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Rever, pensar e (re)significar: a importância da reflexão sobre a prática na profissão docente

Reviewing, rethinking, and (re)signifying: the importance of reflection on practice in the teaching career

Resumos

São feitas algumas considerações sobre a importância da reflexão sobre a prática pedagógica na educação superior, em especial na escola de Medicina, a partir da concepção do professor como profissional reflexivo. Sugere-se a necessidade de um novo olhar para o processo ensino-aprendizagem, para viabilizar um trabalho docente que exercite a reflexão sobre a ação e conceba a aprendizagem como uma construção realizada pelo próprio indivíduo por meio das relações e significados que estabelece entre as informações que lhe são apresentadas e com seu meio social

Educação Médica; Reflexão; Ensino-Aprendizagem; Prática Docente


This article focuses on the importance of reflection on teaching practices in higher education, specifically in medical school, based on the concept of the professor as a reflective practitioner. The study suggests the need for a new look at the teaching-learning process to allow the kind of teaching practice that reflects on action and conceives learning as a construction performed by the individuals themselves through the relations and meaning they establish between the information presented to them and their social milieu

Medical Education; Reflection; Teaching and Learning; Educational Practice


ESSAY

Rever, pensar e (re)significar: a importância da reflexão sobre a prática na profissão docente

Reviewing, rethinking, and (re)signifying: the importance of reflection on practice in the teaching career

Valter Carabetta Júnior

Universidade de Santo Amaro, São Paulo, SP, Brasil

Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Valter Carabetta Júnior Rua Prof. Enéias de Siqueira Neto, 340 Cidade Dutra São Paulo CEP. 04829-300 SP E-mail: vcarabetta@ig.com.br

RESUMO

São feitas algumas considerações sobre a importância da reflexão sobre a prática pedagógica na educação superior, em especial na escola de Medicina, a partir da concepção do professor como profissional reflexivo. Sugere-se a necessidade de um novo olhar para o processo ensino-aprendizagem, para viabilizar um trabalho docente que exercite a reflexão sobre a ação e conceba a aprendizagem como uma construção realizada pelo próprio indivíduo por meio das relações e significados que estabelece entre as informações que lhe são apresentadas e com seu meio social.

Palavras-chave: - Educação Médica. - Reflexão. - Ensino-Aprendizagem. - Prática Docente.

ABSTRACT

This article focuses on the importance of reflection on teaching practices in higher education, specifically in medical school, based on the concept of the professor as a reflective practitioner. The study suggests the need for a new look at the teaching-learning process to allow the kind of teaching practice that reflects on action and conceives learning as a construction performed by the individuals themselves through the relations and meaning they establish between the information presented to them and their social milieu.

Keywords: - Medical Education. - Reflection. - Teaching and Learning. - Educational Practice.

Ninguém começa a ser educador numa certa terça-feira às quatro horas da tarde. Ninguém nasce educador ou marcado para ser educador. A gente se faz educador, a gente se forma, como educador, permanentemente, na prática e na reflexão sobre a prática.

PAULO FREIRE

GÊNESE E INTERPRETAÇÃO DO CONCEITO DE PROFESSOR REFLEXIVO

A perspectiva discursiva deste texto se relaciona à ampliação da atuação profissional, envolvendo professores do ensino superior na valorização de um contínuo aprimoramento pedagógico, para refletir conhecimentos teóricos e práticos e (re) significar a realidade educacional. Refletir sobre as necessidades e dificuldades existentes na qualificação do ensino significa preocupar-se com a legitimação do conhecimento como fundamental para o desenvolvimento intelectual e para o exercício consciente da cidadania. Trata-se, portanto, de buscar uma docência significativa, participativa e inovadora1.

A reflexão, como a capacidade de se voltar sobre si mesmo, sobre as construções sociais, sobre as intenções, representações e estratégias de intervenção, supõe a inevitabilidade de utilizar o conhecimento à medida que vai sendo produzido, para enriquecer e modificar a realidade e suas representações, as próprias intenções e o próprio processo de conhecer2.

Neste sentido, um olhar crítico e reflexivo para a realidade educacional torna-se essencial para desvelarmos situações e caminhos que possam ser contornados com maior segurança, efetividade e sem constrangimentos, objetivando um crescimento pessoal e profissional1. Em nosso entender, a reflexividade propicia e valoriza a construção pessoal do conhecimento, possibilitando novas formas de apreender, de compreender, de atuar e de resolver problemas, permitindo que se adquira maior consciência e controle sobre o que se faz. O distanciamento da prática oportuniza melhor visualização, análise e interpretação da atuação docente.

