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Cinema, vídeo e opressão: o primeiro livro de Eisenstein por Arlindo Machado em meio à censura no Brasil

Cinema, video, and oppression: Eisenstein’s first book by Arlindo Machado amidst censorship in Brazil

Resumo

Este artigo aborda a censura nos filmes e teorias cinematográficas do renomado cineasta russo Sergei Eisenstein. No intervalo de tempo que se estendeu de 1964 a 1985, o Brasil esteve sob o regime de governo conhecido como ditadura civil-militar, uma fase marcada por uma governança autoritária. Investigamos as ideias inovadoras de Eisenstein sobre montagem, composição visual e narrativa cinematográfica, que foram restringidas no contexto brasileiro devido às políticas de censura. Além disso, examinamos o papel crucial desempenhado pelo teórico brasileiro Arlindo Machado, uma autoridade em estudos de imagem, vídeo e cinema no país, na disseminação clandestina dessas teorias. Arlindo não apenas defendeu as ideias de Eisenstein, mas também desenvolveu análises relativas às metodologias técnicas de produção de imagens e às etapas envolvidas na criação cinematográfica, muitas das quais foram fundamentadas nas inovações do cineasta russo. Este ensaio explora um segmento da vida desses dois influentes teóricos e sua significativa contribuição para a disseminação das teorias cinematográficas em meio à censura governamental. Além disso, destaca os esforços de Arlindo Machado na promoção de uma educação voltada para o pensamento crítico e imagético relacionado ao vídeo e ao cinema no Brasil, apesar das restrições impostas pelo governo.

Palavras–chave
Eisenstein; Arlindo Machado; censura

Abstract

This paper addresses the censorship of films and cinematographic theories by the renowned Russian filmmaker Sergei Eisenstein. During the period of 1964-1985, Brazil was under the government regime known as civil and military dictatorship , a phase marked by authoritarian governance. We investigated Eisenstein’s innovative ideas about editing, visual composition and cinematographic narrative, which were restricted in the Brazilian context due to censorship policies. Furthermore, we examined the crucial role played by Brazilian theorist Arlindo Machado, an authority on image, video and cinema studies in the country, in the clandestine dissemination of these theories. Arlindo not only defended Eisenstein’s ideas, but also developed in-depth analyses of technical images and the cinematographic process, many of which were based on the Russian filmmaker’s innovations. This essay explores a segment of the lives of these two influential theorists and their significant contribution to the dissemination of cinematic theories amidst government censorship. Furthermore, it highlights Arlindo Machado’s efforts in promoting an education focused on critical thinking and imagery related to video and cinema in Brazil despite the restrictions imposed by the government.

Keywords
Eisenstein; Arlindo Machado; censorship

Onde as ideias convergem

A transição dos anos 1970 para os 1980 viu Arlindo Machado consolidar-se como um acadêmico de destaque após se formar em línguas e literatura russa na Universidade de São Paulo (USP). Sua trajetória acadêmica o levou a ministrar aulas no campo da semiótica, bem como no Departamento de Comunicação, Arte e Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). Paralelamente à sua carreira acadêmica, Arlindo aventurou-se no cinema, dirigindo curtas-metragens em formatos de 16 e 35mm. Entre seus trabalhos, destacam-se O apito da panela de pressão (1977), um projeto colaborativo, seguido por A vaca sagrada (1978), Complemento nacional (1979) e, em colaboração com Irene Machado, Cubatão transfigurada (1981), todos refletindo seu interesse na exploração de temas científicos por meio da cinematografia.

Inspirado no legado do renomado cineasta soviético Sergei Eisenstein, cuja influência permeava seus estudos, Arlindo infundiu em seus filmes uma perspicácia singular que ecoava tanto suas convicções acadêmicas quanto seu ativismo. Neste contexto, marcado pela censura político-cultural no Brasil, suas obras cinematográficas emergiram como um reflexo vivo de seu envolvimento com as questões sociais e políticas daquele tempo, manifestando-se como uma forma de expressão resistente e engajada.

Nascido em berço russo tradicional — seu pai era um engenheiro judeu alemão que atuava nas esferas públicas e a avó em uma empresa marítima —, Sergei Eisenstein transcendeu sua origem para se tornar um estudioso do cinema, explorando como esse meio artístico se entrelaça com os tecidos culturais. Quando tinha 19 anos, a Revolução Russa de 1917 o envolveu em seu vórtice, e, no ano seguinte, ele se viu lutando com os bolcheviques no Exército Vermelho. Seu testemunho e participação nesses momentos cruciais da história refletiram-se em sua abordagem revolucionária ao fazer seus filmes (Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 7).

O fascínio de Arlindo pela obra fílmica e intelectual de Sergei Eisenstein vai além da mera afinidade ideológica. Segundo Notari (2018)NOTARI, Fabiola Bastos. Eisenstein no Brasil. Tese (Doutorado em Letras), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde–12122018–152219/pt–br.php. Acesso em: 22 jan. 2023.
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, a paixão de Machado pela montagem cinematográfica o levou a investigar profundamente a vida e a obra de Eisenstein. Em suas anotações e pesquisas, Machado conta que ele e um amigo meticulosamente registravam tudo o que conseguiam encontrar sobre Eisenstein, tanto no Brasil quanto no resto do mundo. Esse interesse não se limitava apenas às realizações cinematográficas do diretor, mas também incluía suas teorias, advindas do seu envolvimento na Revolução Russa de 1917 e seu serviço no Exército Vermelho ao lado dos bolcheviques. Esses momentos foram marcados por uma conjuntura intelectual e criativa, em que Machado estava imerso no estudo teórico e ideológico da montagem e encontrava em Eisenstein uma fonte rica de inspiração tanto em filmes como nos ensaios escritos, que eram transpostos à crítica social de sua realidade nacional de censura na época.

