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Gyorgy Lukács e Agnes Heller: uma relação discipular?

Gyorgy Lukács and Agnes Heller: a disciplic relationship?

Resumo:

Este artigo discute a relação entre Gyorgy Lukács e Agnes Heller. Apresenta-se como resultado de pesquisa desenvolvida em torno da filosofia da Agnes Heller, através da metodologia de pesquisa de abordagem qualitativa, de procedimentos bibliográficos com fontes primárias e de análise imanente deste material, interpretado à luz da perspectiva crítico-dialética marxiana. Frequentemente, a relação entre Lukács e Heller é reduzida a uma mera relação discipular, de modo que esta seria uma seguidora daquele por ter sido uma contribuição sempre presente nos estudos desenvolvidos por Lukács e pela Escola de Budapeste. No entanto, demonstra-se que as escolhas teórico-filosóficas e o entendimento acerca dos acontecimentos históricos e políticos que sucederam na formação social húngara suscitaram interpretações e posicionamentos díspares entre ambos, inaugurando desacordos importantes, evidenciando, portanto, a impossibilidade de referir a uma relação discipular.

Palavras-chave:
Gyorgy Lukács; Agnes Heller; Escola de Budapeste

Abstract:

The article discusses the relationship between Gyorgy Lukács and Agnes Heller. It is presented as a result of research developed around Agnes Heller’s philosophy, through qualitative research methodology, bibliographic procedures with primary sources and immanent analysis of this material, interpreted in the light of the Marxian dialectical critical perspective. Often, the relationship between Lukács and Heller is reduced to a mere disciplic relationship, so that the latter would be a follower of the former for having been an ever-present contribution in the studies developed by Lukács and the Budapest School. However, it is shown that the theoretical-philosophical choices and the understanding of the historical and political events that took place in the Hungarian social formation gave rise to different interpretations and positions between them, inaugurating important disagreements, evidencing, therefore, the impossibility of referring to a relationship disciple.

Keywords:
Gyorgy Lukács; Agnes Heller; Budapest School

Introdução

O artigo discute a relação entre Gyorgy Lukács e Agnes Heller. A escolha em discorrer sobre o referido tema se justifica pelos resultados obtidos em pesquisa desenvolvida sobre a filosofia helleriana.

A pesquisa, de abordagem qualitativa, desenvolveu-se por meio de procedimentos metodológicos bibliográficos, com a utilização de fontes primárias e secundárias, mediante leituras, fichamentos e análise imanente de materiais disponíveis em meio eletrônico ou em exemplares físicos, interpretados à luz da perspectiva crítico-dialética marxiana. Tal método propicia o conhecimento teórico partindo da aparência para alcançar a essência do objeto na realidade. Sabendo que este tem uma existência objetiva que independe do sujeito que quer conhecê-lo, a verdadeira construção do conhecimento exige a desconstrução e reconstrução de tal objeto a nível ideal, incorporando movimento dialético e as contradições da realidade. Tendo em vista que as fontes de pesquisa em tela foram teóricas, utilizou-se ainda a análise imanente pela qual é possível construir expositivamente uma teoria interpretativa do texto em questão respeitando o objeto investigado, buscando seus nexos lógicos e causais implícitos, sem desvincular-se das suas determinações históricas e contextuais mais profundas.

Mediante os estudos realizados, observou-se que frequentemente a relação entre Lukács e Heller aparece de maneira mistificada, de modo que a primeira, por ter sido aluna e assistente do último por muitos anos, bem como autora de várias contribuições aos estudos desenvolvidos pela Escola de Budapeste, tivesse seguidos os passos do seu mestre até o fim da vida. Nesse sentido, indagamos se, de fato, é possível relegar a relação entre Heller e Lukács como uma relação discipular.

Desta feita, este artigo objetiva de modo geral discutir a relação entre Agnes Heller e Lukács, abordando especificamente as particularidades históricas e políticas da formação social húngara, as escolhas teórico-filosóficas, bem como a produção desenvolvida por ambos, como resultado do contexto vivenciado. Respeitando tal finalidade, a exposição se inicia pelo contexto histórico e político húngaro, e apresenta, em seguida, as principais diferenças entre os seus pensamentos filosóficos.

Lukács, Heller e a escola de Budapeste

A Hungria, como um verdadeiro “ponto de choque” entre os povos europeus (DARUVAR, 1970DARUVAR, Y. DE. O destino dramático da Hungria: Trianon ou a Hungria isolada. São Paulo: Loyola, 1970.), foi palco de amplas disputas antes, durante e depois dos dois grandes conflitos deflagrados a nível mundial no conturbado século XX. Tanto György Lukács quanto Agnes Heller, nascidos em Budapeste, viveram intensamente esse contexto de diferentes formas e as suas produções filosóficas resultam dessa imersão.

