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O liberalismo revisitado

O liberalismo revisitado

Marco Maciel

Ministro da Educação e fundador do Partido da Frente Liberal

A palavra liberal, submetida ao desgaste do uso indevido, vítima de incompreensões e impropriedades, perdeu muito de sua força original. Empregam-na, não poucas vezes, para significar tudo e nada, como se fosse uma fórmula mágica capaz de conferir sentido a discursos vazios de conteúdo.

Esse desgaste pode explicar-se, também, pela confusão freqüentemente gerada por sua utilização desinformada, ou mal-intencionada, na política e na economia. Paradoxalmente, liberalismo pode ter significados praticamente opostos: em economia, rima com o laissez-fatire dos que defendem a omissão do Estado na condução das atividades produtivas, uma idéia do passado. Hoje, é universalmente aceito que o liberalismo econômico não serve a uma sociedade livre, mas a seu oposto.

Liberalismo, porém, nos termos que vem ressurgindo com formidável vigor na vida política brasileira, é conceito de tradição longamente sedimentada na história do pais. Fortalece-se no bojo das mudanças ora vividas pela nação, sob a forma de mensagem nova captada do clamor popular, entendida e tornada conseqüente por amplas e diversificadas lideranças.

Mesmo nos momentos de intensificação do autoritarismo — que esteve sempre presente na história brasileira, como na dissolução da Assembléia Constituinte pelo primeiro imperador, no Estado Novo implantado em 1937, nos anos que se seguiram a 1964 — o corpo de doutrinas enfeixado sob essa denominação fez-se valer no sentimento nacional. Exemplo disso é o crescendo que se observou a partir da instauração, por volta de meados da década de 70, do assim chamado processo de distensão, depois abertura. Os fatos que definiram seu rumo foram as eleições proporcionais e majoritárias realizadas em 1974, a revogação do AI-5 e de outros atos de exceção, a conquista da anistia, as eleições diretas para os governos estaduais — cada um deles antecedido e seguido por surtos de elevação das demandas sociais — tendo como ápice a memorável campanha pelas eleições diretas que empolgou o país nos primeiros meses de 1984.

É bom notar que essa trajetória marcou-se, e foi em grande parte condicionada e impulsionada por uma natural, espontânea e progressiva aglutinação de lideranças de diferentes partidos e correntes de opinião. Sua força de coesão foi um anseio de liberdade, ainda difuso, mas cada vez mais patente. Como costuma acontecer aos grandes movimentos de massa, baseados em idéias que realmente encontram respaldo nas aspirações populares, o fato político precedeu a doutrina que só agora começa a cristalizar-se, e deverá ganhar forma jurídica capaz de servir aos novos tempos que nascem dos mais evidentes exemplos de amadurecimento social de que temos notícia em nossa história.

A pedra de toque da democracia

De tudo isso pode extrair-se, em minha opinião, uma primeira conclusão: se é verdade que a palavra liberalismo sofreu inevitável desgaste do tempo, isso não quer dizer que algo semelhante possa ocorrer à idéia. Porque, até mesmo pelas suas origens, é conceito que tem a ver com liberdade, essa insubstituível conquista de nossa civilização que é, na opinião de muitos, a pedra de toque da democracia.

A nação brasileira está encerrando um período da sua evolução em que o exercício da democracia não foi sempre observado. Entretanto, como é capaz de perceber qualquer pessoa de bom senso, convivemos com grandes fases de progresso técnico e econômico, nas quais o país se modernizou, preparando-se para ingressar em mais elevados patamares de sua evolução econômica.

O centro da questão está em constatar o custo que a sociedade teve que pagar por estas conquistas, alto demais em termos de justiça social — desgraçadamente não acompanhou a evolução das atividades produtivas.

Assim foi que, no plano institucional, assistimos ao fortalecimento da supremacia do poder Executivo sobre os demais; o Legislativo perdeu força, e não se deu condições de bem operar o Judiciário; retiraram-se da Federação, mantida formalmente na Constituição, condições concretas de existência, relegando-se estados e municípios à condição de mendicantes do poder central.

Perdeu autenticidade o processo de constituição do poder nacional, ainda que se realizassem eleições periodicamente. Enquanto isso, os partidos políticos, vítimas de processo semelhante, perderam autenticidade e com ela as condições de abrigar diversas correntes do espectro social.

Tudo isso ocorreu sem que a sociedade conseguisse organizar-se para deter um processo que tenderia, com o tempo, a cristalizar o autoritarismo.

