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Estratégias de Produção da Cidade no Contexto da Neoliberalização: Salvador como Exemplo

Resumo

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre as propostas de desenvolvimento econômico e de infraestruturação urbana elaboradas pelo Plano Estratégico Salvador 360, produzido em 2017 pelo poder público municipal, em Salvador, na Bahia. Trata-se da análise de uma experiência de cunho neoliberalizante que, apesar da feição modernizadora, atualiza modelos antigos com grande potencial de agudização de problemas estruturais de segregação socioespacial. Os conceitos que estruturam este texto são os de neoliberalização, espoliação urbana, mais-valia fundiária e gentrificação, e as principais referências teóricas utilizadas são Neil Brenner, Nick Theodore, Jamie Peck, David Harvey, Lúcio Kowarick, Carlos Vainer e Inaiá de Carvalho. A metodologia utilizada foi a de análise de documentos oficiais, de dados secundários (Dieese, IBGE) e da plataforma digital AirBnB. O texto conclui que o referido plano, em um contexto de retrocesso político e de aumento da pobreza, intensifica a expulsão da população pobre das áreas centrais, amplia a apropriação privada da mais-valia urbana e a concentração da oferta de serviços, aprofundando a precarização do ambiente urbano e da qualidade de vida na cidade.

cidade; Salvador; neoliberalização; espoliação urbana

Abstract

The aim of the current article is to think over economic development and urban infrastructure propositions by Salvador 360 Strategic Plan from 2017, which was elaborated by the municipal government. The plan allows analyzing the neoliberal city production approach which, despite its modernizing profile, is just an update of old models that have great potential to worsen structural socio-spatial segregation issues. Neoliberalism, urban spoliation, land value and gentrification are key concepts in this article. Neil Brenner, Nick Theodore, Jamie Peck, David Harvey, Lúcio Kowarick, Carlos Vainer and Inaiá de Carvalho are its main theoretical references. The methodology addresses documental analysis, as well as the analysis of secondary data from official sources (DIEESE and IBGE) and digital platforms analysis (AirBnB website). Based on the results, Salvador 360 Strategic Plan deepens eviction processes experienced by the poor population in the city’s central zones and increases the appropriation of private urban added value and service provision concentration, within a political setback context. This process can aggravate urban environment precariousness and quality of life in the city.

city; Salvador; neoliberalism, urban spoliation

Introdução

A vida nas grandes cidades, historicamente, tem sido associada à modernização, mas também à segregação, à violência e à degradação ambiental. David Harvey, em 2014, parodiando Henri Lefebvre, sentencia: “A cidade pode estar morta.” Mas, logo em seguida, como que em um suspiro, afirma: “Longa vida à cidade!” ( Harvey, 2014Harvey, D. (2014). Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana . São Paulo, SP: Martins Fontes. , p. 21). Os referidos qualificativos não se aplicariam, desde sempre, à cidade, tida como o locus da inovação, da troca, da produção, da desigualdade, do conflito, do medo, do poder, da festa e da liberdade ( Le Goff, 1988Le Goff (1988). Por Amor às Cidades . São Paulo, SP: Editora UNESP. )? Até os anos 1990, a compreensão da condição urbana implicou a recorrência a categorias como pós-fordismo, desindustrialização, globalização e periferização. Afinal, o que existe de novo nos processos de produção e de reprodução das nossas cidades?

Como afirma Anthony Giddens (2002)Giddens, A. (2002). As consequências da modernidade . São Paulo, SP: Editora Unesp. , o que, genericamente, se qualifica como condição pós-moderna não se constitui, exatamente, na superação dos fundamentos da modernidade, mas em sua radicalização. Nesse caso específico, o “pós” neoliberalismo ou neoliberalização tem conduzido à radicalização de concepções e práticas liberais, ao aprofundamento da conversão de bens materiais, simbólicos, relações e da própria cidade, em mercadoria. Nesse exato sentido, estamos, simultaneamente, diante do mesmo e do novo – a cidade de hoje atualiza, de forma mais radical, elementos históricos do seu processo de constituição e, ao fazê-lo, se reinventa. Na periferia do sistema, esse processo ganha tons particulares.

Mais recentemente, os conceitos de neoliberalismo e de neoliberalização têm sido considerados como elementos de síntese, necessários à compreensão do aprofundamento do caráter desigual e volátil que a cidade adquiriu nas últimas décadas. Neil Brenner e Nick Theodore (2005) chamam a atenção para o fato de que o neoliberalismo tem sido compreendido como um elemento estruturante da condição urbana contemporânea, e temos hoje o desafio de compreender a cidade no contexto da pós-neoliberalização, ou seja, depois da avalanche neoliberal desencadeada a partir dos anos 1970.

Particularmente no Brasil, após quase três décadas de redemocratização, da experiência neoliberal dos anos 1990 e do modelo neodesenvolvimentista dos anos 2000, de implementação de instrumentos de gestão de cunho descentralizante e da busca pela ampliação da participação popular na gestão da res publica , a cidade continua a se apresentar como palco de contradições, desigualdades e conflitos, de uma economia financeirizada e rentista, cujos centros de decisão continuam sendo conduzidos por interesses corporativos.

Desse modo, a cidade tem sido associada à consolidação de espaços fortificados, à gentrificação, na qual a rua e a praça, em outros tempos associadas ao lazer e ao convívio (ainda de uma forma romantizada), têm, cada vez mais, se convertido em lugares de passagem e de exposição ao risco. Por outro lado, a guetificação da cidade é associada, hoje, ao retorno de projetos e modelos de gestão qualificados por muitos como segregacionistas – que esgarçam o tradicional modelo de produção da cidade, aprofundando a sua conversão em mercadoria.

O caso de Salvador é exemplar por revelar as velhas, renovadas e aprofundadas contradições da cidade no capitalismo periférico. Salvador, que sempre foi caracterizada como uma cidade terciária e de poucos postos de trabalho qualificados, continua a ser qualificada, no atual contexto de desindustrialização, como uma cidade cuja economia é marcadamente rentista. Na última década, o estímulo à indústria da construção civil, ao mercado de terras e imobiliário, de grande peso na economia local, ganharam maior expressão no processo de acumulação local e regional. Esse cenário se torna mais complexo a partir da utilização de instrumentos de gestão urbana, a exemplo da Transferência do Direito de Construir (TRANSCON). Esse instrumento, previsto pelo Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001, Brasil, 2008Brasil. (2008). Estatuto da Cidade (3a ed). Brasília, DF: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. Recuperado de https://bit.ly/3vzrO1M
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), permite o exercício ou a alienação do direito de construir, com o objetivo de preservar imóveis, áreas de importante valor histórico ou ambiental. Porém, seu mau uso tem gerado especulação imobiliária com o solo criado, ampliando os mecanismos de acumulação e concentração1 1 . O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Salvador (Lei nº 7.400 de 2008) incorpora o TRANSCON como instrumento de gestão urbana (Art. 259), definindo-o como um: “instrumento pelo qual o Poder Público Municipal poderá permitir ao proprietário de imóvel urbano, privado ou público, exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública o direito de construir, previsto neste Plano Diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o imóvel de sua propriedade for considerado necessário para fins de: I - implantação de equipamentos urbanos e comunitários; II - criação de espaços abertos de uso público; III - preservação de áreas de valor ambiental indicadas nesta Lei ou em lei específica; IV - preservação de imóvel considerado de interesse histórico, cultural, paisagístico ou social; V - regularização de ZEIS I, II, IV e V; VI - implementação de Habitação de Interesse Social em ZEIS III” ( Salvador, 2008 ). No Plano Diretor de 2016, esse instrumento de política urbana foi também incorporado. .

Na divisão regional do trabalho, sempre coube a São Paulo a condição de cidade da indústria e do trabalho; e a Salvador, como muitas das capitais do Nordeste, a condição de cidade do lazer, do turismo, do entretenimento, da prestação de serviços especializados, das trocas e do ganho sem ou com pouco trabalho – das rendas, sobretudo da renda da terra urbana.

Esse modelo de desenvolvimento dos anos 1990, nunca abandonado, está sendo mais uma vez reeditado com o Programa Salvador 360 (Salvador, 2017), em um contexto de desindustrialização das grandes metrópoles, de ampliação das desigualdades sociais e de segregação urbana, de precarização do trabalho e de retrocesso de conquistas no plano da gestão, constituindo-se em um lídimo exemplo da permanência, já no século XXI, do velho projeto de Salvador turística.

O Programa Salvador 360 reporta-nos ao clássico e questionado modelo de “requalificação urbana”, implementado a partir da década de 1980 em Barcelona – intensificado com os jogos olímpicos de 1992 e replicado em muitas cidades de vários continentes. O “modelo Barcelona”, com a incorporação do paradigma da “cidade criativa” e o discurso da economia baseada em conhecimento, inspirou, por exemplo, intervenções em Berlin após o processo de reunificação (Antunes, Marchcd, & Connollyefg, 2020).

Mais recentemente, grandes projetos de requalificação da cidade e políticas locais de desenvolvimento urbano têm estimulado a reinserção da cidade no contexto global europeu, aprofundando os processos de gentrificação ( Levine, 2004Levine, M. A. (2004). Government Policy, the Local State, and Gentrification: The Case of Prenzlauer Berg (Berlin), Germany. Journal of Urban Affairs, 26 (1), 89-108. doi:10.1111/j.0735-2166.2004.007.x ). Fujitsuka (2018)Fujitsuka, Y. (2018). Deregulation policy and gentrification in Chuo Ward, Tokyo. International Institute for Asian Studies, 79 , 16. Recuperado de https://bit.ly/3e6c8wQ
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mostra os efeitos do Housing Linkage Program 2 2 . Com o declínio da população das áreas centrais, em meados da década de 1980, regulamentações locais foram propostas para inserir moradias em meio aos escritórios de negócios e comerciais. Tal processo teve forte impacto na atração dos white collar workers , resultando na substituição de moradores ( Fujitsuka, 2018 ). em Tokyo, Japão, para grandes desenvolvimentos na área central da cidade, permeados pela desregulamentação estatal, culminando em um forte processo de gentrificação.

A experiência de Salvador é peculiar por propor o aprofundamento e reedição de um modelo de desenvolvimento urbano que converte a própria cidade em um empreendimento, em um contexto de extrema pobreza, de desigualdade e de recuo nos processos de democratização da gestão da res publica . Como afirmam Marcos Nobre (2013)Nobre, M. (2013). Da Abertura Democrática do Governo Dilma – Imobilismo em Movimento . São Paulo, SP: Companhia das Letras. e Leonardo Avritzer (2019)Avritzer, L. (2019). O Pêndulo da Democracia . São Paulo, SP: Todavia. , o processo de redemocratização na década de 1980 trouxe modificações no padrão de gestão, particularmente nas capitais brasileiras; entretanto, ao contrário de Porto Alegre, Belo Horizonte e São Paulo, por exemplo, Salvador não experimentou mudanças em sua gestão, certamente em face da permanência dos mesmos grupos políticos à frente da administração municipal.

No atual cenário, apesar da melhoria no acesso à infraestrutura e aos serviços urbanos, depois de anos de sucateamento, e da ampliação do acesso ao consumo, como no conjunto do país, assiste-se em Salvador a reatualização dos processos de espoliação urbana, agudizando velhos e estruturais problemas, a exemplo da segregação socioespacial, associada, de forma perversa, a novos movimentos de expulsão dos pobres das áreas centrais degradadas – expulsão qualificada como gentrificação.