Entre os anos de 1945 e 1948, logo depois do fim da Segunda Guerra Mundial, a Hungria passou a ser governada pelo regime soviético, que formou um bloco monopartidário em todo o Leste Europeu, conformando uma verdadeira zona de influência stalinista1 1 O stalinismo ficou historicamente conhecido pelas arbitrariedades que realizou, a partir do enviesamento e deturpação do aporte teórico marxiano. Nesse sentido, falar em “socialismo real” equivale a reportar às experiências que, ao tentarem implementar o que Marx chamou de socialismo científico, esbarraram em erros expressivos que distorceram a ideia original, fazendo emergir experiências equivocadas de socialismo, resultando em análises diferenciadas e até conflitantes. O “socialismo real” foi legitimado a partir do marxismo-leninismo, cujas similaridades com o pensamento marxiano são apenas terminológicas (KONDER, 1980). Para Meszáros (2011), tal regime seria o resultado do imperialismo capitalista, dando concretude a um novo tipo de imperialismo, com sede em Moscou. O autor alega ainda que Stálin tentou “confinar a validade da concepção marxiana de capital estritamente ao capitalismo, distorcendo assim grosseiramente o significado de sua obra” (p. 12), de modo que o bloco soviético jamais se livrou do capital, e se manteve regulado pelo conflito entre capital e trabalho, fomentando a acumulação. Nesse sentido, durante o governo de Stálin houve um falso socialismo de mercado, de maneira que o capital ainda regia o funcionamento da economia soviética. Para Paulo Netto (1981), as condições concretas existentes quando os bolcheviques chegaram ao poder durante a Revolução Russa não estavam de acordo com as expectativas marxianas, por isso os revolucionários tiveram que primeiramente fomentar a industrialização para só então depois pensar em uma transição socialista. O autor reconhece que são inegáveis os avanços que a Rússia teve naquele período, pois passou de uma sociedade agrária tradicional e atrasada a um estágio industrial dinâmico e moderno. No entanto, quando essa passagem se processa, diante de total bloqueio econômico e isolamento político, o resultado foi de um traumatismo social. Por isso, o stalinismo e a transição socialista são coisas distintas. Sendo o primeiro “uma forma específica pela qual se criaram, na Rússia, as bases da moderna sociedade urbano-industrial na direção da transição socialista” (PAULO NETTO, 1981, p. 87). Nesse sentido, seguindo as indicações de Lênin, a melhor forma de proceder a uma análise do stalinismo é considerando o Estado soviético como um estado proletário com deformações burocráticas. (CLAUDÍN, 1983CLAUDÍN, F. A oposição no “socialismo real”: União Soviética, Hungria, Polônia, Tchecoslováquia: 1953/1980. Tradução de Felipe José Lindoso. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.). Desse modo, o regime nazista na Hungria foi seguido da instauração do socialismo de modelo soviético, o que causava grande insatisfação na população do país, pois mesmo depois da guerra a autonomia nacional continuava comprometida. Diante desse contexto e das consequências que recaíam sobre a formação social húngara, Lukács mobilizou-se em torno da tarefa de renovação do marxismo a partir do próprio Marx. Tal ideia equivalia a colocar a experiência do “socialismo real” no seu devido lugar, discutindo corretamente sobre ela a partir de Marx, e construindo assim o que seria um marxismo verdadeiro (INFRANCA; TONEZZER, 1990INFRANCA, A.; TONEZZER, T. La distruzione del marxismo. Entrevista com Mihály Vajda. Lettera Internazionale, n. 23, 1990. Disponível em: https://gyorgylukacs.wordpress.com/tag/scuola-di-budapest/. Acesso em: 16 jun. 2021.
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), distante dos equívocos que produziu.

Nesse contexto, ainda no ano de 1947, Agnes Heller conheceu Lukács, na Universidade de Budapeste. Previamente inserida no ambiente acadêmico, matriculada no curso de Física aos dezoito anos, Heller foi convidada pelo seu primeiro companheiro, István Hermann, estudante de filosofia à época, para participar das aulas ministradas por Lukács, enquanto professor da universidade supracitada, sobre o tema do desenvolvimento da cultura filosófica em Kant e Hegel. Heller (2011)HELLER, A. A short history of my philosophy. United States: Lexington Books, 2011. relata que, mesmo não entendendo bem o que Lukács estava tentando explicar naquele momento, tinha a certeza de ter ouvido a coisa mais importante da sua vida, e por isso resolveu abandonar a formação em física e dedicar-se aos estudos de filosofia.

Depois daquele encontro, Heller iniciou o relacionamento acadêmico com aquele que seria seu amigo e mestre pelos próximos vinte anos. Ela se tornou orientanda e assistente de György Lukács e com ele manteve uma estreita relação de cooperação acadêmica, sendo influenciada pelas suas preocupações filosóficas, que também foram compartilhadas com os estudiosos da chamada Escola de Budapeste2 2 A Escola de Budapeste tornou-se uma inequívoca referência do marxismo a nível global ainda no século XX (AMADEO, 2015). Essa escola pode ser compreendida como um grupo de alunos e estudiosos que se reuniram em torno de György Lukács, principalmente durante a década de 1960, na Hungria, com a finalidade de compreender os acontecimentos que perpassavam o mundo e a particularidade daquele país, fomentando o projeto de renovação do marxismo a partir das contribuições dos seus principais membros: Agnes Heller, Ferenc Fehér, György Márkus, e Mihály Vajda. A ideia de renascimento do marxismo, empreendida por Lukács, funcionou como um projeto coletivo que uniu as reflexões da referida escola, sendo este, portanto, o intento geral e comum dos estudiosos que se agruparam em torno de Lukács. Por isso, naquele contexto adverso, a Escola de Budapeste ficou conhecida como a “nova esquerda”, pois o objetivo que reuniu esse grupo de pensadores extrapolava a discussão filosófica e voltava-se também para uma intenção política (RODRÍGUEZ, 1991). Por iniciativa do próprio Lukács esse círculo de estudiosos que esteve com ele por quase uma década foi denominado de Escola de Budapeste. . Na mesma época em que Heller se tornou orientanda e assistente de Lukács, filiou-se também ao partido Comunista Húngaro, atribuindo ao seu mestre o mérito de tê-la tornado marxista sem ter lido uma linha de Marx (ORTEGA, 2002ORTEGA, F. Agnes Heller entrevistada por Francisco Ortega. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002. ). Naquele momento, Heller ainda tinha uma apropriação muito incipiente da obra marxiana. Só mais tarde, à medida que as condições em que viviam os países sob o domínio stalinista começaram a se agudizar politicamente, provocando amplas discussões no partido; a curiosidade pelos escritos marxianos foi despertada (HELLER, 2011HELLER, A. A short history of my philosophy. United States: Lexington Books, 2011.).

