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O som atravessado do Sambódromo: conflitos entre camarotes e a avenida dos desfiles1 1 Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no Grupo de Trabalho Estudos de Som e Música no 32º Congresso da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação (Compós), realizado na Universidade de São Paulo (USP), em São Paulo, em 2023. Essa versão encontra-se publicada nos Anais do evento.

The broken sound of Sambódromo: conflicts between VIP boxes and the parade avenue

Resumo

O vazamento sonoro dos camarotes do Sambódromo do Rio de Janeiro para a avenida dos desfiles durante o carnaval de 2022 foi amplamente comentado nos circuitos de samba e na imprensa. Este texto discute os múltiplos atravessamentos gerados pela tensão sonora durante o evento, entendendo que o conflito derivado da disputa musical dramatiza diversas tensões sociais bastante recorrentes nos desfiles do carnaval carioca, relacionados a questões de classe e raça. O carnaval é uma festa popular que negocia desde sempre espaços físicos na cidade, numa tensão que também encarna disputas por espaços simbólicos. O som dos camarotes atravessado com as baterias das escolas de samba pode ser pensado como outra camada de disputas por espaços sonoros, numa complexa engrenagem que reverbera modos de pensar e negociar as hierarquias sociais.

Palavras–chave
samba; escolas de samba; estudos de som; conflitos sociais

Abstract

The sound leakage from the Rio de Janeiro’s Sambódromo’s VIP boxes onto the parade avenue during the 2022 carnival was widely commented on in the samba circuits and the press. This text discusses the multiple discourses generated by the sound tension during the event, understanding these conflicts as a musical dispute which dramatizes several of the recurrent social tensions in Rio’s carnival in their relations to class and race. Carnival is a popular celebration that has always negotiated physical spaces in the city, which also embodies disputes over symbolic spaces. The sound of the VIP boxes crossed with the drums of the samba schools can be thought of as another layer of disputes for sound spaces, in a complex gear that reverberates ways of thinking and negotiating social hierarchies.

Keywords
samba; samba schools; sound studies; social conflicts

Introdução

O verbo atravessar é empregado no jargão do samba para descrever o desencontro entre o canto da escola de samba e a bateria durante o desfile das escolas de samba no carnaval. Quando o samba atravessa, a escola perde pontos na competição e dificilmente poderá disputar o título daquele ano. Pior ainda, corre o risco de ser rebaixada para o agrupamento inferior do ranking do carnaval. Atravessar é, portanto, entendido como um erro de performance que compromete todo o desempenho e a preparação da escola durante o ano. Gostaríamos de salientar que o fenômeno do samba atravessado é um evento sonoro, e é através do som que esse desencaixe limítrofe ocorre. A partir da década de 1960, houve um progressivo aumento de tamanho das escolas do Rio de Janeiro, que intensificou o desafio de manter o canto da escola coeso e sincrônico durante o desfile. Recentemente, a melhoria da qualidade dos equipamentos de som na avenida dos desfiles diminuiu os riscos de o samba atravessar, pois a tecnologia disponível hoje permite reproduzir com precisão o canto e a bateria por toda a avenida.

Se tomarmos um longo arco temporal de quatro ou cinco décadas a partir dos anos 1960, podemos identificar que as mudanças no espetáculo coincidem com uma crescente profissionalização geral do desfile, que passa pelo equipamento técnico e também pela complexidade artística e empresarial do evento. Com a construção do Sambódromo nos anos 1980, a venda de ingressos para o desfile passou a separar espaços nas arquibancadas e cadeiras de acordo com hierarquias de visibilidade, conforto e preço. Nesse processo, foram criados camarotes, espaços fechados, patrocinados por grandes empresas que criam ambientes próprios dentro da avenida dos desfiles, prometendo uma experiência distintiva.

O que queremos discutir neste texto é que o mesmo desenvolvimento técnico dos artefatos de reprodução sonora que praticamente eliminou o risco de o samba atravessar também trouxe para o desfile das escolas de samba a possibilidade de outros sons atravessados. A robusta tecnologia do sistema de som diretamente dedicada às escolas de samba é coadjuvada, na estrutura comercial do desfile do Rio de Janeiro, com a também potente estrutura de aparelhos sonoros localizada no interior dos camarotes. Funcionando como espaços fechados dentro da festa carnavalesca, os camarotes do Sambódromo vendem um pacote de entretenimento que inclui bebidas, comidas e acesso visual à avenida dos desfiles. E incluem também shows de artistas e DJs que, em seu interior, realizam festas e apresentações musicais de modo totalmente independente da temporalidade dos desfiles. Do lado de fora dos camarotes, o som de festas, DJs e shows que vaza dos espaços internos entra em choque com o que seria supostamente o protagonismo musical do evento: o som das baterias e do canto das escolas de samba. Mais do que meramente efeito de atravessamentos sonoros, a tensão acústica que irrompe entre camarotes e avenida dramatiza vários outros conflitos sociais, ativados por questões de classe, raça e valor.

O presente artigo é resultado de impressões dos autores acerca do Desfile das Escolas de Samba do Grupo Especial de 2022, que estiveram no Sambódromo no setor 3, bem em frente ao Camarote nº 1, localizado no setor 2, patrocinado pela cervejaria Brahma e reconhecido como um dos mais barulhentos. Destaca-se ainda que os autores participam do carnaval há vários anos em diferentes funções, tendo atuado individualmente na infraestrutura das confecções das alegorias e fantasias dos barracões, na composição de samba-enredo, na comissão de jurados e na própria arquibancada do evento, como público. Desta forma, as reflexões do texto apoiam-se na recuperação da experiência empírica e nos debates coletados acerca do carnaval do Sambódromo do Rio, mas também em um acúmulo de experiências em diversas atividades que cercam a preparação do evento, desde conversas informais nos barracões até debates nas redes sociais e reuniões oficiais na Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), organizadora do carnaval do Sambódromo.

