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O olhar em construção

O olhar em construção* * Resenha sobre o livro de BUORO, Anamélia Bueno. O olhar em construção: Uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola. São Paulo: Cortez, 1996. ** Professora do Departamento de Metodologia de Ensino da Faculdade de Educação da Unicamp.

Célia Maria de Castro Almeida** * Resenha sobre o livro de BUORO, Anamélia Bueno. O olhar em construção: Uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola. São Paulo: Cortez, 1996. ** Professora do Departamento de Metodologia de Ensino da Faculdade de Educação da Unicamp.

O olhar em construção: Uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola é produto da dissertação de mestrado de Anamélia Bueno Buoro, defendida na PUC de São Paulo.

O trabalho surgiu a partir de uma constatação da autora em sua prática docente: as crianças – mesmo as de classe média alta – têm pouco contato com a obra de arte (original ou em reproduções) e grande dificuldade em aceitar como arte a pintura moderna e contemporânea.

A autora também justifica seu projeto de ensino ao discutir a desvalorização do desenho e outras formas de expressão artística, tanto na escola como na família, principalmente a partir do momento em que se inicia o processo de alfabetização. O que é agravado quando a criança – por volta dos 9 anos – passa a valorizar a representação fotográfica da realidade e, diante da dificuldade em desenhar desta forma, acaba por utilizar estereótipos que, veiculados pela mídia, mas também validados pela escola, se apresentam como uma alternativa segura à criança insegura de sua produção.

Ao analisar a problemática dos estereótipos presentes no desenho infantil a autora levanta algumas questões: Se o desenho da criança é construído em sua relação com o mundo, como evitar a apropriação de modelos estereotipados? Como transformar a cópia em uma atividade que, em vez de reforçar modelos, contribua para tornar a expressão gráfica da criança mais rica e mais próxima da arte?

Entendendo que a constituição do desenho da criança e a construção do conhecimento em arte "se processam a partir da movimentação entre o repertório imaginário individual e repertório cultural grupal" (p. 43), Buoro estabeleceu como objetivos de sua proposta metodológica: a) o desenvolvimento da percepção visual e da imaginação criadora; b) a ampliação do repertório imagético; c) a aquisição de conhecimentos em arte. Convicta de que uma aproximação com a pintura poderia ampliar o conhecimento em arte e o repertório visual e gráfico das crianças, bem como "construir um olhar" – que desejava crítico –, elaborou um projeto de ensino de artes plásticas. O livro descreve a experiência de aplicação deste projeto na Escola Nossa Senhora das Graças, em São Paulo.

O projeto compreende quatro etapas, correspondentes às quatro primeiras séries do ensino fundamental. A primeira, intitulada "Somos Todos Artistas", tem como objetivo "estimular a imaginação criadora e a expressão do aluno" (p. 53).

Na segunda série, a etapa "Conhecendo os Elementos da Linguagem Plástica" tem como objetivo principal trabalhar os elementos da linguagem plástica (ponto, linha, forma, cor) e suas relações (ritmo, figura/fundo).

Na terceira série, a autora enfoca as questões: "O que é saber desenhar?", "A pintura é realidade?", "A arte é cópia da natureza?", "A pintura retrata o que se vê ou o que se conhece do objeto?", "O que é real?" e "A pintura é realidade?". Nesta etapa, denominada "Ampliando a Observação em Direção ao Mundo", o objetivo é enfrentar a crise do "não sei desenhar", através de atividades práticas como desenho cego, desenho de observação, desenho de memória.

Na quarta e última série, a proposta "Cruzando Caminhos" utiliza a pintura cubista para abordar figuração/abstração e a relação forma/conteúdo, além de discutir os processos de criação dos artistas e dos próprios alunos.

Em todas essas etapas as atividades são desenvolvidas conforme proposta de Robert Ott.1 1 . A autora informa que teve contato com esta proposta no curso "Aprendendo a olhar: A educação orientada pelo objeto em museus e escolas", ministrado por Robert Ott, no MAC de São Paulo, em 1989. No primeiro momento, os alunos são convidados a descrever uma obra (a autora utilizou pinturas de Miró, Cézanne, Picasso, Van Gogh, Portinari e Volpi). A seguir, com o auxílio da professora, analisam os elementos e a estrutura da obra. Em seguida, fazem interpretações da obra, expressando seus sentimentos em relação a ela. No momento seguinte, a professora transmite informações sobre a obra, o artista e o conjunto de sua obra. Finalmente os alunos, inspirados pela obra que acabaram de apreciar, são convidados a produzir um trabalho empregando uma das linguagens artísticas (no projeto de Anamélia os alunos executam pinturas).