Apesar dos referidos processos de ampliação do acesso à infraestrutura e aos serviços urbanos, Salvador está muito longe da universalização do direito à cidade, e as perspectivas para a superação dessa realidade são pessimistas em face do cenário de ampliação do desemprego, do refluxo do movimento popular, do desgaste político de projetos considerados inclusivos e da polarização da arena política em torno de projetos marcadamente conservadores, dos retrocessos de direitos adquiridos, do ataque a liberdades individuais e mesmo do desmonte político-institucional, como afirma Yascha Mounk (2018)Mounk, Y. (2018). O Povo contra a Democracia . São Paulo, SP: Companhia das Letras. .

Em face da centralidade da cidade no embate político pela promoção de sociedades mais justas e inclusivas, e da necessidade da realização de reflexões sobre os projetos políticos para a cidade do Salvador, o objetivo deste trabalho é refletir sobre as propostas de desenvolvimento econômico e de infraestruturação urbana constantes no Plano Estratégico Salvador 360, produzido em 2017 pelo poder público municipal. O estudo situa-se no contexto da pós-neoliberalização, projeto que, apesar da feição modernizadora, reatualiza um modelo de desenvolvimento implementado nas cidades brasileiras ao longo dos anos 1990, sendo, portanto, incapaz de enfrentar e superar os diversos problemas estruturais de cidades, como Salvador, situadas na periferia do capitalismo.

A metodologia do trabalho consiste na análise da literatura, de documentos oficiais, particularmente do Plano Estratégico Salvador 360, e de dados secundários sobre os processos de produção e gestão da cidade no contexto da neoliberalização periférica, envolvendo informações sobre estrutura econômica, acesso e investimento de serviços de consumo coletivo. Também de dados relativos à economia compartilhada, como a de imóveis, a exemplo da Air, Bed and Breakfast (AirBnB), extraídos da rede mundial de computadores. São utilizados dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) sobre inserção produtiva e acesso a infraestrutura e serviços de consumo coletivos.

Do ponto de vista metodológico, destaca-se o caráter multidisciplinar da pesquisa realizada, principalmente pelo fato de envolver pesquisadores de campos de conhecimento distintos e complementares. O percurso metodológico aqui seguido busca a superação das tradicionais relações de exterioridade, de inspiração positivista, entre pesquisador e cidade, e a articulação entre as dimensões quali-quantitativas ( Flick, 2009Flick, U. (2009). Desenho da pesquisa qualitativa . Porto Alegre, RS: Artmed. ). Do ponto de vista epistemológico, as referidas opções implicam a assunção do caráter histórico de todo e qualquer conhecimento produzido, como também que a realidade sempre se revela de forma parcial e fragmentada, o que não significa a impossibilidade da sua interpretação, mas a necessidade de sermos guiados pela teoria.

Os conceitos estruturantes deste trabalho são os de neoliberalização, de espoliação urbana, mais-valia fundiária e gentrificação, e as principais referências teóricas utilizadas envolvem autores como Neil Brenner, Nick Theodore, Jamie Peck; David Harvey, Lúcio Kowarick, Carlos Vainer e Inaiá de Carvalho. A recorrência a esses conceitos e autores nos situa em campo próximo, ainda que distinto, do circunscrito pelos estudos organizacionais. Próximo, pelo fato de que o campo da teoria das organizações tem avançado de forma consistente na constituição da cidade como objeto de estudo, abordando temas e aspectos os mais diversos, de uma perspectiva interdisciplinar (urbanística, arquitetônica, histórica, antropológica, sociológica, dentre outras) ( Saraiva, 2019Saraiva, L. A. S. (2019). Os Estudos Organizacionais e as Cidades. In L. A. S. Saraiva, & A. G. Enoque (Orgs.), Cidades e estudos organizacionais: um debate necessário (pp. 21-73). Ituiutaba, MG: Barlavento. ; Silva, 2004Silva, M. A. M. (2004). A Cidade no Campo dos Estudos Organizacionais. Revista Organizações & Sociedade, 11 (Ed Esp), 171-181. doi:10.1590/1984-9110012 , 2019Silva, M. A. M. (2019). Para além de Organização-Cidade: OrganiCidade. In L. A. S. Saraiva, & A. G. Enoque (Orgs), Cidades e estudos organizacionais: um debate necessário (pp. 75-103). Ituiutaba, MG: Barlavento. ). Distinto, pelo fato de que alguns dos referidos autores se situam em campos teóricos que reivindicam estatuto próprio – ainda que conformados a partir do diálogo com os mais diversos saberes disciplinares.

O estudo está estruturado da seguinte forma: o item sobre Produção da cidade e neoliberalização na periferia trata dos processos de produção da cidade no contexto da neoliberalização periférica; o item Estratégias de produção da cidade de Salvador discute, a partir da análise do Plano Estratégico Salvador 360, as estratégias de produção da cidade de Salvador, abordando os aspectos relativos a economia, trabalho, mais-valia fundiária, acesso à terra e infraestrutura urbana e gentrificação, associando-os aos conceitos estruturantes do trabalho; e o último item apresenta algumas conclusões gerais da reflexão realizada.

Produção da cidade e neoliberalização na periferia

Falar de cidade no começo deste século significa refletir sobre os impasses e desafios colocados pelas complexas relações entre economia, sociedade e território, resultado das transformações da economia global nas últimas décadas ( Queiroz, 2018Queiroz, R. L. C. (2018). A metrópole em questão: desafios da transição urbana . Rio de Janeiro, RJ: Letra Capital. ). Significa falar de “desindustrialização”, da indústria 4.0 ou da quarta revolução industrial, cuja principal característica é a complexa relação entre tecnologias digitais e biológicas, da modificação do perfil do trabalho, do trabalhador, da flexibilização do trabalho e do aumento das desigualdades em suas várias escalas territoriais. Significa compreender as novas configurações do transbordamento das cidades para o espaço periurbano, além dos projetos de requalificação dos centros urbanos tradicionais; o redesenho dos guetos dos pobres e dos ricos; e o retrocesso nos processos de planejamento qualificados como participativos – isso depois de um cenário de muitas décadas de luta pela reforma urbana ( Carvalho, 2013Carvalho, I. M. M. (2013). Capital imobiliário e desenvolvimento urbano. Caderno CRH, 26 (69), 545-562. doi:10.1590/S0103-49792013000300009 )3 3 . Referir-se à cidade no singular é, como afirma Adrián l Gorelik (2005) , ao refletir sobre a produção de um certo imaginário sobre a “cidade latino-americana”, uma dificuldade de ordem cultural e mesmo ontológica. Gorelik defende a tese de que a categoria “cidade latino-americana” se “produziu” como construção cultural, como um elemento estruturante da imaginação social latino-americana. Essa reflexão coloca o desafio de pesar o caráter histórico e ideológico das categorias e, no caso do conceito de cidade, a necessidade de associá-las a teorias mais gerais da sociedade. Nesse caso específico, compreendemos a cidade como expressão e resultado de processos estruturais globais, como também de elementos que lhes conferem singularidade. Nosso olhar sobre a cidade, sobre qualquer cidade (sobre São Paulo, Porto Alegre, México, Bogotá, Salvador), tem como categoria estruturante o conceito de periferia, o que nos reporta a abordagens específicas da teoria da sociedade e, particularmente, do capitalismo, segundo autores como Brenner e Theodore (2005) . .

Como anteriormente referido, parcela considerável da reflexão sobre a cidade até os anos 1990 tem girado em torno de conceitos como pós-fordismo, desindustrialização, globalização – em geral, associados ao “empreendedorismo urbano”, ou seja, à ideia de que a cidade pode ser tratada e concebida como uma empresa, um ente privado em busca de um lugar no competitivo mercado de cidades ( Brenner & Theodore, 2005Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 ).

Brenner e Theodore chamam a atenção para o fato de que a teoria sobre a cidade e sobre o urbano, nas últimas décadas, tem associado cada vez mais a problemática urbana às noções de neoliberalismo e de neoliberalização. Qual o significado teórico de tal deslocamento? O debate em torno das múltiplas consequências da implementação de formas de regulação qualificadas como neoliberais já não estava suficientemente amadurecido no final do século XX?

Os referidos autores salientam que os conceitos de neoliberalismo e de neoliberalização agregaram novos elementos ao debate sobre a cidade nas últimas décadas. É preciso compreender que o neoliberalismo não é um modo de reprodução do capital que se completa ou se esgota nas últimas décadas do século passado e, nem mesmo, se constitui em um estágio final de tal processo. O princípio de que o mercado é a melhor forma de produção e reprodução da vida e da cidade tem apresentado uma extraordinária capacidade de reinvenção, e produzido resultados muito diferenciados nos distintos espaços e escalas geográficas.

É preciso chamar a atenção para o fato de que o neoliberalismo ou neoliberalização não implica, necessariamente, um recuo do Estado – trata-se, às vezes, de mobilizar o próprio Estado para que promova arranjos regulatórios que interessem ao mercado. Enfim, com todas as suas consequências, o neoliberalismo tem se reinventado permanentemente ( Brenner & Theodore, 2005Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 ).

Assim, para o bem e para o mal, a depender do ponto de vista, é importante destacar como conceitos como os de desindustrialização, informalização, periferização, gentrificação, empreendedorismo urbano, cidade global e democracia, em sua versão liberal clássica, ganham particular significado quando referidos ao liberalismo ou a neoliberalização. Para além do significado do “recuo” do Estado em favor do mercado, trata-se de compreender suas atuais formas de atuação, particularmente do poder público municipal, e o significado da sua “mobilização” nos processos de reconfiguração das cidades nas últimas décadas ( Brenner & Theodore, 2005Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 )4 4 . A propósito, ver o texto “Private is profit and the public is dead?” de Mark Davidson, sobre a complexa relação entre o público e o privado: “Some say we live in ‘post-political’ times . . ., that the demise of political choice has resulted in a technocratic dictatorship which tightly circumscribes social possibilities . . .. This technocratic dystopia is defined by the neoliberal hegemony, where private interests dominate politics and exclude all forms of collectivism . . .. The idea of the public—public interest, public space, public good — can, under this post-political lens, therefore seem anachronistic. Where publicness still survives, in health care, parks or intellectual property, it is simply waiting for its turn to be drown by the unstoppable tide of privatization . . .” (Davidson, 2018). .

A concretização de princípios mais gerais do que genericamente se qualifica como neoliberalismo em cada contexto histórico, em cada espaço, território, e nas distintas cidades, tem gerado, hodiernamente, um variado e complexo conjunto de possibilidades, sobretudo se levamos em conta a multiplicidade de determinações, heranças, paisagens e caminhos, no centro e na periferia do capitalismo, das sociedades produtoras de mercadorias.

Entende-se por neoliberalismo, aqui, a extensão de processos de mercantilização em todos os domínios da vida. A noção de neoliberalização, por sua vez, diz respeito a formas particulares, desiguais de regulação, que geram grandes diferenciações entre escalas e territórios, entre o centro e a periferia ou semiperiferia do sistema produtor de mercadorias, à própria cidade – trata-se, portanto, de novas formas de regulação, tendo como elemento estruturante o acirramento da competição e o mercado (Brenner, Peck, & Theodore, 2010).

