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O choro de Jô - Um estudo de caso da coopertiva de produção de pães de engomadeira1 1 Este caso para o ensino foi produzido por Luiza Teixeira (luizarteixeira@hotmail.com), Fabiana Gomes (fagomes09@yahoo.com.br) e Esdras Hoche (asphoche@ig.com.br), alunas da graduação do curso de Administração, em janeiro de 2003, sob supervisão da Prof. Sylvla Roesch (s.roesch@lse.ac.uk), que ministrou a Oficina de Casos em Gestão Social, em setembro de 2002 na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. A oficina de casos para ensino e para pesquisa é uma atividade integrante do PDGS - Programa de Desenvolvimento e Gestão Social (pdgs@adm.ufba.br), abrigado no âmbito do NEPOL - Núcleo de Estudos sobre Poder e Organizações Locais. Este programa abrange atividades de pesquisa, ensino e extensão, oferecendo alternativas de qualificação para gestores sociais e do desenvolvimento, criando e testando modelos de formação apoiado em perfis de competência, bem como incentivando a produção e difusão do conhecimento na área.

Cooperativa Múltipla Fontes de Engomadeira, COOFECoofe - Cooperativa Múltipla Fontes de Engomadeira. Disponível em: https://cirandas.net/coofe.multipla.
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, localiza-se no bairro de Engomadeira, na periferia de Salvador. A COOFE é composta por 23 cooperados, em sua maioria, residentes do bairro. Vinte são do sexo feminino, com idade entre 36 e 45 anos e apenas três deles completaram o 2º grau. A cooperativa dedica-se à produção e comercialização, em domicílio, de pães e salgados para os residentes do bairro. Atualmente, a cooperativa também fornece seus serviços sob encomenda para eventos como coquetéis, coffe-break e casamentos.

A COOFE vem passando por um momento financeiro adverso. Na verdade, desde o início de suas atividades, a COOFE vem operando com dificuldades. Para começar a produzir a COOFE recebeu uma doação de equipamentos da Universidade Estadual da Bahia, a UNEB, sendo possível observar nos primeiros meses de funcionamento, que a venda de pães, apenas, não era suficiente para subsistência dos cooperados. Outro fator complicador foi o fato do ramo de atividade, em que estava inserida a cooperativa, estar saturado no contexto comunitário-. Mas, no Natal de 2001 foi obtido um certo êxito com as vendas de produtos natalinos, como panetones. As entradas no caixa foram tantas que eles investiram comprando maquinário de produção, uma fermentadeira. Nesta época a remuneração mensal chegou até R$200 por cooperado. Ultimamente, os cooperados não estão obtendo uma remuneração que atenda às suas necessidades pessoais e familiares. Um dos membros no último mês de agosto obteve uma remuneração de apenas R$ 20,00. A falta de uma sobra - como é chamado o lucro em cooperativas, já que ela é repartida de acordo com critérios pré-determinados por todos os cooperantes ativos - no final do mês, tem gerado, ultimamente, muitos conflitos entre os cooperantes. Em alguns momentos mais críticos os cooperantes chegaram até a falar em entrar em "greve". O que demonstra que há uma visão distorcida do sentido da cooperativa entre os seus participantes. Talvez, isto ocorra pelo fato dos integrantes ainda estarem com a visão mais tradicional de trabalho que permeia as empresas da área privada, em geral. O trabalho é caracterizado pela heterogestão, em que há divisão entre os que realizam o trabalho intelectual e os que realizam o trabalho manual.

Como parte da assistência técnica prestada pela Associação de Fomento à Economia Solidária, o BanSol, um grupo de estudantes de Administração da UFBA, está tendo a oportunidade de vivenciar o cotidiano da cooperativa. Os estudantes pretendem, através de observação participante, em conjunto com os cooperantes, construir um plano de ação que venha a suprir as dificuldades da cooperativa.

No dia 24 de setembro de 2002, em uma de suas visitas diárias, um dos alunos foi abordado por Jô, diretora financeira da cooperativa: Eu não sei se suporto mais, já é o final do mês e eu não tenho dinheiro nenhum para dividir com os outros membros, todos me cobram e para piorar meu marido tem reclamado bastante, pois eu saio para trabalhar o dia todo e não tenho valor nenhum para ajudar em casa. Ele quer saber o que tanto faço na rua. A COOFE está uma bagunça, o pessoal só quer produzir e vender, e não se envolve com as outras atividades da cooperativa. Estou com muito medo. Neste instante, A voz de Jô torna-se embaçada e suas mãos trêmulas. O pior é que eles vêem o dinheiro entrar com as vendas, mas não vêem sair com os gastos; a cobrança é ainda maior. Ao encerrar esta frase, uma lágrima escorre dos olhos de Jô.