Eisenstein vinha de uma Revolução na Rússia, mas, posteriormente, sofreu as consequências e a censura do stalinismo (Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.). Arlindo, guardada as devidas proporções de similaridade, sofreu as perseguições da censura ditatorial brasileira (Machado, 2006MACHADO, Arlindo. Os anos de chumbo: mídia, poética e resistência ao autoritarismo militar. (1968-1985). São Paulo: Salina, 2006., p. 9).

Raízes distantes, contextos próximos

Em meio ao fervor revolucionário que sacudia a Rússia, Eisenstein não se alinhou às trincheiras armadas, mas sim às artísticas e intelectuais. No ano de 1920, sua trajetória o levou a integrar o Proletkult, uma entidade bolchevique autogovernada focada em promover a educação e a cultura. A independência do Proletkult, no entanto, gerava certa tensão entre os líderes soviéticos; Lênin enxergava a instituição como uma indulgência da pequena burguesia, enquanto Trotsky argumentava que a atenção dos trabalhadores não deveria desviar-se da construção da economia nacional para empreendimentos culturais, considerados secundários. Contrário a tais perspectivas, Eisenstein encontrava no teatro e no cinema meios para cultivar e expressar seu pensamento revolucionário, organizando espetáculos e desenvolvendo sua expressão artística como um ato de militância e teoria cinematográfica (Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 10).

A determinação do Proletkult em manter sua autonomia complicava frequentemente suas interações com o governo, despertando temores de que pudesse surgir uma espécie de autoridade alternativa, dada a sua influência substancial nas entranhas sociais. Essa preocupação era amplificada pela sua dimensão: o Proletkult ostentava 620 mil afiliados, superando os 500 mil membros do partido bolchevique (Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 11). Apesar das turbulências e críticas, Eisenstein prosperou nesta esfera, emergindo como uma figura central no panorama do cinema. Em 1924, apresentou ao mundo A greve, uma obra que ele considerava um exercício pedagógico com o intuito de instruir as massas sobre as táticas de uma paralisação operária (Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 11). No ano seguinte, Eisenstein solidificou seu estrelato com O Encouraçado Potemkin, narrando os eventos verídicos da rebelião dos marinheiros de 1905 contra o despotismo estatal e eclesiástico e sua luta contra as forças do governo czarista, culminando no trágico episódio nas escadarias de Odessa.

A genialidade de Eisenstein na sétima arte era reconhecida, mas os tópicos abordados por ele em suas obras nem sempre eram bem-recebidos pelos líderes bolcheviques. Por exemplo, Trotsky havia orquestrado a repressão sangrenta dos marinheiros durante a Revolta de Kronstadt em 1921, um reflexo das narrativas de resistência que Eisenstein costumava representar em suas produções, com os papéis invertidos na realidade. Apesar desses pontos de atrito, a contribuição de Eisenstein para a indústria cinematográfica soviética ainda era considerada de grande importância e valor (Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 13).

Eisenstein frequentemente encontrava-se em desacordo com as autoridades soviéticas, não somente por causa de O Encouraçado Potemkin. Com as constantes mudanças na liderança do partido, as suas obras subsequentes sofreram consideráveis adaptações. Seu projeto de 1927, Outubro, foi significativamente alterado para se adequar às novas políticas soviéticas, resultando em uma recepção morna pelo público. Desiludido com os rumos políticos de seu país e após várias desavenças com o Estado soviético, Eisenstein buscou novos horizontes nos Estados Unidos, onde se conectou com figuras importantes do cinema, como Charlie Chaplin. A relação entre Eisenstein e Chaplin era de tal proximidade que Chaplin elogiou O Encouraçado Potemkin em uma conversa posteriormente referida por Eisenstein em suas obras, comentando sobre a permanência da vitalidade do filme ao longo dos anos (Eisenstein, 1987EISENSTEIN, Serguei. Memórias imorais: uma autobiografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1987., p.132).

Entretanto, nem o laço forte com Chaplin conseguiu impulsionar Eisenstein no cenário americano, devido à pressão e resistência do regime soviético. Consequentemente, retornou à União Soviética, onde finalizou sua jornada cinematográfica sob o olhar e liderança de Stálin. Obras como Alexandre Nevski (1938) e Ivan, o terrível (1944), foram suas últimas contribuições notáveis ao cinema.

Ao falecer de um ataque cardíaco em 1948, Eisenstein deixou para trás não só um portfólio de filmes marcantes, mas também uma herança intelectual rica, composta de ensaios, teorias e uma vasta documentação sobre seus métodos e reflexões na arte cinematográfica. Seus trabalhos não apenas narram a história do cinema soviético, mas também dissecam suas técnicas de montagem e estudos de imagens, expondo uma estética carregada de ideologia. O legado de Eisenstein é tão extenso e multifacetado que transcende a capacidade de um simples ensaio de capturar toda a sua essência e influência.

Censura fílmica e teórica na ditadura brasileira

Durante a época do regime militar no Brasil, as obras e filmes de Eisenstein enfrentaram uma censura rigorosa, e foram categoricamente banidos. Este veto se instaurou em 1964, justamente no limiar do golpe militar, logo após a exibição de um de seus filmes em um quartel dos fuzileiros navais no Rio de Janeiro, onde foi interpretado como material subversivo que incitava à desordem hierárquica.

Figura 1
Excerto extraído do Jornal do Brasil, de 27 de fevereiro de 1964, que determina a proibição da exibição do filme O Encouraçado Potemkin.

