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Editorial

EDITORIAL

Uma efervescência de manifestações populares marcou o Brasil no último mês de junho. No mês de realização da Copa das Confederações, evento esportivo que precede a realização da Copa da Mundo a ser realizada no Brasil em 2014, milhares de cidadãos, na sua grande maioria jovens, saíram às ruas para protestar e fazer um conjunto de exigências dirigidas, principalmente, aos governantes, seja no nível federal, estadual ou municipal.

Alguns aspectos marcaram esse momento político: a heterogeneidade de demandas é o primeiro deles. Um ponto de partida identificado foram as manifestações pelo passe livre em São Paulo, mas outros elementos foram emergindo ao longo das semanas. Com jargões como "queremos saúde e educação padrão FIFA" ou ainda "um professor vale mais que o Neymar" que se mesclaram a demandas pelo fim da corrupção, pelos direitos humanos (através de posições contra Marcos Feliciano, deputado pastor do Partido Social Cristão que ocupa a presidência da Comissão de Direitos Humanos na Câmara dos Deputados; contra o Estatuto do Nascituro que prevê auxílio financeiro para a mulher que for estuprada e decidir dar continuidade à gestação; contra a violência policial nas periferias que atinge principalmente jovens negros; contra a redução da maioridade penal, etc.), por uma reforma política imediata, milhares de brasileiros interpelaram e buscaram interditar aquele que foi forjado como o grande evento da identidade nacional brasileira, a realização de uma copa de futebol. O momento não poderia ser mais propício para denunciar as contradições dos governantes no Brasil seja quando se trata do uso do dinheiro público, das alianças políticas disparatadas que vem acontecendo no país, da lógica de privatização do que é público que tem imperado, associado à criminalização dos movimentos sociais, entre outros.

O segundo aspecto que faz-se importante destacar refere-se ao papel da mídia na cobertura desses acontecimentos. O tom da mídia oficial, na maior parte do tempo, ocorreu no sentido de diferenciar os manifestantes entre "pessoas de bem" e "vândalos". Não foram poucas as imagens mostradas em todo o país de policiais jogando gás de pimenta, batendo com seus cassetetes e disparando balas de borracha nos manifestantes que, segundo a mídia, eram os "vândalos" que de fato precisavam ser interditados. Tal repressão policial recebeu todo o aval dos diferentes meios de comunicação para intervir da forma que o fez e a estratégia utilizada para tanto foi trabalhar com a velha dicotomia entre bem e mal. Contudo, todo esse momento também foi coberto por uma mídia alternativa que, através da divulgação nas redes sociais, transmitia o que acontecia nas manifestações ao vivo pela internet e tais informações se propagaram através das redes sociais. Nessa outra cobertura, foi possível apresentar outro olhar sobre as manifestações, especialmente no que se refere ao autoritarismo da repressão policial. Vale destacar que foi também através das redes sociais que várias manifestações foram convocadas e organizadas.

O terceiro aspecto que gostaríamos de destacar se refere às interrogações que essas manifestações causaram em todos: políticos de direita e esquerda, intelectuais de áreas distintas, ativistas políticos de diversos movimentos perguntavam sobre qual foi de fato o significado desses acontecimentos e sobre seus desdobramentos e o futuro. A preocupação girou, principalmente, em torno de um dos lemas que emergiu nas manifestações contra partidos políticos e a favor de uma reforma política imediata. A não identificação de líderes nesses movimentos provocou apreensão de todas as partes. Falou-se em golpe da direita e de revolução, de alienação e super-engajamento.

Alguns desdobramentos já começaram a acontecer: a presidenta Dilma Roussef apresentou uma proposta de pacto nacional na qual vários temas abordados nas manifestações foram indicados, entre eles a reforma política; as manifestações têm tido continuidade em várias cidades brasileiras e têm tomado como alvo os governos estaduais e municipais; e uma agenda nacional de reivindicações em diversos segmentos tem sido ampliada e consolidada.

