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Os conceitos fundamentais da crítica marxista do direito de Evgeni Pachukanis

AKAMINE, JR. Léxico Pachukaniano.1. ed.Marília-SP: Lutas Anticapital, 2020. 272. 978-65-86620-35-1

Sobre o livro e seus objetivos

O Léxico pachukaniano resulta de um trabalho coletivo que reúne análises sobre as principais categorias que compõem a crítica marxista do direito de Evgeni Pachukanis (1891-1937), além de outros dois textos inéditos de autoria do jurista bolchevique. O Léxico... é uma obra estritamente teórica produzida com dois objetivos principais: servir de introdução ao pensamento de Pachukanis, bem como permitir a consulta direta aos principais temas trabalhados por ele. Para uma compreensão adequada do Léxico..., no entanto, penso ser imprescindível que seja feita a sua leitura em cotejo com a obra máxima de Pachukanis, qual seja, A teoria geral do direito e o marxismo (Ed. Sundermann, 2017, 338 p).

Os quatorze verbetes que integram a obra foram distribuídos, em proporções distintas, entre sete autores e uma autora, que produziram textos inéditos. Os nomes que assinam os artigos são bastante conhecidos na área da crítica marxista do direito e acumulam em seus currículos vasta produção acadêmica daquilo que hoje há de mais destacado e relevante nesse campo de estudos. O traço comum entre todos os nomes, pelo que revela o trabalho publicado, é a convergência na defesa das teses pachukanianas como ponto de partida irrevogável de uma crítica do direito que se proponha marxista.

OLéxico... não é uma simplificação rasteira ou um manual no qual os(as) leitores(as) encontrarão meios procedimentais de “como ler” ou “como entender” a teoria pachukaniana. Ao contrário, o Léxico... é um trabalho teórico que busca proporcionar um entendimento ao mesmo tempo introdutório e sistemático da obra do jurista soviético, que em si mesma pode oferecer elevado grau de dificuldade, por exigir, dentre outras condições, relativa compreensão da teoria marxista e também da dogmática jurídica, campos (marxismo e direito) que muito raramente se conectam na forma como se encontram dispostos os currículos das ciências humanas e sociais no Brasil.

Como os quatorze verbetes estão profundamente relacionados, a sua disposição em ordem alfabética não acarreta qualquer prejuízo à obra e aos dois objetivos à luz dos quais ela foi produzida. Ao contrário, mostra-se adequado o encerramento do livro com o verbete sujeito de direito, se considerarmos o método marxiano da concreção, como veremos mais adiante. O Prefácio é assinado por Márcio Bilharinho Naves e Celso Naoto Kashiura Jr., uma parceria intelectual consolidada e muito profícua entre dois dos principais nomes da crítica marxista do direito.

Os conceitos fundamentais da crítica pachukaniana

O verbete Contrato, que abre o livro, foi escrito por Pablo Biondi, que constrói sua exposição a partir de três perspectivas. A primeira, que entendo ser um aprofundamento das diretrizes metodológicas de Pachukanis, é dedicada à demonstração da centralidade da categoria do “contrato” para a filosofia moderna e contemporânea, passando por diferentes correntes e pensadores, concluindo, após esse percurso, que “o resultado é sempre o mesmo: o apelo ao contrato como expressão máxima da sociabilidade e o mascaramento das classes sociais por meio de uma igualdade abstrata” (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 19). A segunda perspectiva explora o tema da “forma jurídica embrionária” nas formações pré-capitalistas, compreendida por Biondi (Ibid.: p. 20) como “uma existência precária e limitada do elemento jurídico, fracamente diferenciada dos costumes e da religião”. A terceira, que penso ser de relevância extraordinária, é dedicada às consequências políticas que o “contrato” acaba por gerar na sociedade capitalista. Esse caminho permite ao autor concluir que o contrato de trabalho, por um lado, “viabiliza o exercício do poder do capital sobre o trabalho e, ao mesmo tempo, dissimula sua real extensão”; por outro, “traz consigo um papel de neutralização política do proletariado ao submeter a luta de classes aos contornos gerais da forma jurídica” (Ibid.: pp. 23-24).

A exposição de Biondi, que articula um referencial filosófico e dogmático em sua análise, confere clareza à função ideológica desempenhada pelo contrato ao abordar os fundamentos e as implicações políticas dessa categoria para o processo real de exploração capitalista, o que não é pouco. Ao ratificar a adequação do seu uso por Pachukanis, fortemente influenciado pela crítica de Bernard Edelman (2016EDELMAN, Bernard. A legalização da classe operária. Trad. Coord. Marcus Orione et al. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2016.: 191 p.), Biondi reforça a necessidade de que tal categoria seja concebida à luz das determinações históricas e de classe, rompendo assim com um ideal de neutralidade que decorre da perspectiva tradicional e supra-histórica do contrato como simples instrumento de expressão da vontade humana.

O verbete Delito é assinado por Gabriel Furquim, que, no essencial, expõe os principais fundamentos da relação entre direito penal, equivalência mercantil e quantificação da pena, bem como o papel do sistema punitivo na reprodução das relações capitalistas de produção. Um dos méritos de Furquim está, precisamente, no reforço que ele faz da tese pachukaniana de que a “natureza de classe não depende do domínio subjetivo da burguesia, mas das próprias formas sociais engendradas pela valorização do valor” (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 39), o que nos permite encarar o direito penal para além de uma concepção instrumental, que tende a reduzir seu papel na luta de classes ao conteúdo normativo.