O governo de domínio stalinista na Hungria deflagrou, a partir de 1948, uma onda de perseguição contra aqueles que não o apoiassem. Nesse período, de maneira inocente, por não entender adequadamente o desenrolar dos fatos e acreditar que estivesse num ambiente democrático, Heller resolveu explicitar em umas das reuniões do Partido Comunista Húngaro as suas críticas ao stalinismo. Por não ocupar cargos elevados internamente, ela teve a oportunidade de manter a sua autonomia, sendo apenas expulsa no ano seguinte. Infelizmente, os companheiros que tinham se filiado anteriormente não tiveram a mesma sorte. Contudo, a ascensão stalinista e a sua influência sobre a política húngara não foram os únicos motivos da sua expulsão partidária precoce, pois desde a sua filiação os companheiros alimentavam certa desconfiança pela sua ligação anterior com o movimento sionista.

Heller ficou profundamente decepcionada com aquele que seria o chamado “socialismo real” e classificou as posições do partido comunista húngaro à época como totalitárias. Apesar de ter verdadeira paixão pela disposição revolucionária do socialismo, mas a realidade dos fatos era decepcionante: ao longo de quatro anos foram internadas mais de trezentas mil pessoas nos Gulags, num país com população de dez milhões, outras foram deportadas ao campo, outras encarceradas e milhares executadas, predominando uma forte sensação de terror e insegurança política (HELLER, 1982aHELLER, A. La revolución de la vida cotidiana. Barcelona: Ediciones Península, 1982a.). Por isso, apesar de se considerar particularmente como comunista, não havia como afirmar uma adesão às ideias difundidas pelo Partido Comunista Húngaro e ao regime stalinista, pois existia um abismo entre o que os comunistas desejavam e a realidade vivida.

Enquanto Lukács se dedicava à tarefa de elaboração de A destruição da Razão, depois de ter sido hostilizado pelo partido comunista húngaro, desde 1947 na União Soviética os métodos de intervenção, submissão e controle de Stálin foram radicalizados, em detrimento da deflagração da Guerra Fria. Apesar de serem considerados marxistas, nesse período, Lukács e seus alunos não podiam ensinar Marx ou o marxismo na universidade, uma vez que essa tarefa era especialmente determinada por Moscou, sendo destinada àqueles que tivessem permissão para isso. Mas, eles podiam lecionar sobre filosofia, e assim o fizeram. Para Heller, esta era uma boa notícia, pois mesmo não estando mais vinculada ao partido, ela pôde continuar desenvolvendo as suas atividades na Universidade de Budapeste, onde ofereceu cursos na área de Ciências Econômicas do final da década de 1940 até o ano de 1957 (HELLER, 2011HELLER, A. A short history of my philosophy. United States: Lexington Books, 2011.).

Essa dura situação se estendeu até o falecimento de Stálin, em 1953, quando se produziu um clima de alívio em todos os países que viviam sob o seu domínio. Foi a partir desse ano que Heller passou a ter contato, de fato, com a obra marxiana juvenil, principalmente com os Manuscritos Econômico-Filosóficos, e passou também a visualizar Marx não apenas como o pai do socialismo científico, mas como um idealista, tendo em vista as influências identificadas pela autora do pensamento de Kant, mas também do método interpretativo hegeliano sobre o pensamento de Marx. Ainda, como um agravante de tal entendimento, politicamente o stalinismo representava um grande mito, envolvendo manipulação, fé e cinismo, apresentando uma grande discrepância entre aparência e realidade (HELLER, 1985HELLER, A. La teoria de la história. 2. ed. Barcelona: Fontarama, 1985.). Por isso, naquele ano Heller decidiu que já não acreditava mais no “comunismo soviético” e nem se reconhecia mais na essência do comunismo, uma vez que a essência e a aparência agora estavam erradas (HELLER, 2011HELLER, A. A short history of my philosophy. United States: Lexington Books, 2011.).

Em 1956, no mesmo ano do XX Congresso do Partido Comunista da URSS, quando Nikita Kruschev em sessão solene desferiu uma série de críticas contra Stálin, explodia a Revolução Húngara pelo resgate da autonomia política do país contra o domínio stalinista. Para Heller, aqueles levantes foram entusiasmantes e compreenderam a única e verdadeira revolução socialista que o mundo conheceu, pois impôs limites à ocupação russa e defendeu um governo livre e democrático. Esses acontecimentos somados aos anteriores causaram profundas inflexões no pensamento de Heller, inaugurando um período de amplos questionamentos que iriam resultar na reinterpretação dos ideais marxistas, coroando as transformações de pensamento que vinham se apresentando desde o início da década de 1950.