Como já afirmado por Brenner e Theodore (2005)Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 , o neoliberalismo, que continua a evoluir e, permanentemente, a se reinventar, tem exacerbado os elementos de crise do capitalismo – em geral, qualificados como falhas do mercado. Quando referido à cidade, o neoliberalismo pode ser concebido como uma estratégia socioespacial seletiva, como modalidade de governança, como política e como discurso sobre a cidade. Mas, do que estamos falando, exatamente, quando nos reportamos ao neoliberalismo ou à neoliberalização, particularmente quando, como afirma Yascha Mounk (2018)Mounk, Y. (2018). O Povo contra a Democracia . São Paulo, SP: Companhia das Letras. , a concepção liberal de democracia está sendo colocada em xeque por forças políticas situadas no campo político qualificado, genericamente, como de “extrema direita”?

Um dos principais desafios deste trabalho é exatamente identificar como as transformações em curso em cidades como Salvador, na periferia do capitalismo, são expressões particulares de processos mais amplos e estruturais do neoliberalismo ou da neoliberalização, particularmente no que diz respeito às estratégias de produção da cidade. Alguns conceitos podem auxiliar na compreensão das estratégias de produção e reprodução no contexto da neoliberalização periférica, como espoliação urbana, mais-valia fundiária e gentrificação5 5 . Como afirmam Brenner et al., não se trata aqui de fazer uma vasta revisão conceitual da noção de neoliberalismo: “. . . review the diverse epistemological, methodological, substantive, and political positions that have been articulated through these discussions of post-1970s regulatory restructuring (but see Clarke, 2008; Peck, 2004; Saad-Filho & Johnston, 2005; as well as Brenner et al., 2010) . Instead we move directly into an overview of our own theoretical orientation, which will then be further elaborated in relation to the problem of periodization and with reference to the challenges of deciphering contemporary developments (for previous statements, see Brenner & Theodore, 2002; Peck & Theodore, 2007; Peck & Tickell, 2002)” (2010, p. 329). .

Originalmente, o conceito de espoliação urbana foi fruto de tentativas de compreensão da constituição da cidade no cenário de industrialização brasileira, processos que, segundo Lúcio Kowarick, conjugavam acumulação primitiva, precariedade do urbano e exploração extensiva da mão de obra com a não inclusão, na remuneração do trabalho, nem assunção por parte do estado, dos custos da reprodução da força de trabalho (1979).

Buscava-se com o conceito de espoliação compreender como um expropriado do campo se converte em um espoliado urbano, e a relação entre qualidade do urbano e sobre-exploração do trabalho ( Kowarick, 1979Kowarick, L. (1979). A espoliação urbana . Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra. ). Ainda é possível falar em espoliação urbana em tempos de flexibilização produtiva e desindustrialização? Certamente que sim, pelo fato de que os processos que conformam e estruturam a cidade nos tempos de hoje não apenas se mantêm inalterados, como ganham uma nova radicalidade com propostas de desenvolvimento como a do Plano Estratégico Salvador 360.

O conceito de espoliação urbana, reatualizado em trabalho recente de Kowarick, é definido como um conjunto de extorsões, materializadas no não acesso ou acesso precário a serviços e infraestrutura urbana, à terra e à moradia, considerados como “socialmente necessários para a reprodução dos trabalhadores, aguçando ainda mais a dilapidação decorrente da exploração do trabalho ou, o que é pior, da falta dele” (2000, p. 22).

Importa registrar que, ainda que os graus de pobreza possam se modificar, as condições de produção e reprodução urbana têm papel decisivo nas condições de vida na cidade: “. . . os padrões de reprodução urbana poderão piorar ou melhorar em razão do que os moradores consigam obter do poder público em termos de serviços e equipamentos coletivos, subsídios à habitação ou facilidades de acesso à terra provida de infraestrutura” ( Kowarick, 2000Kowarick, L. (2000). Escritos Urbanos . São Paulo, SP: Editora 34. , p. 23).

Como Irlys Alencar Firmo Barreira (2010)Barreira, I., A. F. (2010). Cidade, atores e processos sociais: o legado sociológico de Lúcio Kowarick. Revista Brasileira Ciências Sociais, 25 (72), 149-159. doi:10.1590/S0102-69092010000100011 destaca, o conceito de espoliação urbana reporta-nos às situações de carência e de desigualdade social, ao conceito de "mais-valia"; nesse caso, referido não apenas à apropriação do excedente do trabalho, mas à condição de indivíduo destituído de direitos de acesso a bens coletivos. O locus da expropriação, da produção e apropriação de valor não é apenas a fábrica, o trabalho, mas a cidade, os processos de produção da cidade – o que associa a dinâmica do trabalho às possibilidades de acesso a moradia, terra, mobilidade, serviços de saúde, educação e segurança (Barreira).

Nesse sentido, o conceito de espoliação urbana, ainda que originalmente referido a um contexto histórico diferenciado, parece-nos, infelizmente, atual e adequado para compreender como a cidade se produz e reproduz no cenário atual, sobretudo em realidades que têm como marca a precarização do trabalho, a concentração da terra urbana, e que não alcançaram patamares de universalização de acesso aos serviços de consumo coletivos e infraestrutura urbana satisfatórios – o que, em certa medida, para uma parcela expressiva da população, se tornou possível nas cidades qualificadas como globais.

O fato é que continuamos a assistir um movimento simultâneo de expansão das metrópoles para as bordas, de retorno do grande capital e valorização dos centros antigos e deteriorados (ainda que cheios de vitalidade), e a formação de enclaves urbanos (os condomínios de luxo fechados, a autossegregação dos mais ricos e o confinamento dos pobres).

Apesar das recentes tentativas de universalização do acesso a serviços de consumo coletivo e a infraestrutura, através do mercado (via privatização nos anos 1990), e da ampliação da participação do Estado (de forma direta ou através das Parcerias Público-Privadas – PPP), investimentos em infraestrutura e serviços urbanos ainda estão aquém da histórica demanda nas grandes cidades, e, em Salvador, esse quadro é ainda mais complexo, particularmente no que diz respeito à estratificação socioespacial ( Carvalho & Pereira, 2014Carvalho, I. M. M., & Pereira, G. C. (Orgs.). (2014). Salvador: transformações na ordem urbana: Metrópoles: território, coesão social e governança democrática . Rio de Janeiro, RJ: Letra Capital, Observatório das Metrópolis. ).

Analisando o trabalho de Kowarick, Gabriel de Santis Feltran (2017)Feltran, G. S. (2017). A atualidade de A espoliação urbana. Blog Novos Estudos . Recuperado de https://bit.ly/3xwObXf
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chama a atenção para a atualidade do conceito de espoliação urbana. Em primeiro lugar, afirma Feltran, é preciso aprofundar o debate sobre o “princípio” de que existe um crescimento “desordenado”, “caótico” nas cidades periféricas. O que comprova esse fato é a reprodução, na periferia do sistema (a exemplo de tantas outras cidades latino-americanas), de padrões similares de urbanização (Feltran). A aparente desordem ou assimetria, a existência de uma cidade “formal” e outra “informal”, é expressão de uma ordem muito clara, que se expressa na riqueza de alguns poucos e na pobreza de muitos outros. Em segundo lugar, o trabalho de Kowarick produz uma crítica contundente à razão dualista, que estrutura parcela considerável da literatura sobre a cidade.

De forma enfática, Feltran reafirma a constatação de Kowarick de que “não há uma cidade formal, que se expande teleologicamente civilizando a cidade informal, atrasada, conforme a modernidade urbana se consolida, com o tempo” (2017, p. 1). O conceito de espoliação urbana demonstra que existe uma relação de complementaridade entre essas “duas” cidades. É preciso fugir da concepção binária e dualista para compreender que existe uma “coprodução” entre cidade formal e informal, e que a relação entre economia, política e produção do espaço urbano é mais complexa do que pode supor a razão dualista.

Nesse exato sentido, os conceitos de espoliação urbana, renda da terra, mais-valia fundiária urbana e gentrificação se solicitam e parecem-nos apropriados para compreender os processos de produção e reprodução de cidades como Salvador. Inaiá Carvalho, recorrendo a Carlos Lessa (1980)Lessa, C. (1980). Capitalismo asociado: el gran pacto. Cuadernos de Marcha, 2 (8), 35-39. , chama a atenção para o fato de que, a partir dos anos 1950, marco no nosso processo de industrialização e de urbanização, constituiu-se no país uma sagrada aliança entre Estado e capital ( Carvalho, 2013Carvalho, I. M. M. (2013). Capital imobiliário e desenvolvimento urbano. Caderno CRH, 26 (69), 545-562. doi:10.1590/S0103-49792013000300009 ). Como afirma Lessa (1980)Lessa, C. (1980). Capitalismo asociado: el gran pacto. Cuadernos de Marcha, 2 (8), 35-39. , é claro o significado histórico de tal aliança no processo de internacionalização da economia brasileira e da lógica de acumulação nas cidades na segunda metade do século passado.

Carvalho chama a atenção para o fato de que a relevância do capital imobiliário nos processos de constituição da cidade nunca foi exatamente uma novidade, mas que o conflito entre o valor de uso e o valor de troca da terra urbana na cidade se atualiza permanentemente no contexto da neoliberalização. Entretanto, no atual cenário de globalização ou mesmo do que pode ser qualificado como pós-neoliberalização, a cidade muda, seguindo a lógica de transformação da acumulação capitalista. Tais mudanças produzem impactos diferenciados nas distintas esferas de produção e circulação de mercadorias, com diversos desdobramentos nas escalas territoriais nos quais tais processos se materializam (Carvalho, 2013; Carvalho & Pereira, 2014Carvalho, I. M. M., & Pereira, G. C. (Orgs.). (2014). Salvador: transformações na ordem urbana: Metrópoles: território, coesão social e governança democrática . Rio de Janeiro, RJ: Letra Capital, Observatório das Metrópolis. ).

É na cidade e, particularmente, em cidades como Salvador – qualificada como terciária – que a renda da terra urbana se constitui como um dos principais ativos no processo de acumulação. A renda da terra ou fundiária, aqui, é resultado do fato histórico da propriedade privada, da existência de direitos de uso exclusivos ( Harvey, 2013Harvey, D. (2013). Os limites do capital . São Paulo, SP: Boitempo. ). Assim, a interdição de acesso à terra (urbana ou rural), é condição necessária à produção da renda fundiária absoluta (quando o uso é condicionado ao pagamento), diferencial (fruto das suas características específicas, como localização) e à renda de monopólio (que resulta da exclusividade de determinadas características específicas). Por mais-valia fundiária urbana, entende-se, portanto, a apropriação e distribuição de benefícios decorrentes do processo de urbanização, ao tratar a terra urbana e a produção de serviços e infraestrutura como elementos de acumulação ( Botelho, 2016Botelho, M. L. (2016). Renda da terra e capitalização em David Harvey. Notas sobre o caráter especulativo da propriedade imobiliária. Espaço e Economia. Revista Brasileira de Geografia Econômica , 4 (8), 3-21. doi:10.4000/espacoeconomia.2273 ; Harvey, 2013Harvey, D. (2013). Os limites do capital . São Paulo, SP: Boitempo. ).