O território do samba no carnaval: a luta por espaço

A ocupação de determinado território urbano está sempre articulada com disputas de poder. Os territórios, longe de serem espaços perenes e estáveis, se caracterizam por serem instáveis e sempre em movimento, transformados por embates entre grupos sociais. É importante sublinhar que a ocupação de um dado espaço urbano funciona em relação a uma temporalidade determinada, sujeita a conjunturas que, por sua vez, também são atravessadas por poderes, cerceamentos, e vivenciadas por dribles e frestas. Segundo Rogerio Haesbaert, as disputas por certo território não envolvem apenas estratégias de dominação do espaço, mas também formas de apropriação, negociadas de acordo com um conjunto de possibilidades dos indivíduos e grupos envolvidos (Haesbaert, 2014HAESBAERT, Rogerio. Viver no limite. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014., p. 26). O caso da Avenida Marquês de Sapucaí é um bom exemplo desse jogo de negociações sobre os espaços da cidade. Sendo uma rua relativamente curta e secundária na organização urbana da região central do Rio de Janeiro, foi transformada em palco dos desfiles na década de 1970 e passou a ser referenciada em sambas e debates sobre carnaval. Da transformação sazonal da rua em avenida de espetáculos à construção da Passarela do Samba e sua completa desativação como via urbana, o nome da rua é mencionado até os dias de hoje como espaço carnavalesco significativo.

Para além da Sapucaí, o carnaval como um todo é uma festa popular cuja realização implica necessariamente em negociações de espaços físicos e simbólicos na cidade. Nesse sentido, a festa carnavalesca é, por si só, uma ocupação que tensiona determinados usos do território e os subverte, com implicação quase direta nas possibilidades de contestação de poderes instituídos. Por este motivo, é tão comum nas fantasias e repertórios musicais carnavalescos as críticas a instituições, governantes, pessoas e cargos de poder.

É evidente que esse aspecto é mais presente no carnaval das ruas, espontâneo e improvisado, que tem nos blocos, ranchos e cordões (os nomes e a estrutura variam de acordo com a época) seu representante mais óbvio. A pesquisadora Nadja Vladi, em sua pesquisa sobre o carnaval de Salvador, aponta que a festa tem como “marca persistente” a criação de “uma cidade com fluxos efêmeros e territorialidades temporárias” (Vladi, 2020VLADI, Nadja. “O novo som de Salvador: a ocupação política/estética da nova cena musical no Carnaval”. Política Cultural em Revista, 13/2, p. 193-214, jul-dez/2020., p. 200). Nesse aspecto, vale sublinhar que a restrição temporal da festa (os quatro dias de folia) caracteriza uma dramatização de uma espécie de “compressão espaço-tempo” (Harvey, 2007HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2007., p. 7), na qual a condensação de afetos, corpos, sonoridades e sentidos em tensão configura o próprio espaço-território carnavalesco e o próprio tempo do evento. Adicionalmente, a disputa espontânea contra os poderes instituídos é negociada com os próprios poderes oficiais, que regulam, cerceiam, dificultam, impedem e ameaçam a festa, mas que, ao mesmo tempo, apoiam, lucram, protegem, visibilizam a celebração do carnaval.

O desfile das escolas de samba do Rio (e sua replicação em inúmeras outras cidades do país) é um excelente exemplo dessa aproximação ambígua do poder público e das elites econômicas com a festa, num contínuo processo de negociações nem sempre amigáveis. No que diz respeito à ocupação espacial, o desfile das escolas de samba, apesar de ter sido criado como festa popular de rua no início do século XX, apresenta determinadas características que atualmente diferem consideravelmente do carnaval de rua, principalmente porque a festa da avenida dos desfiles ocupa no cardápio carnavalesco o status de evento oficial da cidade. Isso se acentua a partir de meados dos anos 1930, com sua oficialização e consolidação de seu caráter competitivo, quando passou a ocupar um lugar de destaque nas ruas do Centro da cidade e no imaginário social da então capital. É importante registrar que a oficialização do desfile das escolas foi um processo que atravessou pelo menos duas ou três décadas, absorvendo novos atores, patrocinadores e uma relação cada vez mais intensa com outros eventos de grande porte na cidade. O que foi inicialmente uma associação produtiva entre a imprensa carioca, a prefeitura e algumas das nascentes escolas de samba, ampliou seu alcance e visibilidade com a participação da estrutura informal do jogo do bicho e, posteriormente, do comércio de drogas, numa articulação complexa e com várias fases que foge do escopo desta pesquisa. O que convém mencionar é que, apesar desse caráter oficial da competição carnavalesca, a demarcação de espaços urbanos específicos para a realização dos desfiles sempre foi algo negociado, conquistado, negado ou alterado de acordo com tais negociações e engrenagens de poder.

No caso do carnaval carioca, podemos observar que, no decorrer dos anos, configura-se um duplo processo de reivindicação e disputas pelo espaço, que desliza dos embates em torno do espaço físico do desfile para os territórios simbólicos dos sentidos da festa e, não menos importante, para as marcas territoriais e identitárias dos protagonistas dessa festa: os habitantes de bairros e favelas pobres da cidade, majoritariamente constituída por pessoas negras. Nesse deslizamento, repousa um dos aspectos mais relevantes do ambiente cultural que cerca os desfiles, que são momentos de ampla visibilidade e audibilidade de populações que cotidianamente são desqualificadas e estigmatizadas. Como aponta Maria Laura Cavalcanti, “desfilar no carnaval sempre foi apresentar-se em local privilegiado, tornar-se visível, e admirado, se possível, por toda a cidade” (Cavalcanti, 1994CAVALCANTI, Maria Laura. Carnaval carioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro: Funarte, 1994., p. 30). As favelas e os bairros expostos nos nomes das escolas em desfile podem ser pensados como desfiles de territórios, explodindo de significados políticos e altamente tensivos de que brotam do ambiente festivo.

