Acessibilidade / Reportar erro

Teoria Macroeconômica com Fragilidade Fiscal* * Este texto foi feito baseado na palestra dada por ocasião do Seminário “70º Aniversário da RBE” em 26 de março de 2018. A RBE foi a primeira revista acadêmica brasileira de economia e, para mim, foi uma honra o convite. Esse estudo foi financiado em parte pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código Financeiro 001. Este artigo é uma versão atualizada de um manuscrito originalmente escrito em 1997. Em particular, o modelo econômico, a calibração e as simulações são idênticas as do ensaio original.

Resumo

Países emergentes tendem a enfrentar situações recorrentes em de dívida com trajetória explosiva, o que torna o lado fiscal peça chave para compreender suas economias. Neste artigo, faremos uma revisão de como podemos modelar o Brasil enquanto economia fiscalmente frágil. Nós definimos a fragilidade fiscal como a circunstância em que variáveis fiscais desequilibradas levam a múltiplos equilíbrios e ataques especulativos. Apresentaremos vários modelos nos quais a possibilidade de uma crise da dívida foi essencial para explicar - e, de certo modo, prever - o que estava acontecendo no país. Nós acreditamos que essa situação é muito mais crível de ocorrer do que a dominância fiscal.

Palavras-chave
Fragilidade fiscal; dominância fiscal; política fiscal

Abstract

Emerging countries tend to face recurring situations in which their debt has an explosive path. This makes the fiscal side key to understanding their economy behavior. In this article, we will review how we can model Brazil as a fiscally fragile economy. We define fiscal fragility as the circumstance in which unbalanced fiscal variables lead to multiple equilibria and speculative attacks. We will present several models in which the possibility of a debt crisis was essential to explain-and, in a way, predict-what was happening in the country. We believe that this situation is much more credible to occur than fiscal dominance.

1. Introdução

Em países desenvolvidos, o ambiente econômico é mais equilibrado, de forma que o risco de uma crise fiscal é muito pequeno. Com isso, os modelos propostos para analisar tais economias normalmente negligenciam esse risco. Porém, para países emergentes, que costumam apresentar situações recorrentes de dívida com trajetória explosiva, o lado fiscal é chave para entender muitos acontecimentos econômicos. O Brasil se encontra neste último caso, onde a fragilidade fiscal coloca-se como um desafio para se pensar política econômica. Diversas vezes em nossa história fomos reféns de uma política fiscal irresponsável que abriu espaço para crises de confiança.

Neste artigo, faremos uma revisão de como podemos modelar o Brasil enquanto economia fiscalmente frágil. Apresentaremos diversos modelos em que a possibilidade de uma crise da dívida foi essencial para explicar - e, em certa maneira, prever - o que estava acontecendo no país. Vários desses modelos vêm de artigos publicados com alunos ao longo do tempo, tendo em comum a possibilidade de ocorrência de crises dada uma situação de fragilidade fiscal. Essa situação é muito mais crível de ocorrer que a dominância fiscal, que consideramos ser extrema e irrealista. Nós definimos fragilidade fiscal como a circunstância em que variáveis fiscais desequilibradas levam a equilíbrios múltiplos e a ataques especulativos.

Começaremos pela “Saga do Povo Alemão”. Nosso objetivo é mostrar empiricamente a intuição que temos sobre a queda da inflação em alguns países da América Latina, inclusive o Brasil, estar ligada a acontecimentos internacionais da época e à adoção de medidas macroeconômicas recomendadas pelo Consenso de Washington (1989). De maneira que o endividamento externo permitiu que o governo deixasse de se financiar com emissão monetária e com isso a inflação pudesse cair de forma mais consistente.

O primeiro modelo que será apresentado analisa a ocorrência de ataques especulativos no regime de câmbio fixo pela abordagem de Krugman (1979) e Flood e Garber (1984). Foi feito em coautoria com o ex-aluno Tomás Brisola e consiste em uma calibração para o caso brasileiro. A conclusão do exercício de 1997 apontava com probabilidade alta para o ataque ao Real que aconteceu no ano seguinte.

Traremos também modelos de default que avaliam os regimes monetários para países emergentes. Neles mostramos que nem sempre a dolarização é a melhor escolha, contrariando alguns economistas estrangeiros da época. Dois desses modelos foram publicados na RBE, o primeiro com a Márcia Leon (Araujo & Leon, 2002Araujo, A.,& Leon, M. (2002). Ataques especulativos sobre dívidas e dolarização. Revista Brasileira de Economia, 56(1),7-46. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402002000100001
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402002...
) e o segundo também com a Márcia e o Rafael Santos (Araujo, Leon, & Santos, 2012Araujo, A., Leon, M.,& Santos, R. (2012). Speculative attacks, openness and crises. Revista Brasileira de Economia, 66(2),135-165. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402012000200001
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402012...
). Em 2013, nós três publicamos um outro paper (Araujo, Leon, & Santos, 2013Araujo, A., Leon, M., & Santos, R. (2013). Welfare analysis of currency regimes with defaultable debts. Journal of International Economics, 89(1),143-153. http://dx.doi.org/10.1016/j.jinteco.2012.07.002
http://dx.doi.org/10.1016/j.jinteco.2012...
) no Journal of International Economics, uma versão mais ampla da nossa adaptação do modelo Cole-Kehoe (Cole & Kehoe, 1996Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (1996). A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis. Journal of International Economics, 41(3-4),309-330. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)...
, 2000Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.0012...
).

Por fim, falando de forma mais ampla da nossa pesquisa atual, o objetivo é desenvolver algum modelo que seja possível de se pensar metas de inflação em situação de fragilidade fiscal. Começamos a formalizar algo nessa linha em um paper publicado em 2016 no International Economic Review em coautoria com Tiago Berriel e Rafael Santos (Araujo, Berriel, & Santos, 2016Araujo, A., Berriel, T., & Santos, R. (2016). Inflation targeting with imperfect information. International Economic Review, 57(1),255-270. http://dx.doi.org/10.1111/iere.12155
http://dx.doi.org/10.1111/iere.12155...
). Abordaremos brevemente uma pesquisa que está sendo desenvolvida com Rafael Santos e Paulo Lins. Seus resultados preliminares já demonstram a importância de existirem modelos que reflitam a realidade nacional para a tomada de decisões de política econômica. A questão central é a seguinte: “A meta de inflação deve ser feita apenas por questões de reputação ou há conexão com o lado fiscal?” Até o momento, praticamente não existem modelos nesse tema.