Segundo o trecho transcrito da figura 1:

Potenkim mostrado a fuzileiros no MEC dá protesto da Marinha. Está em mãos do Ministro da Educação, desde segunda-feira, um protesto formal do Ministro da Marinha contra a exibição do clássico do cinema soviético, Encouraçado Potenkim, exclusivamente para fuzileiros-navais, dia 13, último, no auditório do MEC. No ofício do Almirante Silvio Mota ao Sr. Júlio Sambaqui, o episódio é considerado grave, dadas as circunstâncias em que foi projetado, com evidente sentido político e de subversão hierárquica. Durante a exibição, um narrador brasileiro sublinhava as cenas da revolta dos marinheiros do Potenkim, com apelos nesse tom: ― “Vocês estão vendo o caminho a seguir”, “não é preciso dizer mais nada” e outras formas, cautelosas, mas dirigidas à assistência constituída de fuzileiros-navais. Encouraçado Potenkim foi produzido em 1925, para comemorar o 20º aniversário do episódio que forneceu o tema à obra-prima de Eisenstein. Já esteve em exibição no Rio e, por coincidência, durante a Semana da Marinha. A pedido do Ministério da Marinha, sua programação foi interrompida, para voltar depois. O filme é mudo, mas sofreu a adaptação de um fundo musical, de que se valeu o narrador na sessão do Ministério da Educação, dando margem ao protesto. Olheiros do serviço Secreto da Marinha, presentes à sessão, registraram todas as circunstâncias que figuram no relatório encaminhado ao Ministro Silvio Mota

(Figueiredo, 1964FIGUEIREDO, Wilson. “Potenkim” mostrado a fuzileiros no MEC dá protesto da Marinha. In: Jornal Do Brasil, Rio de Janeiro, 27 fev. 1964. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BNDigital I: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_08&pagfis=50194. Acesso em: 22 jan. 2023.
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, p. 8).

A figura 1 e sua transcrição são referentes à coluna de Wilson Figueiredo, veiculada pelo Jornal do Brasil no dia 27 de fevereiro de 1964, na qual o jornalista narra um incidente em que o ministro da Marinha expressou sua rejeição formal perante o ministro da Educação à exibição do filme O Encouraçado Potemkin de Eisenstein, tachando-o de instigador à subversão. O documento remetido pelo almirante Sílvio Mota para Júlio Sambaqui detalhava a ocasião, ressaltando a participação de um locutor brasileiro que realçava cenas específicas durante a sessão. A apresentação foi interrompida e acompanhada de perto por espiões do serviço secreto naval que estavam presentes para observar e relatar meticulosamente os eventos ao ministro Silvio Mota.

Figura 2
Trecho retirado do Jornal do Brasil, de 28 de fevereiro de 1964, comparando a exibição do O Encouraçado Potemkin com a escolta que fuzileiros fizeram a Leonel Brizola em tumulto em Belo Horizonte

Segundo trecho transcrito de “O cinema e a fita”, da figura 2:

Certas provocações simbólicas são piores do que provocações diretas. A ideia de se exibir, no Ministério da Educação, o filme Encouraçado Potenkim para um auditório de fuzileiros navais tem uma perversa característica de agitação. Qualquer fuzileiro ou marinheiro, neste nosso País ainda livre, tem o direito de assistir ao filme que entender. Juntar, no entanto, um grupo de fuzileiros para assistir à película em que Eisenstein reconstituiu com gênio e com grande crueza a revolta do Potenkim, é uma simples provocação. Acresce ainda que um narrador brasileiro serviu como uma espécie de animador do espetáculo, dizendo à platéia que o exemplo dos marujos russos era digno de imitação. Isto sob a responsabilidade indisfarçável do Ministro da Educação, que recebeu do Ministro Silvio Mota um enérgico protesto. Se quisermos, agora, exemplo de uma provocação direta, nada simbólica, temos os fuzileiros navais que foram servir de guarda–costas ao Sr. Leonel Brizola em Belo Horizonte. Para que pensa o Almirante Cândido Aragão que o País mantém um corpo de Fuzileiros Navais? Para que na Minas não-marítima proteja um agitador da esquerda? Já defendemos e continuaremos a defender o direito de reunião violado em Belo Horizonte. Mas a prisão, como capangas, de fuzileiros navais é caso de uma gravidade igual à da interferência com o direito democrático de reunião. É parte dessa interferência. É o pior incidente da interferência. Prova a má–fé do Sr. Brizola. Se êle não tem coragem de comparecer a uma reunião sem fuzileiros, fique em casa. O Govêrno, que contraria o cunhado em outros terrenos, parece achar que lhe pode dar satisfações à custa da Marinha. Isto é um insulto à Marinha e a todos os brasileiros. O Almirante Silvio Mota deve aproveitar os dois incidentes — o do filme de Eisenstein e o da fita do Sr. Brizola. Valente à custa dos fuzileiros — para esclarecer com o Presidente da República muita coisa estranha que anda fazendo com a Armada. As Forças Armadas do País devem ser apolíticas, coesas e aceitarem a liderança do Presidente da República, que lhes impõe a Constituição. Mas essa liderança é preciso que o Presidente demonstre sua capacidade de exercê-la com isenção e dignidade. A isenção é tratar a Marinha com o mesmo respeito com que trata o Exército e a Aeronáutica. A dignidade é impedir que qualquer soldado, de qualquer arma, ajude campanhas políticas. Aja com energia o Ministro da Marinha. Tem o País ao seu lado

(Jornal do Brasil, 1964JORNAL DO BRASIL. O cinema e a fita. Rio de Janeiro, 28 fev. 1964. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BNDigital I: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_08&pagfis=50228. Acesso em: 22 jan. 2023.
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, p. 6).