Quando a Mangueira entra na avenida, ou a Beija Flor de Nilópolis, ou a Estácio de Sá, a Mocidade Independente de Padre Miguel, são de fato bairros, favelas e morros que se concentram em desfile pelo centro da cidade, apresentando narrativas fantásticas, místicas ou históricas contadas com base em suas comunidades geográficas de origem. Ainda que seja possível reconhecer os limites de efetiva positivação dessa visibilidade pública (Araújo, 2021ARAÚJO, Samuel. Sambas, sambistas e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2021., p. 88), a ampla circulação midiática da atividade cultural e política dos desfiles coloca em circulação determinados modos de pensar e agir na sociedade, especialmente nas questões que perpassam assimetrias étnico-raciais e de classe. Ocupar as ruas centrais da cidade, nesse sentido, implica em uma ação política relevante para reverberar tais tensionamentos, com alguma possibilidade de deslocar conhecimentos, estereótipos e hierarquias simbólicas compartilhadas. O fato de isso ocorrer na temporalidade e na territorialidade do carnaval, por outro lado, implica em limites para essa efetivação, que no imaginário do samba é frequentemente referido como uma espécie de retorno à normalidade após a Quarta-Feira de Cinzas. Um belo samba-enredo de Martinho da Vila (de novo o território no nome não só da escola, mas também de seus atores sociais, cantores, artistas, diretores) é explícito ao lamentar que todo o sonho da inversão festiva é feito “pra tudo se acabar na quarta-feira” (Vila, 1983VILA, Martinho da. “Pra tudo se acabar na quarta-feira”. Canção publicada no álbum Sambas de enredo das escolas de amba do grupo 1ª – 1984. Gravadora Top Tape, 1983.).

Com relação ao espaço físico, a história dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro tem dois marcos importantes. O primeiro deles é a derrubada da Praça Onze, em 1942, para a abertura da Avenida Presidente Vargas. O segundo, quatro décadas mais tarde, é a construção do Sambódromo em 1984, que estabiliza o local do desfile.

Os primeiros desfiles das agremiações carnavalescas oriundas de morros e bairros periféricos da cidade durante a década de 1930 ocorriam na Praça Onze que funcionava à época como ponto de convergência e encontro entre os suburbanos (proximidade com os trens) e os moradores da chamada “Pequena África” (Cabral, 1974CABRAL, Sergio. As escolas de samba: o que, quem, como, onde e porque. Rio de Janeiro: Fontana, 1974.; Moura, 1983MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Brasil. Rio de Janeiro: Funarte, 1983.). Com o fim da Praça Onze em 1942, os desfiles passaram a acontecer na moderna e ampla Avenida Presidente Vargas, apoiados com estruturas de arquibancadas móveis montadas especialmente para a festa.

Durante o período em que o desfile ocupou a longa Avenida Presidente Vargas, o percurso do desfile teve sua posição e seu sentido alterado diversas vezes. Por ocasião das obras do metrô, foi deslocado nos anos 1970 para outra avenida, também produzindo alterações no sentido do cortejo. As constantes mudanças do espaço do desfile produziam diversos problemas logísticos no deslocamento dos foliões, dos carros alegóricos cada vez maiores, incluindo passagem em ruas apertadas, necessidade de desvios de fiações externas, árvores e sinais de trânsito, além da própria inclinação de algumas ruas, que dificultava o transporte dos carros, quase sempre empurrados por funcionários das escolas (Gomyde, 2015GOMYDE, Pérsio. Da Candelária à Apoteose: quatro séculos de paixão. Rio de Janeiro: Multifoco, 2015.). Após insatisfações das escolas, o desfile foi novamente realocado para a Marquês de Sapucaí em 1978. Na Sapucaí, transversal à grandiosa e modernista Avenida Presidente Vargas, as questões logísticas eram facilitadas e o imaginário positivo em relação à rua passou a ser notabilizado nos próprios sambas de modo recorrente. Seis anos mais tarde, a avenida deixaria de ser utilizada como via urbana e receberia a construção da Passarela do Samba, popularmente conhecida como Sambódromo.

A construção do Sambódromo foi o segundo marco decisivo nas negociações de espaço físico na cidade para o desfile. Por um lado, o carnaval das escolas ganhava um palco fixo, garantindo a previsibilidade e todas as adaptações necessárias para a relevância que o evento havia adquirido para a cidade e para o país. Por outro, o projeto propunha alterações no desfile (como a inclusão de um trecho de apoteose ao final que nunca ocorreu de modo satisfatório e terminou extinto) e possibilitava que a exploração comercial, que já era bastante robusta, fosse ainda mais acentuada. Como aponta o pesquisador de carnaval Felipe Ferreira,

[...] a construção da Passarela do Samba, o Sambódromo, para o carnaval de 1984 acirrou esta discrepância entre o espetáculo e sua produção ao impor uma nova relação espacial para as apresentações. A distância do público, seu aumento numérico, a difusão sonora, a iluminação, a forma da escola entrar e sair da passarela, a ausência de decoração, tudo havia mudado

(Ferreira, 2012FERREIRA, Felipe. “Escolas de Samba: uma organização possível”. Sistemas & gestão, v. 7, n. 2, p. 164-172, 2012., p. 166).

Com as mudanças estruturais nos desfiles dos anos 1980, a administração do espaço passou a estar sob responsabilidade da recém-fundada Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), com o equipamento cultural do Estado do Rio de Janeiro cedido à organização. Desde então, o Sambódromo tem passado por diversas intervenções e adaptações. Na construção original, a substituição da fileira direita de arquibancadas por um bloco de camarotes foi interpretada negativamente por parte dos sambistas como uma ampliação restritiva da festa, uma vez que menos lugares estariam disponíveis a preços acessíveis. O desfile ganhava espaços rígidos de separações sociais de funções, com cabines exclusivas aos julgadores dos desfiles subdivididos em quesitos específicos, cobrança de ingressos a preços variados de acordo com a visibilidade e o conforto. A divisão social entre camarotes e arquibancadas de certa forma passou a espelhar divisões hierárquicas da sociedade. Isto é, o festejo popular protagonizado por pessoas majoritariamente negras representando territórios de exclusão geográfica, simbólica e racial na cidade foi, no decorrer dos anos, aos poucos, abrindo-se para outros públicos e posições no âmbito do desfile. É evidente que não foi o Sambódromo que deflagrou esse processo, mas a segregação de espaços hierarquizados do espetáculo carnavalesco, em certa medida, acentuou uma percepção de perda de espaço para os sambistas e para a comunidade das escolas.

