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Esculpir o ideal do “novo homem” e da “nova mulher” no Estado Novo

Sculpting the ideal of the “new man” and the “new woman” in the Estado Novo

CERCHIARO, Marina. Esculpindo para o ministério: arte e política no Estado Novo. . São Paulo: Publicações BBM, 2022

RESUMO

Esta resenha crítica oferece um panorama dos principais temas debatidos pela autora do livro a partir do conjunto escultórico encomendado pelo Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro, na gestão de Gustavo Capanema como ministro durante o Estado Novo.

PALAVRAS-CHAVE
Ministério da Educação e Saúde; escultura; Estado Novo

ABSTRACT

This critical review offers an overview of the main themes discussed by the book’s author based on the sculpture set commissioned by the Ministério da Educação e Saúde, in Rio de Janeiro, in Gustavo Capanema’s term as minister during the Estado Novo.

KEYWORDS
Ministério da Educação e Saúde; sculpture; Estado Novo

Esculpindo para o ministério: arte e política no Estado Novo é a premiada pesquisa de Marina Cerchiaro, laureada do Prêmio 3 x 22 de Teses e Dissertações “Centenário da Semana de Arte Moderna”, publicada pela Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin em 2022. A obra revisita autores centrais para o modernismo brasileiro e lança um olhar renovado para o projeto do Ministério da Educação e Saúde (MES) a partir de seu conjunto escultórico. A inquietação de Cerchiaro, agora sob forma de livro, apresenta ao leitor uma análise comparada e inédita das obras de Celso Antônio de Menezes, Adriana Janacópulos e Bruno Giorgi, que buscaram delinear o ideal do “novo homem” e “da nova mulher” brasileiros, modelos civilizacionais no Estado Novo. Contudo, Cerchiaro não apenas se detém aos projetos exitosos, mas se debruça sobre as diversas encomendas de Gustavo Capanema, então ministro, a outros escultores, como Victor Brecheret ou Ernesto de Fiori, as quais, por incompatibilidade com o projeto do ministro, não vieram a cabo.

A importância do livro, para além do ineditismo das análises, repousa no intenso trabalho arquivístico de Cerchiaro, que soube condensar a documentação obtida em mais de 20 instituições, nacionais e internacionais, com destaque para o trabalho de pesquisa no Musée Bourdelle, em Paris. Nesse sentido, de Esculpindo para o ministério emerge uma polifonia de vozes; a autora revela os intercâmbios epistolares do então ministro, dos artistas, de Mário de Andrade e de agentes na construção do ideário varguista, no projeto do MES, bem como diversas negociações e redes de sociabilidade desses atores. A análise da documentação, à luz das pesquisas de Annateresa Fabris e Sergio Miceli, permite a relativização da relação entre cliente e artistas; para a autora, estes não estavam subordinados ao poder político, mas eram, antes, agentes nas disputas político-estéticas e valeram-se do “poder do Estado para legitimar seus próprios trabalhos” (p. 70).

A obra apresenta quatro capítulos. O primeiro deles, dedicado ao panorama do programa escultórico do MES, brinda o leitor com um quadro das principais vertentes escultóricas em voga na Paris do entreguerras, com as quais dialogam especialmente Celso Antônio e Adriana Janacópulos: destacam-se Aristide Maillol e Charles Despiau, além de Antoine Bourdelle. Diante da filiação dos artistas brasileiros a uma tradição escultórica humanista, de matriz francesa, Cerchiaro argumenta que não há incompatibilidade entre suas propostas e o projeto modernista do MES. A autora sugere, ainda, que a vertente escolhida tenha encaminhado a produção escultórica local em direção ao classicismo de artistas como Maillol e Despiau e combate a noção de “modernismo exemplar” (p. 100), alertando o leitor acerca das multiplicidades, continuidades e rupturas de um campo em disputa.

O segundo capítulo, por sua vez, analisa os bastidores da encomenda que representaria o “novo homem”, a mais importante do projeto, que, no entanto, não se realizou. A documentação analisada por Cerchiaro testemunha os vários desencontros acerca de sua concepção: de um lado, Celso Antônio, incumbido da tarefa, cuja proposta orientava-se em torno da diversidade étnica e cultural e, portanto, propunha um homem que representasse o caráter mestiço do povo brasileiro; e, de outro, o ministro e seus demais interlocutores, com destaque para Roquette-Pinto, para quem o “novo homem” deveria ser um mestiço, mas “branco moreno”, o que evidencia a mestiçagem como embranquecimento. A proposta de Celso Antônio projetava Homem brasileiro, versão ampliada de Homem sentado, apresentada em 1931 no Salão da Escola Nacional de Belas Artes, de fisionomia negra, cabelos encaracolados e sentado - outro traço de dissensão: para Roquette-Pinto, interessava a representação de um homem em postura ereta. Segundo Cerchiaro, Capanema, ainda que reconhecesse a diversidade étnica, pretendia, na projeção desse novo símbolo, conjugar “a ideia de civilização, que só poderia ser transmitida se fossem adicionadas ao mestiço as noções de branquitude” (p. 226). Nesse sentido, a escultura desse “novo homem”, embora não tenha se concretizado, constitui-se como uma contranarrativa e interessa na medida em que evidencia as várias divergências e concepções de brasilidade do período, o que Cerchiaro apresenta com riqueza de detalhes em sua pesquisa.