Assim, inaugurou-se um processo lento e gradual de afastamento de Marx e do marxismo, dos quais Heller tinha se aproximado majoritariamente através de Lukács, e provocaram profundas mudanças na sua concepção de filosofia, e estas foram canalizadas por uma “autoiluminação kantiana”, pela qual ela reivindica um pensamento próprio pelo qual o marxismo passou então a significar a realização da ética, isto é, o desenvolvimento de uma filosofia moral que mais tarde iria refletir-se em sua contribuição ao projeto de renovação do marxismo, socializado por Lukács com os integrantes da Escola de Budapeste.

Diante do contexto vivido internacionalmente, e de toda a confusão política relativa ao domínio stalinista na Hungria, no momento imediatamente posterior àqueles levantes de 1956, enquanto Heller mergulhava na filosofia clássica alemã (especialmente em Kant), Lukács já estava reelaborando o seu pensamento Estético, como resultado de um maior aprofundamento no marxismo, o que deu concretude a uma das obras mais importantes da sua maturidade teórica.

Paulo Netto (2018) explica que a convicção e as possibilidades concretas para a renovação do marxismo só apareceram, de fato, quando já era possível registrar o ressurgimento da cultura marxista nos antigos países socialistas, bem como a revitalização do movimento operário na Europa Ocidental, e o aprofundamento da luta anti-imperialista nas periferias. Por isso, em Lukács o aporte filosófico necessário ao desenvolvimento do projeto de renascimento do marxismo se deu de forma mais consolidada na Estética e Para uma Ontologia do Ser Social, como resultado dos seus esforços na retomada no projeto da sua Ética.

Principalmente durante a década de 1960, Lukács se dedicou àquela tarefa de renovação do marxismo, participando dos encontros dominicais com alunos e colegas estudiosos que compunham a chamada Escola de Budapeste. Com eles, o filósofo também socializou partes das suas obras recentemente elaboradas para a apreciação coletiva do grupo.

Apesar das perseguições políticas sofridas por Lukács naquele país, o filósofo gozava de certos privilégios políticos em função de seus feitos intelectuais, obtendo autorização para continuar produzindo suas obras. E, embora na Hungria o trabalho intelectual funcionasse como uma forma de denunciar os problemas políticos e as contradições daquela sociedade, sem dúvida o grupo que se reunia com ele foi beneficiado não apenas pelo compartilhamento cotidiano das ideias do velho filósofo, mas ainda por certa imunidade política atrelada ao mestre.

Ainda em 1968, a permanência na Hungria se tornou cada vez mais difícil para os integrantes daquela escola, uma vez que esses intelectuais da “nova esquerda” húngara contestavam abertamente a intervenção soviética naquele país. Com a agudização do quadro de saúde de Lukács e o seu falecimento em 1971, a Escola de Budapeste perde o seu “escudo protetor”, e mediante o agravamento da situação daqueles estudiosos, ao final da década de 1970 eles tiveram de se ausentar da Hungria. Agnes Heller e seu companheiro, Ferenc Féher, assim como a família Márkus, migraram para a Austrália, onde se encontraram posteriormente.

Rodriguéz (1991)RODRÍGUEZ, A. R. Ética, democracia y socialismo: una aproximación a la racionalidad práctica em Agnes Heller. Tese (Doutorado em Filosofia y Letras) - Universidade Autónoma de Madrid. 1991. Disponível em: https://repositorio.uam.es/handle/10486/11829. Acesso em outubro de 2019.
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pondera que a ideia de que a Escola de Budapeste esteve empenhada na renovação do marxismo pareceu acertada até o início da década de 1970, enquanto esteve em pleno funcionamento na Hungria. Mas, após este período, principalmente depois do falecimento de Lukács, tal entendimento se torna obsoleto quando se considera a compreensão e caracterização do pensamento de seus membros, que agora se tornavam “ex-discípulos” de Lukács.

Antes mesmo do seu desaparecimento, quando Lukács concluiu Para uma Ontologia do Ser Social e socializou o manuscrito para a apreciação do grupo, ele não obteve a aceitação das suas ideias ali desenvolvidas por parte dos estudiosos com os quais compartilhou seus últimos anos de vida e esforços teóricos. Por isso, depois de concluído esse trabalho e de ter a reprovação da chamada Escola de Budapeste, Lukács se concentrou na escrita dos Prolegômenos à ontologia do ser social, ou a Pequena Ontologia, como ficou conhecida posteriormente.

