comunicativo” (Debus, 2017, p. 29DEBUS, Eliane (2017). A temática da cultura africana e afro-brasileira na literatura para crianças e jovens. São Paulo: Cortez/Centro de Ciências da Educação.).

A escrita de mulheres negras, por essas óticas e com esses movimentos, empreende atitudes e ações que impactam diretamente a formação do imaginário coletivo infantil, alinhada com as políticas públicas desenvolvidas pelo Estado para a garantia dos direitos básicos, como dignidade e vida das populações negras. Escritoras como Nilma Lino Gomes, Neusa Baptista Pinto, Carmen Lúcia Campos, Elisa Lucinda, Madu Costa, Sonia Rosa, Cassia Vale, entre outras, instrumentalizam-se do passado traumático e de um presente apagado pela colonialidade para questionar o porquê de suas presenças ainda serem vigiadas, seja no plano simbólico e discursivo, seja na prática cotidiana, quando, na verdade, o movimento deveria ser o contrário.

Nesse bojo, as mulheres negras e seus projetos literários, considerando-se o histórico de massacres e lutas, foram duplamente assassinadas em suas integridades físicas e psicológicas, por serem mulheres e negras. Entretanto, quando tiveram a oportunidade, imprimiram em suas escritas o empoderamento e a liberdade. A autonomia e o processo de ruptura do mundo doméstico foram se dando à medida que elas escreviam, criando posicionamentos e incentivando outras a assumirem suas identidades para o rompimento com a colonialidade que reside dentro dos lares, nas relações com os cônjuges e filhos etc. Fortaleciam assim a coletividade, via dororidade e sororidade, retomando memórias ancestrais e atuais, evocando vozes de outras mulheres, como fizeram as escritoras Maria Firmina dos Reis, Anajá Caetano, Ruth Guimarães, Carolina Maria de Jesus às contemporâneas Ana Maria Gonçalves, Mirian Alves, Cristiane Sobral, Kiusam de Oliveira, Cidinha da Silva e tantas outras vozes literárias aguerridas.

ENTRE POÉTICAS E ESCREVIVÊNCIAS: KIUSAM DE OLIVEIRA E CIDINHA DA SILVA E SEUS PROJETOS LITERÁRIOS

A narrativa infantil, seguindo a perspectiva teórica e metodológica do letramento racial e tendo em foco a abertura do currículo para o trabalho com as temáticas após a Lei 10.639/03, pode ser utilizada como ferramenta importante na concretização de uma pedagogia antirracista e decolonial, principalmente quando tematiza os universos que circunscrevem a população negro-brasileira. Por ser uma produção literária promissora com o movimento decolonial, que refunda saberes via literatura, entendida como parte essencial do projeto contra-hegemônico, recorremos às produções de Kiusam de Oliveira e Cidinha da Silva por considerarmos haver um contraste expressivo quando da personificação da interseccionalidade sobre vida e obra, questões elencadas nas discussões étnico-raciais, historiográficas e sociológicas oriundas das pensadoras negras Lélia Gonzalez (2020)GONZALEZ, Lélia (2020). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, Flavia; LIMA, Márcia (org.). Por um feminismo afrolatinoamericano. Rio de Janeiro: Zahar. p. 75-93. e Beatriz Nascimento (Ratts, 2021RATTS, Alex (org.) (2021). Beatriz Nascimento: uma história feita por mãos negras. Rio de Janeiro: Zahar.), especificamente no tocante aos níveis de discriminação quando comparados homens e mulheres negras na cena social e literária.

