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Diorama, de Carol Bensimon

Diorama, by Carol Bensimon

Diorama, de Carol Bensimon

Dusse, Fernanda. . Diorama, by Carol BensimonSão Paulo: Companhia das Letras, 2022

E havia também o pessoal que eu chamava de naturalistas. […] Eram movidos pela ideia fixa de recriar a natureza à perfeição. Nisso, se diferenciavam dos caçadores, os quais inevitavelmente caíam na tentação de exaltarem a si mesmos através do animal. O que quero dizer é que acontecia com frequência de os caçadores montarem suas taxidermias como se aqueles animais fossem mais imponentes e audaciosos do que de fato eram quando vivos (Bensimon, 2022BENSIMON, Carol (2022). Diorama. São Paulo: Companhia das Letras., p. 58).

Diorama, o quarto romance de Carol Bensimon (2022BENSIMON, Carol (2022). Diorama. São Paulo: Companhia das Letras.), aproxima a taxidermia das narrativas que inventamos para construirmos a nós e aos outros. Sua protagonista, Cecilia Matzenbacher, percebe seu trabalho de taxidermista como uma possibilidade de romper as divisões entre morte e permanência, entre o controle sobre o corpo do outro e a lembrança de que a vida é inapreensível. De forma semelhante, ao apresentar os motivos que a fizeram migrar para os Estados Unidos, a personagem reflete sobre o apagamento e a insistência da memória e investiga as possibilidades de recosturarmos nossa própria história.

O romance acontece do instante em que Cecilia recebe a notícia que seu pai sofreu um AVC ao momento em que desembarca no Brasil e chega à casa onde viveu na infância. Esse tempo cronológico é, porém, entremeado das lembranças de sua infância e juventude, especialmente por aquilo que circunda o assassinato de João Carlos Satti, caso irresolvido do qual seu pai fora um dos suspeitos. Dividido em quatro partes, o livro transita por diferentes momentos da vida da protagonista, sobrepondo a perspectiva da criança que acompanhou o crime e o espetáculo que o seguiu à da jovem que colecionava notícias sobre o caso tentando desvendá-lo, até, finalmente, a narrativa da mulher de 40 anos, que escolheria perder essas lembranças. Paralelamente, sua rotina como taxidermista a faz refletir sobre o desejo humano de controlar a história e preservar, de forma inerte, um mundo que agimos para destruir.

A inusitada aproximação entre o assassinato de um parlamentar brasileiro e a prática de caça e dissecação dos animais nos Estados Unidos é mobilizada pelo reconhecimento de que a cultura moderna se estabelece pela eliminação de qualquer diferença. Assim, ao costurar os fragmentos dos animais que remonta e as narrativas em torno do crime, Cecilia recria sua própria história e também a da tradicional família, a de um país construído pela violência e a de um mundo elaborado a partir do controle e da extinção.

O romance pode ainda ser lido por uma chave metalinguística que percebe a literatura como remontagem do mundo, abrindo frestas pelas quais podemos rever nossas experiências coletivas e imaginar outras combinações para os elementos que compõem o espaço onde vivemos. Nessa perspectiva, é fundamental observar a indistinção entre história e ficção proposta por Bensimon.

A família Matzenbacher não existe, mas coincide com tantas famílias das elites brasileiras, estabelecidas pela violência paterna e pela adequação da subjetividade de todos os membros ao desejo do pai. Mais ainda, como nossa formação sociológica, na esteira de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, constata, somos uma nação formada pelos caprichos desse patriarca, que pelos séculos de colonização, escravização, exploração do trabalho e regimes autoritários manteve a indistinção entre o espaço privado da casa e o espaço público da política. A família como alegoria nacional é fortalecida em Diorama pelo cargo parlamentar ocupado pelo pai quando este se torna deputado estadual. Ao refletir sobre essa trajetória, a narradora conclui:

Tentei muitas vezes explicar meu pai a mim mesma. Ele se tornara deputado quase sem querer em um momento histórico de muitas incertezas, mas também de alguma esperança. A esperança é insistente no Brasil. Raul Matzenbacher foi um parlamentar medíocre. Era mais um desses homens de ideias pequenininhas e ambiçõezinhas rasteiras que vão fazendo um país (Bensimon, 2022BENSIMON, Carol (2022). Diorama. São Paulo: Companhia das Letras., p. 234).