Munido de um referencial bastante rigoroso e convergente em torno da leitura da obra pachukaniana, Furquim também aponta para o que seriam “pequenas vacilações” de Pachukanis, referindo-se à sua concepção “idealizada das relações sociais reais” (Ibid.: p. 46) sobre a economia soviética planificada, quadro no qual está inserida a sua proposta de adoção de medidas médico-pedagógicas em substituição às sanções de natureza penal. O didatismo de sua análise, somado aos referenciais que subsidiam sua leitura, sem sombra de dúvidas, abre um leque de possibilidades para o desenvolvimento do tema.

A perspectiva adotada por Furquim mostra-se bastante adequada e coerente com a tradição marxista e pachukaniana. Em sua exposição, verificamos que o valor, como relação social entre os produtores de mercadorias, desenvolve-se por completo apenas no capitalismo, mais especificamente no momento em que se dá a subordinação real do trabalho ao capital e, por conseguinte, quando o trabalho humano é reduzido a trabalho abstrato.

Nesse sentido, Marx (2013______. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2013.: p. 116) afirma que a grandeza do valor é determinada pela quantidade de trabalho nele contida e apurada por um padrão determinado de tempo. Ao explicar como é constituída a grandeza do valor das mercadorias e a razão pela qual o seu conteúdo se expressa precisamente pela forma mercantil, Marx (2013______. O Capital: crítica da economia política: Livro I: o processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2013.: p. 132) revela o princípio da equivalência entre as distintas mercadorias: “a forma de equivalente de uma mercadoria é a forma de sua permutabilidade direta com outra mercadoria”.

Alinhado a isso, Pachukanis nos demonstra, como expõe Furquim, que a forma jurídica do direito penal, com seus conceitos abstratos, está determinada pela forma mercantil do princípio da troca de equivalentes, momento em que se generaliza a pena tal como a conhecemos hoje, isto é, como a privação de um quantum de tempo determinado de liberdade do acusado (PACHUKANIS, 2017______. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017.: p. 215).

O verbete Estado, assinado por Carlo Di Mascio, possui o mérito de articular, de forma muito adequada, os fundamentos em torno da cisão que se expressa politicamente entre o Estado, com seu caráter público de representante do interesse geral, e a sociedade civil, com seu caráter privado, cuja condição de existência é a generalização da troca de mercadorias. Do mesmo modo, é preciso ressaltar a pertinência de sua exposição no que toca à funcionalidade do Estado na reprodução da “forma da relação jurídica entre sujeitos portadores de interesses privados autônomos”, ao mesmo tempo que oculta “as relações de domínio de classe” (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 61).

Adstrito à tese pachukaniana da equivalência mercantil, Di Mascio explica o mecanismo pelo qual o Estado se apresenta como um “terceiro” indiferente aos sujeitos que se enfrentam no circuito de troca de mercadorias, e não como um local de domínio direto de uma classe específica. A importância do verbete reside na crítica à noção redutora do Estado como mero instrumento de classe, de um lado, e na demonstração do seu papel estruturante na exploração capitalista, de outro. Apenas acrescentaria aqui, como um registro ao(à) leitor(a) iniciante, a influência exercida por Pachukanis para o desenvolvimento posterior daquilo que se tem chamado de “teoria derivacionista do Estado”.

Vale registrar que a aparente dificuldade do texto de Di Mascio, que se estende ao texto de Pachukanis, decorre do fato de que ele se refere ao Estado sem recorrer a uma formação social e econômica particular. O que está presente em sua análise é a busca por uma teoria abstrata da categoria Estado. Apesar da ausência desse “alerta” metodológico no texto, a sua exposição esclarece as posições originais de Pachukanis quanto ao papel estrutural do Estado na reprodução das relações capitalistas de produção.

O verbete Estado proletário, assinado por Márcio Naves, discute a natureza do Estado no período de transição para o comunismo de acordo com as posições de Pachukanis, e busca dar conta de uma pergunta formulada, mas não respondida, pelo jurista bolchevique a respeito do porquê da preservação do Estado, diante da proclamação do fim das classes antagônicas na URSS.

No aspecto metodológico, Naves estabelece um recorte temporal necessário na seleção dos textos de Pachukanis. Assim, para tratar do papel do Estado na transição para o comunismo de acordo com a concepção pachukaniana, o autor analisa os escritos que vão de 1924 a 1929, os quais ainda expressavam uma problemática científica, diferente do que viria a ocorrer com os textos da década de 1930, que expressariam uma problemática ideológica, orientada pela doutrina imposta pelo Partido Comunista da União Soviética (PCUS)1 1 Para situar o(a) leitor(a) iniciante, creio que seja importante registrar aqui o papel de Althusser nessa distinção entre problemática ideológica e científica. Cf. Althusser (2015: pp. 133-181); Barison (Org.) (2017: pp.27-114). . A partir dessa abordagem, Naves reconstitui o que há de fundamental no pensamento de Pachukanis e conclui, subsidiado em textos que extrapolam A teoria geral do direito e o marxismo, que o jurista russo teria reconhecido de modo “implícito” a ausência da natureza proletária do Estado soviético no período de transição.