A expressão "pensamento reflexivo" originou-se nas formulações de John Dewey, na década de 1930, sobre a compreensão da realidade e a construção de significados a partir das experiências vividas. Para Dewey3, a reflexão consiste na capacidade de distinguir:

[...] entre aquilo que tentamos fazer e o que sucede como consequência. [...] Na descoberta minuciosa das relações entre os nossos atos e o que acontece em consequência delas, surge o elemento intelectual que não se manifesta nas experiências de tentativa e erro. À medida que se manifesta esse elemento aumenta proporcionalmente o valor da experiência. Com isto, muda-se a qualidade desta, e a mudança é tão significativa que poderemos chamar reflexiva esta espécie de experiência, isto é, reflexiva por excelência. [...] Pensar é o esforço intencional para descobrir as relações específicas entre uma coisa que fazemos e a consequência que resulta, de modo a haver continuidade entre ambas. (p. 158)

No âmbito da epistemologia da prática docente, o conceito de profissional reflexivo surgiu mais recentemente nos trabalhos de Donald Schön sobre a epistemologia da prática profissional, para quem o conhecimento prático consiste na reflexão na ação e na reflexão sobre a reflexão na ação, uma vez que o professor constrói sua profissionalização ao examinar, interpretar e avaliar suas atividades. Para assumir uma postura reflexiva, Schön4 destaca a necessidade de que o professor analise diferentes aspectos da prática pedagógica, tais como: a compreensão de sua matéria pelos alunos, os tipos de relações interpessoais que se estabelecem entre ele e os alunos, bem como a dimensão burocrática da prática pedagógica.

[...] Se admitirmos que o movimento de profissionalização, em grande parte, é uma tentativa de renovar os fundamentos epistemológicos do ofício de professor, então devemos examinar seriamente a natureza desses fundamentos e extrair daí elementos que nos permitam entrar num processo reflexivo e crítico a respeito de nossas próprias práticas como formadores e como pesquisadores

5

. (p. 7)

Nesse aspecto, Sacristán6 manifesta ser contrário à consideração de que o professor deve refletir na ação, alegando que só pelo distanciamento do fenômeno é que se pode analisá-lo de modo pormenorizado. Para esse autor, é mais conveniente utilizar a expressão reflexão sobre a ação uma vez que é:

[...] quase impossível a coexistência da reflexão sobre a prática enquanto se atua. [...] o distanciamento nos permitirá utilizar toda a cultura para racionalizar as ações, que é o que dá sentido à educação e à formação do professorado

4

. (p. 70)

Pombo7, por sua vez, propõe que a reflexão do professor deve estar relacionada aos seguintes domínios: o da reflexão educativa, no sentido de questionar as grandes finalidades da educação; o da reflexão política, na discussão do significado e das funções da instituição escolar; e o da reflexão epistemológica/interdisciplinar, atuando como agente crítico em relação ao seu próprio saber.

Já Zeichner e Liston8 consideram que a reflexão da prática educativa deve abranger: a) a reflexão técnica, em que as ações do professor são analisadas; b) o planejamento e a reflexão, momento de análise do que se observou à luz do conhecimento teórico da matéria e dos processos de aprendizagem; c) a reflexão ética/política, voltada para a análise das ações e de suas repercussões no contexto, bem como para a influência das estruturas sociais e das instituições sobre seu trabalho.

Nóvoa9, numa abordagem crítico-reflexiva, afirma que o processo de formação docente precisa envolver alguns aspectos centrais, tais como: a) a produção da vida do professor, no que concerne à valorização de sua formação, de sua prática e de suas experiências, mobilizando, para tanto, vários tipos de conhecimentos; b) a produção da profissão docente, relacionada com saberes específicos que se mantêm em constante transformação, pois envolvem relações cotidianas complexas que necessitam de decisão imediata; c) a produção da escola, considerada como o local legitimamente instituído para o trabalho e formação docente, sendo a inicial o pressuposto básico para a contínua.