Os ganhos relativos decorrem de vários aspectos, dentre os quais a retenção da terra ou do imóvel, o zoneamento e os investimentos públicos ( Low-Beer, 1983Low-Beer, J. D. (1983). Renda da terra: algumas noções básicas para a compreensão do caso urbano. Espaço e Debates, 8 , 31-41. ). O que torna possível a associação entre renda fundiária e teoria do valor é o fato de que a mais-valia fundiária resulta da incorporação de valor, de trabalho humano, à terra.

Os conceitos de “centro” e de “periferia”, por exemplo, quando referidos à cidade, não são nada mais nada menos do que resultado da incorporação diferenciada, no território, de investimentos públicos e privados ( Botelho, 2016Botelho, M. L. (2016). Renda da terra e capitalização em David Harvey. Notas sobre o caráter especulativo da propriedade imobiliária. Espaço e Economia. Revista Brasileira de Geografia Econômica , 4 (8), 3-21. doi:10.4000/espacoeconomia.2273 ). Dessa forma, o valor da terra é sempre relativo à sua relação com o entorno, aos investimentos em infraestrutura e serviços existentes, o que explicita o amálgama entre propriedade, renda e capital. E, como afirma Botelho, recorrendo a Harvey e à teoria do valor e à renda da terra em Marx: a melhoria incorporada à terra é trabalho humano. Tal formulação consubstancia a associação entre a teoria da renda e a teoria do valor, ainda que, como afirma Botelho, aparentemente seja sua negação.

Essa lógica de produção da cidade é reinventada no atual cenário de implementação, em uma escala internacionalizada, de megaprojetos de investimentos e requalificação urbana, que passam a imprimir uma “nova”, “velha” lógica de valorização do urbano e da terra urbana. Como se estivéssemos a olhar, através dos olhos de Carlos Vainer (2002)Vainer, C. (2002). Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In O. Arantes, C. Vainer, & E. Maricato (Orgs.), A Cidade do Pensamento Único – Desmanchando Consensos (pp. 75-103). Petrópolis, RJ: Vozes. , para a década de 1990 no Brasil (o que ele faz de forma magistral para a experiência de implementação do planejamento estratégico do Rio de Janeiro), estamos outra vez diante da cidade empresa: da cidade que “saiu da forma passiva de objeto e assumiu a forma ativa de sujeito”, cidade que ganha uma ganha uma “nova”, “velha” identidade (p. 83).

Assim, nesse cenário, falar de gentrificação significa falar da mobilidade de pessoas, classes sociais e de capital em espaços vazios e em espaços construídos, consolidados e qualificados como “deteriorados”. A gentrificação pode ser concebida então como uma nova fronteira de expansão urbana – fenômeno que, a depender do conceito, tem vários marcos. Em certa medida, a volta ao “centro”, concebida como uma forma particular de urbanismo ou um pós-modernismo, atualiza o mito do retorno dos “ homesteaders ”, dos aventureiros, dos novos colonos, do “ cowboy chic ”, para onde o “homem branco jamais chegou” ( Smith, 2005Smith, N. (2005). The new urban frontier: gentrification and the revanchist city . Nova Iorque: Routledge. , p. 11, tradução nossa).

A gentrificação é um movimento de volta à “velha cidade”, mas de volta à cidade através do capital, e não exatamente das pessoas. O conceito de gentrificação atualiza, ainda, o mito da reinvenção da qualidade perdida, “a qualidade geográfica e histórica de coisas tão perdidas” ( Smith, 2005Smith, N. (2005). The new urban frontier: gentrification and the revanchist city . Nova Iorque: Routledge. , pp. 11-39, tradução nossa). Nesse cenário, deve ser destacado o papel do Estado, do poder público municipal, na criação de condições necessárias para a inserção da cidade nessa lógica do capital: o empreendimento de novos negócios, particularmente através da realização de novos investimentos – em infraestrutura, na redefinição de parâmetros e legislação urbanística e de construção de um planejamento estratégico.

A associação de conceitos como espoliação urbana, mais-valia fundiária urbana e gentrificação sugere, assim, o quão difícil se torna distinguir os sujeitos sociais produtores da cidade, uma vez que, ao longo do tempo, se esvai a distinção entre capital nacional e internacional, entre os distintos segmentos do capital fundiário, agrário, industrial e financeiro, particularmente quando o capital financeiro se faz hegemônico.

O Plano Estratégico Salvador 360, enquanto estratégia de produção e de gestão da cidade, deve ser discutido no cenário de recuo em relação aos modelos democráticos de gestão, e de aumento da pobreza urbana. Nesse exato sentido, devemos nos reportar ao trabalho de Mounk (2018)Mounk, Y. (2018). O Povo contra a Democracia . São Paulo, SP: Companhia das Letras. , que trata de desafios colocados pela construção democrática nos dias de hoje, ou seja, de neoliberalismo, em sua versão pós-globalização, que aprofunda a espoliação urbana e renuncia a princípios e práticas consagrados pela velha e tradicional democracia burguesa.

Até pouco tempo, “a democracia liberal reinava absoluta” e parecia-nos que o “futuro não seria muito diferente do passado” (sendo mais precisos, poderíamos dizer que durante muito tempo a democracia liberal reinava de maneira “quase absoluta”). O “futuro chegou”, e tudo parece muito diferente ( Mounk, 2018Mounk, Y. (2018). O Povo contra a Democracia . São Paulo, SP: Companhia das Letras. , pp. 15-16). A chamada “democracia iliberal” e o “populismo autoritário”, com fortes raízes no descontentamento de parcela significativa da população, ameaçam as conquistas recentes do processo democrático brasileiro (corporificados no Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001) e colocam em risco princípios históricos da democracia liberal – capazes, inclusive, de absorver os mais recentes processos de ampliação da participação social na gestão da res publica 6 6 . Os conceitos de “democracia iliberal” e de “populismo autoritário” aqui referidos nos remetem à formulação de Yascha Mounk (2018) , em seu trabalho “O Povo contra a Democracia”. Autor de viés liberal, Mounk alerta para o risco do desmonte da democracia liberal com a emergência de lideranças como Donald Trump nos Estados Unidos, Nigel Farage na Grã-Bretanha, Frauke Petry na Alemanha, Marine Le Pen na França e, complementando, Jair Bolsonaro no Brasil. Esse desmonte consiste, segundo o autor, na desestruturação do estado de direito, no desrespeito aos direitos individuais e na eleição de “aspirantes a déspotas” – exatamente isso, foram os procedimentos democráticos que levaram ao poder lideranças que, na sua ação política, negam a estrutura política que conforma a democracia liberal. Nesse cenário, o populismo autoritário, segundo Mounk, seria resultado de uma relação não mediatizada entre liderança e liderados. Essa formulação tem provocado acalorados debates em torno dos conceitos de democracia e de populismo. Sem pretender avançar nessa discussão, trata-se aqui de destacar a necessidade de abordar com o necessário cuidado os mencionados conceitos. Como afirma Enrique Dussel, em “Cinco tesis sobre el ‘populismo’” (2012), o uso do conceito de “populismo”, nos tempos de hoje, para qualificar governos no campo da “esquerda”, não se confunde com o “populismo histórico do século XX”. Concordando com Dussel, consideramos que essa formulação vale para a qualificação de governos de “direita” ou “extrema direita”, como populistas, como faz Mounk. Certamente que uma abordagem consistente desse tema requer um passeio teórico epistemológico em torno de categorias políticas como povo, popular, populista, classe, dentre outros (Dussel, p. 5). Recorremos aqui ao trabalho de Mounk tão somente com o objetivo de ilustrar a complexidade do debate quando nos referimos às atuais condições políticas, nas quais os planos em discussão estão sendo implementados. .

Mounk (2018)Mounk, Y. (2018). O Povo contra a Democracia . São Paulo, SP: Companhia das Letras. , na condição de defensor dos princípios da democracia liberal, alerta para os riscos da dissociação entre democracia e liberalismo, e termina por chamar a atenção para a radicalidade dos processos em curso, ou seja: estamos diante, não apenas, de processos de desconstrução de modelos qualificados como progressistas (ou neodesenvolvimentistas), mas, também, de estruturas que conformaram a velha democracia liberal.

Formulemos, então, a questão que estrutura este trabalho: quais as consequências econômicas e sociais da implementação, atualmente, do Plano Estratégico Salvador 360, levando em conta os atuais contextos de ampliação da pobreza urbana, intensificação dos processos de gentrificação, apropriação privada da mais-valia urbana, concentração da oferta de serviços e retrocesso democrático? Discutimos a tese de que, no atual contexto do neoliberalizante, de pós-neoliberalização, a exemplo do que aconteceu em cidades como Barcelona e em várias capitais brasileiras e latino americanas, em décadas passadas, o Plano Estratégico Salvador 360 estimula o investimento em setores do circuito superior da economia e, de forma seletiva, em territórios e nichos da chamada economia popular, aprofundando processos de expulsão da população pobre das áreas centrais, ampliando a apropriação da mais-valia urbana e a concentração da oferta de serviços em um contexto de retrocesso político, tornando mais aguda a histórica espoliação urbana e gentrificação na periferia do sistema capitalista. Estamos, sim, diante do “velho”, “novo” modelo neoliberal dos anos 1980 e 1990, de planejamento estratégico que produziu a “cidade-coisa, a cidade-objeto, a cidade-mercadoria”, e mercadoria de luxo ( Vainer, 2002Vainer, C. (2002). Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In O. Arantes, C. Vainer, & E. Maricato (Orgs.), A Cidade do Pensamento Único – Desmanchando Consensos (pp. 75-103). Petrópolis, RJ: Vozes. ). Porém, é o velho em novas condições: de ampliação da pobreza e de crise da democracia representativa.

Estratégias de produção da cidade de Salvador

Analisar a estratégia de produção e de reprodução de Salvador como cidade periférica significa reportar-se a questões estruturais das nossas grandes cidades. E, como já dizia Francisco de Oliveira em 1977Oliveira, F. (1977). A economia da dependência imperfeita . Rio de Janeiro, RJ: Graal. , não há “qualquer dimensão da vida nacional que não se reflita, imediatamente, num problema urbano” (p. 68). Falar da cidade significa falar de “um ‘nunca acabar’ de problemas, o que deixa o leitor quase sem fôlego, levando-nos ao estilhaçamento em mil partes do espelho urbano, espelho que reflete em cada um dos seus mil pedaços a mesma imagem” (p. 68). Porém, à maneira dos rios subterrâneos, algo confere unidade a essa aparência estilhaçada da cidade: a cidade é o locus do controle, da administração e da produção.

Nesse sentido, a urbanização “é a extensão a todos os recantos da vida nacional das relações de produção capitalistas. . .” ( Oliveira, 1977Oliveira, F. (1977). A economia da dependência imperfeita . Rio de Janeiro, RJ: Graal. , p. 68). Mas não sempre foi assim? Sim. Porém, o grande desafio é compreender como esses elementos estruturais ganham corpo nos distintos contextos históricos e territórios, particularmente no after neoliberalization . Mas, afinal, como Salvador se produz e reproduz na periferia do sistema capitalista nesse começo de século?

Economia e trabalho

O Programa Salvador 360, formulado pelo grupo político à frente da gestão municipal (Partido Democratas) em 2017, se apresenta como o maior programa de desenvolvimento da história de Salvador, e promete estimular o crescimento da cidade e dinamizar sua economia: “Uma nova cidade merece uma nova perspectiva de desenvolvimento. Por isso, a Prefeitura está lançando o Salvador 360. Um grande programa, com 8 eixos e 360 medidas, para acelerar o crescimento econômico e social de Salvador” (Salvador, 2017).

