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RESIDENCIA MÉDICA, MESTRADO E DOUTORADO

Mais de três décadas são passadas desde a introdução da Residência Médica em nosso País graças ao descortínio e pioneirismo de Instituições do gabarito do Hospital dos Servidores do Estado, no Rio de Janeiro, e do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, naquele estado vizinho.

Estruturada em moldes semelhantes aos padrões existentes, em países desenvolvidos, notadamente os Estados Unidos, a então nascente Residência Médica brasileira era oferecida a um grupo restrito de egressos da graduação, que se dispunham ao cumprimento de um disciplinado programa de capacitação profissional em nível de pós-graduação, com ênfase no treinamento em serviço.

Resgatando a pureza conceituai que norteou a gênese da Residência Médica, cabe recordar que, à época, e durante muitos anos, manteve-se acima de qualquer discussão um conjunto de noções consideradas inerentes à compreensão da Residência Médica como a melhor forma de preparar profissionais diferenciados para o exercício profissional qualificado: o tempo integral, a dedicação exclusiva, a moradia no próprio hospital ou em local vizinho, o inarredável compromisso com o auto-aprimoramento, o amor ao trabalho e a disciplina mental, conceitos estes indispensáveis, ainda hoje, à manutenção e ao desenvolvimento do próprio instituto da Residência Médica.

Com o passar dos anos outras instituições - notadamente universitárias - iniciaram programas de Residência Médica procurando manter as diretrizes dos pioneiros e abrindo oportunidades a um grupo cada vez maior de jovens médicos que buscavam oportunidades concretas de capacitação profissional, nem sempre satisfatoriamente conseguidas na graduação.

A década de 60, rica em crises e transformações sócio-políticas, assistiu ao início do processo de deturpação da Residência Médica como conseqüência de fatores os mais diversos onde se destacam as alterações do mercado de trabalho, a proliferação de escolas médicas com a óbvia diminuição da qualidade de ensino, a crescente privatização da assistência médica, gerando pseudo-residências utilizadoras da mão-de-obra dos médicos a baixo preço e a ênfase exagerada nas especialidades sofisticadas geradoras de lucro.

Em 1964, a II Reunião Anual da ABEM já se preocupava com os caminhos e descaminhos da Residência Médica e naquela reunião chegou-se à conclusão que “o médico deve aperfeiçoar-se (Residência Médica) no exercício da profissão, trabalhando em regime de dedicação exclusiva em serviços hospitalares, ou não, sob a orientação de professores, ou de outros médicos de reconhecida competência, de experiência amadurecida e de elevado conceito do ponto de vista ético”.

Em 1967, em função de uma necessidade sentida, os médicos residentes se organizam e fundam a Associação Nacional dos Médicos Residentes (ANMR) e realizam seu I Congresso Nacional. Nessa ocasião, os próprios residentes definem Residência Médica como “uma forma de ensino de pós-graduação que permite ao médico recém-formado aperfeiçoar-se nos diferentes ramos da atividade médica trabalhando numa organização hospitalar de bom padrão, em regime de tempo integral e devotamente exclusivo por prazo suficiente e sob supervisão de colegas mais experientes”.

Posteriormente, em conjugação com a ANMR, a Associação Médica Brasileira baixou normas e traçou requisitos mínimos para o credenciamento dos Programas de Residência Médica visando sempre à qual idade dos mesmos. Todavia faltava nessa iniciativa louvável o apoio oficial, mesmo porque os programas deveriam ser “anualmente fiscalizados e mantidos ou não” (ANMR), o que por certo causava ônus e dificuldades para o cumprimento deste e de outros objetivos.

A ineficácia da tentativa de controle dos programas de Residência Médica por parte da ANM R e AMB ensejou o caos do sistema cujo ápice ocorreu no meio da década de 70 ocasião em que, sob o rótulo de Residência Médica, cresceram excelentes programas ao lado de formas organizadas de exploração do trabalho médico com o crescente aviltamento do exercício profissional.

