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A morada transitória das imagens: desenvolvimentos da semiótica visual em Para uma semiótica da fotografia

The transitory abode of images: developments from visual semiotics in para uma semiótica da fotografia

Resenha de: DONDERO, Maria Giulia. . Para uma semiótica da fotografia . Tradução: Daniela Bracchi; Jorge Gabriel Sartini Popoff; Patricia Veronica Moreira; Taís de Oliveira. Recife: Ed. UFPE, 2022.

Para uma semiótica da fotografia é o primeiro livro traduzido em língua portuguesa da pesquisadora italiana Maria Giulia Dondero. A autora tem forte atuação no campo da semiótica visual e integra, desde 2009, o Fonds National de la Recherche Scientifique (FRS-FNRS), na Bélgica. Sua formação tem início com os estudos sobre fotografia no ano de 2000, durante o mestrado que fez na Universidade de Bolonha. Desde então, sua pesquisa percorre os gêneros das imagens sacras, turísticas e científicas, consolidando-se com a publicação, em 2011, de Sémiotique de la photographie, pela Presses Universitaires de Limoges (PULIM), em coautoria com Pierluigi Basso Fossali.

Para uma semiótica da fotografiaDONDERO, Maria Giulia. Para uma semiótica da fotografia. Tradução de Daniela Bracchi, Jorge Gabriel Sartini Popoff, Patricia Veronica Moreira, Taís de Oliveira. Recife: Ed. UFPE, 2022. é a tradução parcial desta obra de 2011 e contém exclusivamente os escritos da pesquisadora italiana que compõem a obra, além de uma atualização de referências bibliográficas que leva em conta a reverberação de sua pesquisa em nosso país. Encontramos no livro a referência aos nomes dos brasileiros Antonio Vicente Pietroforte (2004PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual. São Paulo: Editora Contexto, 2004., 2007PIETROFORTE, Antonio Vicente. Análise do texto visual: a construção da imagem. São Paulo: Editora Contexto, 2007. ), Daniela Bracchi (2011BRACCHI, Daniela Nery. Fotografia contemporânea e intersemioticidade. Estudos Semióticos, v. 7, n. 2, p. 44-51, 2011. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.1980-4016.esse.2011.35249 . Acesso em: 20 maio 2023.
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) - uma das tradutoras do livro -, Jean Cristtus Portela (2008PORTELA, Jean Cristtus. Semiótica midiática e níveis de pertinência. In: DINIZ, M. L. V. P.; PORTELA, J. C. (org.). Semiótica e mídia: textos, práticas, estratégias. Bauru: Unesp/Faac, 2008. p. 93-113.) e Jean Cristtus Portela e Matheus Nogueira Schwartzmann (2012PORTELA, Jean Cristtus; SCHWARTZMANN, Matheus Nogueira. A noção de gênero em semiótica. In: PORTELA, J. C.; BEIVIDAS, W.; LOPES, I. C.; SCHWARTZMANN, M. N. S. (dir.). Semiótica: identidade e diálogos. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2012. p. 69-95.).

Desde 2011, Dondero visita o Brasil em missões de estudo e difusão das questões abordadas no livro. Diversos grupos de pesquisa semiótica receberam a autora e dialogam com as ideias presentes na publicação, como o Grupo de Estudos Semióticos da Universidade de São Paulo (USP), o Grupo de Pesquisa em Semiótica e Discurso (SeDi) da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Seminário de Semiótica da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e o Grupo de Estudos em Cultura Visual e Educação, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

A obra resenhada é coerente com outros importantes trabalhos da autora, que tratam das imagens em diferentes âmbitos sociais e as nuances na construção de significação relacionadas com esses campos. Entre esses títulos, ganham destaque The semiotic challenge of scientific images: a test case for visual meaning (2014DONDERO, Maria Giulia. The semiotic challenge of scientific Images: a test case for visual meaning. Ottawa: Legas Publishing, 2014.); Des images à problèmes: le sens du visuel à l’épreuve de l’image scientifique (em co-autoria com Jacques Fontanille, Pulim, 2012DONDERO, Maria Giulia; FONTANILLE, Jacques. Des images à problèmes: le sens du visuel à l’épreuve de l’image scientifique. Limoges: Pulim, 2012. ) e Les langages de l’image: de la peinture aux Big Visual Data (2020DONDERO, Maria Giulia. Les langages de l’image: de la peinture aux Big Visual Data. Paris: Hermann, 2020.). Em língua francesa, encontra-se uma variedade de publicações que abordam as imagens a partir de uma perspectiva discursiva. Em português, no entanto, as referências bibliográficas são muito escassas, residindo aí um grande valor do esforço de tradução desta obra por pesquisadores de três instituições distintas (USP, UNESP e UFPE).