Konder (1980)KONDER, L. Lukács. Coleção Fontes do pensamento político. Rio Grande do Sul: L&PM Editores, 1980. explica que Lukács recebeu essas críticas, discutiu com o grupo sobre elas e reconheceu a necessidade de reelaboração do manuscrito, o que provavelmente influenciou a elaboração e a escrita da Pequena Ontologia. No entanto, enfatiza ainda que nem todas as críticas foram de fato incorporadas pelo filósofo, que considerou insatisfatórias as ideias de Heller, Fehér, Márkus e Vajda, atribuindo parte da discordância à postura de rebeldia exacerbada nutrida por eles. No entanto, Lessa (1996)LESSA, S. Lukács e Heller: a centralidade do trabalho. Revista Raízes, Campina Grande, v. 13, 1996. Disponível em: http://sergiolessa.com.br/uploads/7/1/3/3/71338853/lukacsheller_1996.pdf. Acesso em janeiro de 2017.
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discorda diametralmente deste posicionamento, afirmando que na Pequena Ontologia Lukács reafirmou todos os elementos discutidos na Grande Ontologia. Tertulian (1996, pTERTULIAN, N. Uma apresentação à Ontologia do ser social, de Lukács. Revista Crítica Marxista, São Paulo, n. 3, p. 54-69, 1996. Disponível em: https://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo18Art1.4.pdf. Acesso em: 15 fev. 2021.
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. 56) corrobora a ideia de que os comentários dos seus alunos não teriam surtido efeito sobre o pensamento de Lukács, pois “Lukács não mudou uma vírgula nas suas posições de fundo tais como foram expressas ao longo de todo o texto inicial”.

Sobre este aspecto, Frederico (2007)FREDERICO, C. Lukács: o caminho para a Ontologia. Revista Novos Rumos, ano 22, n. 48. 2007. Disponível em: http://www2.marilia.unesp.br/revistas/index.php/novosrumos/article/view/1297. Acesso em: 12 jan. 2021.
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sublinha que, na Grande Ontologia, Lukács deu ampla importância a categoria de trabalho como protoforma de toda práxis social, deixando a arte num plano subordinado. Tal posicionamento era uma novidade em relação à Estética, sendo aquela última bem mais materialista. Nesse sentido, o campo de liberdade da consciência aparece determinado pelas necessidades que geram e delimitam as possibilidades humanas. Para o autor, tal posicionamento do filósofo húngaro funcionou como um freio ao ativismo da consciência, o que deve ter gerado um efeito segregador em relação aos seus discípulos rebeldes, fazendo-os discordar dela.

Vajda alega que, para os integrantes da Escola de Budapeste, a filosofia lukácsiana que se desenvolveu até a Destruição da Razão divergia substantivamente dos escritos daquela que seria a sua última obra filosófica, acusando-o de uma perda de rigor teórico notável (INFRANCA; TONEZZER, 1990INFRANCA, A.; TONEZZER, T. La distruzione del marxismo. Entrevista com Mihály Vajda. Lettera Internazionale, n. 23, 1990. Disponível em: https://gyorgylukacs.wordpress.com/tag/scuola-di-budapest/. Acesso em: 16 jun. 2021.
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). Por isso, no intermezzo entre a retomada dos trabalhos da Ética e o encerramento definitivo das atividades do filósofo octogenário, os integrantes da Escola de Budapeste teceram críticas severas ao texto da Ontologia do Ser Social3 3 Sobre tais divergências, vale acrescentar que o resultado da leitura de Para uma Ontologia do Ser Social pelos jovens estudiosos resultou num artigo intitulado “Notas sobre a ontologia de Lukács”, publicado em 1975, no qual Heller, Fehér, Márkus e Vajda escreveram anotações críticas sobre a importância da práxis, o papel central da categoria de trabalho, a consideração da ideologia como força ativa e não apenas como reflexo, a centralidade da categoria de alinhamento, entre outras. Vajda particularmente classifica a Ontologia como um trabalho ultrapassado, no qual Lukács tenta reler alguns elementos de sua primeira práxis marxista junto com o conceito posterior de materialismo histórico-dialético. Nesse sentido, seria um trabalho estranho aos demais por ele produzidos (INFRANCA; TONEZZER, 1990). .

Diante do fato, nos parece candente que o aguçamento das percepções de Lukács em torno do materialismo histórico-dialético não tenha sido acompanhado pelos integrantes da Escola de Budapeste. Apesar da viga mestra norteadora do pensamento da escola voltar-se para intenções filosóficas e políticas, não havia consenso dos integrantes da referida escola com as ideias da maturidade de Lukács, desconsiderando a dialética de sua obra.

Desse modo, se o grupo tinha em suas origens uma orientação filosófica sob a influência de Lukács, embora divergindo sobre a sua obra em vários aspectos, com a morte do filósofo os integrantes da Escola de Budapeste tiveram as suas preocupações levadas para fora da influência direta desse pensador e do marxismo, remetendo ao contexto da crise e dissolução daquela escola.

Sobre uma relação não discipular

Durante os anos em que esteve ligada aos trabalhos individuais e coletivos da Escola de Budapeste, Heller se propôs a estudar principalmente a vida cotidiana. A sua contribuição sobre esse tema aparece diluída num primeiro projeto filosófico, o de antropologia social, amplamente influenciado pela leitura recente dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de Marx e delineado no texto introdutório de Sobre os Instintos.

Este livro demarca a emergência do referido projeto, sendo este o primeiro volume do contributo helleriano para cumprir a tarefa proposta por Lukács de renovação do marxismo. Naquela introdução, Heller apresentava as suas intenções em torno das investigações acerca da essência humana, e estruturava esse projeto em seis volumes: o primeiro, como dissemos, sobre os instintos; o segundo acerca da teoria das sensações, em seguida a teoria das necessidades, a teoria da moral, a teoria da personalidade e por último, a teoria da história (HELLER, 1979).