Na esteira de um novo cenário no universo da literatura infantil, surgem novas vozes como a de Kiusam Regina de Oliveira, que se divide entre a vida acadêmica, como professora da Universidade Federal do Espírito Santo, e o ofício de escritora. No universo da literatura infantil e juvenil, ela publicou as seguintes obras: Omo-Oba: Histórias de Princesas (2009OLIVEIRA, Kiusam de (2009). Omo-Oba: histórias de princesas. Belo Horizonte: Mazza.); O Mundo no Black Power de Tayó (2013OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.); O mar que banha a ilha de Goré (2014OLIVEIRA, Kiusam de (2014). O mar que banha a ilha de Goré. São Paulo: Peirópolis.) e O Black Power de Akin (2020OLIVEIRA, Kiusam de (2020). O black power de Akin. São Paulo: Editora de Cultura.), que tematizam os universos africanos e negro-brasileiros. Paralelamente ao seu projeto literário, Kiusam possui mestrado em Psicologia e doutorado em Educação, ambos pela Universidade de São Paulo. Suas experiências perpassam pelas diversas instâncias do ensino, desde a sala de aula à gestão pedagógica, contribuindo para a implementação de políticas públicas, principalmente voltadas para a Lei 10.639/2003 na rede municipal de ensino.

No universo de suas produções literárias, destacamos O mundo no black power de Tayó, publicado em 2013 pela editora Peirópolis e ilustrado por Taisa Borges, que se centra na tematização do cabelo como símbolo de orgulho. Tayó, criança negra de seis anos e protagonista da narrativa, tem orgulho do cabelo crespo com penteado black power. A menininha vai se apresentando como “de uma beleza rara. Encantadora, sua alegria contagia a todos que perto dela ficam. Seu rosto parece uma moldura de valor, que destaca belezas infinitas” (Oliveira, 2013, p. 8OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.). Na esteira da apresentação, a positivação das características fenotípicas de Tayó retoma uma discussão das últimas décadas em torno do corpo negro-feminino, contemporaneamente bastante acirrada, para a refutação do ideal ocidentocêntrico. Na contramão dessa política, Kiusam inicia a narrativa enaltecendo tais características e como Tayó é feliz por ser quem é.

Kiusam propõe uma leitura de mundo contra-hegemônica por meio do que Tayó pode representar para outras crianças que se encontram em situação de não reconhecimento e, consequentemente, não pertencimento étnico-racial; ou seja, não se veem representadas nos padrões definidos pela matriz ocidentocêntrica de beleza. Durante a narrativa, os traços fenotípicos da menina são apresentados e positivados como forma de enaltecer a negritude à qual ela pertence, como se vê no fragmento: “Seus olhos são negros, tão negros como as mais escuras e belas noites que do alto miram com ternura qualquer ser vivo. Do fundo desses olhos escuros saem faíscas de um brilho que só as estrelas são capazes de emitir” (Oliveira, 2013, p. 11OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.). O recurso estilístico da autora de marcar as características da protagonista e relacioná-las ao que é essencial e à beleza das coisas atua para o fortalecimento da construção imagética/corporal de crianças negras que não se identificam com o ideal estético homogêneo veiculado. Muito embora a estética negra tenha avançado em termos de presentificação, é necessário se utilizar desses mecanismos para possibilitar a autoidentificação.

O mundo no black power de Tayó relaciona corpo, universo e natureza, apresentando sua protagonista, construída imageticamente como resultado do que há de mais bonito no mundo, pois “do fundo desses olhos escuros saem faíscas de um brilho que só as estrelas são capazes de emitir” (Oliveira, 2013, p. 11OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.). Tayó tem suas características fenotípicas negras enaltecidas e relacionadas ao que há de mais belo e valioso. É por meio das diversas formas e adereços que seu black power assume destaque, pois ele se amplia conforme a imaginação da menina e, paralelamente, mobiliza seus leitores: “Ela ama tantos os bichos, a natureza, os alimentos, as pessoas e os planetas que, por vezes, projeta todo esse universo em seu penteado” (Oliveira, 2013, p. 24OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.).

