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Freud

Freud

Sigmund Freud, o criador do método da psicanálise, é o personagem central de Freud no distante país da alma — a única obra teatral conhecida do autor americano Henry Denker. Encenada com grande sucesso, o ano passado, no Rio de Janeiro, sob a direção competente de Flávio Rangel, a peça acaba de estrear em São Paulo. LUA NOVA publica alguns trechos do texto de Denker, seguidos de um comentário do analista Antonio Carlos A. Garcia.

As pesquisas de Freud, iniciadas em Paris — onde ele fora conhecer o trabalho de Charcot, que investigava de forma inédita a histeria —, logo causaram desconfiança entre os rígidos e conservadores doutores da Academia de Ciências Médicas de Viena.

Esse quadro de desconfiança e hostilidade é o que Denker retrata na cena entre Freud e sua mãe, Amalie Freud.

AMALIE — Há meses atrás, quando você voltou de seus estudos em Paris, não fez um discurso na Academia?

FREUD - Fiz.

AMALIE — Corno é que você fez uma coisa tão perigosa?

FREUD — Mamãe, confrontar velhos médicos com novas idéias pode ser tolo, mas não perigoso.

AMALIE — Me disseram que é perigoso.

FREUD — Mamãe, quem assustou você tanto assim?

AMALIE — Já não te falei de uma conhecida, Frau Schonfeld? O filho dela estava na reunião em que você fez esse... esse relatório.

FREUD — Eu simplesmente li um documento chamado "Histeria Masculina". Baseado na pesquisa que fiz com o dr. Charcot. Foi para isso que fui a Paris. Portanto, não vamos fazer a coisa parecer uma atividade ilegal, está bem?

AMALIE — Mas ninguém na academia concordou com você!

FREUD — Não. Ninguém concordou.

AMALIE — E os médicos presentes a cada reunião eram homens de reputação, estabelecidos, de sucesso?

FREUD — E, nesse caso, completamente errados.

AMALIE — Errados ou certos, meu filho, como é que um neurologista pode ter clientes se não foram recomendados por outros médicos?

FREUD — Então é isso!

AMALIE — Portanto, me faça o favor de não fazer mais relatórios!

FREUD — Mamãe, a discordância é tão comum na Academia quanto os charutos. Não há nenhuma razão para se preocupar.

AMALIE — Se você diz isso, meu filho, então não vou me preocupar. E por que deveria? Só porque alguns médicos insistem para que você peça demissão da Aca demia?

FREUD — No calor da discussão os homens dizem coisas irrefletidas.

AMALIE — Mas disseram!

FREUD — Eles não vão me expulsar!

AMALIE — Expulsarão se um de seus pacientes ficar louco! O dr. Schonfeld disse...

FREUD — Você discutiu a minha vida com ele?

AMALIE —- A mãe dele e eu estávamos tomando chá. Ele apareceu e tocou no assunto. O que é que eu podia fazer? Ele disse que você usa hipnose nos seus tratamentos. E que isso é muito perigoso!

FREUD — Schonfeld não é autoridade no assunto!

AMALIE — Talvez não seja. Mas ninguém está querendo que ele saia da Academia. Sigmund, um judeu já nasce com inimigos suficientes. Por que é que você precisa enfrentar todo mundo? Você podia ganhar tanto dinheiro quanto qualquer bom médico de Viena. Bastava querer.

Freud fica dividido entre a sua certeza de que está a caminho de uma grande descoberta e a ameaça que representa o desagrado dos doutores da Academia. É o que vemos nesta cena entre ele e sua mulher Martha.

FREUD — É. Anos atrás eu te escrevi de Paris: "Eu não sou um gênio. Não tenho muito talento. Tenho uma grande capacidade de trabalho e é só".

MARTHA — "Sempre senti que herdei toda a ousadia e paixão com as quais nossos ancestrais defenderam seu templo, e alegremente sacrificaria minha vida por um grande momento na história." Você me escreveu isso também.

FREUD — Mas então eu tinha um futuro. O futuro está aqui! E o que sou eu? Um homem de trinta e sete anos de idade que não é capaz de sustentar sua esposa! E, breve, também não será capaz de sustentar seu filho! E, Princesa... eu estou com medo. (ELA REAGE PEGANDO NA MÃO DELE)... Estou! Mamãe falou de minha expulsão da Academia. Eles poderiam me demitir também do hospital. E impedir que eu clinicasse. O que seria então? Um assistente de laboratório que passa a vida alimentando porqui-nhos e coelhos? Você quer que isso aconteça comigo? Eu já fui um excelente clínico geral, não fui? Pois serei de novo. (MARTHA SE LEVANTA, VAI À ESCRIVANINHA, PEGA A ESTATUETA DE JANUS) — Esse é o vilão real! Eu não podia comprá-lo e não pude resistir! Janus! O Deus dos Inícios. Hoje é um início. De hoje em diante, um novo e próspero Dr. Freud. Apto a comprar não apenas esta cópia, mas o original. (VAI A MARTHA E PEGA A ESTATUETA DELA. ADMIRA A PEÇA) — Janus, o deus de duas faces. Uma face ardente, olhando os anos magros — e uma face tranqüila, contemplando os anos prósperos...