2. A Saga do Povo Alemão

Ao observarmos na Figura 1 com os dados de inflação de alguns países da América Latina no período entre 1988 e 2000, é notável uma mudança de trajetória a partir da queda do Muro de Berlim (1989) e do fim da União Soviética (1991). A inflação desses países segue uma mesma tendência: começa a despencar no início dos anos 1990. O Consenso de Washington (1989) trouxe uma seriedade maior em relação à política macroeconômica a partir de recomendações como privatização e respeito aos contratos. Em conjunto, a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética reduziram o risco de uma revolução comunista na América Latina, o que derrubou o prêmio de risco dos países da região e permitiu que eles financiassem seus déficits fiscais com endividamento no mercado externo, e não mais com emissão monetária. Esse foi um importante determinante para a queda da inflação na América Latina.

Figura 1
Inflação, índice de preços ao consumidor (anual %) – América Latina.

No caso do Brasil, como pode ser visto na Figura 2, a inflação também caiu na década de 1990. O sucesso é muito creditado ao Plano Real (1994). De fato, analisando com cuidado o gráfico da inflação brasileira e o comparando com o gráfico da inflação dos outros países da América Latina, percebemos como o comportamento da nossa inflação é um pouco diferente dos demais países. A causa para isso seriam justamente os vários planos implementados na época - Cruzado, Bresser, Verão e Collor I e II -, que não foram acompanhados de um esforço fiscal mais forte. Esses planos não geraram a credibilidade necessária à política econômica brasileira. O Plano Real, que também não foi acompanhado de um ajuste fiscal significativo, teve o mérito de ser mais crível e adotar algumas das medidas do Consenso de Washington, respeitando os credores e realizando privatizações. Isso possibilitou ao Brasil aproveitar a queda do prêmio de risco que alguns dos outros países latino-americanos já vinham aproveitando a partir da queda do Muro e do fim da URSS. Portanto, o sucesso do Real é resultado do aumento na capacidade de endividamento do Brasil, proporcionado por eventos externos da época, aliado a uma maior credibilidade do governo e do Ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso.

Figura 2
Inflação, índice de preços ao consumidor (anual %) – Brasil.

3. Modelos para Câmbio Fixo

O mesmo endividamento que, juntamente à indexação cambial, permitiu a queda da inflação no Brasil, abriu caminho para outro problema, a possibilidade de ataques especulativos. Como a queda da inflação não foi acompanhada de um maior esforço fiscal por parte do governo, que aumentou seu passivo, principalmente em dívida de curto prazo denominada em moeda estrangeira, a trajetória fiscal da economia brasileira colocava-se como uma restrição importante para o sistema cambial por ela adotado: o câmbio fixo.

Temos alguns trabalhos nos quais analisamos a possibilidade de ataques especulativos no sistema de câmbio fixo. Em todos, as crises ocorrem dada uma situação fiscal frágil. Um importante representante desses trabalhos é o paper “Uma Calibragem do Modelo de Krugman-Flood-Garber para o Caso Brasileiro”, produzido com um ex-aluno de doutorado, Tomás Brisola (Araujo & Brisola, 2019Araujo, A., & Brisola, T. (2019). Uma calibragem do modelo de Krugman-Flood-Garber para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Economia, 73(4).).

Nesse paper, foi desenvolvido um modelo que permitiu que fizéssemos uma previsão de que haveria um ataque especulativo contra o Real - algo que se concretizou. Ou seja, nosso trabalho ilustrou na prática como modelos que contemplam a possibilidade de ataques especulativos decorrentes de situações de fragilidade fiscal foram importantes para entendermos o que estava acontecendo com a economia brasileira.

O trabalho consistia em uma adaptação para o caso brasileiro de um modelo clássico na literatura econômica desenvolvido por Krugman (1979) e por Flood (1984), que explica a lógica dos ataques especulativos. O mecanismo que possibilita o ataque no modelo é o seguinte: o governo apresenta um déficit público que inicialmente é sustentado a partir da venda de títulos. Porém, a situação fiscal combinada com o maior endividamento público torna esses títulos não mais desejáveis, sendo necessária a elevação da taxa de juros para vendê-los - no Brasil, a taxa de juros chegou a 40% ao ano. O aumento dos juros piora a situação fiscal, o que leva o governo a aumentar ainda mais os juros. A situação continua até o momento que o governo passa a vender reservas para se financiar. Sabendo que a capacidade de um governo manter o câmbio fixo depende do volume de reservas que possui, o ataque especulativo ocorre no momento que os agentes econômicos preveem a proximidade da exaustão dessas reservas. Quando ocorre o ataque, o regime cambial existente colapsa e o câmbio passa a flutuar.

Em dezembro de 1997, fomos entrevistados pelo jornalista econômico Celso Pinto a respeito desse paper. Com base nas conclusões do exercício, o jornalista escreveu que: “Se as reservas cambiais caírem abaixo de US$42,5 bilhões ao longo do próximo ano, deve haver um novo ataque especulativo contra o real. A probabilidade de que se chegue ao nível crítico é alta, de 62%”. Conforme previsto pelo modelo, esse novo ataque aconteceu no segundo semestre de 1998.

Para ilustrar o ataque ao Real, a Figura 3 mostra a evolução das Reservas Internacionais do Brasil de 1990 a 2000. Com a adoção das práticas recomendadas pelo Consenso de Washington, o Brasil ganhou credibilidade e por isso a quantidade de dólares foi aumentando na época do Plano Real - a América Latina em geral experimentou esse aumento de credibilidade e pôde comprar mais dólares. No entanto, o ajuste fiscal pleno não foi feito, talvez por uma impossibilidade ou por falta de vontade do governo. Poucos anos depois, é possível perceber que as reservas caem bastante.

Figura 3
Reservas Internacionais – Banco Central do Brasil (US$ milhões).