Os referidos eixos consistem em um conjunto de propostas nos seguintes campos (a) negócios; (b) investimentos; (c) inclusão econômica; (d) cidade criativa; (e) cidade inteligente; (f) cidade sustentável; (g) simplifica e (h) Centro Histórico. Analisaremos o conteúdo desses eixos, procurando verificar se as ações propostas reatualizam o processo de produção segregador da cidade, com a expulsão da população pobre das áreas centrais, e ampliam a apropriação da mais-valia urbana, além da concentração da oferta de serviços – isso em um contexto de after neoliberalization.

Em verdade, essa “nova perspectiva de desenvolvimento” apresentada pelo Programa Salvador 360, reproduz, no espírito, na letra e na ação, modelos de desenvolvimento neoliberais implementados nas cidades brasileiras na década de 1990. Nesse sentido, as análises realizadas por Brenner e Theodore (2005)Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 , Vainer (2002)Vainer, C. (2002). Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In O. Arantes, C. Vainer, & E. Maricato (Orgs.), A Cidade do Pensamento Único – Desmanchando Consensos (pp. 75-103). Petrópolis, RJ: Vozes. e Carvalho (2013)Carvalho, I. M. M. (2013). Capital imobiliário e desenvolvimento urbano. Caderno CRH, 26 (69), 545-562. doi:10.1590/S0103-49792013000300009 , sobre a estratégia neoliberal de produção da cidade e de sua gestão, sobre a cidade como negócio e como um empreendimento, são mais do que atuais. O poder público passa a se constituir em um “ator coadjuvante, referendando decisões privadas, priorizando grandes obras e ajustando o arcabouço jurídico urbanístico às demandas do capital, a pretexto de que isso é indispensável para atrair investimentos e ampliar o volume de emprego” (Carvalho, p. 558).

No plano econômico, as atividades propostas pelo Programa Salvador 360 consistem em um pacote de incentivos fiscais, simplificação e modernização da burocracia, com o objetivo de agilizar os negócios. Está associada a essa proposta a noção de desenvolvimento, com geração de trabalho e sustentabilidade. A título de exemplo, destacam-se as seguintes ações (a) “Criação de pacote de incentivos fiscais para a atração de investimentos; (b) Qualificação de mão de obra; (c) Estruturação de projetos que promovam desenvolvimento econômico” (Salvador, 2017).

As ações propostas são as seguintes: estímulo à geração de empreendimentos (Projeto Minha Primeira Empresa e o Centro de Empreendedorismo Municipal); concessão de infraestrutura (ceder o uso de terrenos e/ou imóveis para instalação e/ou ampliação de empresas de segmentos estratégicos) e redução de tributação (reduzir em 50% a outorga onerosa de empreendimentos); revogação da lei de contrapartida financeira referente à diferença do gabarito da Lei de Ordenamento do Uso e da Ocupação do Solo (LOUOS); parcelamento sem juros e mora de débitos de Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU); parcelamento da cobrança do Imposto sobre a Transmissão de Intervivos (ITIV) de unidades imobiliárias; não restrição à emissão do alvará de construção, em caso de débitos no Cadastro Informativo Municipal (CADIN); isenção de 50% de IPTU para instalação de empresas de teleatendimento; redução de alíquota de Imposto Sobre Serviços (ISS) para 2% para empresas de telecobrança; isenção de 50% de IPTU para instalação de empresas de telecobrança ( Salvador, 2017Salvador (2017). Programa Salvador 360 . Recuperado de https://bit.ly/3vvEV3x
https://bit.ly/3vvEV3x...
).

Além disso, o programa propõe a criação de Polo de Capacitação de mão de obra para teleatendimento e telecobrança; o estímulo e a otimização de equipamentos turísticos e hotéis, com a recuperação da indústria hoteleira; redução do ISS; a produção do Branding Salvador Digital (marca da cidade); redução para 2% do ISS de obras de empreendimentos de varejo, como shoppings, redes de varejo e supermercados; redução de IPTU em 50%, para novos empreendimentos no setor têxtil; implantação do novo Polo de Micro Empreendedores Individuais para prestação de serviços de confecção; e redução de ISS para 2% para empreendimentos de base tecnológica e empregos formais e informais (capacitação e intermediação de mão de obra) (Salvador, 2017).

Em linhas gerais, as ações relativas ao desenvolvimento econômico consistem no estímulo à implantação de empresas, no acompanhamento da geração de empregos, intermediação e capacitação da mão de obra, em parceria com entidades patronais e, sobretudo, na concessão de infraestrutura (terrenos, imóveis) e redução fiscal para empresas de segmentos considerados como estratégicos. Exemplos disso são a flexibilização da outorga onerosa de empreendimentos, revogação de lei de contrapartida, parcelamento de IPTU e ITIV, eliminação de restrição de emissão do alvará de construção em caso de débitos no CADIN, isenção do IPTU e redução de alíquota de ISS.

A inclusão econômica tem como o principal objetivo “fortalecer a economia na base da pirâmide”, desdobrando-se em duas vertentes: o empreendedorismo e a regularização fundiária. Reportando-se aos dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) de 2015, o Programa Salvador 360 constata que 42% da população ativa está ocupada em atividades informais, sendo necessário investir em capacitação e facilitação de acesso ao crédito, sendo a mulher o alvo principal do programa (baseado em dados do Banco do Nordeste, o programa afirma que 67% dos clientes nessa categoria são mulheres e, comparando com outros estados nordestinos, o microcrédito ainda é pouco acessado na Bahia).

O estímulo ao empreendedorismo tem como instrumento o Projeto Agente do Empreendedorismo, sendo seu principal foco a mulher, a mulher negra e moradora da periferia urbana, e o jovem (qualificado como líder empreendedor). Trata-se de alcançar os pequenos empreendedores (com destaque para a utilização de aplicativo do Serviço Municipal de Intermediação de Mão-de-obra – SIMM Serviços) e, através de uma articulação com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae), responsável pela qualificação, facilitar o acesso ao Crédito Amigo do Banco do Nordeste. A outra vertente da inclusão econômica é o programa de regularização fundiária, que afirma que o reconhecimento do direito de uso da posse da terra é capaz de “aumentar a prosperidade de uma região em até 7 vezes”. Nesse contexto, deve-se destacar a regulamentação das Zonas de Interesse Social (ZEIS) como um elemento importante na infraestruturação, legalização do acesso à terra ( Salvador, 2017Salvador (2017). Programa Salvador 360 . Recuperado de https://bit.ly/3vvEV3x
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).

Associa-se ainda às referidas ações o estímulo à constituição de uma cidade e economia criativa e inteligente, com a regulamentação de empresas de áudio visual, design/arquitetura; mídias; serviços criativos; expressões e sítios culturais; artes visuais, dramáticas, publicidade e a criação de hub de tecnologia, big data e aplicativos. Em relação à cidade sustentável, destacam-se o IPTU verde no incentivo a empreendimentos imobiliários mistos e institucionais, o estímulo à coleta seletiva, arborização da cidade e referências genéricas à necessidade de construção de uma cidade resiliente, no atual contexto das mudanças climáticas.

O que confere unidade aos referidos programas é a estratégia socioespacial seletiva, que prioriza setores e segmentos públicos e privados, como também a ênfase no empreendedorismo, compreendido aqui como a capacidade individual, corporativa e da própria cidade de competir no mercado de cidades ( Brenner & Theodore, 2005Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 ; Vainer, 2002)Vainer, C. (2002). Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In O. Arantes, C. Vainer, & E. Maricato (Orgs.), A Cidade do Pensamento Único – Desmanchando Consensos (pp. 75-103). Petrópolis, RJ: Vozes. .

No conjunto das propostas do Programa Salvador 360, destacam-se ainda as ações dirigidas ao Centro Histórico de Salvador, quais sejam: transferência do centro administrativo municipal para o Centro, a abertura de museus, a regularização do trabalho informal e a elaboração de plano de mobilidade e de habitação. Um dos aspectos que chama a atenção é a proposta de aproximação do emprego e moradia – articulação que foi desconsiderada quando da requalificação do Centro Histórico de Salvador na década de 1990, quando parcela considerável dos moradores dessa área, composta sobretudo por uma população situada nas menores faixas de renda, foi expulsa para dar lugar a um shopping center a céu aberto. Em relação aos investimentos considerados de porte, destaca-se a implementação do Bus Rapid Transit (BRT) ( Salvador, 2017Salvador (2017). Programa Salvador 360 . Recuperado de https://bit.ly/3vvEV3x
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).

A análise das referidas propostas de produção da cidade do Salvador, contempladas no Plano Plurianual (PPA) de 2018 a 2021, requer uma reflexão sobre o modelo neoliberal em sua versão after neoliberalization , na escala da cidade (Salvador, 2018a). Esse debate passa pela desindustrialização e as modificações no mundo do trabalho, como destacado por Harvey: “em grande parte do mundo capitalista as fábricas ou desapareceram ou diminuíram tão drasticamente que se dizimou a classe operária industrial clássica”, tendo como consequência o fato de que o “‘precariado’ substitui o ‘proletariado’ tradicional” (2014, p. 17).

Harvey chama a atenção para o fato de que as alterações nas relações de produção e reprodução necessariamente impactam e transformam a cidade. Nas cidades situadas na periferia do sistema capitalista, das quais Salvador é um exemplo, a implementação de projetos semelhantes tende a exacerbar a exclusão e ampliar a desigualdade. Vejamos alguns dados que indicam as especificidades da cidade sobre a qual incide o Plano Estratégico Salvador 360.

Como ressaltado por parte significativa da literatura, Salvador sempre foi conhecida como uma cidade terciária, e essa condição, tradicionalmente, encontra explicação nos processos de constituição da economia nacional, nas formas distintas de inserção regional no processo de industrialização brasileira, ao longo do século XX. A título de exemplo, dados relativos ao número de ocupados segundo setor de atividade das Regiões Metropolitanas ilustram o peso do comércio e dos serviços em algumas capitais e suas regiões metropolitanas. Enquanto, em 2017, Salvador e sua região metropolitana apresentaram um percentual de pessoal ocupado por setor de atividade de 7,2% na indústria de transformação, em São Paulo esse dado era de 14,2%, e em Porto Alegre, de 17,0% ( Carvalho, 2013Carvalho, I. M. M. (2013). Capital imobiliário e desenvolvimento urbano. Caderno CRH, 26 (69), 545-562. doi:10.1590/S0103-49792013000300009 , Carvalho & Pereira, 2008Carvalho, I. M. M., Pereira, G. C. (2008). As “cidades” de Salvador. In I. M. M. Carvalho, & G. C. Pereira (Orgs.), Como anda Salvador e sua região metropolitana (pp. 81-107). Salvador, BA: Edufba. , 2014Carvalho, I. M. M., & Pereira, G. C. (Orgs.). (2014). Salvador: transformações na ordem urbana: Metrópoles: território, coesão social e governança democrática . Rio de Janeiro, RJ: Letra Capital, Observatório das Metrópolis. ; Dieese, 2017; Queiroz, 2018)Queiroz, R. L. C. (2018). A metrópole em questão: desafios da transição urbana . Rio de Janeiro, RJ: Letra Capital.7 7 . A comparação entre as referidas capitais e suas regiões metropolitanas se justifica pela sua relevância no cenário nacional e pela disponibilidade de dados agregados no ano citado. .