Tayó é uma criança consciente de seu lugar e de suas origens, enfrenta preconceitos cotidianos na escola e responde a essas situações com o enaltecimento de suas características, retomando questões oriundas da estética negra. Kiusam, nesse momento, propõe uma mudança de perspectiva quando enaltece esses traços e assimila-os com o que há de mais valioso: “Seu nariz parece mais uma larga e valiosa pepita de ouro” (Oliveira, 2013, p. 12OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.), “Grossos e escuro como o orobô, seus lábios encantam, só se movendo para dizer palavras de amor” (Oliveira, 2013, p. 14OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.), “Sobre a cabeça, a parte do corpo de que ela mais gosta, ostenta seu enorme cabelo crespo, sempre com um penteado chamado Black Power” (Oliveira, 2013, p. 17OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.). A referência estética de Tayó vem de outras personagens do texto, como a própria mãe: “Mamãe hoje quero meu black power repleto de borboletinhas. E lá se põe a mãe a procurar borboletinhas para enfeitar o penteado da filha” (Oliveira, 2013, p. 21OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.).

Tais fragmentos corporificam o processo de positivação da protagonista pela possibilidade de mobilização dos leitores negros em direção à significação, encaminhando-se pelo enaltecimento dessas características. Isso porque, no momento que Tayó se percebe enquanto menina negra e inserida numa sociedade racista, ela busca nos referenciais africanos e negro-brasileiros a força para se opor ao mundo ideal branco e a todas as suas ferramentas ideológicas.

No tocante aos fatos históricos que fazem parte da identidade negro-brasileira, tais como o sequestro dos/as africanos/as, a obra aborda e relaciona essa ferida pertencente a todos os negros e negras:

Quando retorna para casa pensativa com toda a falta de gentileza de seus colegas, Tayó projeta em seu penteado, mesmo sem se dar conta disso, todas as memórias do sequestro dos africanos e das africanas, sua vinda à força para o Brasil nos navios negreiros, os grilhões e correntes que aprisionavam seus corpos. Tudo isso está bem guardadinho lá no fundo da sua alma (Oliveira, 2013, p. 28OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.).

De outro lado, a religião é uma temática muito presente na narrativa, mergulhada em fatos históricos que reforçam essa presença e alinhada à personagem que, com seu cabelo black power, é capaz de superar os mais diversos conflitos e fazer dessas situações possíveis caminhos que culminarão em uma aprendizagem significativa, via educação antirracista. Esses contextos possibilitam que tanto a protagonista quanto seus leitores, especificamente crianças negras, não se esqueçam de onde vieram e nem quem são, além de reforçar a descendência da mais nobre casta real africana (Oliveira, 2013, p. 32OLIVEIRA, Kiusam de (2013). O mundo no black power de Tayó. São Paulo: Peirópolis.), direcionando a conclusão da narrativa para a compreensão de que todas as meninas negras são princesas e têm uma relação de herança e ligação com o continente africano.

Assim, cabe mencionar que o direcionamento da obra para crianças negras, não excluindo o acesso e a leitura por outras identidades étnicas, dá-se pelo fato de a própria escritora identificar a necessidade de um protagonismo negro, por um processo de empoderamento, na possibilidade de contribuir para o fortalecimento da identidade desses leitores que, via de regra, não se viam representados no texto literário infantil canônico. Trata-se de uma perspectiva que se altera ainda no século XX, de forma tímida, encabeçada por Geni Guimarães, Júlio Emílio Braz, Rogério de Andrade, Ziraldo, entre outros.

Kiusam de Oliveira apresenta ao universo infantil um mergulho nas ancestralidades africanas e negro-brasileiras apoiado na representação de uma menina negra como protagonista, servindo de espelho para que outras crianças se reconheçam no processo de positivação da identitária negra, da qual o racismo tem se apropriado para estereotipar e negativar, no reforço do ideal de beleza eurocêntrico. Partindo do projeto literário e político-acadêmico da autora e de uma análise de O mundo no black power de Tayó, a obra torna-se um exercício para a desconstrução de ideais ocidentocêntricos, contribuindo para o empoderamento infantil pautado pelo corpo e a beleza de ser o que se é. Cria, ainda, uma possibilidade a mais para vivenciar estórias que motivam o empoderamento étnico-racial e feminino, bem como a felicidade e os laços afetivos entre as famílias negras.

