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Comitê Editorial (Com colaboração de Lucíola Licinio de C. P. Santos)

EDITORIAL

Comitê Editorial (Com colaboração de Lucíola Licinio de C. P. Santos)

Com este número publicamos um conjunto de artigos sobre a formação e profissionalização de professores, os quais analisam diferentes aspectos dessa temática fundamental para a construção de uma educação de qualidade. Os debates em curso foram intensificados pela proposição, feita pelo Ministério da Educação, de instituir um exame nacional de certificação de professores, a ser implementado a partir do próximo ano.

Tal proposição tem sido analisada dentro dos marcos da difusão de mecanismos e conceitos de mercado na gestão de sistemas educativos, amplamente discutidos no número anterior de Educação & Sociedade.

A reestruturação do Estado, a partir dos anos de 1980, introduziu grandes mudanças na administração pública e, conseqüentemente, na educação. Neste sentido, tem sido substituída a relação entre os poderes públicos e o sistema escolar, com a introdução de elementos e dispositivos de mercado, na oferta de serviços educacionais até então mantidos pelo setor público, embora continuem sendo financiados com recursos públicos. Neste cenário, uma análise da literatura no campo das políticas públicas evidencia um crescente interesse na avaliação do impacto dessas políticas, buscando-se identificar os setores sociais que mais se beneficiam com sua implementação.

Essas mudanças têm como denominador comum a ênfase na descentralização e autonomia das escolas, na livre escolha das mesmas pelos pais, nos processos de prestação de contas e de controle, entre outros. A descentralização da administração das escolas, com a participação da comunidade, é defendida com base em argumentos de natureza filosófica e econômica, no sentido de que a comunidade pode decidir melhor o que é bom para a escola, propiciando ganhos educacionais e econômicos, pela proximidade e pelo conhecimento que tem da realidade local.

É importante identificar dois elementos que contribuíram para o desenvolvimento de tais políticas e para a sua difusão. Com relação ao desenvolvimento dessas políticas, pode-se dizer que vários fatores foram importantes, destacando-se: a) a crítica à escola pública em razão de seus baixos resultados e do alto índice de fracasso dos grupos de menor prestígio social; b) sua forma autocrática de gestão, em que as decisões são tomadas de cima para baixo, causando a insatisfação no grupo de professores mais progressistas; c) a idéia de que a ineficiência desses sistemas é endêmica, uma vez que os burocratas que atuam no campo educacional não teriam condições para administrá-los com eficiência, o que poderia ser feito de forma mais produtiva se administrados por empresários com larga experiência no campo dos negócios. Estas são as condições que favorecem a introdução dessas políticas, designadas de "quase-mercados", porque introduzem mecanismos competitivos no âmbito do Estado.

Com relação à difusão de tais políticas, é preciso considerar o interesse de funcionários e órgãos governamentais em conhecer como funcionam os sistemas de ensino de diferentes países, com o objetivo de propor soluções para seus problemas, com base em experiências de outros países. Esta se apresenta como uma forma rápida e atraente para resolver problemas que exigiriam conhecimento e reflexão sobre as dificuldades com que se defrontam os sistemas de ensino locais, que muitas vezes precisariam buscar alternativas de médio e longo prazos. Para o curto período de um mandato político, a importação de reformas baseadas em experiências de outros países mostra-se como recurso eficaz, podendo este ainda ser legitimado por um "pretenso" sucesso que tais políticas estão obtendo em países do chamado Primeiro Mundo. Além disso, há que se considerar a difusão de tais políticas por organismos internacionais como a unesco e o Banco Mundial, por exemplo.