Ao mesmo tempo, Naves constata uma “carência” no tratamento dado por Pachukanis ao tema, o que seria justificado pela ausência de um conceito fundamental à compreensão da formação social e econômica soviética: o conceito de “capitalismo de Estado”. Em decorrência dessa “carência”, segundo Naves (Ibid.: p. 86), Pachukanis “não consegue dar um tratamento teórico consequente à sua crítica, limitando-se a constatar os efeitos de uma causa indeterminada”.

Desse modo, a pergunta deixada em aberto por Pachukanis, e que serve de ponto de partida ao desenvolvimento do argumento de Naves, pode ser respondida da seguinte forma: a existência de relações de produção capitalistas na URSS, e com ela a ascensão de uma nova burguesia (de Estado), demandou a permanente separação entre as massas trabalhadoras e o poder político, de um lado, e o reforço do Estado, de outro.

No verbete Extinção do direito, Carlo Di Mascio dedica parte considerável de sua exposição à forma jurídica. Entretanto, sua apresentação menciona muito rapidamente a alternativa de Pachukanis a respeito de uma “regulamentação não-jurídica” (Ibid.: p. 99), deixando de problematizar o tema de maneira mais aprofundada2 2 A respeito desse tema, cf. Naves (2008: pp. 87-123). , sendo esta uma ausência que o(a) leitor(a) da obra pachukaniana poderá sentir, tendo em vista o escopo do verbete.

Apesar de citar, em sua análise da experiência soviética, que a Nova Política Econômica (NEP) se caracterizava pela reintrodução de “elementos capitalistas na produção” (Ibid.: p. 99) e que a condição da extinção do direito é a abolição das mercadorias, “ou seja, que a lei do valor deixe de operar” (Ibid.: p. 105), resta ausente em seu argumento um conceito fundamental à necessária caracterização daquela formação social e econômica, sem o qual não se compreende a reconstituição do direito soviético: trata-se do conceito de capitalismo de Estado.

Por outro lado, o texto de Di Mascio rechaça, com precisão, a noção reducionista que restringe as relações de produção à sua expressão meramente jurídica, sendo este um mérito de sua análise e que merece destaque, já que afasta da concepção pachukaniana qualquer proximidade com o socialismo jurídico. Finalmente, acompanhando o argumento de Pachukanis, Di Mascio conclui que “a abolição das categorias do mercado deve ser acompanhada da extinção do direito” (Ibid.: p. 106), consignando o que é central ao tema do verbete abordado, isto é, a historicidade da forma jurídica.

O verbete Fetichismo jurídico, escrito por Oswaldo Akamine Jr., acerta ao situar a crítica de Pachukanis no debate jurídico soviético e, ainda mais, ao dedicar uma subseção inteira ao tema do fetichismo da mercadoria segundo Karl Marx, recuperando noções fundamentais da teoria do valor, assim como a dimensão real do fetichismo, elementos que facilitarão a leitura da obra pachukaniana, mesmo para aqueles não familiarizados com a obra de Marx.

Igualmente positiva é a aproximação metodológica que o autor estabelece entre Marx e Pachukanis a partir da categoria do fetichismo, isto é, da busca pela resposta do porquê determinado conteúdo adquire determinada forma correspondente.

Seu texto ajuda a esclarecer uma noção não tão evidente para o(a) leitor(a) iniciante da obra pachukaniana: a equivalência no terreno do direito se dá entre os sujeitos jurídicos. Daí que “a igualdade entre os indivíduos é o pressuposto para que existam regras que obriguem a todos. Nesses termos, as normas postas pelas autoridades se tornam jurídicas em função da universalidade do sujeito de direito” (Ibid.: p. 121).

De outra perspectiva, sua análise deixa claro que assim como ocorre com os produtos do cérebro humano, na religião, e com os produtos do trabalho, na produção, também a norma jurídica, no caso do direito, tende a mascarar as relações sociais que constituem seu substrato concreto, assumindo para si o papel criativo e dominante, quase natural e irremediável, como se fosse ela (a norma jurídica) a responsável por “dar vida” às relações jurídicas e aos próprios sujeitos de direito.

Na exposição do direito como forma social, coube a Carolina de Roig Catini o verbete Forma jurídica, um dos conceitos-chave da teoria pachukaniana. É preciso registrar que a obra de Pachukanis foi um dos referenciais utilizados por Catini para o desenvolvimento de sua tese de doutoramento a respeito da forma escolar (CATINI, 2013CATINI, Carolina de Roig. A escola como forma social: um estudo do modo de educar capitalista. Tese (Doutorado em Educação). Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. São Paulo, 258 p., 2013.: 258 p.), o que, de certo modo, contribui para demonstrar tanto a capacidade e o domínio conceitual pela autora do verbete, quanto a riqueza dos pressupostos teóricos e metodológicos presentes na crítica pachukaniana, o que, neste último ponto, lhe permite desdobramentos para além do direito.

Catini identifica que, segundo Pachukanis, “a relação de direito toma a forma jurídica porque ela nasce das relações materiais entre sujeitos privados” (AKAMINE JR. et al. 2020: p. 128), de modo que a forma imposta pelo capital “faz do direito o meio da relação mercantil” (Ibid.: p 128) capaz de assegurar o circuito de trocas e a produção de mercadoria. Sua análise capta com aguçada precisão a dificuldade metodológica e a barreira ideológica que o normativismo representa quando se inicia a leitura da obra pachukaniana, já que ela “exige um movimento de abandono de uma ideologia que reveste nossas relações com uma densa áurea, que não apenas neutraliza, mas positiva o direito e a forma jurídica” (Ibid.: p. 126).