Em 2012, o Sambódromo sofre novas intervenções em sua estrutura, concretizando o projeto original de Oscar Niemeyer, no qual o paredão de camarotes cede lugar a mais uma fileira de oito arquibancadas. A ampliação das arquibancadas possibilita que mais pessoas assistam exclusivamente os desfiles, e o espaço para os camarotes foi inicialmente diminuído, passando a ocupar espaços abaixo das arquibancadas. Progressivamente, porém, nos últimos anos, alguns camarotes se estenderam em direção ao piso inferior (mesmo patamar dos foliões em desfile), ocupando o espaço das frisas. Além disso, algumas fusões, como camarotes contíguos, produziram a ampliação de alguns deles, que chegam a ocupar quase metade da área inferior e do segundo andar de alguns blocos de arquibancadas. Além de uma visibilidade privilegiada do desfile, os camarotes passaram a ser locais onde celebridades desfilam, dividindo a atenção do público e da transmissão televisiva com o carnaval das escolas. Nos últimos dez anos, a estrutura dos camarotes se tornou comercialmente importante para a economia do desfile, evidenciando uma tensão constituinte entre festa popular e comércio.

“Virou Hollywood isso aqui”: festa popular e comércio

No carnaval de 1990, a escola de samba São Clemente levou para o desfile o enredo “E o samba sambou”, com críticas severas à mercantilização do carnaval. Embalada por um desfile bem-humorado, o samba-enredo criticava o perfil pop do desfile carnavalesco, assim como a perda das ligações identitárias entre alguns profissionais do desfile e as comunidades das escolas. O refrão, dizia: “É fantástico! Virou Hollywood isso aqui/ Luzes, câmeras e som/ Mil artistas na Sapucaí”. Na estrofe inicial, apontava que o povão perdeu lugar na arquibancada (por causa do alto preço dos ingressos) e que o puxador e o mestre-sala foram defender as cores de outra escola, “levados por cartolas”.

A construção do Sambódromo intensificou um já duradouro debate entre participantes das escolas de samba acerca dos limites entre o espetáculo comercial e a festa popular espontânea. A ideia de uma progressiva mercantilização dos desfiles que automaticamente afasta os moradores das comunidades e os foliões da própria festa é bastante compartilhada e discutida entre aqueles que gostam, participam, fazem e pensam o carnaval (Lopes, 2005LOPES, Nei. Partido-alto: samba de bambas. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.). O debate atravessa inúmeros aspectos da estruturação do desfile, passando pelo andamento do samba-enredo, a grandiosidade dos carros alegóricos e fantasias, a profissionalização da comissão de frente e, em especial, o preço elevado dos ingressos para assistir ao espetáculo. Emblemático exemplo desse debate é o famoso samba de Paulinho da Viola, intitulado “Argumento”, no qual o compositor pedia: “não me altere o samba tanto assim” (Viola, 1975VIOLA, Paulinho da. “Argumento”. Canção publicada no álbum Paulinho da Viola. Odeon, 1975.). As alterações mencionadas no debate da época eram especialmente relacionadas ao aumento da velocidade da execução do samba-enredo, fruto de uma engrenagem comercial que impunha carros alegóricos maiores e mais brilhantes, um número crescente de foliões durante os desfiles, a profissionalização dos processos artísticos e decisórios nas escolas e a ampla divulgação midiática, em estreita conexão com o mercado turístico que já se configurava como um novo modelo do espetáculo.

É evidente que esses debates transcendem o carnaval, podendo ser encontrados em diversas práticas culturais que, tendo origem popular, acabam sendo redimensionadas pelo comércio e incorporadas a práticas de outras classes sociais. As culturas populares, especialmente na América Latina, apresentam diversos atravessamentos de classe e circuitos sociais, num processo que Pablo Alabarces chama de “plebeização da cultura” (Alabarces, 2020ALABARCES, Pablo. Pospopulares: las culturas populares después de la hibridización. Guadalajara, Jalisco: Ed. Universidad de Guadalajara/CALAS, 2020.). Trata-se de um processo que inverte a ideia de apropriação (que seria uma ação realizada pelas elites culturais), sugerindo que a ampliação de práticas culturais das parcelas populares para as abastadas da população representa uma ação protagonizada pelos agentes das classes populares. Em outras palavras, são as culturas de elite que seriam invadidas por elementos das culturas populares, causando diferentes tipos de novos conflitos e contradições. Para o autor, tal processo pode ser enganoso, pois aparentemente trata-se de uma democratização do plebeu, mas esconde que esse uso termina por manter as hierarquias sem questionamento (idem, p. 86). Neste processo, de modo tensivo, as culturas populares tendem a desenvolver estratégias de legitimação cujo efeito mais direto é a ênfase em elementos que podem ser associados com o passado colonial, reportando a significações ligadas à fé e/ou festividades. Assim, parte de sua valorização cultural e simbólica repousa fortemente na ideia de ancestralidade e tradição, entendida como um conjunto de elementos e práticas que produzem “coesão social” (Hobsbawn, 1997HOBSBAWN, Eric. “A invenção das tradições”. In: HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. (orgs.) A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997., p. 9).

No caso do desfile das escolas de samba, é importante destacar o seu caráter ritual como forma de valorização de sua força cultural. O cortejo dos desfiles no carnaval apresenta significantes sacros e profanos, reforçando a noção de pertencimento, memória e ocupação física e simbólica de espaços. As homenagens às velhas guardas, às baianas ou ao passado de glória das escolas, entre vários outros signos altamente significativos no imaginário do samba, são alguns desses elementos de reforço da tradição que rima com ancestralidade. Todo esse universo simbólico e referencial de ancestralidade e tradição, na perspectiva de alguns sambistas, entra em conflito com a atividade comercial e com a modernização do ritual do desfile.