A publicação brasileira é destinada a estudantes, professores e pesquisadores interessados na análise das imagens fotográficas. Tem por objetivo elaborar o estado da arte sobre o campo de pesquisa da fotografia, relacionando a teoria semiótica atual com outras perspectivas, como a filosofia da imagem e a antropologia visual. A obra apresenta quatro capítulos que configuram dois eixos principais. Inicialmente, nos Capítulos 1 e 2, há um panorama das perspectivas teóricas sobre o tema. Em seguida, nos Capítulos 3 e 4, a autora apresenta proposições teórico-metodológicas para análises de imagens.

Dondero passa em revista as teorias da fotografia, consagradas em trabalhos como os de Walter Benjamin (1987aBENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987a. p. 91-107., 1987bBENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987b. p.165-196.), Algirdas Julien Greimas (2004GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica plástica, semiótica figurativa. Tradução de Ignácio Assis-Silva. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de. (org.). Semiótica plástica. São Paulo: Hacker Editora, 2004. p. 75-96.), Jean-Marie Floch (1985FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l’œil et de l’esprit. Paris-Amsterdam: Editora Hadès, 1985., 1986FLOCH, Jean-Marie. Les formes de l’empreinte. Périgueux: Pierre Fanlac, 1986.), Roland Barthes (1984BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984.), Philippe Dubois (2010DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios. Campinas: Papirus, 2010. ), Nelson Goodman (2006GOODMAN, Nelson. Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos símbolos. Lisboa: Gradiva, 2006.), Rosalind Krauss (2002KRAUSS, Rosalind. O fotográfico. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002.), Jean-Marie Schaeffer (1996SCHAEFFER, Jean-Marie. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográfico. Campinas: Papirus, 1996.) e Jacques Fontanille (2008FONTANILLE, Jacques. Pratiques sémiotiques. Paris: P.U.F., 2008.). Dentre esses autores, há uma crítica detida da teoria barthesiana. Isso porque Barthes, em sua obra A câmara clara (1984), postula a noção de punctum enquanto centro de uma abordagem subjetiva e afetiva da fotografia, distanciando o entendimento das imagens enquanto enunciados resultantes de uma tomada de posição do enunciador frente a valores sociais estabelecidos. Dondero critica a consequência desta tomada de posição fenomenológica de Barthes, que é a eliminação das funções sociais da fotografia, de suas práticas interpretativas e de uso que foram consolidadas e institucionalizadas.

Este panorama crítico e comparativo permite ao leitor perceber a forte presença da perspectiva ontologizante sobre a fotografia, assim como o protagonismo da indicialidade enquanto característica basilar da imagem fotográfica. Dondero é uma profunda conhecedora dos estudos sobre fotografia publicados em língua francesa e italiana, tendo identificado nessas pesquisas a compreensão constante da fotografia enquanto rastro daquilo que foi retratado. A autora revisa criticamente essas ideias, de modo a tomar como trabalho da semiótica visual a desontologização da fotografia enquanto mídia.

Esta iniciativa foi protagonizada pelos estudos de Jean-Marie Floch, especialmente nas publicações Petites mythologies de l’œil et de l’esprit (1985FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l’œil et de l’esprit. Paris-Amsterdam: Editora Hadès, 1985.) eLes formes de l’empreinte (1986FLOCH, Jean-Marie. Les formes de l’empreinte. Périgueux: Pierre Fanlac, 1986.). Floch abandona o entendimento da fotografia em sua essência, o que significa que não se poderia falar da fotografia de modo geral. O autor direciona então seu olhar para a diversidade de sentidos que certos gêneros fotográficos constroem a partir dos modos de produção e enunciação da imagem. Sua contribuição teórico-metodológica é ainda aquela de mostrar que os mesmos efeitos de composição enunciativa podem ser compartilhados por diferentes mídias.