Tema polêmico, mas que vai muito além dos propósitos de um léxico com pretensões introdutórias, assenta em duas passagens de seu texto: o primeiro quando localiza o “fundamento da forma jurídica em sua expressão mais elementar” (Ibid.: p. 130) na circulação simples; o segundo, esse mais incisivo, quando afirma que “a crítica da forma jurídica precisa ultrapassar muito a esfera da circulação simples e acompanhar os momentos de reprodução ampliada de capital e de suas formas autonomizadas” (Ibid.: p. 137).

No intuito de fornecer uma contribuição adicional, creio ser necessário situar o(a) leitor(a) sobre a polêmica que envolve o tema da circulação simples na crítica pachukaniana, bem como registrar as principais posições existentes a esse respeito no âmbito da crítica marxista do direito no Brasil3 3 Sobre esse tema (crítica circulacionista), cf. Akamine Jr. (2015: pp. 195-229); Kashiura Jr. (2014: pp. 205-217); Naves (2008; 2014); Casalino (2011; 2015a; 2015b); além do subitem “Sujeito de direito e produção capitalista” que compõe o verbete “Sujeito de direito” (AKAMINE JR. et al., 2020: pp. 249-254). .

Assim, de um lado, há quem considere que Pachukanis teria negligenciado a distinção entre circulação simples e circulação capitalista de mercadorias (CASALINO, 2011CASALINO, Vinicius. O direito e a mercadoria: para uma crítica marxista da teoria de Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Dobra editorial, 2011.: 184 p.), de modo a hipostasiar e a tratar de forma abstrata a categoria “troca de mercadorias” (Ibid.: p. 164), cujo resultado levaria à aproximação do direito com a circulação independentemente do processo de produção capitalista; de outro, numa leitura que faz uso de um repertório conceitual rigoroso dentro da tradição marxista, como é o caso das noções de subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital e também da noção althusseriana de sobredeterminação, há a leitura de que o direito, na análise de Pachukanis, é imediatamente determinado pela circulação mercantil e mediatamente determinado (ou sobredeterminado) pela produção (NAVES, 2008______. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008.: p. 72), de modo que a forma jurídica somente tem condições de existir no momento em que a natureza mesma da circulação de mercadorias passa a ser estruturada pelas relações capitalistas de produção (KASHIURA JR., 2014______. Sujeito de Direito e Capitalismo. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014.: p. 217), sendo que estas, em última instância, afetariam também o próprio direito. Essa segunda posição, com a qual estou de acordo, converge com a afirmação de Pachukanis (1927PACHUKANIS, Evgeni. Obshchaya teoriya prava i marksizm. 3.ed. Moscou: Izdatel'stvo Kommunisticheskoy Akademii, 1927.: p. 8; 2017: p. 62) de que “a forma jurídica [...] é produto da mediação real das relações de produção” (forma prava [...] est' produkt [...] real'nogo oposredstvovaniya proizvodstvennykh otnosheniy).

Flávio Batista, que assina o verbete Ideologia jurídica, investiga o significado da ideologia em geral e especialmente da ideologia jurídica. Para tanto, extrapola os limites de A teoria geral do direito e o marxismo. Apesar do objetivo introdutório do livro, o autor realiza uma tarefa inédita e bastante interessante, qual seja, analisar os diferentes momentos e as variações que sofre o conceito de ideologia no conjunto de escritos de Pachukanis, o que se tornou possível com a recente publicação da coletânea de textos inéditos do jurista bolchevique (PACHUKANIS, 2017______. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017.: 388 p.).

O principal resultado de Batista, acredito, é confirmar uma percepção que já havia apresentado anteriormente (BATISTA, 2015BATISTA, Flávio Roberto. O conceito de ideologia jurídica em Teoria geral do direito e marxismo: uma crítica a partir da perspectiva da materialidade das ideologias. In: Verinotio revista on-line - n. 19. Ano X, pp. 91-105. abr./2015.: pp. 91-105) no sentido de que, no essencial, Pachukanis emprega uma noção vinculada à materialidade em sua compreensão da ideologia, de modo a relacioná-la com a dominação de classe. Ademais, Batista identifica uma certa pluralidade de significados em torno do conceito de ideologia dentro do conjunto de textos analisados, sendo um mais central (“ligação entre ideologia e consciência, representação ou subjetividade”), e outros mais secundários (“deturpação ideológica”, “névoa ideológica”), o que lhe permite concluir que “Pachukanis alterna [...] os sentidos epistemológicos e político” (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 151) do conceito de ideologia.

O verbete Método, assinado por Carlo Di Mascio, merece grande destaque, já que uma análise mais sistemática a esse respeito sobre a obra de Pachukanis, até hoje, restringia-se a um texto de Kashiura Jr. (2009______. Dialética e forma jurídica: considerações acerca do método de Pachukanis. In: NAVES, Márcio (Org.). O discreto charme do direito burguês: ensaios sobre Pachukanis. Campinas-SP: Ed. Unicamp, 2009b, pp. 53-77.: pp. 53-77), o qual, anos depois, foi objeto de uma belíssima autocrítica4 4 Palestra proferida por Celso Kashiura Jr. ao longo da “Semana Marxismo e Direito”, promovida pelo Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito (GPMD), na PUC-SP, em 07/11/2016. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OHBy7v-voCM>>. . A exposição de Di Mascio é importante na medida em que reafirma a historicidade da forma jurídica, diferenciando, nesse ponto, as posições de Piotr Stutchka e Pachukanis, bem como por assinalar as determinações objetivas do fenômeno jurídico, ao mesmo tempo que afasta uma perspectiva voluntarista do direito como expressão da vontade de classe, que, em último caso, impede de relacioná-lo às relações de produção. As ideias lançadas neste verbete também contribuem para reforçar o vínculo indissociável que existe entre Marx e Pachukanis.

