Acessibilidade / Reportar erro

O enfrentamento conservador da “questão social” e desafios para o Serviço Social no Brasil* 1 Segundo o IBGE, são pessoas que exercem alguma atividade remunerada.

The conservative confrontation of the “social question” and challenges to Social Work in Brazil

Resumo:

A partir da análise sobre a crescente desigualdade social no capitalismo mundial e no Brasil, busco situar alguns dos principais traços da conjuntura recente no país que avança nas contrarreformas neoliberais, especialmente nas propostas de contrarreforma da Previdência Social no nível federal e em programas de ajuste fiscal nos estados, impactando duramente os(as) trabalhadores(as) brasileiros(as) e também assistentes sociais como parte desse contingente.

Palavras-chave:
Neoliberalismo; Desigualdade social; Serviço Social

Abstract:

Based on the analysis of the growing social inequality in world capitalism and in Brazil, I try to locate some of the main features of the recent conjuncture in the country that advances in the neoliberal counter-reforms, especially in the proposals of counter-reform of social security at the Federal level and in fiscal adjustment programs in the states, harshly impacting Brazilian workers as well as social workers as part of this contingent.

Keywords:
Neoliberalism; Social inequality; Social service

Introdução

“É um fato incontestável que a miséria das massas trabalhadoras não diminuiu [...] e, não obstante, esse período não tem paralelo no que diz respeito ao desenvolvimento da indústria e à expansão do comércio.”

Essa frase poderia ser de qualquer analista crítico da sociedade contemporânea, mas é de Karl Marx e foi escrita entre 21 e 27 de outubro de 1864 como parte do “Manifesto de lançamento da associação internacional dos trabalhadores”.

A produção e a reprodução da desigualdade social no mundo cresce em proporções inimagináveis e há muitas formas de falar disso. Tenho notado, inclusive, que são cada vez mais frequentes as abordagens de séries e filmes tratando esse panorama de modo “artístico” ou como “ficção científica” e nos confrontando com a dura realidade de barbárie, racismo, xenofobia e desumanização que nos cerca. Alguns exemplos são séries como 3% ou Black mirror; filmes como Jogos vorazes ou Ensaio sobre a cegueira - inspirado no livro de José Saramago.

Definitivamente, não é necessário voltar ao século XIX ou olhar muito longe para atestar a veracidade desse quadro. No Brasil, os dados sobre o mercado de trabalho se mantêm numa perspectiva de recessão com empregos e ocupações cada vez mais precárias e crescimento da chamada “informalidade”. Tendo por base informações da Pnad/IBGE (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), verificamos a manutenção da tendência de aumento da chamada “informalidade” no Brasil. Em 2017, o país teve 37,3 milhões de pessoas trabalhando sem carteira assinada - 1,7 milhão de pessoas a mais do que em 2016 -, de modo que esse contingente representou 40,8% da população ocupada, o equivalente a dois em cada cinco trabalhadores do país. Cresce também o desemprego, que afetou 12,5% da população economicamente ativa ao final de 2017 (IBGE, 2018IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf. Acesso em: 17 abr. 2019.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
) e continua na faixa dos 12% ao final desse primeiro trimestre de 2019.

Todos(as) sabemos como essas condições do trabalho no Brasil são fermento para o crescimento exponencial da desigualdade e da concentração de renda. Dados da Oxfam informam que seis famílias concentram uma riqueza equivalente à que está nas mãos de metade da população desse país. Mas sabemos ainda ser necessário destacar as nuances que fazem de negros(as), mulheres, imigrantes e nordestinos(as) o volume mais significativo de pessoas atingidas por todas essas questões - inclusive e necessariamente pensando como essas variáveis se intercruzam.