A obra segue argumentando sobre a necessidade de se considerar as imagens a partir de seus modos de circulação e compreensão no contexto de valores sociais diversos. A abordagem de Dondero preocupa-se, sobremaneira, com as práticas de produção, circulação e interpretação do texto fotográfico. É nesse sentido que um dos conceitos essenciais que a publicação apresenta ao leitor é aquele de estatuto, definido enquanto as cristalizações das práticas sociais que terminam por atribuir valores às imagens. Desse modo, no estatuto artístico, por exemplo, a fotografia é considerada a partir de critérios como originalidade, experimentação e auto reflexividade, enquanto outros estatutos podem diferir grandemente nos critérios interpretativos, tal como as fotografias científicas se apoiam em valores como a possibilidade de verificação e retificação.

A compreensão que Dondero tem dos estatutos fotográficos é influenciada pelo estudo das práticas semióticas desenvolvido por Jacques Fontanille (2008FONTANILLE, Jacques. Pratiques sémiotiques. Paris: P.U.F., 2008.), que pensa o domínio social no qual as imagens circulam como instância fundamental para a compreensão da significação. É a partir desta perspectiva que as proposições teórico metodológicas apresentadas na segunda parte da obra, especialmente nos Capítulos 3 e 4, abordam exemplos específicos para demonstrarem a importância da estabilização social dos valores de uma imagem para a compreensão de sua significação.

É o caso dos álbuns de viagem do industrial americano D.M. Seaton, que realizou imagens entre 1898 e 1902. Essas obras uniam textos e fotografias, tendo circulado, após a morte de seu autor e parentes próximos, em uma galeria de arte, um leilão, um museu de arte e a sua biblioteca. Esse percurso é explicado para mostrar ao leitor o papel estratégico dos locais de circulação para a classificação e semantização do álbum, fazendo com que seu caráter informativo e histórico prevaleça em determinados momentos em detrimento de outras pertinências, como a estética das imagens. O exemplo chama a atenção também para o fato de que o lugar de exposição da foto diz muito sobre seu estatuto e leva o leitor a considerar os diversos espaços de exposição, tão variáveis como o álbum, as páginas de revista e as paredes do museu.

Ao final do livro, é discutida a digitalização de imagens antropológicas, históricas e histórico-artísticas, interrogando sobre a função do original analógico dessas imagens enquanto repositório de importantes informações colocadas em segundo plano ou suprimidas pela digitalização. Nesse sentido, uma ação sobre a imagem, neste caso a digitalização, é capaz de colocar acento sobre a valorização da fotografia enquanto texto, ao passo que torna distante a possibilidade de seu entendimento enquanto objeto. Mais uma vez, esse é um percurso que leva o analista a se interrogar sobre os diferentes níveis semióticos da imagem, uma vez que as configurações estéticas e as estratégias enunciativas da fotografia em papel relacionam-se com o fato de que a imagem é um objeto físico manipulável, a ser semantizada no seio de instituições. Já a imagem digital é um objeto efêmero, que necessita de softwares específicos e instrumentos momentâneos de visualização.

A comparação entre as formas objetuais da fotografia em papel e da imagem digital permite diversas conclusões presentes no livro, dentre elas o privilégio que fotografias consideradas esteticamente válidas têm sobre imagens exclusivamente documentais, fotografias familiares e amadoras. Essas reflexões sobre a digitalização levam Dondero a mais uma vez argumentar que os modos de circulação e exibição das fotografias concorrem para a articulação de práticas interpretativas das imagens e para a atribuição de sua significação.