Sacristán6 assinala que o efeito da reflexividade é a geração da consciência sobre a ação, expressa na forma de representações, lembranças ou esquemas cognitivos e/ou crenças que podem ser comunicados. Por meio da comunicação, é alimentada a memória do material para pensar sobre ações presentes e passadas, bem como para orientar as futuras. No entanto, a qualidade desejável dos resultados e a reflexão da prática docente precisam estar centradas no distanciamento da ação para poder visualizá-la, analisá-la e entendê-la na incorporação da ciência no fazer cotidiano, nas representações sobre o ensino e sobre o professor, na metarreflexão, isto é, na reflexão sobre os planos anteriores.

Para o autor supracitado, a reflexão é um caminho para atingir patamares cada vez maiores de:

racionalidade na prática e nas próprias crenças, um processo que a educação deve consolidar como disposição permanente e aberta para submeter à elaboração e revisão constantes aquilo que "o mundo parece ser" e as contradições existentes entre algumas de nossas crenças. [...] Existe uma posição cada vez mais sólida em torno do princípio de que o ensino será modificado e aperfeiçoado na medida em que os professores compreendam melhor o mundo das ações, fazendo aflorar e aperfeiçoando seus esquemas, ao mesmo tempo em que se aperfeiçoam como professores, e isto não será alcançado sem entender como os professores dão sentido à prática.

A coerência dos procedimentos de formação e aperfeiçoamento de professores (inclusive os da pesquisa-ação) apoia-se na natureza reflexiva da ação humana6. (p. 105)

Libâneo10 entende que a reflexividade do professor precisa estar imbuída da conscientização teórica e crítica de sua realidade; da apropriação de teorias que forneçam subsídios para a prática (para o entendimento do próprio pensamento e para a elaboração de metodologias facilitadoras da ação) e, ainda, das diferentes situações sociais, políticas e institucionais em que ocorrem as práticas escolares.

Assim, se a reflexão sobre a ação pode ser considerada uma estratégia importante para a docência, visto que permite encontrar caminhos para o aprimoramento da prática e descobrir acertos e erros do trabalho educacional para construir novos rumos de atuação, há que se considerar sua importância na docência superior como recurso que possibilita ao professor modificar ideias e atitudes sobre o ensino.

REDIMENSIONANDO A PRÁTICA: A REFLEXÃO COMO ESTRATÉGIA PARA COMPENSAR O DÉFICIT NA FORMAÇÃO DOCENTE

Segundo o Plano Nacional de Educação (PNE)11, nenhum país pode tornar-se desenvolvido e independente sem um forte sistema de educação superior, pois, num mundo de rápidas transformações, em que o conhecimento sobrepuja os recursos materiais como fator de desenvolvimento humano, o papel da educação superior é cada vez mais importante.

Em nossa interpretação, um sistema de educação forte é aquele cuja proposta basilar se relaciona ao trabalho com os conteúdos considerados relevantes e significativos em cada área do conhecimento, vinculados a uma prática pedagógica inovadora para que os alunos sejam agentes ativos no processo ensino-aprendizagem, com a apropriação de conhecimentos.

No entanto, o que ainda podemos constatar é que, para a maioria dos professores universitários, os conhecimentos pedagógicos não são considerados importantes, e o requisito essencial para desenvolver um bom trabalho em sala de aula seria apenas o domínio dos conteúdos de sua área de conhecimento. A pragmática que orienta tal discurso é a concepção de que, durante a escolaridade básica, os alunos universitários aprenderam como estudar, como aprender; construíram os conceitos científicos estruturantes para entender e relacionar os novos conhecimentos trabalhados nas diferentes disciplinas; e, como adultos matriculados em cursos de graduação escolhidos e, portanto, em fase de profissionalização, sabem estudar e têm a capacidade de aprender sozinhos.

Embora a Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional12, em seu artigo 43, parágrafo I, afirme que uma das finalidades da educação superior é estimular a criação cultural e o desenvolvimento do espírito científico e do pensamento reflexivo dos alunos, continuamos a presenciar uma concepção de ensino fossilizada, baseada em padrões vivenciados no passado, tais como: mnemônico, tecnicista, desprovido de significado, reprodutor de conhecimentos e que considera o aluno um simples receptor de informações, o que impossibilita o desenvolvimento de competências e habilidades necessárias à formação de um profissional consciente, crítico e ativo na sociedade. Tal situação demonstra a necessidade de rever ideias e atitudes dos professores para a transformação da prática, o que:

[...] implica em mudança de concepção do próprio trabalho pedagógico, muitas vezes conservador, centrado em relações autoritárias, na reprodução e manutenção do conhecimento acrítico e deslocado da realidade e em métodos positivistas-racionalistas

13

. (p. 363)

O fato de o ensino superior priorizar a reprodução de conhecimentos já elaborados ao invés da busca e estruturação de novos conhecimentos resulta de uma inércia no exercício da crítica epistemológica, a mesma inércia que privilegia comportamentos reprodutivistas em detrimento da busca da reconstrução metodológica contínua14 .