Segundo o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, em 2017 cresceram as solicitações de refúgios no Brasil, chegando a 33.865. Entretanto, entre janeiro e julho de 2018, o volume de pedidos (41.915) já tinha ultrapassado o total de 2017. Esses pedidos eram predominantemente de venezuelanos(as) (32.361 concentrados, em sua maior parte, no estado de Roraima) seguido de haitianos(as). Boa parte desses imigrantes é de negros(as) que vêm reforçar o contingente de desempregados(as) e subempregados(as) no país, composto majoritariamente por negros(as), já que a proporção de trabalhadores(as) pretos(as) ou pardos(as) sem carteira em 2017 foi de 21,8%, enquanto entre brancos foi de 14,7%. Além disso,

As atividades econômicas de menores rendimentos médios [agropecuária, construção civil e serviços domésticos] são as que proporcionalmente possuem mais ocupados de cor ou raça preta ou parda e pessoas do sexo feminino. No cômputo geral, em 2017, os brancos ganhavam em média 72,5% mais do que pretos ou pardos e os homens ganhavam, em média, 29,7% mais que as mulheres. (IBGE, 2018IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101629.pdf. Acesso em: 17 abr. 2019.
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualiza...
, p. 28)

Isso explica por que esse ano nas nossas discussões sobre o dia do(a) assistente social temos chamado a atenção para o fato de que assistentes sociais enfrentam o racismo no cotidiano porque “se cortam direitos, quem é preta e pobre sente primeiro”. Não podemos esquecer ainda que essa desigualdade na renda segue concentrada predominantemente na região Nordeste [Maranhão e Piauí sendo os estados que registram os rendimentos mais baixos], quando comparamos os rendimentos auferidos levando em conta a localização regional.

Esses são apenas alguns dos muitos dados que poderiam ser citados para ilustrar a sensação que se amplia para um imenso contingente da população brasileira e mundial: a sensação de que o capitalismo esgotou suas possibilidades civilizatórias. Em todos os quadrantes da “globalização”, a classe trabalhadora tem se deparado com a crise e com a necessidade de ampliar as vozes da resistência. E essa sensação se generaliza porque em todos os países capitalistas a “cartilha” dos organismos internacionais para superação da crise é a “receita” neoliberal: reduzir a proteção pública ao trabalho, possibilitando maior exploração da força de trabalho, privatizar setores essenciais com potencial de lucratividade e ampliar as margens de apropriação do fundo público pelo capital.

A contrarreforma nos sistemas previdenciários, por exemplo, é uma diretriz que vem sendo seguida por diversos governos, mas tem encontrado resistência. Em abril de 2018, vários protestos foram realizados na Nicarágua contra a proposta anunciada pelo presidente Daniel Ortega, que aumentaria as contribuições de trabalhadores e empregadores para as pensões e reduziria os benefícios gerais em 5%. As manifestações provocaram reação violenta do governo e fizeram 27 mortos. Mas num país que teve uma bela luta revolucionária durante os anos 1970, a Revolução Sandinista, após essas mortes e mesmo com o recuo do governo na contrarreforma anunciada, os protestos se fortaleceram e, até o momento, o governo não voltou a desengavetar a famigerada proposta.

Na Grécia, por outro lado, apesar da resistência às reformas neoliberais ao longo dos oito anos de vigência dos planos de “resgate”, acabaram por se impor severas medidas de “austeridade fiscal”, como os obscuros processos de privatização de empresas públicas e aeroportos, redução das pensões por aposentadoria e do gasto médio em saúde pública com a população (caiu de US$ 2,2 mil por pessoa/ano para US$ 1,5 mil entre 2009 e 2014), por exemplo. Todo esse “sacrifício” não resultou em absolutamente nada a ser comemorado por parte dos(as) trabalhadores(as), pois apesar da redução das taxas de desemprego recentemente, a Grécia ainda possui o maior índice na zona do euro (18,5%), seguida da Espanha (14,1%) e da Itália (10,5%).

Pergunta-se: por que ainda o receituário neoliberal aparece como “a única saída” para a crise no discurso dos organismos internacionais e, mesmo de forma atabalhoada e tosca, continua sendo o “tom” do atual governo brasileiro? Para falar disso que indica uma “reação conservadora”, nos termos adotados por essa mesa, e também da resistência no Brasil, precisarei retomar, em linhas gerais, uma análise desse contexto. Farei isso com ênfase em alguns aspectos da conjuntura nacional que, a meu ver, apontam para a importância do papel dos conselhos regionais, nos estados, como uma das instâncias de organização de assistentes sociais enquanto parte que somos, ainda que muitas vezes de forma precarizada, do conjunto de trabalhadores do serviço público.