A proposta alegórica de Diorama não se encerra na semelhança do violento personagem com tantos políticos de ambições rasteiras que contabilizamos na história nacional. O crime que mobiliza o enredo é uma ficcionalização de um assassinato que comoveu Porto Alegre no ano de 1988: o deputado José Antonio Daudt foi morto com uma arma de caça em frente ao prédio onde morava; um crime que, apesar da cobertura insistente e sensacionalista, ficou sem resposta. Como no romance, um colega parlamentar do PMDB foi apontado como principal suspeito, mas o caso foi engavetado pouco depois de se descobrir que a vítima tinha uma relação amorosa com um homem mais jovem.

Ao reconstruir uma narrativa que faz parte de sua memória de infância, Bensimon elabora uma cronologia para a violência no Brasil contemporâneo. A reabertura política, normalmente percebida pela esperança do retorno democrático, é aqui apresentada como mais um período de ações arbitrárias e violentas protagonizadas por homens que atuam na política "mais por vaidade que por vocação" (Bensimon, 2022BENSIMON, Carol (2022). Diorama. São Paulo: Companhia das Letras., p. 65). Nesse sentido, é interessante perceber como o livro percorre as últimas três décadas da democracia no Brasil até apresentar a mãe da protagonista como uma entusiasta do governo Bolsonaro que, por meio de fotos no Facebook e mensagens em caps lock, apoia a pena de morte.

Diorama combina, de forma engenhosa, diferentes gêneros literários. Trata-se de um romance histórico que deixa indistinta a pesquisa da autora sobre a investigação inconclusa do assassinato de Daudt e a composição ficcional de uma trama familiar. Ao mesmo tempo, é um romance policial de linguagem ágil que entrega, pouco a pouco, as pistas para a elucidação do crime. É ainda um exemplar pós-moderno do romance de formação por acompanhar a trajetória de Cecilia da infância à maturidade, ressaltando os traumas que alicerçam a formação de sua subjetividade.

Por essa chave, é interessante verificar como o romance questiona a possibilidade de escaparmos de nossas comunidades — especialmente da família — e elaborarmos outras narrativas e outros sistemas de valor. Afinal, o título já indica o enclausuramento em uma composição familiar: como a narradora observa, os dioramas são normalmente montados de forma a enaltecer a família nuclear, apresentando uma versão de papai-mamãe-filhinho até para espécies conhecidas pela hostilidade do macho com os filhotes.

Essa imagem, contudo, não sustenta apenas a casa localizada em "um projeto de praça em um projeto de vizinhança em um projeto de país, cujo destaque vinha a ser um imenso reservatório de água bem no centro, uma espécie de cálice de concreto retorcido batizado em homenagem a um general qualquer" (Bensimon, 2022BENSIMON, Carol (2022). Diorama. São Paulo: Companhia das Letras., p. 37). A família Matzenbacher aparece também como alicerce de uma nação que luta para conservar os privilégios e as hierarquias que a fundaram.

Nesse ínterim, os investigadores do assassinato de Satti — tanto os oficiais quanto a imprensa em seu espetáculo sensacionalista — pouco se interessam por sua atuação parlamentar, ainda que ele tenha sido proponente de projetos polêmicos e progressistas, como a proibição de clorofluorcarbonetos pelo dano que causam à camada de ozônio. Na investigação que conduz alguns anos depois do crime, a narradora conclui que a morte de Satti não foi definida por nenhum desses "grandes temas", mas por "uma questão de honra" (Bensimon, 2022BENSIMON, Carol (2022). Diorama. São Paulo: Companhia das Letras., p. 204). Torna-se central na investigação a descoberta de um relacionamento homoafetivo do parlamentar, mostrando que, no Brasil da década de 1980, era razoável criar uma conexão entre um homem ser gay e ser morto a tiros.