Como resposta aos anseios de médicos residentes e preceptores, reiterados em sucessivos congressos nacionais, foi criada pelo governo, em 1977, a Comissão Nacional de Residência Médica como primeiro passo para a regulamentação dessa forma de pós-graduação cuja definição, sem contrariar as formuladas pela ABEM (1964) e ANMR (1967) conceituava Residência Médica como “modal idade de ensino de pós-graduação destinada a médicos sob a forma de curso de especialização, caracterizada por treinamento em serviço em regime de dedicação exclusiva funcionando em instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional.” (Decreto 80.281 de 5/9/77)

Criada em setembro de 1977, a CNRM começou a reunir-se a partir de 1978, criando normas e resoluções que instituíram o processo de credenciamento dos programas, definiram as áreas credenciáveis para Residência Médica, estabeleceram critérios específicos para cada uma delas, caracterizaram direitos e deveres dos médicos residentes e dos programas e normatizaram dezenas de aspectos controversos de interesse das partes envolvidas.

Como conseqüência desse trabalho e procurando, também, atender a algumas reinvindicações dos médicos residentes foi aprovada, em 1981, a Lei Federal n° 6 .932, que é a primeira lei sobre Residência Médica promulgada no País.

Entre outros dispositivos, a lei destaca que “só poderão utilizar a forma e denominação Residência Médica os programas credenciados pela Comissão Nacional de Residência Médica”.

RESIDENCIA MÉDICA, MESTRADO E DOUTORADO:

É mundialmente generalizado o conceito de que a Residência Médica é o melhor e mais adequado instrumento para a formação de especialistas para a prática profissional nas áreas clínicas da Medicina. Persegue, pois, objetivos educacionais definidos e é forma de pós-graduação peculiar à área médica, situando-se entre as denominadas “lato sensu”.

O Mestrado e o Doutorado, que não se restringem à área médica, estão entre as denominadas “stricto sensu”, com objetivos educacionais igualmente definidos, porém mais direcionados para a formação do docente e do pesquisador. Dentro dessa linha de raciocínio, e num processo de formação articulado e integrado a Residência necessariamente antecederia o Mestrado pois não se pode conceber um docente e pesquisador que não seja - adrede - especialista no campo que pretende ensinar e pesquisar.

Não obstante, a praxis do desenvolvimento de pós-graduação médica no Brasil tem mostrado aspectos muito peculiares.

Assim é que, durante o processo crítico por que passou a Residência Médica, alguns excelentes programas resolveram transformar-se em Mestrados, sem possuírem, no entanto, suporte estrutural para uma modalidade de pós-graduação necessariamente diferente.

Na busca de “status” científico que o Mestrado confere, e na disputa de recursos junto às agências financiadoras de pesquisa, alguns passaram de excelentes Residências a Mestrados, no máximo, regulares.

No último Congresso da ABEM, em Recife, o Secretário-Executivo da CN RM, no Painel sobre Pós-Graduação, destacava que: “O subsistema de pós-graduação carece de ajustes que devem começar pela Escola Médica, para ser limitado quanto a um dos “inputs”. Nos seus diversos níveis, o processo do subsistema de formação de recursos humanos na área médica nos cursos de pós-graduação estão carentes para que o produto possa desenvolver algum mecanismo de “feedback” para aqueles ajustes necessários. Neste sentido e considerando o médico-residente um dos produtos desse subsistema e, por isso, o responsável futuro por aquele mecanismo de "feedback”, poderia provocar as mudanças necessárias desde que recebesse uma formação adequada. No entanto, o sistema, envolvendo educação Escola Médica, Pós-Graduação e Mercado de Trabalho, talvez esteja nesse momento vivendo e procurando os ajustes necessários, provavelmente em decorrência de vários mecanismos de retro-alimentação negativos”.