No que diz respeito ao risco país, um índice interessante é o Emerging Markets Bond Index Plus (EMBI+), que mostra a diferença entre a taxa de retorno dos títulos de países emergentes e a oferecida por títulos emitidos pelo Tesouro americano. Essa diferença é o spread soberano. Ou seja, o quanto a mais que os governos nacionais pagam relativamente aos Estados Unidos. No Brasil, a volatilidade do indicador é persistente, especialmente bem marcada no período de ataque ao Real (1995-1999). Em anos mais recentes ela diminuiu, mas ainda podem ser percebidos alguns picos, como na primeira eleição do Lula (2002). A Dívida PIB brasileira, por sua vez, continua muito elevada. As figuras 4 e 5 representam o EMBI+ e a relação Dívida PIB do Brasil desde a década de 1990 até períodos atuais.

Figura 4
EMBI+ (Emerging Markets Bond Index Plus) – Brasil.
Figura 5
Dívida Pública Total (% PIB) – Brasil.

4. Modelos de Dolarização

A instabilidade macroeconômica dos países da América Latina nos anos 1990, consequência do crescente endividamento em moeda estrangeira, levou ao debate sobre a adoção do dólar no lugar da moeda doméstica, a chamada dolarização. Esse tipo de dívida visa proteger os credores de uma depreciação da moeda local. Em contrapartida, o risco de default em caso de crise torna-se considerável. A alta liquidez internacional da época ajudou a sustentar programas de estabilização e a reforçar o valor das moedas nacionais. No entanto, a reversão de expectativas do mercado e efeitos de contágio mudaram esse ambiente, causando crises financeiras em algumas economias da América Latina, como a Argentina. A moeda brasileira, por sua vez, sofreu uma severa desvalorização.

Em 2002, foi publicado na RBE o paper “Ataques especulativos sobre dívidas e dolarização” em coautoria com a ex-aluna da EPGE/FGV, Márcia Leon (Araujo & Leon, 2002Araujo, A.,& Leon, M. (2002). Ataques especulativos sobre dívidas e dolarização. Revista Brasileira de Economia, 56(1),7-46. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402002000100001
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402002...
). Nele argumentamos que o regime de dolarização não conduz necessariamente ao nível de bem-estar mais alto relativamente a um regime no qual é possível emitir dívida denominada em moeda local. O debate sobre regime de moeda local versus dolarização não despertava o interesse dos países desenvolvidos naquele momento. Havia poucos trabalhos no tema quando nós achamos importante - do ponto de vista dos países emergentes - estudar “O que é dolarização?” Isso reforça a importância de se fazer pesquisa econômica e de se desenvolver modelos econômicos específicos para o caso brasileiro.

Outro trabalho mais recente, desenvolvido a partir do modelo de Cole-Kehoe (Cole & Kehoe, 1996Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (1996). A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis. Journal of International Economics, 41(3-4),309-330. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)...
, 2000Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.0012...
), “Speculative attacks, openness and crises”, foi publicado na RBE em 2012 (Araujo etal., 2012Araujo, A., Leon, M.,& Santos, R. (2012). Speculative attacks, openness and crises. Revista Brasileira de Economia, 66(2),135-165. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402012000200001
http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402012...
). Nesse paper emparceriacoma Márcia Leon e o também ex-aluno da EPGE/FGV, Rafael Santos, propusemos um modelo de equilíbrio geral com default e concluímos que a crise é menos grave para países com maior grau de abertura econômica.

Além dos mercados em desenvolvimento da América Latina, alguns países da União Europeia sofreram ataques especulativos contra a dívida pública mais recentemente, como é o caso da Grécia em 2010. Eles vinham enfrentando dificuldades em convencer a zona monetária a fazer inflação, por outro lado o default na dívida prejudicaria a credibilidade da moeda comum.

Esse foi o pano de fundo de um paper desenvolvido com a Márcia Leon e o Rafael Santos em 2013. Nele fizemos uma extensão do modelo Cole-Kehoe (Cole & Kehoe, 1996Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (1996). A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis. Journal of International Economics, 41(3-4),309-330. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)...
, 2000)Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.0012...
para discutir alguns aspectos financeiros dos regimes monetários. Com o título “Welfare Analysis of Currency Regimes with Defaultable Debts”, o artigo foi publicado no Journal of International Economics em 2013 (Araujo et al., 2013Araujo, A., Leon, M., & Santos, R. (2013). Welfare analysis of currency regimes with defaultable debts. Journal of International Economics, 89(1),143-153. http://dx.doi.org/10.1016/j.jinteco.2012.07.002
http://dx.doi.org/10.1016/j.jinteco.2012...
).

4.1 Welfare Analysis of Currency Regimes with Defaultable Debts

No modelo desenvolvido, foram analisados os regimes monetários: dolarização, zona monetária e moeda local. A questão que se coloca é: “Em quais condições determinado regime seria melhor?” A dolarização pode representar um bom negócio diante da moeda local em um país que faz inflação por motivos meramente políticos o tempo todo. No entanto, ao analisar as três opções em conjunto, a inflação política não é a única variável a ser avaliada. Também devemos observar a correlação dos choques externos com os países de uma possível união monetária para chegarmos ao melhor dos três regimes para um determinado país.

A base do nosso artigo é o modelo de Harold Cole e Timothy Kehoe, “A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis” (Cole & Kehoe, 1996Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (1996). A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis. Journal of International Economics, 41(3-4),309-330. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)...
), que analisa o ataque especulativo no México. Uma versão mais detalhada do modelo é o paper “Self-fulfilling debt crises” publicado na Review of Economic Studies (Cole & Kehoe, 2000Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.0012...
).

Esse é um modelo de equilíbrio geral dinâmico estocástico com probabilidade 𝜋 de crise da dívida. Ela ocorre quando os credores estrangeiros têm baixa confiança de que o governo honrará suas obrigações. Consequentemente, eles não renovam seus empréstimos e o governo entra em default. Nesse modelo está representada uma economia de um bem, com três participantes: i) consumidores nacionais; ii) banqueiros internacionais; e iii) governo.

A incerteza sobre um ataque especulativo é incluída no modelo por uma variável exógena, 𝜁. Ela pode ser vista como um fator fundamental que impulsiona a confiança dos banqueiros e define o equilíbrio na zona de crise (quando há múltiplos equilíbrios): ou os banqueiros internacionais se recusam a rolar a dívida e o default é a decisão ótima; ou eles compram novas dívidas e não há default. O ataque especulativo pode ser acionado em resposta a uma mudança nos fundamentos econômicos não explicitamente descrita no modelo, como uma mudança nos preços de uma commodity que participa intensivamente das exportações, uma mudança nas preferências do governo após as eleições nacionais, redução da liquidez internacional, entre outros. As expectativas são racionais, ou seja, as decisões do governo sobre fazer o default dependem exclusivamente do seu bem-estar.