Num debate que percorre várias nuances, épocas e aspectos da história do samba, a valorização do autêntico é entendida como incompatível com elementos articulados com a ideia do moderno. Basta lembrar da instigante formulação do jornalista Francisco Guimarães, o Vagalume, que em 1933 afirmava que as modificações no samba o fariam perder a sua “cadência” e entrar em “decadência” (Guimarães, 1978GUIMARÃES, Francisco. (Vagalume). Na roda de samba. Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1978.). No caso das escolas, o debate não é muito diferente. A profissionalização dos desfiles produz, a cada ano, uma série de críticas ao seu caráter comercial e moderno, materializado muitas vezes na noção de espetáculo. Segundo o jornalista Roberto M. Moura, nesse período, os sambistas viviam uma espécie de paradoxo: se, por outro lado, as escolas tinham cada vez mais prestígio social e a festa do carnaval era cada vez mais legitimada, por outro, seu espaço no interior das escolas foi sendo reduzido, restrito ao samba-enredo e alijado das funções de poder (Moura, 2004MOURA, Roberto M. No princípio era a roda. Rio de Janeiro: Rocco, 2004., p. 163). E, no imaginário do samba, a ideia de “modernização começa a rimar com descaracterização” (Trotta, 2011TROTTA, Felipe. O samba e suas fronteiras. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2011., p. 87).

É evidente que esse discurso sambista está relacionado a jogos de poder e disputas por espaço simbólico e comercial na sociedade. Autores como Néstor García Canclini, Renato Ortiz e Martín-Barbero afirmam há tempos que a cultura popular está inserida no universo comercial mainstream como uma dimensão constitutiva (Martín-Barbero, 2001MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.). Especialmente na América Latina, onde a experiência de uma “modernidade sem modernização” (García Canclini, 1997GARCÍA CANCLINI, Nélson. Culturas híbridas - estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. São Paulo: Edusp, 1997.) ou de uma “moderna tradição” (Ortiz, 2001ORTIZ, Renato. A moderna tradição brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2001.) sublinha um entrelaçamento entre as práticas tradicionais e sua circulação mercantil, é importante pensar nessas tensões como engrenagens de posicionamentos sociais que operam por negociações e conflitos. Para além da polêmica formulação de um hibridismo cultural formado por tais mesclas contínuas entre práticas populares e circuitos de elite e/ou de mercado, é interessante observar que os conflitos gerados pela inserção do mercado na rotina das culturas populares, seja pelo viés turístico, seja por parcerias comerciais com a iniciativa privada, formam parte integrante de eventos culturais como o carnaval.

Caracterizadas pelo crescente uso das novas tecnologias, ebulições políticas e reestruturações urbanas, as práticas culturais tradicionais, como o carnaval carioca, buscam a manutenção de algumas tradições de matriz africana como estratégia de resistência à modernização que as exclui parcialmente, buscando ocupar e garantir espaços urbanos físicos e simbólicos. Ao mesmo tempo, transformações na dinâmica de tais eventos desafiam a permanência de traços rituais reconhecidos como legitimadores de tais práticas. No caso do embate relacionado às escolas de samba, o conflito reside no tensionamento entre a dimensão do processo ritual (Turner, 1974TURNER, Victor W. O processo ritual: estrutura e antiestrutura. Petrópolis: Vozes, 1974.) da festa, ligado à ancestralidade, espontaneidade, e à tradição, e o aspecto mercadológico, racionalizado e profissional no que se refere à gestão, economia e midiatização do espetáculo do Sambódromo.

O que nos parece bastante claro é que, em determinados momentos, esse embate se materializa no camarote. É evidente que a presença um tanto incômoda do camarote no desfile das escolas insere-se em um contexto de comercialização cultural que reconhece a conformação de espaços segregados para o público de grandes eventos. O espaço VIP ou o próprio camarote, se já era uma realidade na estruturação das salas de concerto em todo o mundo, vai aos poucos tomando forma de uma divisão espacial hierarquizada no interior dos espaços fechados ou semifechados em diversos tipos de espetáculos culturais. O preço dos ingressos proporcional à proximidade do palco ou da posição de melhor visibilidade é hoje um padrão de toda a indústria do entretenimento. Mesmo no carnaval, essa distinção não se restringe ao desfile do Rio de Janeiro, mas aparece como uma questão tensiva também em outras localidades. Ao comentar sobre as mudanças no carnaval de Salvador nas duas últimas décadas, Nadja Vladi aponta que os camarotes se tornaram “o produto mais rentável da festa, na sua maioria de propriedade de estrelas da música baiana e de empresários dos blocos, que criaram estruturas poderosas dentro da engrenagem do carnaval e das disputas de territorialidade” (Vladi, 2020VLADI, Nadja. “O novo som de Salvador: a ocupação política/estética da nova cena musical no Carnaval”. Política Cultural em Revista, 13/2, p. 193-214, jul-dez/2020., p. 202).

A tensão entre o “produto mais rentável da festa” e o aspecto tradicional e ritualístico do desfile das escolas de samba é um ingrediente constitutivo da própria estrutura do espetáculo, que se acentua nos últimos anos e vai tomando novas formas a cada negociação. É importante registrar que essa tensão é articuladora do próprio sentido de existência dos camarotes. Como afirma Bruna Silva, ao analisar os camarotes do carnaval baiano:

[...] o camarote, mesmo que em um espaço distinto da festa, não tem sentido algum sem a rua, sem o trio elétrico. Esse é o ponto de convergência entre eles, que significa e corrobora toda essa diversidade cultural. Sem a rua, o camarote se torna uma festa indoor como qualquer outra, em qualquer época do ano, isolada e fechada

(Silva, 2019SILVA, Bruna. “Agora assista aí de camarote”: os camarotes reconfiguram as redes de negócios de Salvador”. 2019. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2019., p. 74).

Se, por um lado, essa tensão é constitutiva do camarote, do lado dos foliões que desfilam na avenida, o vazamento sonoro pode se transformar em elemento exógeno e gerar incômodos. Tais incômodos, como qualquer atravessamento acústico, são negociados com base em limites de tolerância e convivência que nem sempre funcionam de modo transparente (Trotta, 2020TROTTA, Felipe. Annoying Music in Everyday Life. Nova York e Londres: Bloomsbury, 2020.). Quando o som ultrapassa um certo limite consensual entre determinados grupos, o embate se torna mais direto. Foi precisamente o que aconteceu em 2022, especialmente no setor 3 do Sambódromo, com o altíssimo volume sonoro do camarote da Brahma.