Por fim, esta é uma obra que revela os caminhos que podem ser utilizados pelos pesquisadores para considerar em suas análises os papéis cambiantes das imagens no contexto cultural de circulação, desestabilizando uma perspectiva essencialista de compreensão da fotografia. De um lado, Dondero mostra ao leitor que a abordagem do texto e das estratégias enunciativas permite construir modelos de enunciadores e observadores possíveis. Por outro lado, a abordagem das práticas permite compreender a maneira pela qual diferentes práticas produtivas e receptivas podem sobredeterminar os percursos interpretativos do texto fotográfico. O convite a considerar a imagem fotográfica na sua condição de texto-enunciado, objeto material e participante de práticas sociais em curso (estabilizadas na condição de estatutos) faz de Para uma semiótica da fotografia uma importante contribuição às pesquisas sobre a construção de sentido nas imagens fotográficas, estabelecendo uma relação complementar ímpar entre a semiótica do texto e a semiótica das práticas.

Referências

  • BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1984.
  • BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987a. p. 91-107.
  • BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987b. p.165-196.
  • BRACCHI, Daniela Nery. Fotografia contemporânea e intersemioticidade. Estudos Semióticos, v. 7, n. 2, p. 44-51, 2011. Disponível em: Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.1980-4016.esse.2011.35249 Acesso em: 20 maio 2023.
    » https://doi.org/10.11606/issn.1980-4016.esse.2011.35249
  • DONDERO, Maria Giulia; FONTANILLE, Jacques. Des images à problèmes: le sens du visuel à l’épreuve de l’image scientifique. Limoges: Pulim, 2012.
  • DONDERO, Maria Giulia. The semiotic challenge of scientific Images: a test case for visual meaning. Ottawa: Legas Publishing, 2014.
  • DONDERO, Maria Giulia. Les langages de l’image: de la peinture aux Big Visual Data. Paris: Hermann, 2020.
  • DONDERO, Maria Giulia. Para uma semiótica da fotografia Tradução de Daniela Bracchi, Jorge Gabriel Sartini Popoff, Patricia Veronica Moreira, Taís de Oliveira. Recife: Ed. UFPE, 2022.
  • DUBOIS, Philippe. O ato fotográfico e outros ensaios Campinas: Papirus, 2010.
  • FLOCH, Jean-Marie. Petites mythologies de l’œil et de l’esprit Paris-Amsterdam: Editora Hadès, 1985.
  • FLOCH, Jean-Marie. Les formes de l’empreinte Périgueux: Pierre Fanlac, 1986.
  • FONTANILLE, Jacques. Pratiques sémiotiques Paris: P.U.F., 2008.
  • GOODMAN, Nelson. Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos símbolos. Lisboa: Gradiva, 2006.
  • GREIMAS, Algirdas Julien. Semiótica plástica, semiótica figurativa. Tradução de Ignácio Assis-Silva. In: OLIVEIRA, Ana Claudia de. (org.). Semiótica plástica São Paulo: Hacker Editora, 2004. p. 75-96.
  • KRAUSS, Rosalind. O fotográfico Barcelona: Editorial Gustavo Gili, 2002.
  • PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual São Paulo: Editora Contexto, 2004.
  • PIETROFORTE, Antonio Vicente. Análise do texto visual: a construção da imagem. São Paulo: Editora Contexto, 2007.
  • PORTELA, Jean Cristtus. Semiótica midiática e níveis de pertinência. In: DINIZ, M. L. V. P.; PORTELA, J. C. (org.). Semiótica e mídia: textos, práticas, estratégias. Bauru: Unesp/Faac, 2008. p. 93-113.
  • PORTELA, Jean Cristtus; SCHWARTZMANN, Matheus Nogueira. A noção de gênero em semiótica. In: PORTELA, J. C.; BEIVIDAS, W.; LOPES, I. C.; SCHWARTZMANN, M. N. S. (dir.). Semiótica: identidade e diálogos. São Paulo: Cultura Acadêmica Editora, 2012. p. 69-95.
  • SCHAEFFER, Jean-Marie. A imagem precária: sobre o dispositivo fotográfico. Campinas: Papirus, 1996.

Editado por

Editora-chefe dos Estudos de Linguagem:

Bethania Mariani

Editores convidados:

Pierluigi Basso-Fossali, Renata Mancini

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    10 Maio 2023
  • Aceito
    15 Ago 2023
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