Problema do Consumidor O consumidor está maximizando a utilidade esperada de consumo privado e consumo público (provido pelo governo). No problema estão representados o consumo, a acumulação de capital e o imposto sobre a produção:

max c t , k t + 1 𝔼 t = 0 β t ϱ c t + ν g t ,

sujeito a restrição orçamentária dada por

c t + k t + 1 k t 1 θ a t f k t δ k t ,

com 𝑘0 > 0. No problema acima, 𝑎t é o fator de produtividade, igual a 𝛼, com 0 < 𝛼 < 1, se o governo fizer default, ou igual a 1, caso contrário. No período 𝑡, 𝑘𝑡+1 é a decisão do consumidor de quanto poupar para o próximo período e 𝑐𝑡 é o consumo presente. 𝜃 ∈ (0,1) representa o imposto e 𝛿 é a taxa de depreciação. A função utilidade está dividida em duas partes: uma função linear de consumo privado, 𝑐𝑡, e uma função 𝜈 de gasto do governo, 𝑔𝑡. A função 𝜈 é contínua, diferenciável, estritamente côncava e crescente.

Problema do Banqueiro Internacional O banqueiro internacional maximiza o valor presente do seu consumo, 𝑥𝑡, escolhendo o quanto de bonds, 𝑏𝑡+1, que vencem no próximo período. Além disso, ele recebe uma dotação exógena, 𝑥̄, e o dinheiro o dos bonds que comprou no período anterior, 𝑏𝑡. O 𝑞𝑡 representa o preço, em 𝑡, de títulos públicos de um período se não houver o default e caso haja, o valor 𝑞𝑡 é igual a 0. Como forma de simplificação, existe apenas a possibilidade de o governo pagar totalmente ou nada da dívida - se 𝑧𝑡 igual a 1, então ele paga a dívida; se 𝑧𝑡 igual a 0, então ele não paga a dívida:

max x t , b t + 1 𝔼 t = 0 β t x t s . t . x t + q t * b t + 1 x ¯ + z t b t , b 0 > 0 .

Problema do Governo O governo é considerado benevolente no sentido de que ele maximiza o bem-estar dos consumidores nacionais. Ele também não está comprometido a honrar suas obrigações com credores. A receita do governo é composta pela arrecadação de impostos e pelo valor da venda de títulos e será gasta em bens públicos e no pagamento da dívida anterior. 𝐵𝑡 é a dívida em moeda estrangeira. Para resolver o modelo, supõe-se que, caso o governo faça o default, ele não poderá mais vender títulos para sempre.

Restrição orçamentária do governo: gt+ztBtθatfKtδKt+qt*Bt+1.

Variáveis de decisão: gt,zt,Bt+1.

Comportamento estratégico: qt*,ct,kt+1,gt,zt,at.

No modelo, o timming das ações dentro de cada período é bastante importante. É ele que determina a possibilidade de ocorrência de crises1 1 Cole e Kehoe (2000) comentam como algumas mudanças na definição dos momentos que as ações são tomadas afetam apenas os resultados quantitativos do modelo, enquanto outras alteram os qualitativos. . No ordenamento das ações a seguir, 𝑠 é um vetor com as variáveis de estado.

Em cada período:

  • 𝜁 é realizado e 𝑠 = (𝐾, 𝐵, 𝑎−1, 𝜁);

  • O governo escolhe 𝐵', dado 𝑞* = 𝑞* (𝑠, 𝐵');

  • Os banqueiros decidem se querem comprar 𝐵';

  • O governo escolhe 𝑧 e 𝑔;

  • Os consumidores escolhem 𝑐 e 𝑐', dado 𝑎(𝑠,𝑧).

Equilíbrio Recursivo Podemos definir um equilíbrio recursivo para o nosso modelo ao caracterizarmos o comportamento dos consumidores. Vale observar que 𝑘' assume os valores 𝑘𝑛 > 𝑘𝑛 > 𝑘𝑑,

𝔼 a = 1 , k = k n , 𝔼 a = 1 π + π α , k = k π , 𝔼 a = α , k = k d .

Caracterização do comportamento dos banqueiros: 𝑞* assume os valores 𝛽, 𝛽(1−𝜋)e 0, dependendo de 𝔼[𝑧'] desde que 𝑞* = 𝛽𝔼[𝑧'],

𝔼 z = 1 , q * = β , 𝔼 z = 1 π , q * = β 1 π , 𝔼 z = 0 , q * = 0 .

Definimos zona de crise como o intervalo da dívida com probabilidade 𝜋 da crise ocorrer. Para títulos do governo de um período e 𝑠 =(𝐾𝜋, 𝐵, 1, 𝜁):

b ¯ k n , B ¯ k π , π .

As decisões do governo são:

B b ¯ k n , fora da zona de crise ; b ¯ k n < B B ¯ k π , π , zona de crise ; B > B ¯ k π , π , default .

A zona de crise é definida como o nível de endividamento para o qual é ideal que o governo responda com inflação a um ataque moderado, com default a um ataque intenso e que pague a dívida na ausência de um ataque. Além disso, se os níveis de dívida estão na zona de crise e a inflação não pode ser implementada durante um ataque moderado, então o default é a segunda melhor opção.

Em Araujo et al. (2013)Araujo, A., Leon, M., & Santos, R. (2013). Welfare analysis of currency regimes with defaultable debts. Journal of International Economics, 89(1),143-153. http://dx.doi.org/10.1016/j.jinteco.2012.07.002
http://dx.doi.org/10.1016/j.jinteco.2012...
, calibramos o modelo de Cole e Kehoe (Cole & Kehoe, 1996Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (1996). A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis. Journal of International Economics, 41(3-4),309-330. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)...
, 2000Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.0012...
) para o Brasil durante o período de junho de 1999 a maio de 2001. Foram usados os seguintes parâmetros: maturidade média da dívida pública, 24 meses; participação do capital na renda, 0,5; produtividade total dos fatores, 1,3; imposto sobre a produção, 0,3; probabilidade de default, 0,06; queda na produtividade após o default, 0,05 (𝛼 = 0,95); fator de desconto, 0,95; fator de depreciação, 0,24; e relação dívida PIB, 0,5. A partir do exercício descrito, chegamos ao gráfico da Figura 6.