No dia subsequente à reportagem citada, o Jornal do Brasil trouxe mais um artigo, intitulado “O cinema e a fita” (figura 2), no qual, mais uma vez, repudiava a exibição da obra cinematográfica para os membros do corpo de fuzileiros navais sob a alçada do Ministério da Educação. Essa nova matéria vinculava o evento com uma manifestação ocorrida em 25 de fevereiro de 1964, durante a qual membros da Frente de Mobilização Popular, sob a liderança do então deputado Leonel Brizola, foram impedidos por membros conservadores da entidade anticomunista conhecida como Movimento de Mobilização Democrática de organizar um comício na cidade de Belo Horizonte, episódio que resultou em distúrbios e confrontos físicos (Macedo, 2011MACEDO, Michelle Reis de. Democracia em perigo: direitas, esquerdas e radicalização política de 1964 contada pela imprensa carioca. XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011. Disponível em: https://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300873587_ARQUIVO_Democraciaemperigo.pdf. Acesso em: 22 jan. 2023.
https://www.snh2011.anpuh.org/resources/...
, p. 1).

Nesse ponto, a mistura das duas questões, a projeção do filme para a Marinha e o confronto de Brizola com os manifestantes conservadores havia criado um enorme alvoroço. A proteção dada pelo corpo de fuzileiros navais ao deputado Leonel Brizola, para que este pudesse deixar o local do tumulto em Belo Horizonte em segurança, acabou complicando ainda mais a situação. O periódico denunciava o deputado como um agitador da ala esquerdista e acusava-o de agir com má intenção. A controversa exibição de O Encouraçado Potemkin e a confusão subsequente refletiam com clareza o ambiente tenso de um país à beira de um golpe militar, ambiente esse que já sinalizava o início de um regime de censura que se estabeleceria rapidamente. O veto a Eisenstein no Brasil permaneceria por extensos dezesseis anos (Notari, 2018NOTARI, Fabiola Bastos. Eisenstein no Brasil. Tese (Doutorado em Letras), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde–12122018–152219/pt–br.php. Acesso em: 22 jan. 2023.
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).

Realidade e identidade cultural

Em meio à repressão do regime militar que dominava o Brasil no final dos anos 1960, Arlindo Machado mergulhava na busca de uma intervenção tecnológica na criação cultural. Em suas próprias palavras, Machado (2006)MACHADO, Arlindo. Os anos de chumbo: mídia, poética e resistência ao autoritarismo militar. (1968-1985). São Paulo: Salina, 2006. observou que a época era escassa em oportunidades para a produção de filmes de natureza intelectual mais arriscada, e a resistência à ditadura civil-militar incentivava obras de grande apelo popular e baixo custo. Como frequentador das salas de projeção da Boca do Lixo, localizada na rua Vitória, no centro de São Paulo, Arlindo testemunhou o surgimento do cinema marginal, uma expressão significativa da cinematografia nacional. Nesse mesmo local, que outrora abrigou as grandes produtoras como Columbia, Paramount e Warner, ele assistiu à prática de compra de filmes no mercado paralelo e ao descarte dessas obras após perderem seu apelo de mercado. Era nas lixeiras dessas distribuidoras que Arlindo encontrava o material necessário para suas experimentações artísticas subversivas, que realizava clandestinamente nos centros de montagem da USP (Notari, 2018NOTARI, Fabiola Bastos. Eisenstein no Brasil. Tese (Doutorado em Letras), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde–12122018–152219/pt–br.php. Acesso em: 22 jan. 2023.
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).

Durante esse período, Arlindo Machado aprofundava seus estudos na semiótica cultural e linguística da Rússia, focando na obra de Eisenstein. Ele escrevia sobre o cineasta para revistas especializadas como Polímica, Cine-Olho, na qual também desempenhava a função de editor, e contribuía para Trabalho e DeSignos. Machado estava igualmente engajado nos círculos de cineclubes, que não se limitavam à exibição de filmes. Eles frequentemente organizavam debates e cursos sobre variados tópicos, oferecendo ao público a chance de participar de sessões de filmes temáticos seguidas de discussões (Notari, 2018NOTARI, Fabiola Bastos. Eisenstein no Brasil. Tese (Doutorado em Letras), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde–12122018–152219/pt–br.php. Acesso em: 22 jan. 2023.
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, p. 229).

Esse período marca o início das investigações de Arlindo na filmologia e no estudo das imagens técnicas, bem como na construção teórica e prática de uma cultura audiovisual. Arlindo escreveu aproximadamente 200 críticas de filmes entre 1968 e 1971, destinadas aos cineclubes da época, mas apenas quatro dessas análises sobreviveram: Seus títulos são: Persona, O bandido Giuliano, A chinesa e A odisseia filosófica de Kubrick. Estes textos remanescentes só vieram a ser publicados em 2006 no livro Os anos de chumbo: mídia, poética e ideologia no período de resistência ao autoritarismo militar (1968-1985).

Outros textos de Arlindo acabaram sendo incinerados com seus documentos políticos a fim de não deixar vestígios para o Departamento de Ordem e Política Social (DEOPS), uma força repressora policial da ditadura que, em São Paulo, realizava buscas regulares no seu apartamento e no de seus colegas à procura de provas e atividades subversivas (Machado, 2006MACHADO, Arlindo. Os anos de chumbo: mídia, poética e resistência ao autoritarismo militar. (1968-1985). São Paulo: Salina, 2006., p. 9).

Durante o período de proibição cinematográfica no Brasil, a maioria dos filmes de autores com ideologias contrárias ao regime militar foi censurada, incluindo os de Eisenstein. No entanto, duas obras de Eisenstein, Ivan, o terrível e Alexandre Nevski, escaparam dessa restrição. Isso não ocorreu devido a uma súbita liberalidade dos censores, mas graças a um ardil utilizado pelos exibidores. Conforme relato de Boris Schnaiderman, mencionado por Machado (1982, p. 107)MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., na exibição desses filmes, a palavra russos foi substituída por eslavos nas legendas, com o intuito de mascarar a origem soviética das obras e assim evitar a associação direta com Eisenstein. Essa tática se assemelha aos métodos empregados por músicos brasileiros da época, que velavam críticas ao regime em metáforas poéticas para evitar problemas com a censura. Dessa maneira, realizadores, artistas e criadores de conteúdo recorriam à criatividade para disseminar a cultura no país, ainda que o alcance fosse restrito a poucas pessoas.