Disputando o espaço sonoro

Mencionamos acima que a construção do Sambódromo significou a sedimentação de um espaço físico fixo para o carnaval das escolas de samba do Rio de Janeiro, possibilitando ações de planejamento dos desfiles e de venda de produtos relacionados ao evento (ingressos, publicidade, direitos de TV) mais perenes e comercialmente mais estáveis. Se, por um lado, isto é verdadeiro, por outro, as negociações sobre a ocupação de espaços nunca estão finalizadas.

O que buscamos sublinhar neste artigo é que o vazamento sonoro dos camarotes pode ser entendido como uma dramatização de tensões de classe articuladas com valores sociais e preferências estéticas. Tais tensões estão profundamente permeadas por segregações de raça e território, numa combinação que mistura a origem geográfica das agremiações carnavalescas (morros, favelas e subúrbios) com o perfil étnico-racial negro de suas populações e, não menos importante, seu pertencimento a estratos de menor poder aquisitivo na hierarquia social. E aqui um conjunto confuso de preconceitos cruzados produz associações diretas entre gostos musicais e vinculações de classe, raça e local de moradia.

Musicalmente, em linhas gerais, pode-se registrar que os camarotes normalmente são sonorizados com música pop e/ou eletrônica, DJs e som alto destinados a setores mais abastados da sociedade. Já as arquibancadas são destinadas a um público de camadas médias e baixas da população, supostamente mais interessadas no samba. Oposições diretas de estereótipos estéticos e de classe e raça que segregam vetores excludentes: samba versus pop, comércio versus tradição, ricos versus pobres, brancos versus negros. Porém, evidentemente, essas oposições não funcionam exatamente dessa forma. Além de inúmeras gradações e sobreposições entre essas separações dicotômicas, deve-se levar em conta que públicos diversos participam tanto das arquibancadas (como turistas, curiosos, acompanhantes) quanto dos camarotes (muitos sambistas efetivamente fazem shows nos camarotes, além de haver camarotes alugados pelas próprias escolas), tornando essas divisões binárias quase artificiais. Ainda assim, os camarotes funcionam como um espaço de agrupamento de pessoas cujo interesse direto nos desfiles das escolas de samba é, no mínimo, dividido com outras atrações do local. Em entrevista ao podcast Bulldog, o presidente da Liesa, Jorge Perlingeiro, afirma que o camarote é bom financeiramente para a festa, mas é ruim “porque vai muita gente pra lá que não vai pelo desfile, vai pra boate, vai pra ver as atrações que tem no camarote e, de certa forma, estavam até nos incomodando”2 2 Disponível em: https://www.srzd.com/carnaval/rio-de-janeiro/presidente-da-liesa-cita-medidas-drasticas-diante-dos-camarotes-na-sapucai/. Acesso em: 1º set. 2023. .

Esse incômodo tem sido continuamente discutido nos meios sambistas.De algum modo, o desfile de 2022 o reverberou mais intensamente. Em parte, porque o debate atravessou a cobertura jornalística, especialmente com a fotografia de Felipe Silva, publicada no portal G1. Na reportagem, o jornalista Raoni Alves observa que, ao fundo, as pessoas (brancas) no camarote “se divertem sem nem olhar para o desfile”. Esse aparente desinteresse é observado também no carnaval de Salvador com tensões de hierarquizações sociais semelhantes (Silva, 2019SILVA, Bruna. “Agora assista aí de camarote”: os camarotes reconfiguram as redes de negócios de Salvador”. 2019. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2019., p. 81). E, podemos arriscar, possivelmente, a desatenção de parte do público dos camarotes pode ser encontrada em vários outros espaços de espetáculo artístico.

Retornando à reportagem do G1, o texto apresenta uma declaração do fotógrafo afirmando que durante o desfile da Portela, “o som do camarote estava conflitante com o samba da escola”, o que o levou a observar que a maioria das pessoas no camarote não manifestavam interesse pelo desfile. Se o som foi deflagrador da atenção do fotógrafo, a narrativa do enredo e a alegoria representando um homem negro escravizado sublinham o caráter racial das disputas entre camarotes e avenida dos desfiles. Ou seja, as pessoas brancas do camarote parecem não se importar com a dimensão política de um enredo que apresenta criticamente o racismo da sociedade com a história brutal da escravização no país, acentuando a dicotomia rígida entre os dois espaços sociais.

Figura 1

Cabe observar que o racismo da sociedade brasileira tem componente estrutural (Almeida, 2019ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.), que perpassa uma série de instituições, distribuição de cargos, salários, reconhecimentos, desconfianças. Nos espaços sociais destinados a pessoas de maior poder aquisitivo, a predominância de indivíduos de pele clara é impossível de não ser notada, configurando uma das faces dessa segregação fundada no racismo. O camarote é um entre tantos exemplos onde podemos visualizar o racismo estrutural de forma bastante explícita.

O que queremos destacar aqui é que, sem desconsiderar a força política da imagem registrada pelo fotógrafo, o atravessamento perceptível dessas demarcações ocorreu pelo som. Foi o conflito sonoro que chamou a atenção do fotógrafo para a contradição tensiva da situação, que dissolve em parte uma suposta pacificação social e racial construída como narrativa nacional desde a sedimentação do que se convencionou chamar do “mito das três raças”. Nesse sentido, a força da projeção de um som sobre o outro estabelece uma disputa em torno do protagonismo da ambientação acústica e simbólica do evento, sendo determinante da experiência de negociações sociais que cercam as manifestações culturais.

Enquanto fenômeno acústico, o som é formado por ondas que se propagam pelo ar. O grau de alcance dessa propagação depende diretamente da intensidade da fonte sonora, que determina o tamanho do espaço ocupado pelo som. É interessante observar que a palavra volume é usada em português e em várias outras línguas para se referir simultaneamente ao espaço ocupado por um corpo físico (especialmente líquidos) e à intensidade do som, que é uma espécie de tradução metafórica de sua ocupação espacial. Ao mesmo tempo, o deslocamento do ar projetado no espaço atinge os corpos e produz alterações, fazendo-os vibrarem de acordo com a frequência das ondas sonoras. Isso vale para paredes, portas, janelas, garrafas, copos e também para pessoas.