Em um cenário de desindustrialização com impacto generalizado, constata-se o aprofundamento, a reafirmação da histórica condição terciária de Salvador. É nesse contexto que o Plano Estratégico Salvador 360 reafirma o modelo de estímulo ao capital imobiliário, às indústrias criativas, ao turismo, à política de megaeventos e atividades vinculadas ao circuito do entretenimento (à espetacularização da cidade), com grande repercussão no acesso ao trabalho, infraestrutura, serviços e à terra urbana.

É preciso lembrar que esses movimentos ocorrem em um contexto no qual Salvador e a Região Metropolitana de Salvador (RMS), a exemplo do que aconteceu em outras capitais nas últimas décadas, registraram um significativo movimento de internacionalização de capitais locais, com a aquisição, incorporação e fusões, e consequente concentração de capital8 8 . É o caso da incorporação de ativos da Copene, OPP, Trikem, Nitrocarbono, Prospet e Polialden pela Braskem, maior empresa petroquímica da América Latina, e da privatização da Usiba, incorporada ao Grupo Gerdau, um dos maiores grupos siderúrgicos da América Latina, além da transferência de centros de decisão de empresas da Bahia para o Centro-Sul ( Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2012) . . Adicionalmente, constata-se um movimento de concentração e internacionalização em relação à prestação de serviços como os de telefonia, distribuição de energia e financeiro, com privatização da Telebahia e Coelba e a incorporação do Banco do Estado da Bahia (Baneb) pelo Banco Brasileiro de Desconto (Bradesco) ( Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2012Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. (2012). Metrópole baiana: dinâmica econômica e socioespacial recente. Salvador, BA: Autor. ). Há uma mudança no padrão de gestão dos referidos serviços, considerados como globais e intensivos em conhecimento – o que significa a radicalização do processo através do qual o setor de serviços passa a adotar um padrão considerado como global.

Essa internacionalização de capitais em Salvador e sua região se processa em uma estrutura econômica considerada precária e pouco dinâmica, do ponto de vista da geração de trabalho e renda. Historicamente, Salvador apresenta taxas de desemprego consideradas como das mais altas no país. A título de comparação, em 2017, enquanto Salvador apresentava uma taxa de desemprego total (aberto e oculto) de 24,1%, a de São Paulo era de 18,0%, e a de Porto Alegre era de 11,2% (Dieese, 2017). Proporcionalmente, essa taxa de desemprego é maior entre as mulheres negras, moradoras da periferia urbana – em tese, as que são objeto da política do Projeto Agente do Empreendedorismo da prefeitura municipal de Salvador.

Ademais, a análise de dados do rendimento médio real, no referido ano, também mostra a situação desfavorável de Salvador e sua região, quando comparada a outras capitais: Salvador apresentava, em 2017, rendimento médio real da sua população ocupada e assalariada no trabalho principal de 1.448 reais, enquanto em São Paulo era de 2.033, e em Porto Alegre, de 1.900 (Dieese, 2017). Em um cenário como o descrito, qual o impacto do Programa Salvador 360 em uma cidade que, efetivamente, não se industrializou, que passa por um processo de concentração e internacionalização de investimentos e que tem um contingente significativo da sua população em setores pouco produtivos da economia? O impacto é muito pequeno.

Salvador, tal como em muitas outras capitais, se depara com um processo de concentração de investimentos (na esfera pública e privada) em segmentos muito específicos da econômica e do território, e com a intensificação da precarização do trabalho, em uma estrutura econômica desigual e marcadamente informal, o que reforça e amplia as situações de desigualdades. O caráter concentrado e seletivo da política de incentivo proposta pelo Programa Salvador 360 não equaciona esses problemas estruturais e torna esse quadro mais complexo e grave.

A estratégia de desenvolvimento proposta consiste em uma associação seletiva de isenções para investimentos privados, com alto custo para o erário público, que não garante o retorno em termos de geração de postos de trabalho (apesar das reiteradas referências à necessidade de geração de postos de trabalho), e que termina por aprofundar a concentração de renda. Como afirma Vainer, reportando-se a análise de Francisco de Oliveira nos anos de 1970 e discutindo experiências de implementação de planejamento estratégico nas décadas de 1980 e 1990: "o planejamento é uma forma transformada da luta de classes", e o planejamento estratégico é o planejamento seletivo da e para a burguesia (2002, p.117).

É preciso ainda lembrar que, como anteriormente ressaltado por Brenner e Theodore (2005)Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 , a neoliberalização não prescinde do Estado, nesse caso particular do poder público municipal. O planejamento estratégico é tão somente mais um exemplo de como o Estado pode ser mobilizado na implementação de arranjos regulatórios que interessem ao mercado, a exemplo da LOUOS, IPTU e ISS, dentre outros, como mecanismos de estímulo econômico. Nesse caso, sem a garantia de mecanismos efetivos de retorno para o conjunto dos moradores da cidade, esse é um risco já conhecido nas nossas grandes cidades.

Em Salvador, os segmentos sociais beneficiados pelo Plano Estratégico Salvador 360 são os de sempre: o setor imobiliário, do turismo e a chamada indústria criativa. As ações no campo de capacitação de mão de obra propostas, sendo necessárias e louváveis, chegam de forma restrita ao público-alvo, e têm se deparado com as limitações decorrentes do precário acesso, pela população pobre, ao sistema de educação formal, e com a baixa capacidade de geração de postos de trabalho ou de oportunidades de negócios pela economia local.

Em contexto de baixo dinamismo econômico e de precariedade da qualificação da mão de obra, as propostas de empreendedorismo têm pouca chance de ter êxito. Adicionalmente, a sugestão de que o programa de regularização fundiária, através do Programa “Casa Legal”, possa ser um elemento dinamizador da economia local e do mercado de terras é, na verdade, um fator preocupante, uma vez que a legalização da terra urbana e os investimentos urbanísticos propostos têm resultado no estímulo à substituição de uso e do perfil de moradores locais, podendo vir a beneficiar o sempre dinâmico e especulativo mercado de terras – de baixa, média ou alta renda.

Mais-valia fundiária, acesso à terra e infraestrutura urbana

A escassez e a disputa pela terra urbana e o dinamismo da indústria da construção civil e do capital imobiliário na última década têm acirrado a estratificação socioespacial – após décadas de luta pela conversão de favelas e invasões em bairros populares. No Programa Salvador 360, merecem então especial destaque os processos de produção da valia fundiária urbana, de apropriação privada da valorização da terra urbana, fruto da sua condição de mercadoria, dos investimentos públicos seletivos em infraestrutura e de uma regulamentação do uso e ocupação do solo voltada à valorização de espaços estratégicos na cidade ( Carvalho, 2013Carvalho, I. M. M. (2013). Capital imobiliário e desenvolvimento urbano. Caderno CRH, 26 (69), 545-562. doi:10.1590/S0103-49792013000300009 ; Harvey, 2013Harvey, D. (2013). Os limites do capital . São Paulo, SP: Boitempo. ; Low-Beer, 1983Low-Beer, J. D. (1983). Renda da terra: algumas noções básicas para a compreensão do caso urbano. Espaço e Debates, 8 , 31-41. ).

A análise da mais-valia fundiária e o acesso à terra em Salvador deve levar em conta a recente política habitacional voltada para a população situada nas menores faixas de renda, como o programa Minha Casa Minha Vida, que, ao atender a justa demanda por moradia de amplos segmentos sociais, atualizou, em outro cenário político, o processo de deslocamento da população situada nas menores faixas de renda para novas fronteiras de urbanização – a velha e conhecida periferização.

A regularização fundiária proposta e implementada pelo Programa Salvador 360, o programa “Casa Legal”, tem como objetivo “promover o acesso legal à posse do uso da terra” e tem como referência instrumentos como a Concessão de Uso Especial para fins de Moradia (CEM) e a Concessão de Direito Real de Uso (CDRU) (Salvador, 2016)9 9 . Instrumentos remetidos ao Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), MP 2.220/2001 e Lei Municipal nº 6099/2002, ao Decreto-Lei nº 271/1967, à Emenda nº 16 e à Lei Orgânica do Município do Salvador (Salvador, 2016). O Programa Casa Legal prevê a concessão de direito real de uso sobre o imóvel, que segue sob o domínio da prefeitura. Trata-se, também, de um mecanismo através do qual prefeitura legaliza seu próprio patrimônio (o que permite, inclusive, a cobrança do foro). . A ação do programa consiste no custeio, por parte da prefeitura, do registro em cartório do imóvel qualificado como de interesse social (Lei Federal nº 11.481/2007), sendo os seguintes os critérios para participação no programa: localização do imóvel; possuir área de até 250m2 2 . Com o declínio da população das áreas centrais, em meados da década de 1980, regulamentações locais foram propostas para inserir moradias em meio aos escritórios de negócios e comerciais. Tal processo teve forte impacto na atração dos white collar workers , resultando na substituição de moradores ( Fujitsuka, 2018 ). ; e ter o uso para fins de moradia.

Além disso, o pretendente não pode ser “proprietário ou concessionário de outro imóvel urbano ou rural; não ter sido beneficiado pelo programa de regularização fundiária; possuir uma renda familiar de até seis salários-mínimos” ( Salvador, 2016Salvador (2016). Casa Legal. Recuperado de https://bit.ly/3ucalMc
https://bit.ly/3ucalMc...
). O programa se destina a moradores com até seis salários-mínimos e apresenta os seguintes benefícios: “averbar a construção da sua casa; tomar empréstimo para melhorias habitacionais; transferir legalmente o lote por venda, com a anuência da Prefeitura, desde que preenchidos os critérios de participação do programa e transferir legalmente o lote por herança” ( Salvador, 2017Salvador (2017). Programa Salvador 360 . Recuperado de https://bit.ly/3vvEV3x
https://bit.ly/3vvEV3x...
).

O acesso à terra e a sua regulamentação é uma demanda histórica dos movimentos de luta pela moradia. Entretanto, a iniciativa é tímida diante da demanda em Salvador, e é sempre preciso lembrar que esse tipo de iniciativa, contraditoriamente, em contextos de pobreza e de especulação imobiliária, acirra processos de segregação. Como anteriormente ressaltado, a titulação (indiscutivelmente um direito de todo cidadão) é um requisito para a criação ou potencialização de um mercado de terras nos bairros populares – o que também pode estimular processos de substituição e expulsão de moradores. Trata-se, aqui, de associar a renda fundiária, os ganhos privados decorrentes dos investimentos públicos, à disputa pela apropriação da terra urbana em tempos de escassez, aos processos permanentes de expulsão de áreas valorizadas da população situada nas menores faixas de renda ( Carvalho, 2013Carvalho, I. M. M. (2013). Capital imobiliário e desenvolvimento urbano. Caderno CRH, 26 (69), 545-562. doi:10.1590/S0103-49792013000300009 ; Low-Beer, 1983Low-Beer, J. D. (1983). Renda da terra: algumas noções básicas para a compreensão do caso urbano. Espaço e Debates, 8 , 31-41. ).

É preciso compreender as ações do Programa Salvador 360 as associando às iniciativas de atualização do Plano de Desenvolvimento Urbano (PDDU) e da LOUOS, com especial destaque para a Orla Marítima de Salvador. A propósito, cabe registrar o fato de que os referidos instrumentos de gestão tornam a ocupação desse vetor de expansão mais “permissiva”, o que estimula o desenvolvimento da cidade, segundo do representante à época da Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário da Bahia (Ademi): “Finalmente poderemos empreender com regras claras e assim gerar novos negócios. Consequentemente, teremos mais emprego e renda para a nossa capital tão necessitada” (Ademi, 2016, p. 12).