Eisenstein: Geometria do êxtase

Arlindo dedicou anos ao estudo minucioso da obra de Eisenstein, tanto dentro quanto fora do Brasil, impulsionado por uma admiração profunda pela técnica de montagem do cineasta russo (Notari, 2018NOTARI, Fabiola Bastos. Eisenstein no Brasil. Tese (Doutorado em Letras), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde–12122018–152219/pt–br.php. Acesso em: 22 jan. 2023.
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). Embora a censura impusesse barreiras significativas, no final da década de 1960, alguns dos escritos de Eisenstein conseguiram ultrapassar esses obstáculos. Um exemplo notável foi a tradução para o português de Reflexões de um cineasta, publicada em 1969 pela editora Zahar. A escolha estratégica do título para a edição brasileira facilitou sua aceitação e disseminação no país, dado que não fazia referência explícita ao nome de Eisenstein na capa. Apesar disso, o material disponível sobre o cineasta russo ainda era escasso na época.

Um artigo seminal da obra de Arlindo Machado sobre Eisenstein, chamado O cinema conceitual: contribuições de Eisenstein, foi lançado em 1979 na Revista Cine-Olho. O artigo foi um dos primeiros trabalhos a analisar profundamente o legado de Eisenstein em um periódico brasileiro. Foi então que, em 1982, Arlindo Machado contribuiu significativamente para a teoria e a crítica cinematográfica no Brasil com a publicação do livro Eisenstein, geometria do êxtase. Essa obra foi a primeira escrita por um pesquisador brasileiro sobre o célebre cineasta e representou um marco na disseminação do conhecimento sobre o cinema russo no país. O livro fazia parte da série Encanto radical, da editora Brasiliense, conhecida por suas publicações de bolso sobre personalidades influentes de diversos âmbitos, incluindo volumes sobre Noel Rosa, Sócrates, Simone Weil, entre outros. O volume sobre Eisenstein, o oitavo da coleção, era adornado com uma fotografia em negativo do cineasta sentado (Figura 3).

Figura 3
Capa do livro Eisenstein, geometria do êxtase.

A capa do livro com a imagem em negativo de Eisenstein pode ser vista como uma metáfora visual para as maneiras não convencionais de ver e pensar a imagem que Eisenstein e Machado compartilhavam. Ambos, cada um a seu modo e em seu tempo, buscavam desafiar as percepções tradicionais e empurrar as fronteiras do que poderia ser expresso e explorado por meio da arte audiovisual.

O primeiro capítulo do livro de Arlindo Machado oferece aos leitores uma visão didática e concisa do pensamento de Eisenstein. Ele traça um retrato detalhado da trajetória pessoal do cineasta, abrangendo desde seus primeiros passos até seu envolvimento com a Revolução Russa e sua associação com o Proletkult, instituição encarregada das artes e educação na então nascente União Soviética. Essa contextualização histórica é essencial para compreender as influências e as motivações por trás da obra e da teoria de Eisenstein, e é tratada com precisão por Machado em sua obra. Também faz uma síntese de todos os seus filmes, começando com A greve (1924), O Encouraçado Potemkin (1925), os problemas e a execução de Outubro (1927), e o filme que gerou uma grande cisão na vida de Eisenstein, A linha geral ou O velho e o novo (1929). Este último teve milhares de mudanças a pedido de Stalin e dos novos rumos que o governo tomou. O processo levou muito tempo, e o filme perdeu o sentido com as mudanças.

Comparando com a nata do “realismo socialista” da época, exemplares triunfalistas que cantavam apenas o ideal realizado, o filme de Eisenstein contrasta visualmente: nele o entusiasmo revolucionário não escamoteia a verdade, nem redime os prejuízos da incompetência política. A paisagem de O Velho e o Novo pareceu a Stalin tão outonal, que ele convocou Eisenstein e seu assistente Alexandrov para uma conversa particular, onde provavelmente sugeriu modificações e os “convidou” a realizar uma viagem pela União Soviética para constatar que a coletivização já estava em marcha, que a indústria de base nascia, que a agricultura se modernizava e que o socialismo triunfava. A viagem se fez, mas o filme não mudou muito

(Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 14).

O filme, que contava uma história sobre camponeses comunistas sendo oprimidos por kulaks, termo pejorativo russo que se refere a camponeses ricos, acabou provocando a ira de Stalin e stalinistas, fazendo com que Eisenstein saísse às pressas da União Soviética para Paris e, posteriormente, para os Estados Unidos. Eisenstein voltaria anos depois à União Soviética para uma pseudo-reconciliação com Stalin, presenteando-o com o filme Ivan, o terrível.

A partir daí, a base teórica se expande e, no capítulo dois, ele enfoca o lado filósofo e teórico de Eisenstein. Machado destaca a importância do corpo e da expressão física como ferramentas essenciais de comunicação na obra de Eisenstein, um conceito que ele incorporou do teatro por meio da teoria biomecânica de Meyerhold. Tal teoria enfatiza a expressão por meio do gesto e do movimento, em contraste com o uso da linguagem falada. No cinema, Eisenstein aplicou essas ideias para criar uma narrativa visual rica, na qual o diálogo se tornava secundário em relação à potência comunicativa dos corpos e das imagens concomitantemente em ação.

Da teoria biomecânica de Meyerhold, ele desenvolve a montagem das atrações que, segundo Machado (1982, p. 34)MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., era o momento de agressividade e forte impacto emotivo, destinado a produzir choque nos espectadores. Esse processo decorria das microestruturas ideológicas da obra, em que, no teatro, não havia mais a necessidade de narrar uma história ou seguir um fio dramático ligado a um acontecimento: só a atração era produtiva e essencial. Era, em sua visão, um teatro voltado para a máxima eficácia e um trabalho de montagem. Essa síntese inicial de Eisenstein futuramente viria a ser suas famosas teorias de montagem.