Incorporando essa dupla informação do vocábulo volume em interação com diferentes corpos, podemos pensar no som como um fenômeno que negocia e delimita o espaço e a forma como os corpos (incluindo as pessoas) vão se comportar com as alterações físicas das ondas sonoras. O som de uma potente caixa sonora se projeta no interior do espaço da festa de modo a produzir alterações corporais e moldar aquele ambiente por meio das inflexões (ritmos, vozes, harmonias, batidas) da música executada. Essa projeção em alta intensidade produz sensíveis alterações corporais em ambientes fechados, modificando batimentos cardíacos, movimentos corporais, tecidos e até órgãos internos (Cusick, 2006CUSICK, Suzanne. “Music as torture, music as weapon”. Revista TRANS, n. 10, 2006.). E tudo isso é intencional e, em grande medida, desejado. Ocorre que o espaço físico de reverberação desse som nem sempre coincide com o espaço ocupado. Ao atravessar delimitações físicas do espaço (paredes e portas), o som ocupa outros espaços, muitas vezes gerando conflitos. As disputas entre vizinhos são talvez o exemplo mais cotidiano desse movimento do som que alcança outros espaços físicos e sociais, além do ocupado pela fonte sonora (Trotta, 2020TROTTA, Felipe. Annoying Music in Everyday Life. Nova York e Londres: Bloomsbury, 2020.).

A experiência sonora dos camarotes no Sambódromo opera numa zona de interseção entre o som gerado em seu interior por suas atrações e o som dos desfiles. Para o público dos camarotes, a convivência de tal conflito sonoro, ainda que possa ser entendida como indesejada, faz parte do pacote de entretenimento amplamente anunciado e conhecido de antemão. Evidentemente, manifesta-se no camarote uma hierarquia que podemos classificar como natural, na qual o som dos desfiles penetra no interior dos espaços da festa dos camarotes, atravessando a música de bandas, artistas e DJs. Contudo, esse atravessamento também ocorre no sentido inverso, o que de certa forma quebra essa hierarquização natural entre camarote e desfile. Ao atingir o público das arquibancadas, frisas e os próprios integrantes das escolas, o som dos camarotes produz uma percepção de intromissão, funcionando como intruso não permitido a contribuir para um ambiente sonoro conflitante e, com isso, atrapalhando o desfile.

Para além da experiência de entretenimento do desfile das escolas de samba, vale registrar que desde a década de 1930 os desfiles têm caráter competitivo, aferido por julgadores que analisam determinados aspectos (quesitos) da apresentação das escolas. Dois quesitos são diretamente relacionados à performance musical (harmonia e bateria), sendo frontalmente tensionados pela presença de sons exógenos à performance ensaiada pela escola. Em 2022, o julgador de bateria Philipe Galdino registrou em sua planilha de notas uma observação negativa relacionada ao vazamento do som dos camarotes. Em suas palavras: “Muito vazamento de som dos camarotes para dentro da avenida (em frente aos módulos 1 e 2) durante a passagem das escolas. Uma falta de respeito para com o espetáculo e podendo inclusive atrapalhar os jurados da parte musical” (Galdino, 2022GALDINO, Philipe. Justificativa das notas do quesito bateria – carnaval 2022. Disponível em: https://liesa.globo.com/memoria/outros-carnavais/2022/justificativa-dos-jurados.html. Acesso 13 de setembro de 2023.
https://liesa.globo.com/memoria/outros-c...
).

O julgador registra o vazamento como “falta de respeito” às escolas, ao mesmo tempo que chama a atenção para a possibilidade de tal vazamento ser prejudicial ao próprio julgamento da “parte musical”. Como dissemos, em 2022, a circulação das insatisfações de sambistas e do público mais interessado no desfile ecoaram de modo mais intenso em variadas esferas. O comentário de Galdino foi um elemento importante no processo. “Falta de respeito” também foi um aspecto mencionado pelo fotógrafo Felipe Silva em seu registro dos camarotes reproduzido acima.

Aqui cabe uma breve digressão. As referências a respeito clamam pela dimensão ética dessa disputa sonora. Não há razões para acreditar que os administradores e participantes dos camarotes tenham qualquer intenção de prejudicar os desfiles das escolas. O interesse comercial e de entretenimento está direcionado a promover uma experiência variada que ocupe toda a noite, justificando o alto valor do acesso ao camarote e sua animação. O que ocorre, curiosamente, é que os camarotes inseridos no contexto do Sambódromo entendem o desfile como um elemento a mais no conjunto de atrações à disposição. O “Camarote nº 1”, localizado no setor 2 da avenida, exatamente em frente ao módulo 2 dos jurados (onde estava Philipe Galdino), publiciza em seu site oficial o pacote disponível para o carnaval de 2023. Nas palavras do marketing do camarote: “o camarote mais badalado da Sapucaí chega com um line up incrível onde a balada e o samba se misturam para uma experiência inesquecível, além de muito conforto, open bar e buffet completos a noite inteira”. O texto não podia ser mais preciso na escolha do vocábulo mistura para se referir ao universo sonoro da balada e do samba. Além disso, vale destacar que o samba opera nessa frase como uma condensação de significantes sonoros e do espetáculo mesmo do desfile, conjugado (misturado?) com bebidas, alimentos, música de balada e conforto. Acreditamos que seja precisamente essa anexação do samba como parte de um pacote-camarote que seja referenciada como “falta de respeito”. Isso porque, se o vazamento sonoro da avenida para dentro dos camarotes integra a mistura descrita no marketing do camarote, o vazamento inverso atrapalha o desfile e, possivelmente, o próprio julgamento. Mas, no âmbito do camarote, isso não é importante. Ou seja, os administradores comerciais do camarote adotam uma postura de pouco caso em relação a esse vazamento, que não identificam como sendo um problema. A percepção de “falta de respeito” é derivada exatamente dessa avaliação de desimportância.