Contudo, considerando as decepções políticas na Hungria, os estremecimentos da relação com o próprio Marx desde 1956 e a agudização desse quadro em 1968, por ocasião do Maio Francês, Heller torna seu projeto uma tentativa de encontrar saídas para as contradições marxianas em relação à subjetividade humana, demonstrando os limites dessa filosofia e apontando as suas possíveis saídas. Por isso, o projeto da antropologia social foi interrompido com a conclusão do seu segundo volume, de modo que Heller fez apenas alguns apontamentos sobre o tema das necessidades humanas, publicado sob o título Teoria das Necessidades em Marx, em 1974.

Em sua autobiografia filosófica, Heller justificou que durante os anos que permaneceu na Hungria, os seus trabalhos filosóficos foram amplamente prejudicados, pois não tinha a liberdade de dizer sinceramente a sua opinião acerca dos assuntos e do contexto político húngaro, por isso era necessário agir e se expressar estrategicamente, como num jogo de “esconde-esconde”. Em vista disso, nas suas publicações desses anos, a estratégia utilizada para garantir a sua segurança era tratar das questões políticas a partir da filosofia (HELLER, 2011HELLER, A. A short history of my philosophy. United States: Lexington Books, 2011.).

De tal modo, depois de sair da Hungria no ano de 1979, Heller levou adiante os desenvolvimentos sobre a teoria da história, da personalidade e da moral, evidenciando explicitamente outra perspectiva, distante de Marx e do marxismo, gestada desde os anos anteriores, enquanto esteve ligada à chamada Escola de Budapeste. Os novos desenvolvimentos deram concretude a um segundo projeto filosófico, o da Modernidade, que tinha como preocupação central os desenvolvimentos sobre moral e ética.

Em suma, a obra helleriana constitui um universo filosófico heterogêneo, podendo ser classificada como multiforme, multitemática e eclética, pois, além de se apresentar sob formas variadas — principalmente depois que se retirou da Hungria, em fins da década de 1970 —, a produção helleriana abordou vários temas e conservou as antigas preocupações filosóficas, vinculando-as paulatinamente a uma proposta de filosofia idiossincrática, caminhando para um antimaterialismo explícito, somado à adesão ao veio reformista liberal.

Heller tinha em Lukács uma das pessoas mais influentes da sua vida, depois de seu pai, que exerceu uma grande influência nas suas escolhas filosóficas. Gostava da sua companhia, de modo que, além da relação acadêmica, criou-se também uma relação de amizade e confidência entre ambos. Sem dúvidas, Lukács inspirou os primeiros desenvolvimentos da filosofia helleriana a partir dos seus temas de discussões e de seus posicionamentos.

Heller aprendeu muitas coisas com Lukács, mas poucas sobre filosofia em si, o que lhe permitia se autodenominar como autodidata em tal matéria, o que demonstra a sua autonomia intelectual — mas ela compartilhava com ele principalmente a preocupação com o tema da ética. Sem dúvidas, a importância que a ética ocupou na filosofia helleriana teve influência das preocupações lukácsianas, isto porque o velho filósofo alimentou tais preocupações em toda a sua trajetória intelectual.

Como alega Tertulian (1999)TERTULIAN, N. O grande projeto da ética. In: Ensaios Ad Hominem. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, Tomo 1: Marxismo, n. 1, 1999., Lukács nunca deixou de produzir sobre a ética, mas por não ter conseguido sistematizar tais produções, deixou uma ética in nuce. Mészáros (2011)MÉSZÁROS, I. Para além do capital. 1. ed. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2011. observa que a ética constitui um imperativo da filosofia lukácsiana, desde quando a perspectiva kantiana ainda condicionava a visão de Lukács, bem como na fase “hegeliana kierkegaardizada”, a ética aparece como uma mediação entre o socialismo realmente existente e a emancipação da humana, reduzindo a distância entre ambos e preenchendo tal lacuna de pensamento.

Observando-se as influências com as quais Heller passa a dialogar principalmente depois de 1956, nota-se que há uma afinidade helleriana com os caminhos apresentados pela ética do primeiro Lukács. Ora, se tanto para Lukács como para Heller o caminho da superação da alienação era a ética, parece evidente que enquanto Lukács avançou no aprofundamento do materialismo histórico e dialético, Heller continuou validando os princípios kantianos e kierkiegaardianos, como uma herança das primeiras concepções éticas de Lukács, pelo qual ela e os demais integrantes da chamada Escola de Budapeste pareciam ter preferência, ou pelo menos balizavam as lentes da análise das obras da maturidade filosófica lukácsiana.

Isso demonstra que, enquanto Lukács executou uma trajetória filosófica de aproximação e aprofundamento no materialismo histórico-dialético, Heller utilizou as bases da jovialidade lukácsiana para fundamentar o seu debate filosófico até o fim da vida, afastando-se continuamente de Marx e do marxismo. Nesse sentido, apesar de vivenciarem determinantes sócio-históricos comuns, as éticas de Heller e Lukács assumem caminhos diferentes, ou seja, embora Heller tivesse afinidade com Lukács e suas ideias juvenis, seguiu seu próprio caminho, utilizando-se daquela autonomia filosófica sempre evidente.