De acordo com Severino15, a produção do conhecimento no ensino superior precisa ser crítica, criativa, competente e fundamentada em um processo técnico, criativo e crítico.

A competência técnica impõe algumas condições lógicas, epistemológicas e metodológicas para a ciência; a exigência de aplicação do método científico, da precisão técnica e do rigor filosófico. A exigência da autonomia e liberdade de criação tem a ver com a atitude, as condições de pesquisador; referindo-se à criatividade e ao impulso criador. A criticidade é qualidade da postura cognoscitiva que permite entender o conhecimento como situado num contexto mais amplo e envolvente, que vai além da simples relação sujeito/objeto. É a capacidade de entender que, para além de sua transparência epistemológica, o conhecimento é sempre uma resultante da trama das relações socioculturais.

No caso específico da escola de Medicina, área de nossa atuação docente, de acordo com a Resolução CNE/CES nº 4, de 07/11/200116, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Curso de Graduação em Medicina, a escolaridade médica deve levar em consideração o desenvolvimento de competências e habilidades gerais, tais como: atenção à saúde; tomada de decisões; comunicação; liderança; administração e gerenciamento; educação permanente. Neste sentido, nos artigos 9º e 12º, a Resolução preconiza que o curso de graduação deve estar

[...] centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem [...], utilizando-se, para tanto, de [...] metodologias que privilegiem a participação ativa do aluno na construção do conhecimento e de [...] diferentes cenários de ensino-aprendizagem [...].

No entanto, a maioria dos docentes que atua nas escolas médicas não teve formação pedagógica na graduação e, portanto, desconhece teorias e práticas pedagógicas que podem subsidiar o processo ensino-aprendizagem para viabilizar um trabalho educacional que possibilite aos alunos a construção e/ou ampliação de conhecimentos e atribuição de significado ao que estão aprendendo.

Feuerwerker17 reforça a observação sobre a falta de preparo do docente de Medicina para o magistério, considerando que nas escolas médicas não existe preparo específico no terreno pedagógico. A competência na área técnica de atuação médica é o critério fundamental para a escolha dos profissionais que irão passar de médico a professor, prevalecendo uma concepção de ensino tradicional, baseada na transmissão do conhecimento e na experiência do professor, com supervalorização dos conteúdos disciplinares e reprodução desses conteúdos pelos alunos.

O professor de Medicina, assim como nas outras áreas da docência superior, não foi preparado para ensinar, baseando sua experiência, principalmente, no conhecimento do campo em que atua. Considerando-se a atividade docente como prática social, a profissionalização do professor passa a ser estratégica no repensar da educação médica nas dimensões institucional e social, compreendendo o docente como agente transformador, sujeito do processo de ruptura e inovação interna e externa à instituição18.

Destacando ser inerente vincular o saber pedagógico na escola de Medicina, Moura19 evidencia que o fato de ser médico não significa que o portador de determinado saber possa ser considerado um professor de Medicina, pois os professores aprendem a lidar com pessoas colocando-as em posição de aprendizes, desenvolvendo atitudes de educadores. Estes podem ser qualificados como os que têm, ou não, didática, isto é, existe um senso comum sobre quem pode ser considerado um bom professor: ter didática - esta entendida como um modo de organizar o ensino para favorecer a aprendizagem.

A organização proporcionada pela didática deve compreender a construção das bases teórico-metodológicas para a organização e desenvolvimento dos conteúdos curriculares e para a elaboração e processamento das avaliações. Desse modo, por mais qualificado que seja o professor em relação ao conteúdo específico de sua disciplina,

[...] não há garantia de que a mesma tenha igual peso na construção do significado, dos saberes, das competências, dos compromissos e das habilidades referentes à docência e de que estejam preparados para conceber e implementar alternativas e soluções pedagógicas adequadas, diante dos problemas que surgem na aprendizagem de seus alunos

20

.

Para Batista21, o problema da capacitação do docente de Medicina em relação aos aspectos pedagógicos da profissão não tem recebido a atenção necessária. Ao contrário de outras áreas do conhecimento, como no caso das ciências humanas, na formação do médico não se objetiva a preparação de um professor.