No terceiro capítulo, a teoria fílmica é vista por uma óptica mais imagética: as sobreposições de cenas sob a edição, bem como seu uso para direcionamento ideológico. Ou seja, a montagem como elemento não de corte, mas de pensamento. Na dialética do cinema, Machado exibe os diagramas de montagem dos filmes de Eisenstein (figura 4).

Figura 4
Diagrama de montagem de Eisenstein.

Com base nesses exemplos de processos dentro dos filmes, Machado didaticamente nos coloca a par do que Eisenstein idealiza como intelectualidade.

Nesses exemplos todos, a evolução do acontecimento é distendida a partir de um critério não naturalista, de modo que o evento se deixa desintegrar num espaço-tempo descontínuo, que para Eisenstein é intelectual, pois coloca a nu a ossatura significante dos fenômenos

(Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 58).

No quarto capítulo, Arlindo Machado discute a ideia de Eisenstein de que a imagem atua como um meio de comunicação, análogo à linguagem. Com base nessa concepção, emerge a noção de cinema conceitual ou intelectual. Eisenstein sustentava que uma única imagem tem o poder de comunicar por si só, e ao ser combinada com outra, as duas podem criar frases que comunicam um conceito intelectual. Machado esclarece, com grande didatismo, os vários métodos de montagem que Eisenstein teorizou.

Os princípios de seu cinema conceitual ou intelectual, Eisenstein os foi buscar no modelo da escrita pictórica das línguas orientais [...] nos anos 20, ele escreve vários artigos relacionando a lingua e a cultura japonesas com o cinema, dos quais o mais célebre — O Princípio Cinematográfico e o Ideograma

(Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 60).

No quinto capítulo, Arlindo descreve a passagem de Eisenstein no México, e, mais uma vez, elucida os pensamentos sobre a montagem e a dialética, abordando mais profundamente a montagem vertical.

Num imenso ensaio chamado Montagem Vertical (1940), ele vem a conceber um cinema de tal complexidade estrutural que os vários componentes audiovisuais simultâneos se combinariam a cada plano num colossal “diálogo” de formas

(Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 89).

Eisenstein antevia o processo de imagem como montagem direta dentro do quadro. Os diálogos intelectuais citados no livro permeiam todo o texto. A intelectualidade para Eisenstein nada mais é do que o grande artifício que acontece dentro das percepções humanas. O processo de relação entre as cenas é fundamentalmente o método de reflexão que a justaposição de quadros produz na mente do espectador. Elas provocam uma catarse intelectual por meio de uma ideia inserida nos quadros, ou seja, o espectador, com sua percepção, visão e construção de realidade, vai criar sua própria narrativa, que se correlaciona com as sequências apresentadas. Enquanto as outras técnicas buscam provocar uma relação emocional no espectador, a montagem intelectual visa uma resposta por meio da construção de ideias e conceitos ideológicos diversos.

A montagem intelectual é a montagem não de sons atonais geralmente fisiológicos, mas de sons e atonalidades de um tipo intelectual, isto é, conflito-justaposição de sensações intelectuais associativas

(Eisenstein, 2002EISENSTEIN, Serguei. A forma do filme. São Paulo: Zahar, 2002., p. 86).

No capítulo final da obra, Arlindo Machado explora um aspecto até então inexplorado da obra de Eisenstein: o conceito abstrato de erotismo, sexualidade e êxtase, que se manifesta por meio das técnicas de montagem do cineasta russo-letão.

O conceito de êxtase é uma das chaves da obra do cineasta, mas é muito difícil de precisá-lo, porque é utilizado em acepções diferentes em cada contexto particular: abrange o mais amplo campo semântico, desde o pensamento “pré-lógico” até a histeria mística de transe [...] Para se ter ideia da amplitude do conceito, basta dizer que até mesmo a objetiva grande angular, utilizada em fotografia e cinema, ele considerava extática porque deforma a normalidade ótica das imagens, fazendo-as “saltarem para fora de si”

(Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 94).

A poética construída por meio dos processos de montagem intelectualizada de Eisenstein era para Arlindo um êxtase, comparado até ao sexual. A catarse desse processo é o auge, o apogeu, o clímax. Seu nome, Geometria do êxtase, tem essa finalidade na conclusão da obra.

No posfácio, Machado apresenta uma cronologia da obra de Eisenstein. No seu trabalho, Machado vai além de apenas traduzir as ideias de Eisenstein para a lingua portuguesa. Ele oferece uma interpretação clara e didática das teorias cinematográficas do cineasta russo, transformando conceitos complexos em explicações acessíveis. Isso é especialmente valioso quando se considera a dificuldade inerente de se compreender os textos originais de Eisenstein, A forma do filme e O sentido do filme, que apresentam uma estrutura e uma linguagem metafórica densas e intimamente ligadas ao contexto linguístico e cultural russo, resultando em uma experiência de leitura desafiadora. Machado também esboça um roteiro sobre como se aproximar e interpretar Eisenstein no contexto da ditadura militar brasileira, um período marcado pelo isolamento cultural e por severas restrições ao acesso a informações e conteúdos, muitos dos quais estavam proibidos pela censura. Como citado no trecho final de Geometria do êxtase:

O espectador brasileiro encontrará sérias dificuldades para obter uma visão de conjunto da contribuição de Eisenstein. Basta dizer que A greve (Statchka) e Outubro (Oktiabr), embora realizados há quase sessenta anos, não foram até hoje liberados pela censura brasileira. Existem várias cópias desses filmes circulando pelo país, mas qualquer projeção pública assume necessariamente um caráter clandestino, pois há sempre o risco de apreensão pela polícia federal. O Encouraçado Potemkin (Bronenocets Potiôkin), por sua vez, havia sido proibido em 1964, após uma controvertida exibição para os fuzileiros navais, mas foi liberado dezesseis anos mais tarde: esta é a sua situação no momento em que este livro é redigido, mas pode haver nova proibição a qualquer momento. A única cópia de O velho e o novo (Stároie i nóvoie) de que se tem notícia até hoje no Brasil foi condenada pela Cinemateca Brasileira, pois não oferece mais condições de projeção

(Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 106).