Partindo das posições registradas por Marx (2011Marx, Karl. Introdução (pp.37-64). In: Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2011.: pp. 37-64) na Introdução de 1857, Di Mascio recupera o tema da dialética entre forma e conteúdo e totalidade abstrata e totalidade concreta para demonstrar a apropriação feita por Pachukanis desse procedimento metodológico, bem como a sua “transposição” para a crítica do direito. Assim, Di Mascio reconstitui o fundamento metodológico de Pachukanis, que adota como ponto de partida de sua crítica a “análise da forma jurídica em seu aspecto mais abstrato e puro” (PACHUKANIS, 2017______. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017.: p. 95), ou seja, a categoria mais simples, “passando gradualmente, por meio de complexificação, ao historicamente concreto” (Ibid.: p. 95).

Daí a afirmação de Pachukanis (2017______. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo e Ensaios Escolhidos (1921 - 1929). Coord. Marcus Orione. Trad. Lucas Simone. 1.ed. São Paulo: Sundermann, 2017.: p. 137) de que “toda relação jurídica é uma relação entre sujeitos. O sujeito é o átomo da teoria jurídica, o elemento mais simples, que não pode ser decomposto”. Ponto fundamental a respeito desse procedimento metodológico, e que de certo modo está presente no texto de Di Mascio (AKAMINE JR. et al., 2020: pp. 161-170), refere-se à necessária distinção que é preciso ter em mente quando da leitura da obra de Pachukanis.

Tal distinção diz respeito ao processo de autogênese do conceito então presente em Hegel, e pelo qual o método que vai do abstrato ao concreto não passaria de um processo de gênese do próprio concreto (MARX, 2011Marx, Karl. Introdução (pp.37-64). In: Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2011.: pp. 54-55). A análise de Pachukanis, tal como a de Marx, é outra. O seu objeto de análise é o processo histórico real ou o “concreto-realidade”, que por meio da intervenção teórica, é transformado em “concreto-de-pensamento”, isto é, em conhecimento. Ir do abstrato ao concreto não é caminhar da teoria à realidade. Ao contrário, é abstrair a realidade, agir sobre ela por meio da teoria científica, para a ela retornar, mas agora com um conhecimento capaz de afastar as representações ideológicas que sobre ela pesavam ao início do processo (Cf. ALTHUSSER, 2015ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Trad. Maria Leonor F.R. Loureiro. 1.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.: pp. 133-181). Voltarei a esse ponto no tópico Sujeito de direito.

No verbete Moral, Celso Kashiura Jr. (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 177) afirma que a preocupação de Pachukanis é “aproximar moral e circulação mercantil, apontando uma determinação social comum à subjetividade moral, à subjetividade jurídica e à subjetividade econômica”. Em seu texto, Kashiura Jr. reconstitui as posições de Pachukanis, extrai de sua obra uma síntese das determinações históricas do processo de constituição da “moral” e estabelece um paralelo com o pensamento de Kant, já que é contra este que Pachukanis “volta grande parte de suas críticas” (Ibid.: p. 183).

Além de expor alguns dos pressupostos das posições kantianas e suas contradições, Kashiura Jr. retoma as determinações materiais que possibilitaram o surgimento da forma moral, fornecendo ainda elementos para que seja atingida a conclusão pachukaniana da especificidade burguesa da moral. Daí decorrem duas importantes conclusões: “não há moral antes e não pode haver moral para além da sociedade burguesa [...]. Forma moral, forma jurídica e também a forma Estado devem ser extintas na transição para a sociedade comunista” (Ibid.: pp. 186-188).

O movimento elaborado por Kashiura Jr., registro, vai muito além do que se poderia esperar de uma obra com finalidade introdutória. Retomando a distinção entre “trabalho concreto” e “trabalho abstrato” (KASHIURA JR., 2014______. Sujeito de Direito e Capitalismo. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014.: pp. 195-205), extraída de La Grassa (1975LA GRASSA, Gianfranco. Valore e formazione sociale. 1. ed. Roma, Itália: Editori Riuniti, 1975.: 234 p.), bem como as noções de sobredeterminação, subsunção formal e subsunção real do trabalho ao capital, tal como empregadas por Naves (2008______. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008.; 2014), Kashiura Jr. conclui que a forma moral, na concepção pachukaniana, está sedimentada na expropriação do controle do trabalhador sobre as condições subjetivas e objetivas da produção, cujo resultado é a especificidade burguesa da forma moral.

Resulta dessa compreensão a impossibilidade de se falar de uma moral socialista. Sua análise da forma moral, registra-se, opõe Pachukanis às noções empregadas, por exemplo, por Leon Trotsky e Adolfo Vázquez, para ficarmos apenas em dois teóricos marxistas que se preocuparam com esse tema, já que segundo estes, diferente de Pachukanis, a moral corresponde aos interesses de classe (TROTSKY, 1969TROTSKY, Leon. Moral e revolução: a nossa moral e a deles. Trad. Otaviano de Fiore. 1.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.: p. 15) e varia de acordo com cada modo de produção (VÁZQUEZ, 1999VÁZQUEZ, Adolfo. S. Ética. Trad. João Dell’Anna. 19.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.: p. 37).