Se considerarmos a educação numa perspectiva construtivista, a aprendizagem passa a ser entendida como uma construção realizada pelo próprio indivíduo através das relações que estabelece entre as informações que lhe são apresentadas; entre elas com seus conhecimentos prévios e com seu meio social. Tal construção implica a ação do indivíduo para a criação de algo novo por meio do próprio fazer. Nesse processo, para que a aprendizagem seja efetiva, é necessária a conscientização do professor de que ele é o elemento responsável por conduzir o aluno na estruturação do seu conhecimento e que, para tanto, deve dispor de uma prática pedagógica que torne significativos os conteúdos trabalhados e que realize a interação do que será aprendido e a estrutura cognitiva do indivíduo por um processo de assimilação entre antigos e novos significados, visando possibilitar a diferenciação cognitiva.

Se o construtivismo pressupõe que aprender de modo significativo é construir significados para as experiências; que compreender algo supõe estabelecer relações entre o que se está aprendendo e o que se sabe; e que toda aprendizagem depende de conhecimentos prévios, podemos considerar que tão importante quanto alimentar o conhecimento acadêmico é sua efetiva apropriação pelos alunos. E a tarefa fundamental do professor é elaborar estratégias de emergência de conhecimentos tácitos, resultantes tanto de atividades escolares quanto de suas vivências em ambientes extracurriculares.

Assim, no momento em que constatamos profundas alterações na sociedade devido à velocidade com que ocorrem as informações, bem como as crescentes renovações tecnológicas que interferem cada vez mais na vida das pessoas, faz-se premente manter a reflexão e a crítica sobre a formação e atuação do professor como tentativa de garantir a boa qualidade do ensino universitário. Porém, reflexão e criticidade não podem

[...] ser consideradas peças relacionadas e nem mesmo andares acrescentados ao edifício das competências. Ao contrário disso, são fios condutores do conjunto de formação, são posturas que devem ser adotadas, desejadas e desenvolvidas pelo conjunto de formadores e das unidades de formação

22

. (p. 197)

Se a universidade, por excelência, proporciona a práxis pela relação entre ensino, pesquisa e extensão, há que se considerar que, como instituição, é o local da contestação; do rigor no trabalho com conceitos e métodos e técnicas; da inserção rigorosa e crítica de docentes e discentes na esfera da cultura, do pensamento, da imaginação e da sensibilidade12, pois, como obra de cultura, deve procurar

[...] compreender, afirmar e realizar em seu trabalho o sentido mesmo da existência individual e coletiva, da educação, da escola, da universidade, do ensino, do curso, do currículo, do saber, do ensinar, do aprender e da pesquisa

23

. (p. 47)

Nessa visão, o agir profissional não pode se reduzir a um trabalho individualista e isolado das outras áreas do conhecimento. Ao contrário, ele deve se inserir numa realidade dinâmica e colaborativa, na qual o diálogo constitua o aspecto central do planejamento de ensino. A promoção da aprendizagem deve envolver, assim, a intencionalidade do planejamento e das ações que sustentem e conduzam uma prática eficiente para atingir objetivos previamente determinados. Um trabalho em que a aprendizagem seja ativa, isto é, construída pelo aluno a partir de sua interação com o professor, com os colegas mais experientes e com os diferentes conteúdos.

Nesse sentido, a docência universitária requer um trabalho voltado para a formação de indivíduos autônomos, em que os alunos encontrem o

[...] sentido e a gênese dos conhecimentos e da prática social e profissional, superando o cientificismo, a fragmentação dos saberes, o dogmatismo da verdade pronta e acabada; afirmar a dimensão social e política do saber, do trabalho de ensinar e de aprender e o prazer que lhes é inerente, bem como o efetivo compromisso da universidade, do ensino, com a autonomia, a liberdade, a criação de direitos, a justiça

23

. (p. 50)

Para tanto, no trabalho docente, a reflexão sobre a ação torna-se fundamental e necessária para possibilitar uma atuação mais ampla e consistente da prática pedagógica. Com isso, podem ser reavaliadas concepções ingênuas, como a de que ensinar é tarefa simples, bastando apenas um bom conhecimento da matéria para que o educador possa desenvolver seu trabalho com êxito, ou, então, a de que o aluno é o único responsável por seu eventual fracasso escolar.