1. Conjuntura nacional recente e reação conservadora

No caso do Brasil, muitas são as análises de conjuntura que tenho acompanhado desde que a crise econômica e política se agravou, com ares de calamidade pública. Obviamente refiro-me a março de 2015 e aos desdobramentos que culminaram no impeachment da presidente Dilma e no início do ilegítimo governo Temer. Em outro momento, no debate, certamente podemos retomar aspectos das distintas análises sobre esse período tão decisivo para a conformação do quadro com o qual nos deparamos hoje. O fato é que, mesmo com variações, é possível extrair dessas análises pelo menos um grande “consenso”: o “rolo compressor” que originou o governo Michel Temer tinha o propósito de recolocar as rédeas do Estado brasileiro nas mãos do grande capital internacional e nativo. Ou seja, em meio à agudização da crise, traduzida no déficit da economia brasileira ao final de 2015, a burguesia decidiu “se livrar de intermediários”, como os governos democrático-populares, e forjar diretamente seus próprios prepostos no poder.

Como sabemos, o Estado é fundamental no capitalismo brasileiro, tendendo a ser dominado pelos interesses das classes dominantes. Porém todos(as) acompanhamos no ano passado a inviabilidade eleitoral de uma única candidatura das frações hegemônicas da burguesia. Isso, juntamente com outros vários fatores, levou à eleição do atual presidente do país - uma candidatura que cresceu de um lado, no vácuo aberto pela falta de uma alternativa burguesa eleitoralmente viável e, de outro, na difusão do antipetismo que mobiliza fortemente os setores da classe média desde 2015.

As análises sobre os cem dias do (des)governo Jair Bolsonaro indicam muitos aspectos idiossincráticos que, inclusive, têm desviado seus(suas) críticos(as) do foco que me parece essencial: Bolsonaro não era o projeto da burguesia brasileira, mas vem se cacifando para vir a ser. E mais: isso ocorrerá quanto mais forem se “conjugando” dois dos quatro setores que, na análise de Zacarias (2018), compõem o espectro de forças existente no seu interior.

o governo de Bolsonaro é formado por quatro núcleos: o núcleo ideológico bolsonarista (fascista ou protofascista), o núcleo militar (a garantia de tutela), o núcleo político (encarregado de relações com o Congresso) e o núcleo econômico ultraliberal de Paulo Guedes e demais Chicago Boys (que também pode ser chamado de núcleo dos banqueiros).

Isso significa dizer que não obstante o núcleo ideológico bolsonarista seja o mais evidente, não devemos deixar de observar os primeiros e “certeiros” movimentos do núcleo econômico ultraliberal de Paulo Guedes. Longe dos holofotes e “memes” produzidos pelo núcleo ideológico, onde “é páreo duro” saber quem produz mais trapalhadas em série, o núcleo econômico vem se movendo para assegurar a agenda de “contrarreformas” ditadas pela burguesia (internacional e nativa) interessada em “retomar as rédeas” do Executivo federal desde 2016.

A agenda ultraneoliberal “mostrou sua cara”, primeiramente anunciando algumas das medidas que configuram o projeto do “Brasil, paraíso do agronegócio e da exploração de minérios”, às custas da desregulamentação e do desmonte de mecanismos de proteção e demarcação de terras indígenas e quilombolas, por exemplo. Mas não restam dúvidas de que o principal movimento do núcleo econômico é a centralidade recém-assumida da contrarreforma da Previdência nas tarefas da agenda governamental, colocando para andar o projeto do “Brasil, paraíso do capital fictício e da superexploração do trabalho sem direitos”.

As negociações com o Congresso Nacional estão abertas nas mesmas bases de sempre, com liberação de R$ 1 bilhão em emendas parlamentares para nitidamente “comprar” a aprovação necessária. Porém, mais do que esse recurso, tem sido necessário ao governo negociar considerando os interesses da “velha política” em salvaguardar parte de sua imagem junto à população. Isso se traduz nas negociações para retirar do projeto pontos por demais impopulares: desconstitucionalizações (retirada da Constituição de renda mínima para a Previdência, entre outras garantias e benefícios), abono salarial, mudanças nas regras do FGTS, aposentadoria rural e benefício de prestação continuada. Caso essa estratégia prospere, isso concentrará no funcionalismo público o essencial da “conta a pagar” em mais essa contrarreforma. Retomarei adiante as repercussões desse cenário.