Figura 6
Crisis Zone – Brazil – 1999/2001.

Fazer o esforço fiscal é válido porque o país sofrerá um choque de produtividade negativo para sempre muito forte se o governo não pagar a dívida. Agora, suponha uma relação Dívida PIB de 300%, ou seja, o país se encontrar na zona em que os banqueiros nunca querem emprestar (Stationary Participation Restriction). Nesse caso seria melhor o governo fazer o default e assumir o choque de produtividade negativo. Portanto, o default será feito de acordo com o que for mais conveniente para o país. Embora o ideal seja estar sempre fora da zona de crise.

Modelo de Moeda Local Chamamos de regime de moeda local aquele em que o governo pode fazer um default parcial da dívida denominada em moeda local via redução do retorno real sobre essa dívida. Ou seja, o governo tem autonomia para decidir sobre a taxa de inflação.

Para representar um regime de moeda local, modificamos o modelo original de Cole-Kehoe, permitindo que o governo emita não apenas a dívida denominada em moeda estrangeira, 𝐵𝑡, mas também em moeda local, 𝐷𝑡. Consequentemente, o orçamento do governo passa a ser gasto em bens públicos e no pagamento das duas dívidas. Um governo nacional que emite dívida em moeda local pode decidir fazer um default parcial da dívida em moeda local por meio de uma inflação mais elevada (ou seja, pagar apenas uma fração do retorno real sobre esses títulos), usar as receitas levantadas para honrar seus compromissos com banqueiros internacionais e evitar a crise da dívida externa.2 2 Nossa hipótese é que a dívida denominada em moeda estrangeira é adquirida apenas por banqueiros internacionais, então ela também pode ser chamada de dívida externa. Analogamente, a dívida denominada em moeda local pode ser chamada de dívida interna, uma vez que assumimos que ela é totalmente comprada por investidores locais. Ao adicionar a dívida em moeda local, modelamos o poder do governo para fazer política monetária, que está ausente na dolarização.

No entanto, a flexibilidade monetária alcançada com o regime de moeda local, no sentido de o governo poder escolher sua taxa de inflação e, consequentemente, o retorno real da dívida pública denominada em moeda local, pode tornar esse regime menos crível. A credibilidade é perdida sempre que fatores políticos internos influenciam a decisão do governo de fazer ou não um default parcial. Nosso modelo caracteriza essa situação por um choque exógeno chamado inflação política, que pretende captar a falta de um mecanismo de compromisso do governo nacional.

Variável de decisão do governo sobre imposto inflacionário (𝜈) Se houver inflação, 𝜈 = 𝜙, (𝜙 < 1). Senão, 𝜈 = 1. Ou seja, o governo faz um default parcial na dívida em moeda local, cuja taxa de desconto nos títulos é 𝜙, com 0 < 𝜙 < 1.

Custo inflacionário: a produtividade cai para 𝛼𝜙 < 𝛼 < 1. Ou seja, o custo de produtividade do default em moeda externa é 𝛼, como no modelo de Cole e Kehoe. Já o custo de produtividade do default em moeda local é 𝛼𝜙, menor que o parâmetro 𝛼 do default externo.

Nova restrição orçamentária dos consumidores:

c t + k t + 1 k t + q t d t + 1 1 θ a t f k t δ k t + ν t d t .

Além de escolher 𝑐𝑡 e 𝑘𝑡+1, os consumidores passam a escolher também 𝑑𝑡+1.

Nova restrição orçamentária do governo:

g t + z t B t + ν t D t θ a t f K t δ K t + q t * B t + 1 + q t D t + 1 .

No modelo anterior, as variáveis de decisão do governo eram 𝐵𝑡+1, 𝑧𝑡 e 𝑔𝑡. Adicionamos 𝐷𝑡+1 e 𝜈𝑡.

Modelo de Moeda Comum Quando a decisão sobre a fração a ser reduzida do retorno real por meio do imposto inflacionário é feita por países membros de uma união monetária que emitem suas dívidas em moeda comum, 𝐷𝑡𝑖, onde 𝑖 representa cada país, chamamos de regime de moeda comum.

Sob esse regime, é possível fazer um default parcial na dívida expressa em moeda comum. A diminuição do seu retorno real, no entanto, é decidida de acordo comum processo estabelecido entre os membros da união monetária. A maneira como essa decisão é tomada leva em consideração a capacidade de cada membro de fazer um default parcial da dívida em moeda comum e, portanto, suavizar os efeitos de ataques especulativos. Consideramos duas regras de decisão: i) right of veto, segundo essa regra o default parcial da dívida é feito se e somente se todos os países membros votarem a favor da inflação, ou seja, 𝜈𝑢 = 𝜙 ⇔ 𝜈𝑖 = 𝜙, ∀𝑖, onde 𝜈 𝑢 é a decisão da união monetária e 𝜈𝑖 representa o voto de cada país 𝑖; e ii) cada membro implementa sua decisão com probabilidade 𝑝𝑤𝑖, e ∑ 𝑝𝑤𝑖 = 1.

A Figura 7 sumariza os resultados do modelo.

Figura 7
Regime monetário ótimo (𝑛 = 2). Processo de decisão: Right of Veto. Risco de inflação política no outro país (𝐵): 0,7 e 0.

O nosso principal resultado é que para um país com uma moeda de alta credibilidade, ou seja, uma moeda cuja dívida tem uma probabilidade muito baixa de sofrer um default parcial por razões políticas, o regime de moeda local é a melhor escolha em termos de bemestar. Por outro lado, para um país com uma moeda de baixa credibilidade, a moeda local não é a melhor escolha. Nesse caso, o bem-estar torna-se maior sob o regime de dolarização ou de moeda comum, dependendo da correlação externa entre os países que compartilham a decisão de fazer inflação em moeda comum. Quando a correlação entre os países da união monetária é baixa, a possibilidade de haver conflitos na decisão sobre fazer ou não a inflação torna-se maior, com isso o país cujo voto é vencido perde bem-estar, portanto a dolarização passa a ser a escolha ótima. Ou seja, se a inflação prevalece e é contra o seu voto, dolarizar evita que o país perca produtividade e tenha que aumentar as taxas juros. Quando essa correlação é alta significaque os países parceiros tendem aconcordar maisnas suas decisões, de forma que é melhor, em termos de bem-estar, o regime de moeda comum.