De outro lado temos a escritora Cidinha da Silva, que nasceu em Belo Horizonte em 1967. Cidinha é escritora e editora da Kuanza Produções. Até 2022 publicou 17 livros distribuídos pelos gêneros crônica, conto, ensaio, dramaturgia e infantil/juvenil. Pela obra Um Exu em Nova York recebeu o Prêmio da Biblioteca Nacional (contos, 2018bSILVA, Cidinha da (2018b). Um Exu em Nova York. Rio de Janeiro: Pallas.); e Explosão Feminista (ensaio), do qual é coautora, foi finalista do Jabuti (2018aSILVA, Cidinha da (2018a). Feminismo negro. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (org). Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras. p. 252-300.), recebendo o Prêmio Rio Literatura 4ª edição (2019SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.). A autora tem publicações em alemão, catalão, espanhol, francês, inglês e italiano. Além de sua produção literária, Cidinha debruça-se sobre questões teóricas, pois já organizou duas obras significativas para discutir e compreender a situação social, política e cultural do negro brasileiro na contemporaneidade, a saber: Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras (2003SILVA, Cidinha da (org.) (2003). Ações afirmativas em educação: experiências brasileiras. Belo Horizonte: Selo Negro.), uma das dez primeiras obras publicadas no Brasil sobre o tema das ações afirmativas para a população negra. O segundo livro é o Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, leitura e bibliotecas no Brasil (2014SILVA, Cidinha da (2014). Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura e bibliotecas no brasil. Brasília: Fundação Cultural Palmares.), considerada obra de referência pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), segundo o portal Literafro.

A trajetória autoral de Cidinha desmembra-se em uma literatura para todos os públicos, desde o seu último livro Exuzilhar (2022SILVA, Cidinha da (2022). Exuzilhar. 2. ed. Rio de Janeiro: Pallas.), que compila uma seleção de suas melhores crônicas, até Cada Tridente em seu lugar e outras crônicas (2006SILVA, Cidinha da (2006). Cada tridente em seu lugar e outras crônicas. São Paulo: Instituto Kuanza.), coletânea responsável por sua estreia na cena literária. A autora aproxima os diálogos entre África e Brasil, tornando-os cada vez mais presentes na produção literária negro-brasileira e indígena, principalmente quando se considera o contexto contemporâneo e a vazão das produções literárias em virtude das novas perspectivas editoriais, bem como os impactos das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 na educação básica e no mercado editorial nacional.

Em Kuami, obra selecionada para demostrar a importância de seu projeto literário, a escritora materializa, de forma poética, as perspectivas decoloniais, corporificando-as por meio dos protagonistas que pertencem às matrizes africanas, negro-brasileiras e indígenas, entre curandeiros, Mãe d’Água, sereias e animais, divididos entre os terreiros de candomblé(s), a floresta amazônica e as águas profundas do Sereal — um mundo de possibilidades quando se pensa nos impactos das críticas, na beleza das afetividades e no que pode a literatura como ato de resistência e denúncia. Ademais, ao tematizar as diversas instâncias espaciais, culturais e subjetivas, essa narrativa encantada alimenta o imaginário dos leitores com o que acreditamos ser todas as estórias comunitárias sediadas no mais íntimo das questões da afetividade, da consciência e da constituição identitária via texto literário.

Sereal comporta muitos espaços e retoma entidades místicas: seres da floresta, curandeiros, entre figuras folclóricas como Hércules Baiacu (uma espécie de peixe que se passava por boto para encantar as moças) e Mãe d’Água, Iemanjá. Da relação que vingou entre Baiacu e Naomi Palmares, descendente de Zumbi, nasceu Janaína, com quem o elefantinho Kuami desenvolveu uma amizade a ponto de tê-la como irmã, iniciando uma rede de afetos que se estendeu por todos os espaços que eles percorreram. Cabe destacar a presença de grandes nomes da música negra do Brasil, como o sambista Paulinho da Viola, ou como Cidinha ficcionaliza: “Paulinho da Viola Mágica” (Silva, 2019, p. 9SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.); além de Mestre Pixinga, “maestro Cardinal Pixinga” (Silva, 2019, p. 17SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.) e “Arlindo Cruz” (Silva, 2019, p. 28SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.), personagens transpostos do mundo real para a narrativa, peculiaridade que costura a narrativa ficcional à realidade.