Esses dois núcleos possuem confluências na política externa do (des)governo Bolsonaro que, segundo Martins (2018)MARTINS, C. E. O governo Bolsonaro e a dupla face de uma política externa servil. 2018. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/03/20/o-governo-bolsonaro-e-a-dupla-face-de-uma-politica-externa-servil/. Acesso em: 18 abr. 2019.
https://blogdaboitempo.com.br/2019/03/20...
, se encontra absolutamente sintonizada com o governo americano e seus interesses neofascistas. Na minha avaliação, a partir do que indicam os analistas anteriormente citados, Donald Trump representa, portanto, a confluência entre os interesses protofascistas do núcleo ideológico e os interesses econômicos do imperialismo capitalista. Portanto, se ainda não é o projeto das frações hegemônicas da burguesia brasileira, Bolsonaro pode vir a ser porque o apoio norte-americano não me parece algo desimportante para essa mutação. Não obstante ainda seja necessário muito “alinhamento” para maquiar os inúmeros desencontros de Bolsonaro e sua equipe, o fato é que ele não me parece um projeto descartável logo a princípio, como se apressam em anunciar alguns setores da oposição esperançosos de ver chegar ao fim esse “circo de horrores”.

O general Mourão e o núcleo militar não querem os holofotes e, portanto, não se movimentam com pretensões para assumir o primeiro plano da cena em uma nova empreitada militar nesse momento da crise capitalista. Prova disso é o quanto repercutiu mal a convocatória presidencial para que se comemorasse os 55 anos do golpe militar no Brasil. Foram “porradas” de muitos e diferentes lados indicando que não é pela militarização da vida social que o governo irá ampliar sua margem de aprovação popular ou melhorar sua imagem na imprensa internacional. Estou plenamente de acordo com a perspicaz análise de Iasi (2018)IASI, M. 1964: a infâmia, a cicatriz e o bufão. 2018. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2019/03/29/1964-a-infamia-a-cicatriz-e-o-bufao/. Acesso em: 17 abr. 2019.
https://blogdaboitempo.com.br/2019/03/29...
quando afirma que

Entre as muitas coisas que o miliciano não sabe, está quanto seu ato de reconhecimento colocou os militares em uma situação altamente constrangedora, incômoda e na contramão de toda a estratégia tão eficaz construída para ocultar o golpe nas brumas do esquecimento.

E a resistência a isso? Como tem se realizado? A esquerda vem tentando “juntar os pedaços” e se refazer para a dureza das lutas que se anunciam. Duas tentativas de reação à contrarreforma da Previdência foram realizadas até o momento e mesmo que contemos com a necessária unidade política entre as centrais sindicais de diferentes espectros ideopolíticos, é fato que ainda não apresentaram o fôlego suficiente para o tamanho da briga que temos pela frente. Isso pode ficar ainda mais difícil se as negociações em torno da tramitação do projeto de contrarreforma da Previdência do governo Bolsonaro for “flexibilizado” e mantiver apenas o “núcleo duro” (capitalização e alteração nas regras de aposentadoria para o funcionalismo público).

Conforme eu disse, embora o governo ainda se mostre reticente em abrir mão dos pontos que estão sendo negociados, caso a “velha política” obtenha sucesso nessa estratégia, pode estar pavimentado o caminho para uma base governamental estável no Congresso e mais: pode resultar no isolamento de servidores(as) públicos(as) em relação ao restante da população e dificultar o enfrentamento a essa proposta nas ruas. Dito de outro modo, se ficam de fora as alterações mais impopulares que atingem idosos, a aposentadoria rural e o BPC, fica aberta a porta para caracterizar a luta contra essa contrarreforma enquanto uma luta que só interessa aos “privilegiados funcionários públicos”. Essa sempre foi a imagem que a imprensa construiu da resistência à contrarreforma da Previdência e que pode encontrar eco mais uma vez.