O verbete Norma jurídica, de autoria de Oswaldo Akamine Jr., merece destaque pela clareza num dos temas que, parece-me, é fruto de muita confusão nos estudos sobre Pachukanis, haja vista o choque que sua obra representa com relação à tradição normativista: a identificação imediata entre direito e norma. O autor (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 197), de forma muito adequada, formula a seguinte pergunta: por qual razão “as normas que organizam a vida social precisam adquirir uma dimensão propriamente jurídica?”. Após reconstituir as posições de Pachukanis, Akamine Jr. conclui que, “para o jurista soviético, a origem da juridicidade de certas normas sociais decorre da universalização da troca mercantil” (Ibid.: p. 204). Akamine Jr. também trata da relação entre “normas jurídicas” e “normas técnicas”, tema presente no texto de Pachukanis. No entanto, sua apresentação, seguramente pelo próprio objetivo do Léxico..., não problematiza a oposição pachukaniana entre esses termos, cuja abordagem apenas foi iniciada por Márcio Naves, carecendo ainda de análises mais profundas5 5 Cf. NAVES (2008: pp. 120-121). .

Creio que uma das grandes contribuições da exposição de Akamine Jr. reside na clareza que ela confere ao texto pachukaniano no sentido de demonstrar que a redução do direito à normatividade jurídica, contra a qual Pachukanis se levanta, ademais de retirar-lhe o elemento histórico, acaba por ocultar, sob o ideal de igualdade, as relações de classe e de exploração que cingem a sociedade. Acrescentaria aqui, como complemento para o(a) leitor(a) iniciante, uma referência importante para situar as diferentes dimensões em que operam Pachukanis e Kelsen, maior referência do campo da normatividade jurídica. Trata-se do texto “A teoria pura do direito e o marxismo” (AKAMINE JR., 2017AKAMINE JR., Oswaldo. A teoria pura do direito e o marxismo. 1.ed. São Paulo: Edições Lado Esquerdo, 2017.: 63 p.).

O verbete Propriedade, que já contava com duas análises importantes6 6 KASHIURA JR. (2009a: pp. 62-66; 2014: pp. 173-179). , também é subscrito por Oswaldo Akamine Jr., que acentua em seu texto a posição de Pachukanis a respeito da especificidade capitalista do direito como elemento central para investigar sua compreensão em torno da propriedade (AKAMINE JR. et al., 2020: pp. 213-214). Nesse sentido, a articulação entre economia mercantil-capitalista, sujeito de direito e propriedade é fulcral: “uma vez que o sujeito de direito é, na raiz, um desenvolvimento da figura do proprietário, é necessário concluir que a generalização do sujeito de direito, implica a generalização da propriedade” (KASHIURA JR., 2009aKASHIURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. 1.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009a.: p. 63). Daí que “o direito de propriedade expressa, pela mediação da forma sujeito de direito, a fungibilidade universal das mercadorias” (KASHIURA JR., 2014______. Sujeito de Direito e Capitalismo. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014.: p. 164).

O que está em jogo em torno da concepção de propriedade, portanto, é a permutabilidade, motivo pelo qual Akamine Jr. conclui que “a qualidade de proprietário seria uma qualidade que ‘recobriria’ não exatamente uma pessoa concreta, mas uma ação a ela atribuível: a manifestação da vontade de trocar” (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 217). Em outros termos, como afirma Pablo Biondi (Ibid.: p. 22), para Pachukanis, a propriedade é vista como uma “determinação jurídica específica (e não como mera apropriação orgânica das coisas) [que] só se realiza na dinâmica das trocas mercantis”. Com isso, acredito, o autor reforça uma contribuição crítica e materialista que nos permite repensar a ideia tradicional em torno do tema da propriedade, que habitualmente é reduzida à noção de poder de disposição de um indivíduo sobre uma coisa determinada e da qual ele é o seu titular.

O verbete Relação jurídica permite a Pablo Biondi retomar diversos assuntos já tratados de forma mais detalhada ao longo dos verbetes anteriores. Ademais, Biondi adentra na crítica de Stutchka a Pachukanis e identifica o reducionismo presente naquele quando reduz as relações capitalistas de produção à sua expressão jurídica, isto é, às relações jurídicas de propriedade7 7 Para uma crítica dessa concepção, Cf. Bettelheim (1978: 95-99); Chavance (1980: 327 p.); Fabrègues (1976: pp.15-49; 1977/1978: pp. 40-53); La Grassa (1978: pp. 111-143); Naves (1998: pp. 75-87; 1994: pp. 71-74). , finalizando o tema remetendo o(a) leitor(a) à imprescindível obra de Étienne Balibar.

Do mesmo modo, há que destacar outra grande qualidade do texto de Biondi quando retoma a oposição entre norma técnica e norma jurídica, já suscitada no verbete Norma jurídica, buscando relacioná-las, respectivamente, com as categorias do valor de uso e do valor, o que, de certo modo, não fica explícito no texto pachukaniano. As ideias inéditas lançadas aqui por Biondi, certamente, fornecem um elemento favorável, senão justificador, à hipótese pachukaniana em torno das normas técnicas.