A conexão entre o propósito didático de Eisenstein e a abordagem de Arlindo Machado demonstra como ambos utilizaram suas obras como instrumentos pedagógicos. Eisenstein, conforme citado por Machado, tinha a intenção de que A greve servisse como uma espécie de guia prático, um filme “ensaio destinado a ensinar às massas as estratégias de um movimento grevista” (Machado, 1982MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982., p. 11). Inspirando-se talvez nessa motivação didática, Machado, por meio de seu trabalho, poderia estar fornecendo estratégias e conhecimentos para que as pessoas pudessem de alguma forma burlar as limitações impostas pela censura durante o regime militar no Brasil. A analogia entre o ensaio cinematográfico de Eisenstein e o esforço de Machado em traduzir e adaptar essas lições para o contexto brasileiro refletem um objetivo educativo e libertador: capacitar as pessoas a reconhecer e a subverter as restrições à expressão e ao pensamento impostas pela censura da época.

O roteiro final do livro de Arlindo Machado assume uma relevância crítica tão significativa quanto a análise teórica do cinema de Eisenstein que o precede. Não se trata apenas de uma seção que elucida as complexidades e os obstáculos impostos pelo período autoritário no Brasil; ele é uma testemunha das inúmeras barreiras que as pessoas enfrentavam na luta pelo conhecimento e pela expressão cultural. Esse roteiro não é apenas um anexo, mas uma verdadeira evidência do esforço em superar as bolhas ideológicas e a repressão intelectual que asfixiavam o país naquele tempo.

Além de oferecer uma perspectiva íntima sobre as dificuldades vivenciadas naquele contexto histórico, o roteiro evidencia a audácia e o risco que Arlindo Machado assumiu ao publicar tais conteúdos. Em uma época em que a publicação de qualquer material que desafiasse a narrativa do regime poderia atrair graves consequências, Machado não apenas questionou o status quo, mas forneceu um manual de resistência cultural.

Era o ano de 1982 e o Brasil estava à beira de um despertar democrático com a campanha das Diretas Já no ano seguinte. Embora o regime militar estivesse enfraquecido e a perseguição política não fosse mais tão intensa quanto nos anos anteriores, a sombra da censura e do risco político ainda pairava sobre a nação. Neste cenário, o trabalho de Machado servia como uma ponte entre o passado opressor e um futuro em que a liberdade de expressão se tornaria, mais uma vez, um direito inalienável do povo brasileiro.

Basta lembrar do atentado do Riocentro, em 1981, em que, durante um show comemorativo do Dia do Trabalhador, uma bomba explodiu dentro de um carro no estacionamento do Riocentro, no Rio de Janeiro. O atentado tinha como alvo principal a vida de militantes de esquerda, porém, devido a um erro na manipulação do explosivo, apenas um dos ocupantes do veículo morreu. O evento revelou o envolvimento de setores do governo na tentativa de desestabilizar o processo de redemocratização, uma vez que a bomba seria atribuída à esquerda. Esse atentado marcou um episódio emblemático na história brasileira, destacando-se como uma tentativa fracassada de silenciar a luta por liberdade e democracia.

Percepções do presente, visões do futuro

Durante toda a sua carreira, Arlindo Machado pesquisou e escreveu sobre diversos temas ligados ao audiovisual, principalmente voltados para a convergência televisiva como modelo de linguagem e estética, por exemplo, a videoarte e o videoclipe como formas de experimentação, e a linguagem de fragmentação televisiva, como no livro A arte do vídeo (1988). Mesmo que a relação de Eisenstein e do cinema pareça distante desses estudos, Arlindo nunca deixou de perseguir as teorias de Eisenstein ou o esqueceu em seus livros e artigos, inclusive os de televisão, vídeo e computador, e afirmava que o autor anteviu processos como os da televisão e da montagem computacional. Em seus livros Pré-cinemas e Pós-cinemas (1997) e A televisão levada a sério (2000), a influência de Eisenstein ainda se faz presente. Em entrevista ao Globo Universidade em 2011, Arlindo Machado fala sobre Eisenstein:

Um cineasta fundamental, que até hoje persigo. Na verdade, mais um intelectual do que um cineasta. A obra escrita dele é gigantesca e versa não só sobre cinema, mas sobre a cultura inteira. Também fez teatro, também fez ópera, também fez desenhos, escreveu sobre filosofia, escreveu sobre a história da arte. Além disso, Eisenstein antecipou toda a cultura do computador. Ele criou a teoria da montagem vertical. E o que é, no fundo, a montagem vertical? É a montagem não-linear que se faz no computador. A montagem dentro do próprio quadro. Ele tinha um projeto de um filme impossível de ser feito, ou melhor, só possível no meio digital. Chamava-se Casa de vidro, uma história em que cada plano do filme estaria acontecendo num cômodo, sendo todos os planos vistos ao mesmo tempo. Ver o filme era percorrer os labirintos da casa como num videogame. Mais ainda, Eisenstein foi o primeiro a escrever sobre televisão, num texto intitulado “A oitava arte”, em que ele ficava imaginando o que seria uma história construída ao vivo, com os espectadores a vendo simultaneamente

(Machado, 2011MACHADO, Arlindo. Entrevista: Arlindo Machado fala sobre tecnologias e o ciberespaço. [Entrevista concedida ao GloboUniversidade]. Nov. 2011. Disponível em: http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2011/11/entrevista-arlindo-machado-fala-sobre-tecnologias-e-o-ciberespaco.html. Acesso em: 18 out. 2023.
http://redeglobo.globo.com/globouniversi...
, [s.p.]).