Por outro lado, precisamos prestar atenção na forma como esse movimento de “austeridade fiscal”, combinado com privatização e flexibilização dos direitos sociais, passa a ser descentralizado para os estados, que se encontram quase todos em delicada situação orçamentária e em situação de inadimplência em sua dívida com a União.

Durante o período de Temer na presidência foi conferido um grande destaque à necessidade ampliar a adesão de estados ao chamado “regime de recuperação fiscal” materializado em duas iniciativas: 1) a Lei Complementar n. 159 de 19/5/2017; 2) o “Novo PAF” (Programa de Apoio à Reestruturação e ao Ajuste Fiscal dos estados). Não vou entrar em detalhes aqui, mas no essencial foram medidas que permitiam a suspensão do pagamento das dívidas com a União por três anos, prorrogáveis em troca de compromissos dos governadores com uma série de ajustes nas contas públicas. Os ajustes que mais afetam os(as) trabalhadores(as) são: reduzir o investimento em pessoal (não promover reajustes, não fazer concursos públicos ou novas contratações) e privatizar empresas estatais; aumentar o valor das contrapartidas dos(as) trabalhadores(as) nas previdências estaduais.

Isso somado ao quadro que se delineia após a aprovação do “teto de gastos” com a Emenda Constitucional (EC) n. 95 indica que também os estados terão margem para rever as vinculações existentes no gasto público que hoje é, no caso da saúde, de 13% a 15% da receita líquida do orçamento federal, dos estados e municípios, e para a educação, entre 18% e 25%.

É importante lançar algumas luzes sobre essa estratégia de descentralização do discurso da austeridade fiscal porque a resistência precisa também se descentralizar na mesma medida. Essas diretrizes já estão sendo propostas há bastante tempo para a administração pública e, nesse momento, tornam-se a “pedra de toque” da contrarreforma do Estado no Brasil, ante as situações caóticas vividas nos estados, provocando o desfinanciamento acentuado de serviços essenciais, privatizações, arrocho salarial, atrasos e parcelamentos de salários e desrespeito, de um modo geral, aos servidores públicos estaduais. As consequências imediatas disso no dia a dia da população são óbvias e ditam tendências para a relação empregatícia entre os estados, os municípios e os servidores públicos, no interior do qual se encontram assistentes sociais, em sua ampla maioria.

Essas contrarreformas não estão sendo implementadas tão pacificamente quanto gostariam os governantes e, para citar apenas um exemplo recente, os(as) servidores(as) públicos(as) municipais de São Paulo fizeram uma greve de pouco mais de um mês para pressionar contra o aumento da contribuição previdenciária de trabalhadores de 11% para 14%. Não conseguiram evitar a votação e a sanção da medida por parte do prefeito, mas obtiveram o compromisso de que 14% será o teto do desconto, mesmo que a contrarreforma da Previdência federal estabeleça uma alíquota maior.2 Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2019/03/08/servidores-publicos-municipais-suspendem-greve-em-sp-apos-mais-de-um-mes.ghtml. Acesso em: 19 abr. 2019.

2. Resistência nas ruas, nas atividades de trabalho, mas sobretudo coletiva!

Entendo que essa e outras tantas lutas que estão ocorrendo diariamente nos estados cumprem um papel importante, e nosso papel político é o de engrossar as fileiras dessas manifestações de resistência como trabalhadores(as) que somos - concursadas(os), temporários(as), comissionados(as), terceirizados(as) -, seja qual for o vínculo que tenhamos.

Precisamos nos reafirmar como parte desse contingente que sofre diariamente os efeitos das contrarreformas do Estado sobre nossas condições salariais, de trabalho e de autonomia. Não basta, portanto, que os nossos conselhos federal e regionais estejam nas ruas. Precisamos ir também, nós, assistentes sociais da base desses conselhos. Precisamos ainda nos reunir a outros espaços de organização que possam fazer esses enfrentamentos. Filiação sindical, por exemplo, é fundamental, mas na nossa avaliação, mais eficaz quando se faz por ramo, pois dialoga mais organicamente com a pauta dos(as) demais trabalhadores(as). Na área da assistência social e da saúde, temos investido na organização dos fóruns de trabalhadores(as) do Suas nos três níveis de governo, como uma estratégia de mobilização, e nas frentes contra a privatização da saúde.