A propósito da regulamentação dos novos instrumentos voltados para as áreas ocupadas pela população situada nas menores faixas de renda, o representante da ADEMI destaca os “avanços nos incentivos à construção de habitação de mercado popular, o que se confirma com o estabelecimento de novas regras para atuação nas Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS), que representam mais de 20% do território da cidade e concentram quase 50% da população” (Ademi, 2016, p. 12).

O Programa Salvador 360 propõe ainda a implantação do Bus Rapid Transit (BRT) – que “deve chegar aonde o Metrô não chega”. O BRT integra o Plano de Mobilidade Urbana de Salvador (Plamob), instituído em 2018, que tem como objetivo “estruturar a mobilidade . . ., promover a integração entre os modais, a acessibilidade universal, redução das desigualdades socioespaciais e a sustentabilidade (social, econômica e ambiental)” (Salvador, 2018b).

Reportando-se à Pesquisa Origem Destino (OD), de 2012, o Plamob reafirma que o tempo de deslocamento casa-trabalho, de 40 minutos em Salvador, é o terceiro mais alto do país – inferior apenas aos de Rio de Janeiro e São Paulo, lembrando que, em função da situação de pobreza, 38% do total de viagens diárias realizadas são feitas de modo a pé. O BRT aparece como uma das principais ações do Programa Salvador 360. Dentre as linhas propostas pelo Plamob, a que se encontra em processo de execução é a BRT Lapa-LIP – via Av. Vasco da Gama e Av. Antônio Carlos Magalhães, dois importantes centros comerciais e de prestação de serviço da cidade10 10 . São as seguintes as linhas propostas pelo Plamob: BRT Lapa-LIP (via Av. Vasco da Gama e Av. Antônio Carlos Magalhães); BRT Paripe-Corsário (via Av. 29 de Março); BRT Lobato-Paripe-Pituaçu-Corsário-Calçada-Lobato (Bi-Circular, via Av. Gal Costa); BRT Metrô Aeroporto-Praça da Sé (via Av. Octávio Mangabeira); BRT Corsário-Retiro (via Av. Magalhães Neto e Av. Luis Eduardo Magalhães); BRT Águas Claras-Bairro da Paz (reforço do BRT 29 de Março); BRT Corsário-Pituaçu-Pirajá (reforço do BRT Gal Costa) (Salvador, 2018b). .

Cabe aqui registar que a maior carência de mobilidade em Salvador encontra-se nas periferias, onde reside a população de menor renda, que muitas vezes não pode arcar com os custos do transporte público, fazendo boa parte de seus percursos a pé. No entanto, o maior investimento em mobilidade está sendo feito numa região central, já atendida de forma relativamente satisfatória. Essa escolha de investimento, por se tratar de uma PPP, pode ser explicada pelo interesse das empresas de transporte em aumentar a oferta das linhas de alta demanda em detrimento das linhas de baixa demanda, comprometendo a coerência funcional do sistema, privilegiando o valor de troca em detrimento do valor de uso ( Moreno & Brito, 2018Moreno, D. J. P., Brito, J. A. (2018). Acessibilidade e rede integrada de transporte de alta capacidade: condicionantes para o desenvolvimento urbano na região metropolitana de Salvador, Brasil . Artigo apresentado no 16o Congresso Rio de Transportes. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. ).

Desse modo, as principais propostas relativas ao acesso à terra urbana e à mobilidade, apesar do discurso inclusivo, se dissociam da geração de trabalho e redistribuição de renda e de uma preocupação com a democratização do acesso à terra urbana e à rede de transportes; e podem produzir efeitos contrários, ou seja, estimular os processos de periferização, atualizando o conceito de espoliação urbana e penalizando, assim, parcela significativa da população.

Gentrificação

As propostas do Programa Salvador 360 para o Centro Histórico, outro eixo do programa, incluem a requalificação de praças e avenidas, prevendo “intervenções públicas de estruturação, programas de habitação, mobilidade e projetos-âncoras de transformação que dinamizam a região de forma econômica e urbana” com o foco no turismo (Salvador, 2017).

São projetos de requalificação urbana envolvendo a Av. Sete, a Praça Cairu, o Museu da Música, a Casa da História de Salvador, a Casa do Carnaval, além da transferência do Centro Administrativo. As ações voltadas para o Centro Histórico de Salvador assemelham-se às propostas em planos estratégicos feitos, principalmente, a partir do modelo de “sucesso” de Barcelona, ou seja, a adequação da cidade a um padrão internacional para a atração do capital financeiro internacional. Porém, o programa não apresenta preocupação com a possível gentrificação que essas ações gerariam, como foi visto em alguns exemplos ao redor do mundo e com sua própria experiência na década de 1990. Com essa segunda onda de requalificação do Centro, os preços da terra e dos imóveis da região sofrerão um aumento significativo – o que, possivelmente, inviabilizará a permanência do comércio popular e de moradores de renda média ou baixa que ainda existem na região. A propósito, é preciso recuperar as formulações de Smith (2005)Smith, N. (2005). The new urban frontier: gentrification and the revanchist city . Nova Iorque: Routledge. sobre as consequências, bastante conhecidas, da reinvenção do mito da qualidade perdida e da requalificação urbana.

Um olhar atento sobre produção de bens e serviços compartilhados, como o Uber e AirBnB, por exemplo, demonstram o caráter seletivo, indutor e gentrificador de tais empreendimentos. Um exemplo recorrente na literatura global de processos de gentrificação urbana ao redor do mundo são os serviços relacionados à economia compartilhada, sendo os mais notadamente conhecidos os de David Wachsmuth e Alexander Weisler (2018).

As ações de requalificação no Centro Histórico, quando associadas à espacialização das ofertas do AirBnB, indicam a reprodução dos tradicionais padrões de estratificação socioespaciais. A título de exemplo, podemos observar alguns padrões na prestação do serviço de AirBnB em Salvador, particularmente a concentração espacial e social (nas chamadas áreas nobres ou locais de residência da população situada nas maiores faixas de renda) na prestação do serviço, quais sejam: 89% dos anúncios postados são de anunciantes autodeclarados brancos e apenas 11% negros, ou seja, esse é um processo eminentemente embranquecedor, sendo Salvador, todavia, uma cidade majoritariamente negra11 11 . Os dados foram obtidos através de técnicas computacionais de raspagem e mineração de dados para Salvador durante 24 horas no dia 1 de julho de 2017, coletando aproximadamente 4 mil anúncios, geocodificados e agregados pelos limites de bairros, tendo sido adotada uma amostra aleatória com confiança de 95% (109 amostras). .

E, tomando ainda os dados do AirBnB como uma proxy dos efeitos de uma possível gentrificação em Salvador, observa-se que a proporção de anunciantes estrangeiros é expressiva, e que estes estão concentrados nas áreas consideradas como mais nobres da cidade ( Figura 1 ). É preciso lembrar que os projetos de revitalização, especialmente no Centro Histórico da cidade, abriram e abrem um mercado especulativo bastante atrativo para investimento estrangeiro nessas áreas.

Figura 1
Anúncios do AirBnB agregados por bairros – anunciantes estrangeiros em relação ao total de anúncios

A estruturação do modelo de negócio do AirBnB, com muitos exemplos de seus impactos no mundo, assume sua própria característica em Salvador: ele é a inversão completa da distribuição racial da cidade, explicitando, de forma indireta, a relação entre raça, pobreza e acesso ao mercado. Vale lembrar, retornando às questões relativas à renda da terra urbana, o significado dos investimentos públicos na reestruturação urbana e na apropriação privada do lucro advindo do investimento público. Em síntese, a pergunta fundamental que estrutura essa reflexão é exatamente essa: os investimentos do Programa Salvador 360 no Centro Histórico favorecem a quem?

Vários têm sido os embates entre a Prefeitura Municipal e organizações de moradores de áreas históricas e centrais em torno dos projetos de revitalização, implementados pelo poder público em associação com a iniciativa privada. A principal ameaça tem sido a de expulsão, de “higienização” – sendo as principais vítimas a população pobre e negra. Em Salvador, a exemplo do que acontece nas demais cidades, a gentrificação está intimamente associada à renda, bem como a raça e etnia.

Conclusão

A análise do Programa Salvador 360 permite concluir que muitas são as consequências econômicas e sociais da implementação do Plano Estratégico Salvador 360. Esse plano coloca em prática um conjunto de ações voltadas à dinamização de circuitos superiores da economia e, de forma residual, se reporta a segmentos da chamada economia popular. O fato, porém, é que, de forma substantiva, tal programa não consegue alcançar a parcela mais expressiva dos moradores da cidade – que continua na labuta pela sobrevivência em condições de precarização e de pobreza. Concretamente, isso significa que a alternativa de planejamento estratégico em curso, que pretende apresentar um caráter inovador e inclusivo, não consegue, através do estímulo ao empreendedorismo, alcançar territórios e populações situados em áreas qualificadas como periféricas, nas menores faixas de renda e com baixa qualificação profissional.

Adicionalmente, o programa amplia a apropriação da mais-valia urbana, como também a concentração da oferta de serviços. Em síntese, o conjunto das intervenções propostas pelo Programa Salvador 360 focaliza a geração de emprego em centralidades que já contam com serviços superiores e não alcança parcela considerável da população situada no setor “informal” da economia.

Apesar da roupagem nova, o Programa Salvador 360 atualiza, reedita e estimula processos de produção e reprodução da cidade que aprofundam a espoliação urbana e agudizam problemas estruturais, como concentração de renda e segregação socioespacial – traço considerado como dos mais característicos da condição urbana no contexto do pós-neoliberalização. Salvador é, assim, mais um exemplo de como se associam, no tempo, o “velho” e o “novo” modelo neoliberal – responsável pela produção da cidade-mercadoria.

As iniciativas do Programa Salvador 360 mostram que a lógica da administração municipal segue uma racionalidade que satisfaz demandas de produção e reprodução capitalista da cidade, das quais a espoliação urbana, a produção de mais-valia fundiária e a gentrificação são traços permanentes e estruturantes. Como dito anteriormente, o Programa Salvador 360 reatualiza e reafirma a tendência à mercantilização da cidade e procura adequá-la às novas demandas do atual padrão internacional de acumulação – isso em um contexto de crise econômica e política de profundo alcance.

É preciso ainda registrar que, particularmente em Salvador, é recorrente a captura da política pública e do planejamento por forças políticas que tradicionalmente estiveram à frente da gestão municipal. É nesse cenário que se dá a complexa relação entre concentração de capital, exclusão, segregação espacial e gentrificação em Salvador, típico exemplo de produção neoliberal e iliberal da cidade, como diriam Brenner et al. (2010)Brenner, N., Peck, J., Theodore, N. (2010). After Neoliberalization? Globalizations, 7 (3), 327-345. doi:10.1080/14747731003669669 e Mounk (2018)Mounk, Y. (2018). O Povo contra a Democracia . São Paulo, SP: Companhia das Letras. .