Em suma, os cálculos de bem-estar social indicam que o melhor é ter: i) uma parcela da dívida total denominada em moeda comum quando choques externos são altamente correlacionados entre os membros da zona monetária; ii) uma parcela da dívida total denominada em moeda local quando essa correlação é baixa; e iii) dívida exclusivamente denominada em moeda estrangeira quando, além da correlação baixa, a inflação política é muito provável.

O Brasil e a Argentina estavam sob diferentes regimes cambiais entre 1998 e 2001. Nós comparamos os níveis de bem-estar esperados de um regime de moeda local com o da dolarização a fim de entender os efeitos sobre as economias brasileira e argentina de correntes dos regimes adotados. Voltamos no tempo, já que os dois países haviam atrelado suas moedas ao dólar durante o início dos anos 1990, mas seguiram regimes distintos após a crise russa em agosto de 1998. O Brasil adotou um regime de câmbio flutuante em janeiro de 1999, que se assemelha ao nosso modelo de moeda local, enquanto a Argentina manteve o regime monetário que é semelhante ao que descrevemos como dolarização. Os resultados dessas escolhas foram uma inflação moderada no Brasil a partir de 1999 e uma crise na dívida externa da Argentina no final de 2001. Se a Argentina tivesse uma dívida denominada em moeda local, a crise poderia ter sido evitada.

A mesma metodologia também poderia ser aplicada para avaliar a falta de flexibilidade monetária na Grécia. Mesmo que o nível da dívida grega seja em grande parte denominado em uma moeda comum (o euro, não o dólar), a decisão de inflacionar está principalmente nas mãos dos membros da União Monetária Europeia. Como o governo nacional não tem qualquer poder para inflacionar o euro e a maioria dos detentores de dívida não é grega, poderíamos interpretar a Grécia como uma espécie de economia dolarizada.

5. Modelos para Metas de Inflação quando há Fragilidade Fiscal

O trabalho que estamos desenvolvendo sobre metas de inflação em situação de fragilidade fiscal conta com a coautoria de Rafael Santos e Paulo Lins (Araujo, Lins, & Santos, 2018Araujo, A., Lins, P., & Santos, R. (2018). Inflation targeting under fiscal fragility.). Implementado em 1999 no Brasil, o sistema de metas de inflação é um dos grandes responsáveis em manter a estabilidade de preços que experimentamos. O regime é composto de uma meta de inflação e um intervalo de tolerância centrado na meta. A intuição é que o Banco Central deve estabilizar as expectativas de inflação no centro da meta no médio prazo - pensado aqui como o período em que ainda há alguma capacidade de controlar os níveis de preços -, mas usar o intervalo de tolerância para acomodar choques exógenos. Porém, em algumas ocasiões o Banco Central entrega uma inflação fora do intervalo de confiança.

Observando o gráfico na Figura 8, vemos a inflação realizada no Brasil, a meta definida pelo Conselho Monetário Nacional e o intervalo de tolerância. O interessante a se notar é que, toda vez que a inflação realizada escapa do intervalo de tolerância no Brasil, o motivo geralmente está associado a uma elevação do risco. Um exemplo é a eleição do Lula em 2002. A intuição que tínhamos e que estamos tentando formalizar no novo paper é que, em momentos de maior percepção de risco, a ação ótima do Banco Central é não entregar a meta,e sim inflacionarum pouco a economia. Ao inflacionar, implicitamente o governo está dando um default nos títulos nominais domésticos. É uma forma de melhorar o lado fiscal para diminuir o risco da crise. A vantagem do imposto inflacionário é que ele é politicamente menos custoso do que elevar impostos ou diminuir gastos no momento da crise.

Figura 8
Inflação realizada no Brasil, meta definida pelo Conselho Monetário Nacional e intervalo de tolerância.

Na literatura econômica, há modelos, como o de Sargent e Wallace (1981)Sargent, T.J., & Wallace, N. (1981). Some unpleasant monetarist arithmetic. Quarterly Review (Fall). https://www.minneapolisfed.org/research/quarterly-review/some-unpleasant-monetarist-arithmetic
https://www.minneapolisfed.org/research/...
, Leeper (1991)Leeper, E.M. (1991). Equilibria under ‘active’ and ‘passive’ monetary and fiscal policies. Journal of Monetary Economics, 27(1),129-147. http://dx.doi.org/10.1016/0304-3932(91)90007-B
http://dx.doi.org/10.1016/0304-3932(91)9...
, Sims (1994)Sims, C.A. (1994). A simple model for study of the determination of the price level and the interaction of monetary and fiscal policy. Economic Theory, 4(3),381-399. http://dx.doi.org/10.1007/BF01215378
http://dx.doi.org/10.1007/BF01215378...
e Woodford (1995)Woodford, M. (1995). Price-level determinacy without control of a monetary aggregate. Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy, 43. http://dx.doi.org/10.1016/0167-2231(95)90033-0
http://dx.doi.org/10.1016/0167-2231(95)9...
, que mostram como a política monetária é de pendente da política fiscal. Porém, esses modelos muitas vezes assumem situações muito extremas. Um exemplo é a dominância fiscal, que é quando o Banco Central perde totalmente sua capacidade de coordenar as expectativas de inflação e de controlar minimamente os níveis de preços, que passa a ser determinado exclusivamente pelo lado fiscal. Os papers do Sims e Woodford estudam um pouco de dominância fiscal, como o price level em último termo está determinado pela situação fiscal no longo prazo. Não vamos nos aprofundar muito nesses, pois consideramos uma situação extrema, não acreditamos que seja o caso brasileiro. De outro lado, há os modelos usualmente adotados pelo Banco Central, queassumem uma política fiscal ricardiana. É um bom modelo para situações de normalidade nas economias avançadas, em que anúncios do Banco Central são sempre críveis e que o nível de preço é determinado por uma regra de Taylor.