Como ela afirma: “ele tinha a sua posição e eu a minha. Naquela época, eu ainda não conhecia a ética da personalidade, mas tinha a seguinte posição: ele havia escolhido a sua vida e seguiu a sua estrela; eu havia escolhido a minha e seguiria a minha estrela” (ORTEGA, 2002, pORTEGA, F. Agnes Heller entrevistada por Francisco Ortega. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2002. . 39). Com a metáfora utilizada por Heller para delinear as suas escolhas e trajetória a diferença das de Lukács, fica evidente que se havia alguma concordância principalmente no debate sobre a ética (em relação ao primeiro Lukács), mas as desavenças no campo político eram agudas, principalmente por conta do stalinismo, levando-a posteriormente a sua desvinculação explícita do materialismo histórico.

No entendimento da filósofa, Lukács se considerava um intérprete de Marx, e tudo o que extrapolasse essa interpretação era considerado de origem burguesa e deveria ser refutado, o que conformou um círculo vicioso em seu pensamento interpretativo político. De tal modo, Heller o responsabiliza, como a maioria dos intelectuais da época, por uma postura que dificultou a verdadeira interpretação do marxismo contemporâneo, classificando sua atitude como sectária e negativa (HELLER, 1982bHELLER, A. Para mudar a vida: felicidade, liberdade e democracia. Entrevista a Ferdinando Adornato. São Paulo: Brasiliense, 1982b.).

Ainda, sobre as divergências políticas, ela não poupou o seu antigo mestre de ácidas críticas. Em Crítica da Ilustração, ao discutir as contribuições do velho Lukács, Heller demonstra esse “desvio” de caminho que fez com o seu velho mestre, fazendo um “acerto de contas”, e ao referir-se à suposta decadência filosófica apresentada por Lukács na Ontologia, resumiu: “Lukács falara frequentemente do período das consequências. O mesmo período foi reservado para ele. O paradoxo da vida se vingou em seu trabalho” (HELLER, 1984, pHELLER, A. Crítica de la Ilustración. Barcelona: Ediciones Península, 1984.. 271).

Considerações finais

Como se problematizou inicialmente, a relação entre Lukács e Heller aparece frequentemente relegada ao vínculo que ambos estabeleceram quando o ambiente acadêmico os uniu por meio das atividades de orientação e assistência na Universidade de Budapeste, em fins da década de 1940. Inequivocamente, a relação entre ambos se estendeu pelas décadas seguintes e posteriormente foi compartilhada com a chamada Escola de Budapeste.

Contudo, observando-se os caminhos teóricos, políticos e ideologicamente trilhados por Lukács e Heller, identifica-se que essa vinculação, recorrentemente indiferenciada, guarda um equívoco interpretativo. Embora existissem laços pessoais e de estreita cooperação acadêmica desenvolvida a priori, as trajetórias teórico filosóficas descritas por ambos se tocam em algum momento, mas se distanciam de maneira inequívoca a posteriori.

Sem dúvida, fica evidente que Lukács exerceu um papel de extrema importância sobre os desenvolvimentos filosóficos elaborados por Agnes Heller, como sua aluna, assistente e uma integrante ilustre da chamada Escola de Budapeste. Entretanto, também parece evidente que a interpretação sobre os acontecimentos que perpassaram a formação social húngara por ocasião do século XX, somados às decepções políticas com o partido comunista daquele país, além dos desacordos políticos com Lukács causaram grandes inflexões sobre o pensamento helleriano.

De tal modo, parece ser possível afirmar que, sendo fortemente influenciada pelos equívocos históricos do “socialismo real”, a conjuntura na qual esteve imerso o Leste Europeu durante e depois da Segunda Guerra Mundial fomentou o contínuo afastamento entre Heller, Marx e posteriormente do próprio marxismo, provocando um distanciamento que culminou na ruptura com o materialismo histórico, transitando em última instância para o antimaterialismo.

Na verdade, Lukács e Heller fizeram um percurso teórico filosófico contrário, e as suas divergências políticas têm um peso central nesse movimento, pois à medida que o primeiro se aproxima e aprofunda suas percepções e produções a partir do materialismo histórico-dialético, a última se afasta daquelas influências apreendidas principalmente através do mestre. Em suma, Lukács e Heller descrevem trajetórias teórico filosóficas díspares, que embora se toquem em algum momento, afastam-se diametralmente ao final.