O bairro de Engomadeira dista 14 quilômetros do centro de Salvador. Lá predominam edificações residenciais de alvenaria e em sua maioria sem reboco, com instalações simples no que diz respeito à moradia. A área do bairro destinada a atividades comerciais é relativamente bem desenvolvida. A pavimentação das ruas, bem como as escadarias drenantes, no entanto, apresentam condições bastante precárias. Grande parte da população desenvolve ocupações no mercado informal de trabalho: são biscateiros, camelôs, empregados domésticos e outros. A renda média familiar é de 1,5 salário mínimo, segundo dados censitários. Entre outras organizações comunitárias, ressalta-se uma associação de moradores, o COMOB - Conselho de Moradores do Bairro de Engomadeira e um Clube das Mães.

A COOFE é uma cooperativa que está sendo incubada pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares - ITCP. A ITCP, por sua vez, é um projeto de pesquisa e extensão da Universidade do Estado da Bahia, a UNEB, e constitui-se num espaço de geração e disponibilização de conhecimentos, na interação direta com grupos formados por trabalhadores desempregados ou que sofram precarização em suas formas de ocupação no mercado. Num processo educativo, a ITCP visa criar oportunidades de trabalho e renda, através da estruturação de cooperativas populares nos moldes da economia solidária.

A idéia de fomentar a criação de cooperativas populares a partir das Universidades surgiu com a experiência desenvolvida pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), em 1994. O Programa Nacional de Incubadoras Tecnológicas de Cooperativas Populares (PRONINC), lançado em Maio/98, no Rio de Janeiro pelo Instituto Alberto Luís Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio 4e Janeiro (UFRJ), Financiadora de Estudos e Projetos (FINEP), Fundação Banco do Brasil (FBB), Centro de Orientação e Encaminhamento Profissional (COEP) e Programa Comunidade Solidária, teve o objetivo de estender essa experiência a outras universidades brasileiras.

A COOFE, por encontrar-se no entorno da UNEB, constituiu-se no primeiro grupo trabalhado pela ITCP. A interação Incubadora-comunidade deu-se inicialmente por intermédio das organizações locais, a fim de promover a mobilização de um grupo disposto a construir um empreendimento solidário. O processo de formalização da cooperativa foi trabalhado e aprofundado a partir da elaboração do Estatuto e Regimento Interno, aprovados, na Assembléia de Fundação, em 5 de fevereiro de 2000, na qual também· foram eleitos e empossados a primeira Diretoria, o Conselho Fiscal e a Comissão de Ética. Todo esse processo foi construído coletivamente, de modo a criar em cada cooperante a plena consciência da condição de sujeito ativo e constituinte de um grupo.

A COOFE já está registrada junto à Junta Comercial do Estado da Bahia (JUCEB), Receita Federal e Superintendência de Controle e Ordenamento do Uso do Solo do Municipal de Salvador (SUCOM). Os recursos necessários à legalização foram levantados, precariamente, através de eventos realizados pelos cooperantes na própria comunidade, como bingo, bazar e festival de pipoca. O objetivo da cooperativa é atingir, no curto prazo, 5% do mercado local e diversificar sua produção para pizzas e bolos, além de outros tipos de pães. Para tanto, consideram ser indispensável a potencialização da sua capacidade de vendas que, avaliam, poderá ser obtida pela entrega dos produtos em domicílio, através de carrinhos.

A produção de pães é feita em uma casa ampla, que ao possuir apenas quatro cômodos, torna-se inadequada para o negócio. Alguns acidentes ocorrem em virtude da falta de uma estrutura adequada, como queimaduras nos cooperados e perda de produção. A comercialização dos pães é feita através da distribuição nas residências dos clientes, ou seja, porta a porta, já que a organização não possui uma padaria ou loja, que seja visível aos clientes.