Todo o trajeto de Biondi (Ibid.: pp. 221-223) permite avançar da aparência ao significado real, de acordo com Pachukanis, do conceito de relação jurídica: “em sua aparência, a relação jurídica é apenas uma relação de vontade (ou que orbita em torno da vontade) entre os homens em geral”. Todavia, conclui Biondi, “a relação jurídica emerge como invólucro material necessário que se acopla à relação econômica [...]; são as relações econômicas que, por si mesmas, forjam sua própria moldura jurídica”.

O verbete Sujeito de direito, que encerra o livro, é assinado por Celso Kashiura Jr. Seu texto permite retomar as ideias suscitadas nos verbetes precedentes a partir de uma categoria específica: o sujeito de direito, conceito que transparece em praticamente todos os artigos anteriores, o que reforça a sua centralidade e imprescindibilidade para a crítica marxista ao direito.

A razão disso, acredito, está no seguinte ponto: se considerarmos o já mencionado método marxiano da concreção, o caminho percorrido pelo Léxico... nos revela que a categoria sujeito de direito constitui aquilo que Marx (2011Marx, Karl. Introdução (pp.37-64). In: Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858: esboços da crítica da economia política. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2011.: p. 54) denomina de “ponto de partida efetivo”, não obstante apareça como o resultado do processo de pensamento. Logo, a categoria sujeito de direito constitui o conhecimento efetivo do direito e para a qual convergem as múltiplas determinações e mediações que nela estão sintetizadas.

Em sua exposição, Kashiura Jr. acentua pressupostos teóricos e metodológicos da obra pachukaniana e passa pela articulação entre forma mercantil e forma jurídica. Em seguida, Kashiura Jr. se ocupa da crítica “circulacionista” que recai sobre Pachukanis, rebatendo-a com o auxílio da leitura proporcionada por Gianfranco La Grassa (1975)LA GRASSA, Gianfranco. Valore e formazione sociale. 1. ed. Roma, Itália: Editori Riuniti, 1975. e Márcio Naves (2014)______. A Questão do Direito em Marx. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014., notadamente a partir dos conceitos de “subsunção formal” e “subsunção real” do trabalho ao capital.

Ao enfrentar a noção pachukaniana de “direito embrionário”, “uma forma jurídica incompleta” (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 253), Kashiura Jr. considera se tratar de uma “vacilação” decorrente do “desconhecimento do que há de específico na subsunção real do trabalho ao capital e no trabalho materialmente abstrato” (Ibid.: pp. 252-253), mas que não acarreta qualquer prejuízo à teoria do jurista bolchevique, precisamente por “ocupar um lugar subordinado” (Ibid.: p. 253) na obra de Pachukanis.

Finalmente, registro que o(a) leitor(a) iniciante conta ainda com outras produções de Celso Kashiura Jr. (2009aKASHIURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. 1.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009a.; 2014______. Sujeito de Direito e Capitalismo. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014.) como forma de apreender o significado irrevogável da categoria sujeito de direito para a crítica marxista do direito, e cujos traços elementares encontram-se agora concentrados no presente verbete que integra o Léxico....

Dois textos inéditos de Pachukanis

Ao final do livro, o(a) leitor(a) ainda encontrará um anexo com Dois textos de Pachukanis. O primeiro diz respeito a um “relato” do jurista bolchevique sobre a experiência do Tribunal Popular, instituição que surgiu logo após a revolução de outubro de 19178 8 A respeito do tema, Cf. Stutchka (2009: 112 p.) e Naves (2008: pp. 15-38). . Cinco anos depois de seu surgimento, Pachukanis constata a inexistência de operários nas câmaras do Tribunal, “em meio ao mundo burguês que o rodeia” (AKAMINE JR. et al., 2020: p. 264, itálico meu). O segundo texto é uma resenha sobre escritos contidos nos volumes dos arquivos de Marx e Engels, dentre os quais estão a Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e os rascunhos de A Sagrada Família.

Conclusão

As dificuldades sentidas quando se estabelece o primeiro contato com a obra de Pachukanis serão fortemente amenizadas a partir da publicação do Léxico..., que cumpre com seus dois objetivos principais. Sem qualquer rebaixamento ou simplificação, o livro esclarece temas importantes para o(a) leitor(a) iniciante e introduz problematizações para o(a) leitor(a) mais habituado. Nesse sentido, o Léxico... vem facilitar os estudos de quem pretende estabelecer contato com a obra pachukaniana ou mesmo aprofundar sua análise a respeito dela.

Além de fornecer um material relativamente didático, o Léxico... também oferece real possibilidade de avanço da crítica marxista do direito, o que, neste último caso, decorre das leituras que articulam as teses pachukanianas com obras que colaboraram para o desenvolvimento da teoria marxista nos últimos cem anos, como é o caso da tese do capitalismo de Estado de Charles Bettelheim, da teoria da ideologia de Louis Althusser, da concepção de Bernard Edelman, da leitura de Gianfranco La Grassa em torno dos conceitos de forças produtivas e relações de produção, do emprego que Márcio Naves faz do conceito de subsunção real do trabalho ao capital na crítica marxista do direito, etc.

É preciso registrar, com o merecido destaque, que o Léxico... é um trabalho primoroso e que realiza uma função sem precedentes. Por isso mesmo, acredito que o Léxico... passa a compor a bibliografia obrigatória da crítica marxista do direito, constituindo uma das mais importantes publicações dos últimos anos para os(as) pesquisadores(as) e estudiosos(as) comprometidos(as) com o desvelamento da ideologia jurídica.