De fato, não é possível prever, como muitos gostariam, todas as consequências que virão desse momento. Contudo, é necessário buscar ler e compreender a heterogeneidade desse momento evitando um olhar que dicotomize e simplifique os acontecimentos. É necessário voltar os olhos para o Brasil e a complexidade de suas instituições, mas também o que é habitus e vida cotidiana; compreender a dinâmica das diversas formas de violência e violação de direitos produzidas e reproduzidas no país, assim como de preconceito e discriminação; analisar a relação do que se passa no Brasil com o que acontece na América Latina e também em outras latitudes; refletir sobre os diversos sentidos que vão sendo criados e recriados sobre o povo, a multidão, as minorias. Mas, sobretudo, é fundamental acreditar na possibilidade de mudança e transformação no sentido de contribuirmos e construirmos uma sociedade mais igualitária e justa. A confusão, o deslocamento, o que parece sem sentido pode indicar um momento propício para nos reconstruirmos e nos ressignificarmos como sociedade - o que fomos, o que somos e o que queremos ser.

A psicologia social no Brasil há mais de 30 anos tem buscado se dedicar a essa empreitada. Não sem contradições, conflitos, divergências, o que revela a heterogeneidade de posições e olhares desse campo de conhecimento no país. Consideramos que uma ciência que se pretende crítica e com intenção de transformação, pode e deve colaborar com o momento que o país vive.

Neste número, o leitor encontrará produções que poderão contribuir com essa posição. Inicialmente, o leitor se deparará com a entrevista com o sociólogo basco, Benjamim Tejerina, que a partir de seus estudos acerca da identidade coletiva, nos apresenta reflexões importantes sobre as mobilizações contemporâneas como o 15 M, o Ocuppy Wall Street e a Primavera Árabe.

Reflexões sobre o uso de imagens na pesquisa em psicologia social, análise sobre o papel da arte na desinstitucionalização da loucura, as desconstruções possibilitadas pela presença de indígenas nos centros urbanos, bem como a memória de um ex-guerrilheiro urbano que lutou contra a ditadura, nos remetem a deslocamentos visuais, simbólicos e materiais importantes para a mudança social - seja ela na ciência, nas instituições, na cidade, na política.

O contexto rural e da terra também são abordados neste número a partir de três produções: reflexões sobre identidade e memória do Movimento dos Sem Terra, sobre as representações dos extensionistas rurais argentinos sobre os pequenos produtores, e um estudo empírico junto à comunidade rural no Peru explicitando a importância de considerar as questões da terra no debate acerca da justiça social.

O contexto urbano é tomado para análise da organização dos catadores de papel, da violência urbana, da vigilância da subjetividade e da sociabilidade, das políticas de liberdade assistida através de pensamentos que articulam indivíduo e sociedade, evitando olhares dicotomizados e propiciando, dessa maneira, análises mais complexas dessa relação.

Outros artigos nos trazem elementos para pensarmos sobre o processo de subjetivação a partir da perspectiva da esquizoanálise, a concepção de morte na infância, uma instigante problematização sobre a responsabilização paterna e os desafios do ensino da psicologia para educadores, todas essas dimensões compreendidas em estreita relação com o contexto social.

As questões da terceira idade e do trabalho, emprego e desemprego são abordadas neste número através de quatro estudos: um estudo sobre a menopausa e o envelhecimento feminino; sobre o envelhecimento e a aposentadoria de policiais rodoviários; sobre o assédio moral e adoecimento no trabalho e sobre a relação entre bem estar subjetivo, emprego e desemprego.

Ainda neste número, o leitor encontrará artigos que analisam a contribuição da psicologia e da psicologia social para as políticas públicas: em hospitais públicos na Argentina, na colaboração interprofissional na política de saúde da família e uma proposta metodológica para a atenção psicossocial.

Por fim, duas resenhas analisam as obras "Psicologia, formação, política e produção em saúde" de Neuza Guareschi et. al e "Juventude e a experiência da política no contemporâneo" organizada por Claudia Mayorga, Lucia Rabello de Castro e Marco Aurélio Máximo Prado.

Aproveitamos para publicamente nos despedirmos e agradecermos a contribuição do Professor Marco Aurélio Máximo Prado para a construção da revista. Da mesma forma, damos as boas vindas à professora Luciana Kind do Nascimento que vinculou-se à equipe editorial da Revista Psicologia & Sociedade desde maio de 2013, atuando como co-editora. É um prazer contar com a sua colaboração em mais essa atividade da Associação Brasileira de Psicologia Social, através de seu periódico.

Desejamos a todos uma ótima leitura e que usufruam ao máximo das produções aqui publicizadas!

Belo Horizonte, 16 de julho de 2013.

Claudia Mayorga

Emerson Rasera

Luciana Kind

Editores

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Ago 2013
  • Data do Fascículo
    2013
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