Outra evidência foi observada, recentemente quando a CAPES avaliou os cursos de Mestrado na área médica. Do total de 176 cursos, 142 foram avaliados e com os seguintes conceitos em ordem decrescente: A - 27%; B - 28%; C - 00%; D - 11%; E - 13% (D + E = 24%). Já 57 cursos em nível de Doutorado receberam os seguintes conceitos: A - 33%; B - 23 %; C - 16%; D - 9% e E - 19% (D + E = 28%).

Todas essas relações de causa e efeitos merecem de nossa parte muita reflexão, cautela e espírito criador para soluções práticas, rápidas e pouco onerosas.

Tomando como base os aspectos aqui evidenciados foi criado em 1980, um grupo de trabalho CAPES-CNRM com a finalidade de estudar a equivalência de Residência e Mestrado na carreira de magistério superior na área da Medicina. O grupo foi constituído pelos seguintes membros: pela CAPES - Maria Rubens Montenegro (Presidente), Magid Yunes, Milton Ari Meyer, Anivaldo Cantuária e pela CNRM, Eduardo Vilhena Leite, Cícero Adolpho da Silva, Milton Machado e José Tavares Neto.

A íntegra do Parecer final é a seguinte:

  1. A Residência deve ser definida, como “atividade supervisionada de treinamento serço, objetivando a formação de médicos em áreas gerais ou especializadas”, definição esta proposta pela CNRM;

  2. o Mestrado deve ser definido como “atividade indissoluvelmente associada à investigação científica e, como tal, só possível de ser realizado em Instituições com tradição de investigação que mantenham linhas de pesquisa definidas”, definição esta proposta pela Comissão de Consultores da CAPES;

  3. há diferenças fundamentais na obtenção de competências nas distintas áreas profissionais;

  4. a área médica foi grandemente prejudicada pelo preconceito constituído em torno do termo “especialização”;

  5. em última análise, é através da Residência Médica que as deficiências do ensino de graduação são parcialmente sanadas e um melhor nível de competência profissional é gerado.

  6. o sistema de pós-graduação em Medicina vigente no Brasil, tem além de outras inconveniências, a desvantagem de exigir tempo mais longo para formação de pessoal, do que outras áreas;

  7. em razão dos fatos acima, um número expressivo dos cursos de Mestrado, na área médica são, de fato, exclusivamente voltados à formação profissional, fugindo assim a vocação da pós-graduação “sensu stritu” e se aproximando da Residência;

Recomenda:

  1. Nas áreas profissionais dos Cursos de Medicina, poderão ser admitidos à Carreira de Magistério Superior, tantos os médicos portadores de certifica do de Residência Médica, obtido em programa credenciado pela CNRM, quanto os médicos portadores de diploma de Mestre, obtido em curso credenciado pelo CFE;

  2. O Médico, docente de IES e que possua apenas o certificado de Residência, deverá complementar sua formação em, pelo menos, duas áreas:
    1. Pedagogia, comprovada por experiência docente em IES ou por aprovação em concurso público na área do ensino Superior.

    2. Metodologia Científica comprovada a experiência por dissertação ou publicação de trabalho;

  3. O médico docente de I ES, que possua apenas o certificado de Residência, só poderá se inscrever ao Doutorado após a complementação referida acima;

  4. Nas áreas de domínio intermediário entre o ciclo básico e o clínico, tanto a Residência, nos moldes acima, quanto o Mestrado poderão anteceder ao Doutorado;

  5. A área de Saúde Pública deve exigir a realização de Mestrado e, após, Doutorado;

  6. Nas áreas profissionais o Doutorado em Medicina poderá ser aberto, sob a forma de “tutorado”, ou com curso formal, nos moldes do doutorado das outras áreas. O grupo entende por Doutorado Tutorado, a forma proposta pela Comissão de Consultores da CAPES, reunida m novembro de 1979 que, com ligeiras modificações, consiste em:
    1. o Doutorando realizará pesquisa com a finalidade de produzir uma tese;