A passagem dos sistemas de ensino, nacionalmente administrados, para sistemas de ensino locais, tem levado a uma desregulamentação da escola pública, com base na introdução de diferentes medidas. Em primeiro lugar, é dada ênfase à autonomia das escolas, com acentuada importância à questão da gestão dos recursos. Esse aspecto se torna tão importante que várias escolas na Inglaterra e nos Estados Unidos já entregaram a gestão de seus estabelecimentos escolares para organizações voltadas para esse objetivo. Tais organizações operam, com fins lucrativos ou não, por meio de contratos pagos com o dinheiro público. Ao lado destas, outro tipo de escolas públicas, denominadas de charter schools, organizam-se a partir da iniciativa de professores, de associações, de líderes locais ou de empresas. Essas escolas mantêm um contrato com o governo, que autoriza sua criação com base no seu projeto educativo e no seu plano de desenvolvimento. O seu funcionamento é controlado por critérios relacionados ao desempenho dos alunos e à avaliação de seu plano de desenvolvimento. Essas escolas gozam de grande autonomia financeira, administrativa e pedagógica, estando, no entanto, sujeitas a um controle rígido por parte do Estado, em termos de resultados. Ao lado destas, há uma grande expansão, na Inglaterra, das escolas denominadas de "especializadas" em que, como nas "escolas-imã" (magnet schools) norte-americanas, o currículo, além dos conteúdos estabelecidos, coloca ênfase em determinadas temáticas, como ciências, artes, tecnologia, língua estrangeira, entre outras. Por último, cada dia ganha mais adeptos a utilização do vale-educação, já adotado em vários estados norte-americanos e que consiste no fornecimento, por parte do Estado, às pessoas de baixa renda, do pagamento das mensalidades (às vezes total e outras parcial) em escolas privadas, de acordo com a escolha dos pais.

Neste contexto de mudanças das políticas públicas, dois aspectos são reiteradamente ressaltados. Primeiramente, a ampliação do direito dos pais à escolha da escola de seus filhos, justificando-se as diferentes modalidades de organização presentes no interior dos sistemas de ensino, o que pode proporcionar um espectro mais amplo de possibilidades, não existente anteriormente nos sistemas centralizados e burocraticamente controlados. O segundo está relacionado à participação da comunidade na gestão da escola, o que possibilita maior transparência no uso dos recursos públicos e melhor atendimento às demandas da comunidade.

Contudo, pesquisas relacionadas à escolha do estabelecimento pela família mostram a íntima conexão deste processo com o nível cultural, o acesso a informações, a disponibilidade financeira das famílias, que terminam sendo os elementos-chave do processo. Com relação à participação dos pais na gestão da escola, o artigo de Geoff Whitty & Sally Power, intitulado "Mercados educacionais e a comunidade", publicado no último número desta revista, mostra que, na verdade, este processo se realiza em termos formais, pois na prática o diretor e mesmo os professores terminam tendo mais voz que os pais, cabendo aos primeiros a tomada de decisões e aos últimos a sua legitimação. Os autores apresentam evidências de que nos Conselhos Escolares existe uma tendência para o predomínio de homens brancos e o estímulo à participação de homens de negócios. Mostram, ainda, que quando a participação é mais heterogênea, do ponto de vista social, os pais das camadas populares têm pouco poder, tendo maior visibilidade e voz os pais do sexo masculino e de classe média. Acrescente-se a isso o fato de que algumas escolas exigem que os pais assinem um contrato, de aceitação de suas normas, no ato da matrícula do filho. Esses contratos passam a exigir dos pais um intenso acompanhamento dos estudos dos filhos e o seu não-cumprimento faculta à escola a exclusão do estudante. Os autores citam ainda casos em que os pais, em escolas públicas, são levados a fazer doações às escolas ou a levantar, por meio de diferentes formas, recursos financeiros para sua manutenção, compra de equipamentos e melhorias na infra-estrutura física.

Em síntese, o que os autores querem destacar, por meio de dados levantados em quatro países, é que a participação da comunidade na gestão da escola não é garantia de um processo democrático de tomada de decisões e de que a implementação de administração descentralizada não é sinônimo de políticas progressistas. Todavia, os autores argumentam que não é se desviando desta rota, ou seja, eliminado a participação dos pais nas escolas, que poderemos evitar os perigos acima enunciados. Para eles é preciso correr-se o risco, isto é, garantir a participação da comunidade na gestão da escola, buscando-se alternativas que realmente estejam voltadas para uma educação democrática.

Assim, ao abordar a temática da formação e profissionalização de professores, neste número, Educação & Sociedade amplia o escopo das reflexões desenvolvidas em seu número anterior e sinaliza a necessidade de aprofundamento do debate sobre este processo que implica profundas mudanças no contexto educacional.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Abr 2004
  • Data do Fascículo
    Dez 2003
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