Como sabemos, o Brasil encontra-se em uma trajetória de dívida pública explosiva, o que impõe limites para a capacidade de coordenação de expectativas do anúncio do Banco Central. Essa ideia começou a ser formalizada no paper em coautoria com o Tiago Berriel e o Rafael Santos, “Inflation targeting with imperfect information”, e que foi publicado na International Economic Review (Araujo et al., 2016Araujo, A., Berriel, T., & Santos, R. (2016). Inflation targeting with imperfect information. International Economic Review, 57(1),255-270. http://dx.doi.org/10.1111/iere.12155
http://dx.doi.org/10.1111/iere.12155...
). Em Araujo et al. (2018)Araujo, A., Lins, P., & Santos, R. (2018). Inflation targeting under fiscal fragility., nós propomos uma extensão do exemplo fiscal detalhado em Araujo et al. (2016)Araujo, A., Berriel, T., & Santos, R. (2016). Inflation targeting with imperfect information. International Economic Review, 57(1),255-270. http://dx.doi.org/10.1111/iere.12155
http://dx.doi.org/10.1111/iere.12155...
, em que a dívida deixou de ser apenas um parâmetro e passou a ser uma variável de escolha. A dinâmica intertemporal é baseada no modelo de Cole e Kehoe (Cole & Kehoe, 1996Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (1996). A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis. Journal of International Economics, 41(3-4),309-330. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)...
, 2000Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.0012...
), ou seja, há commitment imperfeito e o policymaker pode satisfazer a restrição orçamentária dando um default parcial na sua dívida por meio de inflação. Com esse modelo, nós captamos um importante dilema intertemporal da política econômica: de um lado, o desejo de se coordenar as expectativas de inflação em patamares reduzidos e, de outro, a dificuldade em se arcar com os custos fiscais que são necessários para assegurar de forma repetida a entrega da meta com elevada probabilidade.

Pensar metas de inflação no Brasil utilizando os modelos desenvolvidos para economias avançadas pode levar a prescrição de policies erradas. Nós acreditamos que esse novo modelo é um arcabouço poderoso para se estudar diversas questões macroeconômicas relevantes para o Brasil. O modelo auxilia um policy maker a determinar qual a resposta monetária ótima quando um país fiscalmente frágil sofre um choque desfavorável externo. O desenvolvimento e extensão do modelo de fragilidade fiscal é fundamental para a compreensão da política macroeconômica de curto prazo no Brasil.

Neste modelo, os agentes inferem, a partir do nível de dívida do país, em qual regime que a economia se encontra: aquele em que a meta de inflação é totalmente crível, ou em dominância fiscal - situação que a meta de inflação não impacta nas expectativas dos agentes. Porém, no nosso modelo, quando o nível de dívida está num valor intermediário - não tão baixo para a meta ser totalmente cível e nem tão alto para ser totalmente inócua - a economia está em uma situação em que múltiplos equilíbrios são possíveis. Nós usamos informação perfeita e não há nada aleatório, apenas uma variável sunspot que determina o equilíbrio na região de múltiplos equilíbrios.

O policy maker, um híbrido de Banco Central e Tesouro, está minimizando a perda de bem-estar social advinda de inflação e de taxação. Ele também tem de respeitar uma restrição orçamentária, em que o policy maker recebe imposto, emite dívida, paga a dívida anterior e paga um gasto governamental que assumimos como exógeno para simplificar. O governo tem duas maneiras de satisfazer sua restrição intertemporal, taxando ou realizando uma surpresa inflacionária - ou seja, fazendo 𝜋𝑡 > 𝜋𝑡𝐸. Se o governo realizar a inflação que os agentes esperam, a taxa de juros real é igual a taxa de desconto (1/𝛽). No problema do policy maker, 𝜋𝐴 é a meta pré-anunciada.

Como estamos assumindo expectativas racionais, há dois casos possíveis: i) o inflation target é totalmente suportada. O único papel do agente aqui é prever corretamente o que o Banco Central vai fazer. Se o Banco Central fizer default, a desutilidade será maior, então ele vai sempre seguir o anunciado; e ii) o fiscal dominance. O Banco Central sempre faz o default porque a desutilidade é menor do que ao cumprir a meta. Nesse caso o governo deve muito dinheiro, por isso é bom fazer um pouco de inflação para se aliviar. A primeira situação define um 𝐷inf, ou seja, o maior valor da dívida para qual a meta é sempre crível. A segunda situação define um 𝐷sup, ou seja, o menor valor da dívida para qual a meta nunca é crível. No intervalo entre esses limites, temos então uma zonade crise. O equilíbrio depende do que os agentes esperam, ou seja, da realização da variável sunspot.

Nós mostramos que há uma perda de utilidade social quando o país entra na zona de crise, por ter uma chance maior de fazer o default. Se a meta é elevada, a zona de crise é deslocada para cima. A intuição é que, em momentos de fragilidade fiscal em que crises de confiança podem ocorrer porque o fiscal está ruim, é melhor manter metas de inflação mais altas.

6. Conclusão

Em um primeiro momento, apresentamos argumentos empíricos para mostrar como a América Latina conseguiu superar os problemas com a inflação a partir da queda do muro deBerlimedofimdaURSS.OConsensodeWashingtontambémteveumpapeldedestaque nesse contexto com medidas que incluíam diminuição do Estado, respeito aos contratos e privatizações. No Brasil, o processo se deu de forma um pouco diferente. A inflação brasileira resistiu a cair no mesmo ritmo dos demais países. O que se deve a pouca credibilidade gerada pelos vários planos implementados na época. Com o Plano Real, que inspirava maior confiança aos credores, aliado a queda no prêmio risco dos países latino-americanos, o governo passou a se financiar com o endividamento externo. A partir disso, o Brasil pôde então ver sua inflação despencar. Porém, o ajuste fiscal pleno seguiu por fazer.

Apesar do endividamento externo dos anos 1990 ter representado o fim dos problemas crônicos com a inflação no Brasil, o desequilíbrio fiscal teve como consequência negativa a ocorrência de ataques especulativos no período de 1995 até 1999, quando o regime de câmbio fixo foi substituído pelo câmbio flutuante. A partir de uma calibragem do modelo Krugman (1979) e Flood-Garber (1984) para o caso brasileiro feita em coautoria com Tomás Brisola, pudemos prever o ataque ao real que ocorreu em 1998 ainda no ano anterior.