A ousadia e a paixão dos ancestrais

Joseph Breuer era um conceituado neurologista de Viena, que havia curado uma cliente histérica através da hipnose e da recuperação de lembranças reprimidas. Foi através do estudo desse caso que Freud descobriu o inconsciente. Ficou eufórico com a descoberta e atribuiu-a, não às suas próprias conclusões, mas ao trabalho do colega. Mas Breuer sabia que a tese era tão revolucionária que, certamente, abalaria os meios médicos tradicionais. E ele temia pela sua estabilidade profissional e negou-se a assumir a sua contribuição.

A descoberta do inconsciente

BREUER — Era de noite, bem tarde. Ela estava cuidando do pai, como sempre. Através do jardim, vindo da casa do vizinho, um som de uma pequena orquestra tocando uma valsa. E risadas: era uma festa. A música era irresistível. Por isso, quando ela percebeu que ele dormira, abriu a janela para ouvir melhor. E começou a dançar e cantarolar baixinho, só para ela. Ou pelo menos assim pensou, até que o pai se agitou no sono. Ela olhou para ele, assustada.

FREUD — E em vez do rosto do pai, viu uma caveira olhando para ela?

BREUER — Ela ficou apavorada. Ela ofegou, e o som acordou o pai. "O que é isso?", ele perguntou. E tudo que ela achou para responder foi "Nada, papai, eu tossi".

FREUD — "Nada, papai; eu tossi, só isso. Durma de novo."

BREUER — Exatamente.

FREUD — E a partir daí ouvir música sempre lhe causou um acesso de tosse. Fantástico! E mais fantástico ainda é que bastou ela lhe contar o incidente para ficar curada do sintoma.

BREUER — Sigmund, você está usando essa palavra de novo!

FREUD — Pois estou!

BREUER — E eu o recordo novamente, a paralisia nunca foi curada!

FREUD — Por que me diz isso agora?

BREUER — Porque você não pode armar uma teoria baseado num único caso. Se aprendi alguma coisa é que esse procedimento tem que ser voluntário, como voluntária foi a auto-hipnose. Se eu lhe fizesse perguntas, ela jamais responderia. Mas em alguns dias, à maneira dela, em seu tempo e em seu espaço, chegaria à mesma conclusão. Ela não podia ser forçada. Só podia sair dela um pouco de cada vez, como alguém desenrolando a lã de um novelo. Lembre-se disso, antes de forçar um tratamento e...

FREUD — O que você disse? Repita.

BREUER — O quê? "Ela não podia ser forçada?"

FREUD — Não, não. "Desenrolar um novelo"...

BREUER — O quê?

FREUD — De onde é isso? Em algum lugar... alguém desenrolou um novelo de lã... A lenda! Teseu! Desenrolou um novelo e deixou uma trilha de modo que pudesse encontrar seu caminho de volta no labirinto. A caverna do Minotauro, o Labirinto!

BREUER — Sigmund, não vamos confundir mitologia com medicina.

FREUD — O que você descreveu não é mitologia! Você disse que sua paciente tinha de desenrolar os pensamentos dela lentamente, como a lã de um novelo, de modo que pudesse encontrar o caminho de volta em direção à memória. Joseph! Talvez exista um labirinto na mente — que esconde as memórias mais secretas e as usa para nos torturar.

BREUER — Sigmund!

FREUD — É desse tipo de memória que Charcot falava! Não vê como tudo se encaixa?!

BREUER — Sigmund!

FREUD — (SAI, EXPLODINDO) — Se encaixa! Ele descobriu! Ele descobriu!

BREUER — Sigmund, eu não reivindico essa descoberta para mim.

A fala final de Freud — referida aos nazistas que o exilam da Áustria ocupada — tem uma abrangência que supera o mero aspecto político da situação e mostra que, ele sim, tinha consciência da importância libertadora da descoberta do inconsciente.

FREUD — A pior tirania está no interior. Um ser humano, livre dentro de si mesmo, é livre em qualquer lugar. Nós faremos com que eles aprendam isso!

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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