Portanto, a ideia amplamente difundida de que Heller foi uma inequívoca discípula de Lukács constitui um duplo equívoco. Primeiro, com o velho filósofo, que morreu sem saber ao certo as consequências que a sua obra iria produzir entre os seus antigos alunos, e até a morte se dedicou incansavelmente à tarefa hercúlea de reinterpretar o marxismo a partir do próprio Marx. Por outro lado, apesar da afinidade pessoal com Lukács, Heller prezava indiscutivelmente por uma autonomia intelectual e escolheu seus próprios caminhos teóricos filosóficos, transitando em última instância para o antimaterialismo.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • 1
    O stalinismo ficou historicamente conhecido pelas arbitrariedades que realizou, a partir do enviesamento e deturpação do aporte teórico marxiano. Nesse sentido, falar em “socialismo real” equivale a reportar às experiências que, ao tentarem implementar o que Marx chamou de socialismo científico, esbarraram em erros expressivos que distorceram a ideia original, fazendo emergir experiências equivocadas de socialismo, resultando em análises diferenciadas e até conflitantes. O “socialismo real” foi legitimado a partir do marxismo-leninismo, cujas similaridades com o pensamento marxiano são apenas terminológicas (KONDER, 1980KONDER, L. Lukács. Coleção Fontes do pensamento político. Rio Grande do Sul: L&PM Editores, 1980.). Para Meszáros (2011)MÉSZÁROS, I. Para além do capital. 1. ed. Tradução de Paulo Cezar Castanheira e Sérgio Lessa. São Paulo: Boitempo, 2011., tal regime seria o resultado do imperialismo capitalista, dando concretude a um novo tipo de imperialismo, com sede em Moscou. O autor alega ainda que Stálin tentou “confinar a validade da concepção marxiana de capital estritamente ao capitalismo, distorcendo assim grosseiramente o significado de sua obra” (p. 12), de modo que o bloco soviético jamais se livrou do capital, e se manteve regulado pelo conflito entre capital e trabalho, fomentando a acumulação. Nesse sentido, durante o governo de Stálin houve um falso socialismo de mercado, de maneira que o capital ainda regia o funcionamento da economia soviética. Para Paulo Netto (1981), as condições concretas existentes quando os bolcheviques chegaram ao poder durante a Revolução Russa não estavam de acordo com as expectativas marxianas, por isso os revolucionários tiveram que primeiramente fomentar a industrialização para só então depois pensar em uma transição socialista. O autor reconhece que são inegáveis os avanços que a Rússia teve naquele período, pois passou de uma sociedade agrária tradicional e atrasada a um estágio industrial dinâmico e moderno. No entanto, quando essa passagem se processa, diante de total bloqueio econômico e isolamento político, o resultado foi de um traumatismo social. Por isso, o stalinismo e a transição socialista são coisas distintas. Sendo o primeiro “uma forma específica pela qual se criaram, na Rússia, as bases da moderna sociedade urbano-industrial na direção da transição socialista” (PAULO NETTO, 1981, p. 87). Nesse sentido, seguindo as indicações de Lênin, a melhor forma de proceder a uma análise do stalinismo é considerando o Estado soviético como um estado proletário com deformações burocráticas.
  • 2
    A Escola de Budapeste tornou-se uma inequívoca referência do marxismo a nível global ainda no século XX (AMADEO, 2015AMADEO, J. Notas sobre o marxismo: a tradição ocidental. São Paulo: Expressão Popular, 2015.). Essa escola pode ser compreendida como um grupo de alunos e estudiosos que se reuniram em torno de György Lukács, principalmente durante a década de 1960, na Hungria, com a finalidade de compreender os acontecimentos que perpassavam o mundo e a particularidade daquele país, fomentando o projeto de renovação do marxismo a partir das contribuições dos seus principais membros: Agnes Heller, Ferenc Fehér, György Márkus, e Mihály Vajda. A ideia de renascimento do marxismo, empreendida por Lukács, funcionou como um projeto coletivo que uniu as reflexões da referida escola, sendo este, portanto, o intento geral e comum dos estudiosos que se agruparam em torno de Lukács. Por isso, naquele contexto adverso, a Escola de Budapeste ficou conhecida como a “nova esquerda”, pois o objetivo que reuniu esse grupo de pensadores extrapolava a discussão filosófica e voltava-se também para uma intenção política (RODRÍGUEZ, 1991RODRÍGUEZ, A. R. Ética, democracia y socialismo: una aproximación a la racionalidad práctica em Agnes Heller. Tese (Doutorado em Filosofia y Letras) - Universidade Autónoma de Madrid. 1991. Disponível em: https://repositorio.uam.es/handle/10486/11829. Acesso em outubro de 2019.
    https://repositorio.uam.es/handle/10486/...
    ). Por iniciativa do próprio Lukács esse círculo de estudiosos que esteve com ele por quase uma década foi denominado de Escola de Budapeste.
  • 3
    Sobre tais divergências, vale acrescentar que o resultado da leitura de Para uma Ontologia do Ser Social pelos jovens estudiosos resultou num artigo intitulado “Notas sobre a ontologia de Lukács”, publicado em 1975, no qual Heller, Fehér, Márkus e Vajda escreveram anotações críticas sobre a importância da práxis, o papel central da categoria de trabalho, a consideração da ideologia como força ativa e não apenas como reflexo, a centralidade da categoria de alinhamento, entre outras. Vajda particularmente classifica a Ontologia como um trabalho ultrapassado, no qual Lukács tenta reler alguns elementos de sua primeira práxis marxista junto com o conceito posterior de materialismo histórico-dialético. Nesse sentido, seria um trabalho estranho aos demais por ele produzidos (INFRANCA; TONEZZER, 1990INFRANCA, A.; TONEZZER, T. La distruzione del marxismo. Entrevista com Mihály Vajda. Lettera Internazionale, n. 23, 1990. Disponível em: https://gyorgylukacs.wordpress.com/tag/scuola-di-budapest/. Acesso em: 16 jun. 2021.
    https://gyorgylukacs.wordpress.com/tag/s...
    ).
  • Agência financiadora Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo período de 09/2016 a 03/2017 e 02/2018 a 02/2021, sob o número de processo 88882376292/2019-01.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
    Consentimento para publicação Não se aplica.

Referências

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  • HELLER, A. A short history of my philosophy. United States: Lexington Books, 2011.
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  • TERTULIAN, N. O grande projeto da ética. In: Ensaios Ad Hominem. São Paulo: Estudos e Edições Ad Hominem, Tomo 1: Marxismo, n. 1, 1999.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    01 Jul 2022
  • Aceito
    10 Out 2022
  • Revisado
    02 Dez 2022
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