Se o trabalho da autora em torno “do novo homem” traz contribuições preciosas para o campo da escultura, a análise do conjunto escultórico que forja a “nova mulher” não se distingue. O terceiro capítulo explora as obras Moça ajoelhada, Moça reclinada e Mãe, de Celso Antônio, e Mulher, de Adriana Janacópulos. Segundo Cerchiaro, as obras de Celso Antônio buscaram tipificar imagens nacionais sob a égide do “primitivo” e, para além das fisionomias das figuras femininas, que evocam a “índia” ou a “mulata”, a autora faz interessante análise das posturas de tais personagens. As posições escolhidas pelo artista -sentada e reclinada - dialogam com uma tradição visual francesa, presente em obras de Henri Matisse, Paul Gauguin e Aristide Maillol, e evocam uma gestualidade associada ao feminino e ao erotismo, inserida em discurso primitivista no domínio da natureza. A exceção é a escultura Mãe, alegoria da cuidadora da “nova nação”, saudável, afetuosa e casta.

Mulher, de Adriana Janacópulos, por seu turno, desvencilha-se da tradição francesa de sua época e rompe com a construção do arquétipo da mulher com base em pesquisas nacionalistas. A obra coloca em cena um corpo branco, respondendo assim ao anseio de branquitude como progresso, sobre o qual se imprime um gesto disruptivo: o corpo feminino, ainda que sentado, difere das figuras passivas de Celso Antônio; as mãos da personagem, apoiadas no bloco que apoia o corpo, estão prontas para desgarrarem-se dele. Assim, Janacópulos concede à mulher ação e desejo de movimento, um “indício do empoderamento feminino” (p. 390); e esta é apenas uma das interessantes reflexões que nos oferece Cerchiaro a partir de uma vasta bibliografia que percorre as teorias de gênero. Única artista mulher a receber encomendas no projeto do MES, Janacópulos é uma exceção, vide o lugar à margem ocupado por Tarsila do Amaral e Anita Malfatti, ausentes dos veículos de propagação da política cultural varguista (SIMIONI, 2022SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres Modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira. São Paulo: Edusp, 2022. 360 p., p. 257). Embora sejam escassos os estudos que versem sobre a artista, a autora demonstrou a justificada escolha de Janacópulos para compor o programa escultórico do MES - ademais de sua experiência na capital francesa, a artista desfrutou de certa visibilidade na imprensa brasileira, realizou mostra individual com cobertura midiática e recebeu encomendas públicas no Rio de Janeiro e São Paulo.

O quarto capítulo disserta sobre o Monumento à juventude brasileira, executado por Bruno Giorgi. A obra coloca em cena um casal inter-racial, a posição dos corpos forjados pelo artista evoca a monogamia e a hierarquia entre os gêneros - a mulher avança atrás do homem branco. A autora sugere que a hierarquia do corpo masculino sobre o feminino anuncia a imagem da nação brasileira, que procurou forjar o MES: “um país mestiço e civilizado, fundado no sexo inter-racial e moralizado pelo casamento e pelo lar” (p. 382). Para além da análise, complexa e rica de referências, o capítulo oferece importante perspectiva sobre o papel do ministro no aceite das encomendas para o MES. Os documentos consultados pela autora demonstram que, apesar de contratos e editais de concurso, a decisão de Capanema imperava - é o caso de Monumento à juventude brasileira, visto que o contrato firmado entre Giorgi e o MES dá-se no mesmo dia em que se abre concurso de seleção para a execução do projeto.

Isso posto, Esculpindo para o ministério: arte e política no Estado Novo disserta sobre as relações entre arte e política e entrega ao leitor análises inéditas e articuladas do conjunto escultórico do MES. Cerchiaro oferece um estudo apurado do papel do ministro na concepção do projeto, na relação com seus interlocutores, na elaboração das encomendas e na escolha dos artistas. A obra faz par com as referências de renome do campo e é incontornável àqueles que se interessam pelas encomendas públicas no período Vargas, pelas políticas públicas de cultura ou, ainda, pela produção de artistas mulheres, haja vista a preciosa reflexão acerca de Adriana Janacópulos.

Referências

  • CERCHIARO, Marina Mazze. Esculpindo para o ministério: arte e política no Estado Novo. Dissertação (Mestrado em Filosofia). Programa de Pós-Graduação Culturas e Identidades Brasileiras, Instituto de Estudos Brasileiros, Universidade de São Paulo, 2016.
  • SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti. Mulheres Modernistas: estratégias de consagração na arte brasileira. São Paulo: Edusp, 2022. 360 p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2023
  • Aceito
    05 Jun 2023
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