Atuar como professor significa fazer parte de um processo que demanda competência técnica e compromisso ético-político em relação à análise, seleção e interpretação e avaliação de conteúdos, bem como à maneira mais eficiente para a sua transmissão, comprometendo-se em encaminhar os estudantes a serem os principais responsáveis pelo próprio conhecimento. Caso contrário, o professor agirá contra os interesses sociais e, acima de tudo, não contribuirá para a formação de indivíduos autônomos, responsáveis e participantes, conscientes de sua função social24.

Sabemos que a prática do educador não se manifesta somente no domínio de conhecimentos e técnicas socializadoras do conhecimento, fazendo-se necessário, também, identificar e viabilizar seus objetivos e finalidades, relacionando-os às reais necessidades do grupo, sem perder a sensibilidade e a criatividade. É na ação que o professor demonstra suas capacidades, exercita suas possibilidades e atualiza suas potencialidades, revelando, no fazer, o domínio dos saberes e o compromisso com o que é realmente necessário1.

Aliada à sólida formação de conteúdos específicos de sua disciplina e ao conhecimento de práticas pedagógicas, a capacitação docente também requer o estabelecimento de relações entre os conteúdos da disciplina que leciona com os das outras áreas do conhecimento. De igual modo, é preciso:

[...] formas de raciocínio, de argumentação e de validação; o conhecimento do currículo, incluindo as grandes finalidades e objetivos e a sua articulação vertical e horizontal; o conhecimento do aluno, dos seus processos de aprendizagem, dos seus interesses, das suas necessidades e dificuldades mais frequentes, bem como dos aspectos culturais e sociais que podem interferir positiva e negativamente no seu desempenho escolar; e o conhecimento do processo instrucional, no que se refere à preparação, condição e avaliação da sua prática [...]

25

. (p. 61)

Em um mundo em que se observam mudanças rápidas, fica cada vez mais evidente que a função do professor é orientar os alunos a lidar com as inovações; a saber analisar situações complexas, diferentes e inesperadas; a desenvolver suas potencialidades criativas e a utilizar diferentes esquemas cognitivos na resolução de problemas. Nesse panorama, a ação educativa competente não pode mais ser considerada como simples instrumentalização, como técnica. Ela precisa ser vista como formadora de conhecimentos, atitudes e valores, por meio de um trabalho com objetivos claramente definidos e metodologia adequada aos ideais propostos.

Nesse contexto, a capacidade de (auto)questionamento é pressuposto para a reflexão, que não existe de modo isolado, mas como resultado de um processo que acontece no constante questionamento entre o que se pensa e o que se faz26, sendo necessária uma prática educativa voltada para um novo contexto de aprendizagem, para se estabelecer uma nova relação entre professor-conhecimento-aluno.

Para isto, é necessário que o professor tenha como referência os conhecimentos das contribuições epistemológicas e teórico-metodológicas necessárias para subsidiar e aprimorar

o trabalho educacional, tais como: dominar os conteúdos científicos nos aspectos epistemológicos e históricos, explorando suas relações com o contexto social, econômico e político; questionar visões simplistas de ensino, geralmente centradas no modelo transmissão-recepção e na concepção empirista-positivista; saber planejar, desenvolver e avaliar atividades de ensino que contemplem a (re)construção do conhecimento e conceber o cotidiano da sala de aula como objeto de investigação, como ponto de partida e de chegada de reflexões e ações baseadas na articulação teoria-prática27.

Vale também ressaltar que a os âmbitos de conhecimento que lhe servem de base não deverão ser vistos como facetas estanques e isoladas de tratamento de atuação educacional, mas como formas de ver e compreender a educação em sua totalidade28.

Assim, em uma nova configuração pretendida e necessária para a educação universitária, acreditamos ser imperioso repensar e investir na formação e qualificação do professor para o desenvolvimento de competências relacionadas à socialização e significação dos conteúdos em diferentes contextos e sua articulação interdisciplinar, bem como o conhecimento pedagógico e dos processos de investigação que possibilitam o aperfeiçoamento da prática docente29.

Recebido em: 17/11/2009

Aprovado em: 10/03/2010

CONFLITO DE INTERESSES

Declarou não haver.

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  • Endereço para correspondência:

    Valter Carabetta Júnior
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    São Paulo CEP. 04829-300 SP
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2010

    Histórico

    • Recebido
      17 Nov 2009
    • Aceito
      10 Mar 2010
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