As vendas são feitas através da divisão dos cooperantes em sete grupos, cada um com duas pessoas que saem todos os dias, à tarde, para vender a maior parte da produção de pães. As duplas geralmente saem quando os pães estão prontos e contados, em torno das 16:00 horas. Cinco das duplas já citadas são formadas apenas por mulheres que acomodam os pães em caixas plásticas com capacidade para em média 150 pães de todos os sabores: milho, leite, sal e delícia. As duas duplas restantes conseguem carregar um maior número de pães, uma delas utiliza um carrinho, que foi projetado especialmente para a COOFE e doado pela UNEB. Este carrinho tem capacidade para, em média, 500 pães, mas é muito pesado e por isso de difícil locomoção no bairro, que é muito acidentado. A outra dupla adapta uma cesta grande e uma gaveta do outro carrinho em um carro de mão de construção civil com capacidade para, em média, 500 pães. As duas duplas que utilizam carrinhos contam com a presença de homens. Durante a manhã não há vendas externas, apenas um número reduzido de cooperantes que fabricam o pão para a vendagem da tarde. Neste período há uma pequena vendagem para clientes que vão até o próprio estabelecimento.

Os problemas em torno da remuneração dos cooperantes estão muito ligados à quantidade vendida. Os custos fixos são de R$ 610,00 por mês, valor muito alto em relação à receita mensal·. A produção atual fica em torno de 1.760 pães por dia, mas a capacidade máxima do forno é de 3.125 pães por dia. Outra possível solução seria substituir o forno a gás por um forno à lenha, o que representaria uma economia de 95%. Para haver uma possível redução nos custos variáveis, a solução seria a substituição da farinha de trigo, que é ajustada de acordo com o dólar pelo fato de ser importada, pela fécula de mandioca, que é um produto nacional e, portanto, tem um preço menor e menos oscilante. No entanto, os cooperados têm um certo receio de ao usar a fécula de mandioca ter o valor do produto reduzido, já que a mandioca é um produto que é visto com um certo preconceito pelos cooperados. Na região do nordeste ela até é chamada de "farinha de guerra" por alguns.

Apesar da estrutura de gestão da cooperativa não ser hierarquizada, as segurando, de acordo com o estatuto, "que todos participem das atividades econômicas, sociais e educativas da cooperativa, opinem e defendam suas idéias, propondo à Diretoria ou a Assembléia Geral medidas de interesse da cooperativa e que solicitem esclarecimentos sobre as atividades da Cooperativa, incluindo, neste ponto, balanços financeiros, demonstrativos e relatórios", talvez por um fator cultural, a maioria dos cooperados não se envolve com a gestão financeira da cooperativa. De fato, a maioria deles não tem a percepção que o resultado do final do mês é coletivo e representa, não só a quantidade de pães vendida, como a gestão dos recursos que entraram. Como resultado, a gestão financeira da cooperativa é centralizada nas mãos da Diretora Financeira. Jô é uma mãe de família, com 35 anos de idade, que sempre atuou como dona de casa. Desde o primeiro contato com a ITCP, ela sentiu que ali estaria a chance de ter uma renda extra, complementando assim seu tempo livre. Após o curso de cooperativismo oferecido pela ITCP, seu nome foi indicado para a diretoria financeira e, desde então, ela tem a função de administrar os recursos da COOFE. É Jô quem negocia os prazos com o Moinho de Salvador, fornece a farinha de trigo, negocia com o inquilino da casa, registra o caixa e, no final do mês, distribui a sobra entre os cooperados.

Tarefa dos estudantes para a discussão do caso:

  1. Quais os principais problemas desta cooperativa?

  2. Que sugestões você apresenta aos integrantes do BanSol para a proposição de um plano de atuação para a cooperativa?

  3. Que estratégias de implementação seriam mais adequadas para implementar o plano?

REFERÊNCIA

  • 1
    Este caso para o ensino foi produzido por Luiza Teixeira (luizarteixeira@hotmail.com), Fabiana Gomes (fagomes09@yahoo.com.br) e Esdras Hoche (asphoche@ig.com.br), alunas da graduação do curso de Administração, em janeiro de 2003, sob supervisão da Prof. Sylvla Roesch (s.roesch@lse.ac.uk), que ministrou a Oficina de Casos em Gestão Social, em setembro de 2002 na Escola de Administração da Universidade Federal da Bahia. A oficina de casos para ensino e para pesquisa é uma atividade integrante do PDGS - Programa de Desenvolvimento e Gestão Social (pdgs@adm.ufba.br), abrigado no âmbito do NEPOL - Núcleo de Estudos sobre Poder e Organizações Locais. Este programa abrange atividades de pesquisa, ensino e extensão, oferecendo alternativas de qualificação para gestores sociais e do desenvolvimento, criando e testando modelos de formação apoiado em perfis de competência, bem como incentivando a produção e difusão do conhecimento na área.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2004
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