  • 1
    Para situar o(a) leitor(a) iniciante, creio que seja importante registrar aqui o papel de Althusser nessa distinção entre problemática ideológica e científica. Cf. Althusser (2015ALTHUSSER, Louis. Por Marx. Trad. Maria Leonor F.R. Loureiro. 1.ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2015.: pp. 133-181); Barison (Org.) (2017BARISON, Thiago (Org.). Teoria Marxista e análise concreta: textos escolhidos de Louis Althusser e Étienne Balibar. 1.ed. São Paulo: Expressão Popular, 2017.: pp.27-114).
  • 2
    A respeito desse tema, cf. Naves (2008______. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008.: pp. 87-123).
  • 3
    Sobre esse tema (crítica circulacionista), cf. Akamine Jr. (2015______. Luta de Classes e forma jurídica: apontamentos. p. 195-229. In: KASHIURA JR., Celso. N.; et al. (Orgs.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Editorial Dobra, 2015.: pp. 195-229); Kashiura Jr. (2014______. Sujeito de Direito e Capitalismo. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014.: pp. 205-217); Naves (2008______. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008.; 2014); Casalino (2011CASALINO, Vinicius. O direito e a mercadoria: para uma crítica marxista da teoria de Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Dobra editorial, 2011.; 2015a______. Ideologia jurídica e capital portador de juros. p. 289-329. In: KASHIURA JR., Celso. N.; et al. (Orgs.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas jurídicas. 1.ed. São Paulo: Outras Expressões; Editorial Dobra, 2015a.; 2015b______. Troca, circulação e produção em Teoria geral do direito e marxismo: Sobre a crítica “circulacionista” à teoria de Pachukanis. Verinotio - revista on-line de filosofia e ciências humanas - Espaço de interlocução em ciências humanas n. 19, Ano X, abr./2015 - Publicação semestral - ISSN 1981-061X, pp. 106-125, 2015b.); além do subitem “Sujeito de direito e produção capitalista” que compõe o verbete “Sujeito de direito” (AKAMINE JR. et al., 2020: pp. 249-254).
  • 4
    Palestra proferida por Celso Kashiura Jr. ao longo da “Semana Marxismo e Direito”, promovida pelo Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito (GPMD), na PUC-SP, em 07/11/2016______. Dialética e Forma Jurídica: considerações acerca do método em Pachukanis. Palestra proferida durante a Semana Marxismo e Direito promovida pelo Grupo de Pesquisa Marxismo e Direito (GPMD) na PUC-SP, em 07/11/2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=OHBy7v-voCM. Acesso em dezembro de 2020. Acesso em: dezembro de 2020.
    https://www.youtube.com/watch?v=OHBy7v-v...
    . Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=OHBy7v-voCM>>.
  • 5
    Cf. NAVES (2008______. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008.: pp. 120-121).
  • 6
    KASHIURA JR. (2009aKASHIURA JR., Celso Naoto. Crítica da igualdade jurídica: contribuição ao pensamento jurídico marxista. 1.ed. São Paulo: Quartier Latin, 2009a.: pp. 62-66; 2014: pp. 173-179).
  • 7
    Para uma crítica dessa concepção, Cf. Bettelheim (1978BETTELHEIM, Charles. Nature de la société soviétique. In: Pouvoir et opposition dans les sociétés postrévolutionnaires. Trad. Philippe Guilhon; et al. Paris: Éditions du Seuil, 1978, pp. 95-99.: 95-99); Chavance (1980CHAVANCE, Bernard. Le capital socialiste: histoire critique de l’économie politique du socialisme 1917-1954. 1.ed. Paris: Le Sycomore, 1980.: 327 p.); Fabrègues (1976FABRÈGUES, Bernard. Staline, la lutte des classes, l'État. Communisme, Paris, n. 24, pp. 15-49, Set.-Out. 1976.: pp.15-49; 1977/1978______. Questions sur la théorie du socialisme. In: Communisme. nº. 31/32. pp. 40-53, 1977/1978.: pp. 40-53); La Grassa (1978______. Organización del proceso productivo capitalista y ‘socialismo’ en la URSS. pp. 111-143. In: JAGUIN, Aureliano; LA GRASSA, Gianfranco. Proceso productivo capitalista y socialismo en la URSS. Trad. Tomás March. Valencia, 1978.: pp. 111-143); Naves (1998______. Stalinismo e capitalismo: “a disciplina do açoite”. Outubro. 6. ed. nº. 2. pp. 75-87, 1998.: pp. 75-87; 1994NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e capitalismo de Estado. Critica Marxista, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 71-74, 1994.: pp. 71-74).
  • 8
    A respeito do tema, Cf. Stutchka (2009STUTCHKA, Piotr Ivanovich. Direito de classe e revolução socialista. Trad. Emil von Munchen. 3. ed. São Paulo: Sundermann, 2009.: 112 p.) e Naves (2008______. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. 1.ed. São Paulo: Boitempo, 2008.: pp. 15-38).

Agradecimento

Gostaria de registrar meu sincero agradecimento ao professor e meu orientador, Davisson Charles Cangussu de Souza, pela leitura do manuscrito e pelos comentários tecidos durante a elaboração da presente resenha.

Referências bibliográficas

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    21 Dez 2020
  • Aceito
    04 Fev 2021
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