Quero enfatizar ainda que outra forma de resistência consiste no diálogo com a população usuária dos serviços sobre as consequências das contrarreformas no seu cotidiano. Em princípio, muitas dessas manifestações políticas são informadas à população pelos meios de comunicação como uma luta de “gente privilegiada” - servidores públicos em busca de reajuste, de planos de carreira e de pagamento sem atraso de seus salários -, enquanto a maior parte da população sequer tem emprego formal ou sabe o que é “contribuição previdenciária”. Entretanto, é preciso mostrar como o desfinanciamento das políticas públicas, sob a “áurea” do “ajuste fiscal” não afeta somente servidores: torna os serviços mais precários, privatiza-os, impede a realização de concursos públicos, e essas também são pautas dos movimentos de resistência que estão acontecendo.

A população precisa saber disso, e nosso papel como assistentes sociais é informá-la, organizá-la, mobilizá-la para essa resistência. Mais uma vez, entra em questão o papel da fiscalização dos conselhos regionais e de suas comissões de trabalho para fazer valer as inúmeras orientações e resoluções produzidas pelo conjunto CFESS/Cress e que podem auxiliar colegas a garantirem condições éticas e técnicas para desempenho dessas atividades que são essenciais ao trabalho que desenvolvemos. Fazer grupos de estudo, reuniões com as equipes e outras iniciativas têm assegurado que se forjem alianças nessas instituições para ampliar o acesso da população a direitos e a informações. Nosso trabalho não pode voltar a se restringir a mecanismos tecnocráticos de aferição de condicionalidades. Temos muito o que fazer na perspectiva da chamada “educação popular”, dialogando “para fora” desse espaço restrito da demanda institucional que atendemos e, inclusive, por meio dela. Mas é preciso resistir juntos(as). Isoladamente, não há saída que não seja o adoecimento ou o sofrimento de perseguições e assédios morais.

Como veem, temos muitas tarefas e contribuições a dar na perspectiva da resistência, considerando a centralidade do trabalho e das lutas classistas nessa sociedade. Porém, levando em conta que essa mesma classe social possui outras dimensões e vivências é necessário lembrar, ainda que de forma rápida, outras frentes igualmente importantes e afetadas pela crise contemporânea. Refiro-me, por exemplo, a duas outras pautas - para ficar nas que possuem maior presença na agenda do conjunto CFESS/Cress: 1) as pautas afetas aos direitos humanos e à diversidade, cuja visibilidade tem se ampliado no clima de “intolerância” estimulado pela crise e pelo atual governo; 2) os conflitos socioambientais, cujos cruzamentos com a organização de movimentos por moradia, pela terra e das chamadas “populações tradicionais” também fazem história diariamente nesse país.

São muitas, diversas e justas as “bandeiras de luta” que vimos defendendo ao longo desses quase quarenta anos desde o “Congresso da Virada”, que será comemorado e reafirmado no 16. CBAS. Não é hora de recuar, por mais difícil que pareçam as condições da luta de classes. O momento requer enfrentamento e, para relembrar uma vez mais o “velho” Marx, “os proletários nada têm a perder [nas trincheiras da resistência] a não ser seus grilhões”. Embora não possamos nos reivindicar proletários(as), somos assalariados(as), e nosso trabalho é explorado como parte do trabalho coletivo na sociedade capitalista. Estamos, portanto, no “mesmo barco”. Desde que entendemos isso, temos posição: somos classe trabalhadora e, nessa sociedade, também não temos nada a perder a não ser nossos grilhões!

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Set 2019
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2019

Histórico

  • Recebido
    12 Maio 2019
  • Aceito
    28 Maio 2019
Cortez Editora Ltda Rua Monte Alegre, 1074, 05014-001 - São Paulo - SP, Tel: (55 11) 3864-0111 , Fax: (55 11) 3864-4290 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: servicosocial@cortezeditora.com.br