Destarte, sob a perspectiva analítica da intertextualidade literária, Dara, nome da mãe de Kuami, retoma a figura histórica de Dandara, processo estilístico da escritora ao resgatar diversas personalidades da resistência negra. Cabe mencionar que, historicamente, Dandara, companheira de Zumbi dos Palmares, suicidou-se para não retornar à condição de escrava. Em outro fragmento, Zumbi foi reverenciado por Kuami ao cantar um trecho para Janaína: “Zumbi é o senhor das guerras/ Zumbi é o senhor das demandas/ quando Zumbi chega, é Zumbi quem manda” (Silva, 2019, p. 25-42SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.). Historicamente, retomar Zumbi dos Palmares é apresentar às crianças o legado de um dos maiores representantes da resistência negra à escravidão, que liderou o maior quilombo formado por escravos fugitivos das fazendas escravocratas durante o Brasil Colonial.

Em Kuami se identifica uma crítica à exploração da floresta e à materialização dos genocídios, como no episódio da cerca elétrica que mata as quebradeiras de coco e na escravização dos homens na fazenda onde Dara estava presa:

Sete contou porque foi morar com Didó. A mãe, Pedrina Quilombola, era quebradeira de cocos. Um dia, sem quê nem para quê, um grupo de homens construiu uma cerca no babaçual. Começaram pela manhã e terminaram à tarde. Quando elas e as amigas encerraram o dia de trabalho, tiveram que pular a cerca de arame farpado para ir embora. No dia seguinte, pela manhã, quando as mulheres voltaram para trabalhar, foram eletrocutadas ao atravessar o mesmo local. Os homens tinham acabado de instalar o sistema (Silva, 2019, p. 65SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.).

O extermínio dos povos tradicionais, conforme percebemos na obra, especificamente no episódio de extermínio da mãe de Sete, bem como a exploração das terras em busca do ouro e de outros materiais de valor, foram estratégias adotadas historicamente pelo colonizador a fim de manter-se no centro do poder.

Destarte, cabe mencionar a presença da entidade do folclore brasileiro e orixá africano Mãe d’Água, madrinha de Janaína que, aliás, ofereceu um “suco de capim-santo gelado”, na ocasião da apresentação do elefantinho (Silva, 2019, p. 27SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.). Mãe d’Água, na tradição africana dos negros iorubanos, é um orixá do candomblé, reconhecida também por Iemanjá, mãe ou rainha das águas, uma entidade que deve ser cultuada e respeitada por quem vive nas águas. Paralelamente à existência e benção da Mãe d’Água, o macaco-enfermeiro menciona a existência de um curandeiro, Didó, que é procurado na ocasião do acidente do elefantinho, durante o processo de resgate de sua mãe, Dara. Contudo, outro macaco foi à sua procura, mas não o encontrou, apenas um menino que dizia ser aprendiz e afilhado de Didó: “O menino respondeu que era afilhado do mestre, chamava-se Sete Lajedos. Contou que Didó havia viajado até a Terra Sagrada para um congresso mundial de cuidadores de sementes. [...] Sete molhou um chumaço de folhas e foi passando pelo corpo de Kuami” (Silva, 2019, p. 43-44SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.).

A estética negra, nesse delineamento, também ganha lugar de destaque na narrativa:

A poucos metros dali, um grupo de macacos velava o sono de Janaína. Macacos-mirins, todos sabem, não param quietos e aqueles não eram diferentes. Enquanto a sereia dormia, aproveitaram um pouco do líquido da copaíba e fizeram dreads no cabelo dela. Muito bonitos, por sinal (Silva, 2019, p. 47SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.).