    2. esta tese deverá ser julgada por Comissão própria, em cuja composição haja, pelo menos, 2/3 de membros estranhos à IES de origem, por ela escolhidos;

    3. a critério do orientador o doutorando poderá realizar atividades correlatas em disciplinas afins à sua pesquisa, objetivando a obtenção de créditos;

    4. no julgamento será levados em conta, além da tese, os créditos eventualmente obtidos e outros trabalhos científicos que o candidato tenha produzido na área;

  7. Ao candidato aprovado a I ES conferirá o título do Doutor em Medicina. Na área de Saúde Pública conferirá o título de Doutor em Saúde Pública.

Em novembro desse mesmo ano, com base no Parecer do Grupo de trabalho os quinze professores integrantes do corpo de consultores da CAPES estabeleceram a posição do órgão a respeito da pós-graduação na área médica.

Apesar de algumas repetições, cabe apresentar o relatório final dos Consultores à guisa de conclusão deste trabalho.

  1. O perfil profissional e acadêmico de cada profissão deve respeitar as suas peculiaridades específicas. Há diferenças fundamentais de áreas, principalmente nas áreas profissionais. Por este motivo a obtenção de competência segue caminhos diversos em cada área.

  2. A área médica foi certamente muito prejudicada pelo preconceito construído sobre a palavra “especialização”. Sabe-se, no entanto, que é através de Residências Médicas e, em última análise, da especialização, que o melhor nível de competência profissional é gerado. Conhecimentos, atitudes e habilidades são mais bem integrados nestes programas de RM, consagrados pelo tempo na maioria dos países.

  3. O sistema de pós-graduação em Medicina vigente no Brasil, tem, além de outras inconveniências, a desvantagem de exigir longo tempo de formação pessoal para a docência, especialmente se comparado com outras áreas.

  4. A Residência deverá ser definida como “atividade supervisionada de treinamento em serviço objetivando a formação de médicos em áreas gerais ou especializadas”. (CNRM)

  5. O Mestrado deverá ser definido como atividade indissoluvelmente associada à investigação científica, como tal, só possível de ser realizado em Instituições com tradição de investigação que mantenham linhas de pesquisa definidas e atuantes.

  6. Para admissão na carreira do Magistério Superior (Professor Assistente) na área médica, o título de Residente obtido em Instituição credenciada pela Comissão Nacional de Residência Médica, deverá ser equiparado ao título de Mestre.

  7. Nas áreas clínicas, inclusive Medicina Preventiva, os indivíduos com título de Residente poderão se inscrever para o Doutorado em Medicina.

  8. Nas demais áreas de domínio intermediário entre o ciclo básico e clínico, tanto Residência, quanto Mestrado, poderão anteceder o Doutorado.

  9. A área de Saúde Pública deve exigir a realização de Mestrado e, após, Doutorado.

  10. Nas áreas profissionais, o Doutorado em Medicina poderá ser aberto sob a forma de “tutorado”, ou com curso formal nos moldes de doutorado das outras áreas.
    1. a) Ao candidato aprovado a IES conferirá o título de Doutor em Medicina. Na área de Saúde Pública conferirá o título de Doutor em Saúde Pública.

  11. 11. O credenciamento dos Mestrados e Doutorados deverá exigir o programa respectivo e a produção científica do serviço, representada por separatas dos trabalhos e outras publicações, e a discrição documentada por publicações de linhas ou linhas de pesquisa definidas e atuantes.

O presente documento referenda, em grande parte, o documento produzido pela Comissão Especial que, no ano de 1979, estudou, a pedido da CAPES, o perfil profissional e acadêmico do médico, e que indica o consenso que progressivamente se observa sobre os defeitos do atual sistema de pós-graduação na área médica e a necessidade de uma transformação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 1983
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