Reiteramos, então, a necessidade de enfrentar o desafio teórico de pensar a cidade e suas múltiplas determinações, no atual processo de after neoliberalization . Os avanços alcançados pelos movimentos sociais no Brasil, institucionalizados na Constituição Cidadã e no Estatuto da Cidade, ainda precisam ser transformados em realidade nessa segunda década do século XXI, marcadamente neoliberalizante ( Brenner & Theodore, 2005Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 ). Se isso é verdade para o conjunto das nossas cidades, vale ainda mais para Salvador, cidade bonita, aprazível e que se torna cada vez mais difícil de ser vivida.

Esta reflexão ressalta a necessidade de se avançar na compreensão da cidade e de sua interface com processos organizacionais ancorados em teorias de médio e longo alcance – teorias capazes de se apropriar da contribuição do conhecimento, produzido de forma disciplinar, mas que, sobretudo, busquem superar tais limites. Como reiterado por vários dos autores aqui trabalhados, a cidade se mostra e se apresenta em sua complexidade e, ademais, como uma totalidade. Cabe, afinal, à boa reflexão, de forma multidisciplinar, arregimentar esforços no sentido de se aproximar das suas múltiplas determinações e possibilidades.

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  • Vainer, C. (2002). Pátria, empresa e mercadoria: Notas sobre a estratégia discursiva do Planejamento Estratégico Urbano. In O. Arantes, C. Vainer, & E. Maricato (Orgs.), A Cidade do Pensamento Único – Desmanchando Consensos (pp. 75-103). Petrópolis, RJ: Vozes.
  • Wachsmuth, D., Weisler, A. (2018). Airbnb and the Rent Gap: Gentrification Through the Sharing Economy. Environment and Planning A: Economy and Space, 50(6), 1147-1170. doi:10.1177/0308518X18778038

Notas

  • 1
    . O Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano (PDDU) de Salvador (Lei nº 7.400 de 2008) incorpora o TRANSCON como instrumento de gestão urbana (Art. 259), definindo-o como um: “instrumento pelo qual o Poder Público Municipal poderá permitir ao proprietário de imóvel urbano, privado ou público, exercer em outro local, ou alienar, mediante escritura pública o direito de construir, previsto neste Plano Diretor ou em legislação urbanística dele decorrente, quando o imóvel de sua propriedade for considerado necessário para fins de: I - implantação de equipamentos urbanos e comunitários; II - criação de espaços abertos de uso público; III - preservação de áreas de valor ambiental indicadas nesta Lei ou em lei específica; IV - preservação de imóvel considerado de interesse histórico, cultural, paisagístico ou social; V - regularização de ZEIS I, II, IV e V; VI - implementação de Habitação de Interesse Social em ZEIS III” ( Salvador, 2008Salvador. (2008). Lei n o 7.400 de 2008. Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano do Município do Salvador – PDDU 2007 e dá outras providências. Recuperado de https://bit.ly/3vud9Vc
    https://bit.ly/3vud9Vc...
    ). No Plano Diretor de 2016, esse instrumento de política urbana foi também incorporado.
  • 2
    . Com o declínio da população das áreas centrais, em meados da década de 1980, regulamentações locais foram propostas para inserir moradias em meio aos escritórios de negócios e comerciais. Tal processo teve forte impacto na atração dos white collar workers , resultando na substituição de moradores ( Fujitsuka, 2018Fujitsuka, Y. (2018). Deregulation policy and gentrification in Chuo Ward, Tokyo. International Institute for Asian Studies, 79 , 16. Recuperado de https://bit.ly/3e6c8wQ
    https://bit.ly/3e6c8wQ...
    ).
  • 3
    . Referir-se à cidade no singular é, como afirma Adrián l Gorelik (2005)Gorelik, A. (2005). A produção da “cidade latino-americana”. Tempo Social, 17 (1), 111-133. doi:10.1590/S0103-20702005000100005. , ao refletir sobre a produção de um certo imaginário sobre a “cidade latino-americana”, uma dificuldade de ordem cultural e mesmo ontológica. Gorelik defende a tese de que a categoria “cidade latino-americana” se “produziu” como construção cultural, como um elemento estruturante da imaginação social latino-americana. Essa reflexão coloca o desafio de pesar o caráter histórico e ideológico das categorias e, no caso do conceito de cidade, a necessidade de associá-las a teorias mais gerais da sociedade. Nesse caso específico, compreendemos a cidade como expressão e resultado de processos estruturais globais, como também de elementos que lhes conferem singularidade. Nosso olhar sobre a cidade, sobre qualquer cidade (sobre São Paulo, Porto Alegre, México, Bogotá, Salvador), tem como categoria estruturante o conceito de periferia, o que nos reporta a abordagens específicas da teoria da sociedade e, particularmente, do capitalismo, segundo autores como Brenner e Theodore (2005)Brenner, N., Theodore, N. (2005). Neoliberalism and the urban condition. City, 9 (1), 101-107. doi:10.1080/13604810500092106 .
  • 4
    . A propósito, ver o texto “Private is profit and the public is dead?” de Mark Davidson, sobre a complexa relação entre o público e o privado: “Some say we live in ‘post-political’ times . . ., that the demise of political choice has resulted in a technocratic dictatorship which tightly circumscribes social possibilities . . .. This technocratic dystopia is defined by the neoliberal hegemony, where private interests dominate politics and exclude all forms of collectivism . . .. The idea of the public—public interest, public space, public good — can, under this post-political lens, therefore seem anachronistic. Where publicness still survives, in health care, parks or intellectual property, it is simply waiting for its turn to be drown by the unstoppable tide of privatization . . .” (Davidson, 2018).
  • 5
    . Como afirmam Brenner et al., não se trata aqui de fazer uma vasta revisão conceitual da noção de neoliberalismo: “. . . review the diverse epistemological, methodological, substantive, and political positions that have been articulated through these discussions of post-1970s regulatory restructuring (but see Clarke, 2008; Peck, 2004; Saad-Filho & Johnston, 2005; as well as Brenner et al., 2010)Brenner, N., Peck, J., Theodore, N. (2010). After Neoliberalization? Globalizations, 7 (3), 327-345. doi:10.1080/14747731003669669 . Instead we move directly into an overview of our own theoretical orientation, which will then be further elaborated in relation to the problem of periodization and with reference to the challenges of deciphering contemporary developments (for previous statements, see Brenner & Theodore, 2002; Peck & Theodore, 2007; Peck & Tickell, 2002)” (2010, p. 329).
  • 6
    . Os conceitos de “democracia iliberal” e de “populismo autoritário” aqui referidos nos remetem à formulação de Yascha Mounk (2018)Mounk, Y. (2018). O Povo contra a Democracia . São Paulo, SP: Companhia das Letras. , em seu trabalho “O Povo contra a Democracia”. Autor de viés liberal, Mounk alerta para o risco do desmonte da democracia liberal com a emergência de lideranças como Donald Trump nos Estados Unidos, Nigel Farage na Grã-Bretanha, Frauke Petry na Alemanha, Marine Le Pen na França e, complementando, Jair Bolsonaro no Brasil. Esse desmonte consiste, segundo o autor, na desestruturação do estado de direito, no desrespeito aos direitos individuais e na eleição de “aspirantes a déspotas” – exatamente isso, foram os procedimentos democráticos que levaram ao poder lideranças que, na sua ação política, negam a estrutura política que conforma a democracia liberal. Nesse cenário, o populismo autoritário, segundo Mounk, seria resultado de uma relação não mediatizada entre liderança e liderados. Essa formulação tem provocado acalorados debates em torno dos conceitos de democracia e de populismo. Sem pretender avançar nessa discussão, trata-se aqui de destacar a necessidade de abordar com o necessário cuidado os mencionados conceitos. Como afirma Enrique Dussel, em “Cinco tesis sobre el ‘populismo’” (2012), o uso do conceito de “populismo”, nos tempos de hoje, para qualificar governos no campo da “esquerda”, não se confunde com o “populismo histórico do século XX”. Concordando com Dussel, consideramos que essa formulação vale para a qualificação de governos de “direita” ou “extrema direita”, como populistas, como faz Mounk. Certamente que uma abordagem consistente desse tema requer um passeio teórico epistemológico em torno de categorias políticas como povo, popular, populista, classe, dentre outros (Dussel, p. 5). Recorremos aqui ao trabalho de Mounk tão somente com o objetivo de ilustrar a complexidade do debate quando nos referimos às atuais condições políticas, nas quais os planos em discussão estão sendo implementados.
  • 7
    . A comparação entre as referidas capitais e suas regiões metropolitanas se justifica pela sua relevância no cenário nacional e pela disponibilidade de dados agregados no ano citado.
  • 8
    . É o caso da incorporação de ativos da Copene, OPP, Trikem, Nitrocarbono, Prospet e Polialden pela Braskem, maior empresa petroquímica da América Latina, e da privatização da Usiba, incorporada ao Grupo Gerdau, um dos maiores grupos siderúrgicos da América Latina, além da transferência de centros de decisão de empresas da Bahia para o Centro-Sul ( Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia, 2012)Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia. (2012). Metrópole baiana: dinâmica econômica e socioespacial recente. Salvador, BA: Autor. .
  • 9
    . Instrumentos remetidos ao Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), MP 2.220/2001 e Lei Municipal nº 6099/2002, ao Decreto-Lei nº 271/1967, à Emenda nº 16 e à Lei Orgânica do Município do Salvador (Salvador, 2016). O Programa Casa Legal prevê a concessão de direito real de uso sobre o imóvel, que segue sob o domínio da prefeitura. Trata-se, também, de um mecanismo através do qual prefeitura legaliza seu próprio patrimônio (o que permite, inclusive, a cobrança do foro).
  • 10
    . São as seguintes as linhas propostas pelo Plamob: BRT Lapa-LIP (via Av. Vasco da Gama e Av. Antônio Carlos Magalhães); BRT Paripe-Corsário (via Av. 29 de Março); BRT Lobato-Paripe-Pituaçu-Corsário-Calçada-Lobato (Bi-Circular, via Av. Gal Costa); BRT Metrô Aeroporto-Praça da Sé (via Av. Octávio Mangabeira); BRT Corsário-Retiro (via Av. Magalhães Neto e Av. Luis Eduardo Magalhães); BRT Águas Claras-Bairro da Paz (reforço do BRT 29 de Março); BRT Corsário-Pituaçu-Pirajá (reforço do BRT Gal Costa) (Salvador, 2018b).
  • 11
    . Os dados foram obtidos através de técnicas computacionais de raspagem e mineração de dados para Salvador durante 24 horas no dia 1 de julho de 2017, coletando aproximadamente 4 mil anúncios, geocodificados e agregados pelos limites de bairros, tendo sido adotada uma amostra aleatória com confiança de 95% (109 amostras).
  • Verificação de plágio
    A O&S submete todos os documentos aprovados para a publicação à verificação de plágio, mediante o uso de ferramenta específica.
  • Disponibilidade de dados
    A O&S incentiva o compartilhamento de dados. Entretanto, por respeito a ditames éticos, não requer a divulgação de qualquer meio de identificação dos participantes de pesquisa, preservando plenamente sua privacidade. A prática do open data busca assegurar a transparência dos resultados da pesquisa, sem que seja revelada a identidade dos participantes da pesquisa.
  • Financiamento: Os autores não receberam apoio financeiro para a pesquisa, autoria ou publicação deste artigo.

Editado por

Editora Associada: Andrea Ventura

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Out 2021
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2019
  • Aceito
    18 Nov 2020
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