A mãe, Naomi, admirada, perguntou o significado do cabelo: “— São dreads, mamãe, feitos pelos amigos macacos. Estou bonita? — Está linda!” (Silva, 2019, p. 52SILVA, Cidinha da (2019). Kuami. São Paulo: Pólen.).

Acerca do respeito às instâncias do(s) discurso(s) e suas representações na escrita, alinhavando-se, neste contexto, com as questões de autoria feminina negra e seus referenciais resultantes das críticas sociais, para Teresa Colomer (2017, p. 203)COLOMER, Teresa (2017). Introdução à Literatura Infantil e Juvenil Atual. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global.:

Os valores da liberdade, tolerância ou defesa de uma vida individual prazerosa fazem com que a literatura infantil [...] se dirija a enfrentar qualquer forma de poder autoritário; a denunciar as formas de alienação e exploração da sociedade industrial moderna; a reivindicar a vida.

Nesse sentido, tanto o pensamento quanto a linguagem literária possibilitam a ruptura com um mundo hegemônico, seja por meio da denúncia, seja por uma introspecção individual, na medida em que a literatura, retomando Candido (2011)CANDIDO, Antonio (2011). Do Direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários escritos. 5. ed. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul. p. 171-193., humaniza aqueles que dela se aproximam, num processo de reivindicação da vida. A poética de Cidinha da Silva resgata o fio condutor ancestral e demarca os lugares de onde se enuncia, cujas vertentes fortemente demarcadas e encantadas, por meio do viés mítico-religioso, atuam como dispositivos de ruptura com a repressão religiosa exercida sobre as matrizes africanas e, consequentemente, negro-brasileiras e indígenas. Esse vínculo, por sua vez, liga as gerações e fortalece o espírito coletivo negro e indígena, ressoando as diversas possibilidades de trabalho com as temáticas via perspectiva decolonial.

Na assertiva desse conjunto de vozes terem sido inaudíveis por tanto tempo e da memória como uma das especificidades evocadas na literatura contemporânea, e considerando-se as autorias de Kiusam e Cidinha, “as prerrogativas do testemunho se apoiam na visibilidade que o pessoal [o eu] adquiriu como lugar não simplesmente de intimidade, mas de manifestação pública” (Sarlo, 2007, p. 20-21SARLO, Beatriz (2007). Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire D’aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG.). Nesse bojo, cabe destacar o lugar importante e de desobediência que essas escritoras e suas literaturas cunham enquanto materialidades e fontes históricas, em consonância com o movimento de serem social e historicamente situadas e politicamente pensadas.

O discurso literário contemplado nas narrativas infantis, que possibilita um espelhamento de seus leitores — nesta discussão, negros, com suas implicações sociais, históricas, antropológicas etc. — objetiva desconstruir o olhar negativo, os caminhos que deturpam as identidades negro-femininas, convidando os leitores, crianças em processo de formação, para um mergulho profundo no mundo e no universo negro-brasileiro, narrado por seus/suas próprios/as sujeitos/as.

A razão negra ou subalterna pela qual a produção de Cidinha da Silva e Kiusam de Oliveira se orienta reforça seus lugares autorais e de onde nascem suas personagens, suas tramas e, consequentemente, seus sentidos. Retomamos, para tanto, as discussões de Achille Mbembe (2014, p. 57)MBEMBE, Achille (2014). Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona., ao afirmar que essa “razão negra consiste, portanto, num conjunto de vozes, enunciados e discursos, saberes, comentários e disparates, cujo objeto é a coisa ou as pessoas ‘de origem africana’ e aquilo que afirmamos ser o seu nome a sua verdade”. Para esse filósofo, a escrita negra é diversa e se esforça para edificar uma comunidade que tem como objetivo comum se forjar “a partir de restos dispersos em todos os cantos do mundo” (Mbembe, 2014, p. 60MBEMBE, Achille (2014). Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona.).