Ainda falta, no mercado editorial brasileiro, uma produção extensa e consistente sobre ensino de arte, que discuta experiências que possam contribuir efetivamente para transformar uma prática pedagógica que ainda deixa muito a desejar. Nesse sentido, a obra de Anamélia Buoro é referência fundamental para os educadores, pois não se situa nem no plano do texto teórico hermético, nem no plano da banalidade dos livros didáticos. Ao contrário, nela teoria e prática dialogam facilmente, fundamentando e explicando-se mutuamente.

No entanto, algumas considerações devem ser feitas.

Primeiro, o fato de que a autora, apesar de reconhecer que "a descrição como primeiro passo na leitura visual é obstruída o tempo todo pela narração" (p. 49), apenas inverte a ordem das atividades propostas por Ott – colocando a descrição após a interpretação – sem chegar ao cerne do problema: o fato de que o modelo de Ott pressupõe que a leitura da imagem possa ocorrer em etapas independentes e sucessivas.

Em segundo lugar, não há dúvida de que o contato com a obra de arte desperta nas crianças grande interesse pela arte e possibilita a construção de muitos conhecimentos (sobre a obra, os artistas e a arte em geral), conforme se pode comprovar pelos trechos de depoimentos das crianças apresentados pela autora. No entanto, as pinturas produzidas pelos alunos revelam nitidamente a intenção de pintar num determinado estilo, próprio dos artistas estudados: após Picasso, rostos com duas bocas, dois narizes e quatro olhos; depois de Van Gogh, girassóis, cadeiras e retratos ultracoloridos e feitos de modo a deixar as marcas das pinceladas;2 2 . "No desenho de Van Gogh tem muitos risquinhos e riscos. A pincelada de Van Gogh deixa riscos." (Depoimento de Júlia, da 3ª B, p. 120.) após Miró, o emprego das cores primárias e chapadas, o desenho de figuras amorfas.

As produções dos alunos de Anamélia nos levam a algumas reflexões. A primeira é: Será que pintar à maneira de Miró, Picasso ou Van Gogh concorre para a aprendizagem do desenho, para tornar a expressão gráfica da criança mais rica e mais próxima da arte, como deseja a autora? Segunda: As produções calcadas num modelo – ainda que uma obra de arte – não redundam, também, em estereótipos? Que benefícios podem advir do fato de se substituir esquemas de representação próprios da criança (e até mesmo os estereótipos que ela incorpora em seus desenhos) por esquemas de representação criados pelos artistas?

Apesar dos problemas aqui apontados é necessário ressaltar que o trabalho de Anamélia Buoro representa uma grande contribuição para os interessados no ensino das artes plásticas. O grande mérito do projeto é que ele promove a aquisição de conhecimentos específicos, próprios da linguagem artística, através do contato da criança com a obra de arte.

Sem dúvida, o trabalho de Buoro contribui para compreendermos a arte como área de conhecimento, ultrapassando uma concepção de ensino calcada na noção de que, na escola, arte é mero passatempo.

Notas

  • 1
    . A autora informa que teve contato com esta proposta no curso "Aprendendo a olhar: A educação orientada pelo objeto em museus e escolas", ministrado por Robert Ott, no MAC de São Paulo, em 1989.
  • 2
    . "No desenho de Van Gogh tem muitos risquinhos e riscos. A pincelada de Van Gogh deixa riscos." (Depoimento de Júlia, da 3ª B, p. 120.)
  • *
    Resenha sobre o livro de BUORO, Anamélia Bueno.
    O olhar em construção: Uma experiência de ensino e aprendizagem da arte na escola. São Paulo: Cortez, 1996.
    ** Professora do Departamento de Metodologia de Ensino da Faculdade de Educação da Unicamp.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      26 Jun 2001
    • Data do Fascículo
      Jul 1997
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