Em 2006, Arlindo Machado decidiu compilar uma seleção significativa de seus trabalhos produzidos entre 1968 e 1985 para a publicação do livro Os anos de chumbo: mídia, poética e ideologia no período de resistência ao autoritarismo militar. Esse livro abrange uma coleção de artigos que ele escreveu sobre Eisenstein, suas antigas visões sobre ativismo por meio do cinema, arte e tecnologia, bem como suas análises de alguns filmes que haviam sobrevivido ao tempo. O volume é uma obra substancial que apresenta tanto textos inéditos quanto revisões de trabalhos anteriores. Nas notas introdutórias, Machado explica suas razões para revisitar e compilar esses escritos antigos. Ele expressa que, inicialmente, não via necessidade de republicar esses textos, pois acreditava que eles tinham desempenhado seu papel em sua época e que, com o passar do tempo, se tornariam obsoletos. Contudo, ele observou um ressurgimento de interesse pelos assuntos que marcaram aqueles anos. O desenvolvimento da internet e os debates gerados nesse espaço digital o levaram a refletir sobre o conceito de mídia tática de uma maneira que ele considerava preocupante (Machado 2006MACHADO, Arlindo. Os anos de chumbo: mídia, poética e resistência ao autoritarismo militar. (1968-1985). São Paulo: Salina, 2006., p. 9).

Esse conceito, introduzido por Lovink (apud Machado, 2006MACHADO, Arlindo. Os anos de chumbo: mídia, poética e resistência ao autoritarismo militar. (1968-1985). São Paulo: Salina, 2006.), refere-se ao uso de meios de comunicação não convencionais em práticas digitais questionáveis e manobras políticas, que empregam métodos duvidosos e muitas vezes repulsivos, para fomentar redes de informação confiáveis dentro de suas esferas de atividade. Lovink descreve mídia tática de forma mais concreta:

Conjunto de pequenas práticas sujas ou micropolíticas digitais, se preferirem. A mídia tática provém da herança do uso “alternativo” dos meios, mas sem o rótulo da contracultura e sem as certezas ideológicas das décadas anteriores. Ela coloca em circulação modelos e rumores, argumentos e experiências sobre como organizar atividades culturais e políticas, como conseguir financiamento para projetos, como criar, alicerçar e pôr em prática redes informacionais confiáveis, que tornem mais suportável a vida na Babilônia.

(Lovink, 2002, p. 254 apud Machado, 2006MACHADO, Arlindo. Os anos de chumbo: mídia, poética e resistência ao autoritarismo militar. (1968-1985). São Paulo: Salina, 2006., p. 9).

Em um ato de reflexão, Arlindo decidiu reunir e publicar em 2006 seus trabalhos passados, destacando a influência e o potencial disruptivo das redes de comunicação no manejo da informação e na instigação do caos. A republicação desses documentos não era meramente nostálgica; era um chamado à memória coletiva para impedir a repetição dos erros históricos, promover discussões informadas no presente com sólida base histórica e reconhecer a relevância dessas lições para o futuro. Era também um lembrete sombrio de um tempo em que a obra de Eisenstein e de outros intelectuais foi suprimida em nossa cultura, um tempo que testemunhou esforços como os de Arlindo Machado, que secretamente distribuía textos teóricos e filmes então proibidos em um esforço para fomentar uma cultura de resistência e uma educação crítica no Brasil.

  • Esta pesquisa foi possível graças ao financiamento da Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba (FAPESQ).

Referências

  • EISENSTEIN, Serguei. A forma do filme São Paulo: Zahar, 2002.
  • EISENSTEIN, Serguei. Memórias imorais: uma autobiografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
  • FIGUEIREDO, Wilson. “Potenkim” mostrado a fuzileiros no MEC dá protesto da Marinha. In: Jornal Do Brasil, Rio de Janeiro, 27 fev. 1964. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BNDigital I: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_08&pagfis=50194. Acesso em: 22 jan. 2023.
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  • JORNAL DO BRASIL. O cinema e a fita Rio de Janeiro, 28 fev. 1964. Acervo da Fundação Biblioteca Nacional (Brasil). BNDigital I: Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=030015_08&pagfis=50228. Acesso em: 22 jan. 2023.
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  • MACEDO, Michelle Reis de. Democracia em perigo: direitas, esquerdas e radicalização política de 1964 contada pela imprensa carioca. XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH, São Paulo, julho 2011. Disponível em: https://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300873587_ARQUIVO_Democraciaemperigo.pdf Acesso em: 22 jan. 2023.
    » https://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300873587_ARQUIVO_Democraciaemperigo.pdf
  • MACHADO, Arlindo. Eisenstein: geometria do êxtase. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1982.
  • MACHADO, Arlindo. Os anos de chumbo: mídia, poética e resistência ao autoritarismo militar. (1968-1985). São Paulo: Salina, 2006.
  • MACHADO, Arlindo. Entrevista: Arlindo Machado fala sobre tecnologias e o ciberespaço. [Entrevista concedida ao GloboUniversidade]. Nov. 2011. Disponível em: http://redeglobo.globo.com/globouniversidade/noticia/2011/11/entrevista-arlindo-machado-fala-sobre-tecnologias-e-o-ciberespaco.html Acesso em: 18 out. 2023.
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  • NOTARI, Fabiola Bastos. Eisenstein no Brasil Tese (Doutorado em Letras), Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde–12122018–152219/pt–br.php Acesso em: 22 jan. 2023.
    » https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8155/tde–12122018–152219/pt–br.php

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    05 Jul 2023
  • Aceito
    29 Out 2023
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