Em Diorama, essa "questão de honra", que justifica um crime brutal, aparece também como metonímia de dois ideais de país. De um lado, está o patriarca a quem é sempre conferida autoridade e poder. Do outro, o parlamentar precocemente preocupado com o meio ambiente e que aparece como uma figura paterna acolhedora para o filho do amigo enquanto ele descobre sua orientação sexual. Entre a eliminação e o acolhimento da diferença, equilibra-se a frágil democracia brasileira, que, como Sérgio Buarque de Holanda (1995HOLANDA, Sérgio Buarque de (1995). Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995., p. 160) declarou, "foi sempre um lamentável mal-entendido.

A relação com o outro, com a diferença, é, portanto, o motor de Diorama. No trabalho com animais empalhados, na amizade que construiu com o irmão mais velho, no casamento com um norte-americano ou no encontro casual com uma mulher, a protagonista está sempre tentando encontrar uma conexão verdadeira e afetuosa. Mas ela é igualmente marcada pelas relações violentas que mantém com os outros membros da família, pela aversão ao pai, pelo antagonismo com os caçadores. Talvez por isso o verbo olhar seja usado com tanta frequência no romance. Desde criança, Cecilia olha para o mundo querendo entender como se estabelecem as relações entre os seres. Além disso, quando tenta resolver o assassinato de Satti, a protagonista se depara com os diferentes mistérios que envolvem ver e ser visto: o que as testemunhas viram na noite do crime, o que o pai viu da proximidade de Satti com o filho, o que representaria para um parlamentar ser visto com outro homem…

Analogamente, o romance apresenta um compilado de imagens que o aproximam do cinema ou mesmo de uma coletânea de fotografias. A escrita ágil e a sobreposição de períodos e descobertas sobre o crime elaboram cenas significativas que permitem ao leitor desvendar a história ao mesmo tempo que narradora. Assim como Cecilia, somos postos perante os outros e o que eles despertam: o fascínio, o respeito, o horror… A ideia de encenação — fundamental para a montagem de dioramas — expande-se para as instituições sociais e evidencia a rigidez e a artificialidade das figuras que as compõem.

Atenta à potência do olhar, a protagonista faz diferentes observações sobre os olhos dos animais inertes com os quais trabalha. Da piada de um colega que afirma que "a diferença entre meu urso-polar e um quadro de Monet é que a tela de Monet não tem olhos" (Bensimon, 2022BENSIMON, Carol (2022). Diorama. São Paulo: Companhia das Letras., p. 79) à citação de um artigo de Donna Haraway, onde se lê que "cada diorama tem ao menos um animal que captura o olhar do espectador" (Bensimon, 2022BENSIMON, Carol (2022). Diorama. São Paulo: Companhia das Letras., p. 25), ressalta-se sempre que os olhos são o que colocam esses seres em um estado indistinto de vida e morte.

Quando finalmente chega à casa de sua infância e encontra seu pai paralisado em uma cama, Cecilia reage como os animais que resistem nos museus de história natural. "Olhar bem nos olhos dele" não parece ser o gesto de quem perdoa nem de quem ressente. Sem capacidade de promover justiça, a personagem enfrenta seus traumas, mas também exige que o outro encare a si mesmo. Na chave alegórica que o romance compreende, a cena final — o olhar insistente e corajoso que enfrenta os horrores do passado — pluraliza-se nos milhares de olhos que observam agora os acontecimentos recentes da política brasileira. Como a protagonista do romance, reconhece-se a impotência de se garantir, na história do Brasil, o cumprimento da lei. Mas ao manter o olhar fixo, de quem não permite o apagamento dos crimes cometidos nos últimos anos, expressa-se o desejo por um destino diferente para o futuro do Brasil: sem anistia.

REFERÊNCIAS

  • BENSIMON, Carol (2022). Diorama São Paulo: Companhia das Letras.
  • HOLANDA, Sérgio Buarque de (1995). Raízes do Brasil São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
Editora de Seção: Edma de Góis

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    03 Jun 2023
  • Aceito
    04 Dez 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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