Por outro lado, o regime buscou a legitimação, que lhe faltava no processo político, através dos resultados obtidos no campo da expansão econômica. Mas faltou-lhe irremediavelmente a sustentação quando a crise lhe retirou a possibilidade de manter o crescimento acelerado. Rapidamente o apoio das camadas médias de renda, submetidas a empobrecimento paulatino, deixou de existir, evaporando-se igualmente a sustentação dos círculos empresariais. Setores organizados da sociedade civil, como as entidades de profissionais liberais, da Igreja, sindicatos de operários da indústria e outros mais, passaram a assumir posições nitidamente oposicionistas — timidamente a princípio, com vigor acentuado logo depois.

A tudo isso devem-se juntar as idéias e ações dos presidentes Geisel e Figueiredo de fazer deste país uma moderna democracia, resgatando compromisso assumido pela revolução de 1964.

Parece-me que estamos na metade do caminho desse processo, que se traduz, em outros termos, pelo crescimento do desejo de participação da sociedade na condução dos seus destinos. A campanha em favor das eleições diretas para presidente da República culminou num processo de esclarecimento popular a respeito de seus direitos e deveres numa sociedade democrática, representou, ainda que difusamente, uma opção por formas mais abertas e democráticas de organização do Estado, e serviu à disseminação e aperfeiçoamento das formas de estruturação da sociedade. Ainda assim, seu ponto alto não foi o final de um capítulo, somente, mas também e sobretudo o ponto de partida para uma caminhada na qual, mais conscientes, esclarecidas e organizadas, as diversas camadas sociais tendem a aproximar-se cada vez mais de conseguir plenamente a democracia.

Este processo será seguido e aprofundado com avanços significativos da participação. É bom verificar que, cada vez mais, aumenta o desejo de participar. Em todos os segmentos sociais — empresários e operários, profissionais liberais e funcionários da máquina estatal, organizações religiosas e entidades classistas, associações de moradores — aprofunda-se e é mais patente o desejo de agir, de não apenas aguardar os resultados da ação de governo.

Construindo o seu destino

Até mesmo entre camadas mais marginalizadas desse processo, percebe-se, concretamente, que já não estão dispostos a permitir que seu destino se construa sem que opinem e participem. Mutuários do sistema habitacional, que há dois ou três anos sequer suspeitavam de que poderiam discutir as taxas segundo as quais se reajustam as suas prestações — todos exigem fazer-se ouvir. E, o que é melhor, conseguem.

Não será demais acreditar em que estamos a poucos passos do momento em que essa participação ganhará novos e mais avançados componentes. Porque, até aqui, tem-lhe faltado uma parcela importante, insubstituível se a desejamos efetiva, organicamente estruturada e apta a produzir resultados duradouros em termos de evolução democrática. Falta-lhe a participação política, aquela capaz de conferir nova autenticidade e poder aos partidos e tornar realmente democrático o processo de representação popular.

Da associação entre os diversos estágios participativos aos quais ascende a sociedade — estágios que não se sucedem de maneira estanque, porém se interpenetram, coexistem, confundem-se num processo contínuo — é que será possível, num país como o Brasil, avançar em direção a uma sociedade mais democrática. As organizações formais do Estado (partidos políticos, câmaras legislativas, executivos portadores da legitimidade conferida pelo voto popular e universal) poderão aperfeiçoar-se através da democracia exercida no dia-a-dia das comunidades.

É isso que poderíamos também chamar, sem impropriedade, de realização democrática. Realização democrática no sentido de conquistar esse grande bem a que a humanidade vem aspirando em séculos de lutas — o direito à liberdade. Liberdade entendida quer em termos de direitos civis, quer em termos de conquistas sociais e econômicas.

Liberdade de pensamento que se garanta sem qualquer restrição e se concretize pelo indispensável direito à sua expressão. Liberdade de associação e organização, com vistas ao necessário pluralismo, ao fortalecimento da ação das entidades comunitárias, dos sindicatos e outras organizações de defesa dos direitos dos trabalhadores.

Liberdade para permitir que se consiga um desenvolvimento que chegue a todos, inclusive para grupos e estratos sociais que não têm voz para defender seus direitos ou opções de vida. Aqueles que, paradoxalmente, se tomados em seu conjunto hão de mostrar-nos que constituem, na realidade, a maioria dos brasileiros.

Esta é, na minha opinião, a face atual do liberalismo brasileiro. Um novo liberalismo, se assim o quiserem chamar, mas que guarda um significado compatível com a aspiração, que é velha como a humanidade, de resguardar a cada ser humano o direito de realizar-se em toda a sua integralidade e extensão.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Fev 2011
  • Data do Fascículo
    Jun 1985
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