Com base no que discorre Mbembe (2014)MBEMBE, Achille (2014). Crítica da Razão Negra. Lisboa: Antígona. e na intelectualidade negra contemporânea, que projeta uma literatura para a infância, objetivando, assim, a autoaceitação, o autorreconhecimento e o (re)conhecimento das matrizes ancestrais, é importante mencionar que ela se utiliza dos referenciais estéticos, culturais e religiosos que dão suporte e servem de materialidade para que surja uma estética peculiar, cujos traços estão cada vez mais presentes nessa produção literária que, apesar de ser um projeto literário em construção, é lida por várias óticas — entre elas, a autoria conjugada com a narrativa enquanto processo histórico e socialmente situado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As escritoras Kiusam de Oliveira e Cidinha da Silva não só pensam suas obras e suas personagens para a positivação da identitária negra como recolhem do mundo vivencial, cultural, linguístico, antropológico e mítico palavras, situações e genealogias que contribuem para a autoconscientização, o autopertencimento e o empoderamento de crianças em processo de formação identitária. Isso possibilita e potencializa uma crítica sobre como essa literatura atua no desenvolvimento de uma espécie de espelhamento dos leitores baseado no trabalho com as personagens.

A produção literária negro-feminina e seus projetos autorais, enquanto poéticas insubmissas, considera tanto os debates entre as relações que formam o texto literário quanto o empreendimento estético dessa autoria, o que se dá paralelamente às intersecções que gerenciam as opressões pela colonialidade. Para compreender o reposicionamento de dignidades de negros/as com base no trabalho com a literatura, a emergência da positivação da representação negra é automaticamente relacionada com o contexto histórico de silenciamento e exclusão. Romper com esses processos de apagamento das existências subalternas faz parte do projeto de insubmissão que essa produção literária integra, sendo um espaço propício para trabalhar na direção de uma educação para as relações étnico-raciais.

A mudança de perspectiva que toma fôlego nos projetos literários de Kiusam de Oliveira e Cidinha da Silva subsidia uma reflexão sobre a importância da autoria negra e suas incursões temáticas, epistemológicas e estéticas, bem como das peculiaridades dessa literatura para além do negro como tema. Isso coloca no centro da questão a produção contemporânea e os deslocamentos que são resultado dos projetos literários em discussão. Tal perspectiva demonstra a importância do trabalho com a literatura infantil enquanto processo formativo e de humanização, no adensamento de questões que reposicionam esses/as sujeitos/as em outros lugares da história e/ou na escrita de outras não oficiais, além de a autoria se apropriar e contribuir para o pensamento decolonial afro-latino-americano.

Assim, as interlocuções entre Kiusam de Oliveira e Cidinha da Silva ultrapassam as fronteiras do literário, contemplando questões que afligem seus leitores do ponto de vista social, histórico e cultural, demonstrando a importância da literatura infantil na possibilidade de superação dos amálgamas sociais produzidos pela colonialidade enquanto mecanismo de opressão operante na contemporaneidade.

  • 1
    Selecionaram-se as escritoras Cidinha da Silva e Kiusam de Oliveira pelos seguintes crivos: a primeira característica debruça-se sobre a autoria — mulheres negras; a segunda, protagonismos negros, preferencialmente o feminino. Posteriormente, com base em três categorias que são identificadas nas narrativas analisadas: fenótipos, racismo e protagonismo feminino negro. Considera-se, ainda, a especificidade de as escritoras serem tanto literatas quanto teóricas, o que potencializa a crítica social por meio da literatura.
  • 2
    Termo cunhado pela escritora Conceição Evaristo e apresentado pela primeira vez em 1995, durante o Seminário Mulher e Literatura. Segundo a autora, é a junção entre as palavras escrever e viver, objetivando traduzir as experiências da população negra, especificamente das mulheres, por meio de narrativas literárias que valorizem suas subjetividades, o que colabora para a construção de uma identidade positivada por meio da experiência de fruição literária.
  • 3
    Exposição de Rosana Paulino intitulada Rosana Paulino: a costura da memória, na Pinacoteca de São Paulo, de 2018 a 2019, com curadoria de Valéria Piccoli e Pedro Nery.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Nov 2022
  • Aceito
    08 Nov 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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