A mesma instabilidade fiscal gerada pelo crescimento do passivo externo, que possibilitou a queda da inflação, a ocorrência de ataques especulativos no Brasil e o default na dívida de alguns países emergentes ao longo da década de 1990, levou ao acirramento dos debates sobre a dolarização da América Latina. A partir de uma adaptação do modelo Cole-Kehoe (Cole & Kehoe, 1996Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (1996). A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis. Journal of International Economics, 41(3-4),309-330. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)...
, 2000Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.0012...
) foi desenvolvido com os ex-alunos Marcia Leon e Rafael Santos um trabalho que discute regimes monetários para países emergentes. Enquanto muitos economistas se posicionavam favoráveis a dolarização para os países da América Latina sem ter um modelo bem definido sobre o assunto, fizemos uma análise criteriosa e fundamentada.

Com o fim do regime de câmbio fixo em 1999, adoção do sistema de metas de inflação e ajuste fiscal promovido após o acordo com o FMI, a economia brasileira foi duplamente beneficiada com fim dos ataques especulativos ao Real e a manutenção da inflação mais baixa. Contudo, alguns problemas do câmbio fixo persistem após a adoção das metas de inflação e câmbio flexível, pois crises de confiança podem levar a fuga de capitais e desvalorização cambial. Com isso a inflação aumenta e o governo eleva a taxa de juros para atingir a meta. O que justifica nossa preocupação de metas muito baixas em relação ao endividamento. O último modelo presente neste artigo ainda está em desenvolvimento e trata justamente de metas de inflação em situação de fragilidade fiscal. Acreditamos que o caso brasileiro não esteja no extremo da dominância fiscal, por isso a preferência por modelar uma economia fiscalmente frágil. O ponto em comum de todos os modelos apresentados neste trabalho é a possibilidade de ocorrência de crise da dívida. Fato especialmente importante para economias emergentes como o Brasil, que apesar dos ganhos recentes em termos de política monetária, ainda não conseguiu equilibrar seu lado fiscal.

  • 1
    Cole e Kehoe (2000)Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
    http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.0012...
    comentam como algumas mudanças na definição dos momentos que as ações são tomadas afetam apenas os resultados quantitativos do modelo, enquanto outras alteram os qualitativos.
  • 2
    Nossa hipótese é que a dívida denominada em moeda estrangeira é adquirida apenas por banqueiros internacionais, então ela também pode ser chamada de dívida externa. Analogamente, a dívida denominada em moeda local pode ser chamada de dívida interna, uma vez que assumimos que ela é totalmente comprada por investidores locais.
  • *
    Este texto foi feito baseado na palestra dada por ocasião do Seminário “70º Aniversário da RBE” em 26 de março de 2018. A RBE foi a primeira revista acadêmica brasileira de economia e, para mim, foi uma honra o convite. Esse estudo foi financiado em parte pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código Financeiro 001. Este artigo é uma versão atualizada de um manuscrito originalmente escrito em 1997. Em particular, o modelo econômico, a calibração e as simulações são idênticas as do ensaio original.

Referências bibliográficas

  • Araujo, A., Berriel, T., & Santos, R. (2016). Inflation targeting with imperfect information. International Economic Review, 57(1),255-270. http://dx.doi.org/10.1111/iere.12155
    » http://dx.doi.org/10.1111/iere.12155
  • Araujo, A., & Brisola, T. (2019). Uma calibragem do modelo de Krugman-Flood-Garber para o caso brasileiro. Revista Brasileira de Economia, 73(4).
  • Araujo, A.,& Leon, M. (2002). Ataques especulativos sobre dívidas e dolarização. Revista Brasileira de Economia, 56(1),7-46. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402002000100001
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402002000100001
  • Araujo, A., Leon, M.,& Santos, R. (2012). Speculative attacks, openness and crises. Revista Brasileira de Economia, 66(2),135-165. http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402012000200001
    » http://dx.doi.org/10.1590/S0034-71402012000200001
  • Araujo, A., Leon, M., & Santos, R. (2013). Welfare analysis of currency regimes with defaultable debts. Journal of International Economics, 89(1),143-153. http://dx.doi.org/10.1016/j.jinteco.2012.07.002
    » http://dx.doi.org/10.1016/j.jinteco.2012.07.002
  • Araujo, A., Lins, P., & Santos, R. (2018). Inflation targeting under fiscal fragility
  • Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (1996). A self-fulfilling model of Mexico’s 1994-1995 debt crisis. Journal of International Economics, 41(3-4),309-330. http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
    » http://dx.doi.org/10.1016/S0022-1996(96)01439-0
  • Cole, H.L., & Kehoe, T.J. (2000). Self-fulfilling debt crises. The Review of Economic Studies, 67(1), 91-116. http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
    » http://dx.doi.org/10.1111/1467-937X.00123
  • Leeper, E.M. (1991). Equilibria under ‘active’ and ‘passive’ monetary and fiscal policies. Journal of Monetary Economics, 27(1),129-147. http://dx.doi.org/10.1016/0304-3932(91)90007-B
    » http://dx.doi.org/10.1016/0304-3932(91)90007-B
  • Sargent, T.J., & Wallace, N. (1981). Some unpleasant monetarist arithmetic. Quarterly Review (Fall). https://www.minneapolisfed.org/research/quarterly-review/some-unpleasant-monetarist-arithmetic
    » https://www.minneapolisfed.org/research/quarterly-review/some-unpleasant-monetarist-arithmetic
  • Sims, C.A. (1994). A simple model for study of the determination of the price level and the interaction of monetary and fiscal policy. Economic Theory, 4(3),381-399. http://dx.doi.org/10.1007/BF01215378
    » http://dx.doi.org/10.1007/BF01215378
  • Woodford, M. (1995). Price-level determinacy without control of a monetary aggregate. Carnegie-Rochester Conference Series on Public Policy, 43 http://dx.doi.org/10.1016/0167-2231(95)90033-0
    » http://dx.doi.org/10.1016/0167-2231(95)90033-0

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    Jul-Sep 2019

Histórico

  • Recebido
    06 Set 2018
  • Aceito
    11 Maio 2019
Fundação Getúlio Vargas Praia de Botafogo, 190 11º andar, 22253-900 Rio de Janeiro RJ Brazil, Tel.: +55 21 3799-5831 , Fax: +55 21 2553-8821 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbe@fgv.br