Adicionalmente, o clamor por respeito busca recuperar a hierarquia das atenções e da experiência do desfile, tensionando novamente o caráter comercial (e de elite) imposto pela estrutura dos camarotes. É interessante destacar que, sonoramente, duas frequências são particularmente decisivas no conflito: os graves eletrônicos do contrabaixo da música dos DJs que se chocam com os surdos das baterias, e os agudos dos contratempos das marcações percussivas eletrônicas, que entrecortam as polirritmias das caixas e tamborins das baterias. No grave e no agudo, os sons se atravessam e materializam presenças que negociam e disputam o protagonismo sonoro da festa. Ao embolar a articulação dos surdos e das caixas, o som eletrônico do camarote atravessa os elementos mais simbólicos do samba, conectado com sua história negra, com as comunidades pobres que são protagonistas das agremiações carnavalescas que inventaram o espetáculo grandioso do desfile de carnaval. O baixo e o contratempo, ainda que em volume mais baixo, alteram a precisão das caixas e surdos, reduzem a clareza do dificílimo equilíbrio timbrístico da bateria da escola de samba, impondo uma sonorização desarticuladora e desagregadora. Em termos simbólicos, não é muito forçado assumir que o desleixo dos camarotes em relação ao vazamento é uma manifestação arrogante de desvalorização do protagonismo popular da festa, de sua trajetória de resistências sociais diversas, de sua relevância na luta contra o racismo. A “falta de respeito” não seria, portanto, somente uma disputa de hierarquias na festa, mas uma percepção de desconexão simbólica com certos fundamentos éticos que produziram os desfiles das escolas de samba e que, de alguma forma, se materializam sonoramente na performance do samba-enredo na avenida, com a complexidade sonora da combinação entre canto e bateria atravessada pela negação eletrônica das batidas que vazam dos camarotes.

Considerações finais

O desfile das escolas de samba do Rio de Janeiro ocupa lugar de destaque no imaginário cultural do país. Esse reconhecimento passa, em parte, pela antiga centralidade do Rio no cenário nacional em aspectos políticos, econômicos e culturais. Mas o reconhecimento dos desfiles está relacionado também com sua publicização por meio da sua transmissão televisiva desde a década de 1970, que amplifica a reverberação e o alcance dos imaginários das escolas de samba do Rio para outros territórios e regiões do país, moldando o debate sobre identidade nacional. Ainda que, desde pelo menos a virada para o século XXI, haja notadamente uma redução de sua importância simbólica compartilhada em outros estados do país, a força cultural e econômica do desfile ainda hoje é altamente relevante. Nesse sentido, as contradições e negociações dramatizadas no evento conseguem repercussão significativa em diversos circuitos da sociedade, em especial na antiga capital brasileira.

Em um momento de crescimento da extrema direita no Brasil e no mundo, sob um governo com ímpetos e ações autoritárias e excludentes, os debates sobre hierarquias de classe e violências étnico-raciais adquiriram, na avenida dos desfiles, espaço de relativa projeção. Temas diretamente relacionados a revisões sobre a história dos negros no Brasil têm sido recorrentes nos enredos das escolas de samba há vários anos, tendência que se acentuou nos últimos carnavais. De certa forma, as escolas de samba operam como articuladores tensivos e complexos (e também bastante contraditórios) de tensões de classe e raça, pautando debates e eventualmente auxiliando em processos de deslocamentos de imaginários e narrativas sociais compartilhadas.

Nesse sentido, o debate acerca dos atravessamentos sonoros entre camarotes e avenida é uma pequena amostra de vários tensionamentos entrelaçados que acabam convergindo para o mesmo ponto. O samba funciona nesses debates como prática que condensa diversas ideias relacionadas à negritude, às assimetrias de classe, a hierarquias de valores sociais, à luta por direitos sociais compartilhados e melhores condições de vida. Quando o samba é atravessado pelo som insistente, eletrônico e intrusivo dos camarotes, um jogo de reações e insatisfações é ativado e reverbera em embates públicos. Particularmente no carnaval de 2022, realizado em abril, após um ano sem realização da festa por causa da pandemia da Covid-19, a saturação sonora dos camarotes pareceu evidenciar demarcadores simbólicos que demandaram ações e reações. Reforçamos que nossa experiência no desfile de 2022 possibilitou uma proximidade física do camarote da Brahma que foi de certo modo o estopim de várias reclamações genéricas sobre os camarotes. Sem querer apontar a possibilidade de o camarote nº 1 funcionar como uma metonímia de toda a experiência do Sambódromo, uma vez que ele é reconhecido como o camarote de maior potência sonora, apontamos que a deflagração desses debates (especialmente pelo registro da insatisfação do jurado Philipe Galdino) foi feita desse camarote, com repercussões em toda a organização do carnaval. Pressionada a se manifestar sobre a situação, a Liesa promoveu alterações na regulação dos camarotes para o carnaval de 2023, instituindo multas para aqueles que não cumprissem as imposições relacionadas ao som durante os desfiles. Em matéria publicada na Veja Rio3 3 Disponível em: https://vejario.abril.com.br/cidade/camarotes-som-alto-desfiles-sapucai-multa/. Acesso em: 1º set. 2023. , o diretor de marketing da Liesa informa a adição de fiscalização e teste de som para os camarotes, que devem cumprir as novas exigências.

De fato, ao menos no setor 10, onde ambos os autores estavam durante o carnaval de 2023, foi amplamente observado que os camarotes desligavam (ou abaixavam o volume consideravelmente) o som durante a passagem das escolas, limitando-se a reproduzir músicas em alto volume durante os intervalos das agremiações. Ainda que os shows e atrações dos camarotes continuassem as suas apresentações no interior dos camarotes durante o desfile, de algum modo, o vazamento sonoro do interior dos camarotes para a avenida foi bloqueado. Pode-se interpretar essa ação de várias maneiras. O que nos interessa de perto não é tanto a positivação ou a narrativa de sucesso da negociação dos sambistas (por meio da Liesa), mas chamar a atenção para a relevância que o som atravessado assumiu na complexidade do “maior espetáculo da Terra”. Claro que não estamos falando somente de som, mas de interações sociais, de engajamentos afetivos, de negociações de hierarquias e poderes. Estamos falando, pois, da vida, de suas contradições e conflitos. Pessoalmente, ficamos felizes com o des-atravessamento observado no carnaval de 2023. Mas, como dissemos anteriormente, as negociações de espaços físicos, simbólicos e sonoros nunca estão finalizados. E carnaval, todo ano tem! Vamos ver nos próximos anos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    09 Nov 2023
  • Aceito
    21 Nov 2023
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