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A fábula sobre Mao Tsé-Tung e a historiografia brasileira

The Fable about Mao Tsé-Tung and Brazilian’s Historiography

La fábula sobre Mao Tsé-Tung y la historiografía brasileña

Maria Yedda, formadora de gente. Callado, Ana Arruda. Rio de Janeiro: Betel, 2022. 230

Em fins da década de 1940, um militante comunista espanhol visitou Mao Tsé-Tung, em Pequim. Entusiasmado com a oportunidade de encontrar o líder da vitoriosa revolução chinesa, o militante espanhol não parava de tagarelar acerca do avanço das lutas operárias e camponesas na Espanha. Depois de vários minutos, ouvindo tudo com uma paciência chinesa, Mao Tsé-Tung disparou algumas perguntas ao jovem:

- Você nasceu em que lugar da Espanha? Ele respondeu que era de uma pequena aldeia do interior.

Diante da resposta, Mao prosseguiu com outras interrogações:

- Quantas pessoas vivem na sua aldeia? Como é a distribuição da propriedade de terra na Vila? Qual é sua principal atividade econômica? E finalmente: quantos bois existem por lá?

Esse diálogo nunca aconteceu. Na verdade, a narrativa da ficção ocorreu e foi presenciada, na década de 1980, por mim e outros alunos dos cursos de História ministrados por D. Yedda Linhares no Centro de Pós-Graduação em Desenvolvimento Agrícola da FGV – (atualmente na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro), na Universidade Federal Fluminense e na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com esse diálogo, D. Yedda – como era conhecida a professora Maria Yedda Linhares – conduzia os pós-graduandos a uma das seções da vasta carpintaria da História, no caso, aos métodos e técnicas da História Serial francesa de Ernest Labrousse (1955)LABROUSSE, Ernest. Voies nouvelles pour une histoire de la bourgeoisie occidentale aux XVIIIe et XIXe siècles (1700-1850). In: X CONGRESSO INTERNAZIONALE DI SCIENZE STORICHE, 1955, Roma-Florença. Relazioni […], v. 4, p. 365-396., Pierre Goubert (1968)GOUBERT, Pierre. Cent Mille Provinciaux au XVIIe siècle — Beauvais et le Beauvaisis de 1600 a 1730. Paris: Flammarion, 1968., Pierre Vilar (1963)VILAR, Pierre. La Catalogne dans l’Espagne Moderne. 3 v. Paris: SEVPEN, 1962. e cia. Assim ela começava a ensinar o métier do historiador. Aprendíamos a transformar, por exemplo, papel velho em fontes empíricas para entender a temporalidade das sociedades.

A partir daquela ficção, ela começava seus cursos de metodologia de pesquisa, ensinando como transformar registros católicos de batismo, casamentos e óbitos do século XIX em fontes para o estudo da demografia do século XIX; processos de inventários post mortem do século XVIII em matéria-prima para a análise de fortunas do século XVIII; as listas de impostos do século XVII para a apreensão, em uma época pré-estatística, das flutuações econômicas do século XVII, etc.

Na década de 1980, juntamente com a disseminação das pós-graduações em História no Brasil, disseminava-se o ofício de historiador nesse jovem país-continente. Na ocasião, a historiografia do Brasil deixava de ser algo feito por curiosos, advogados, críticos literários e antropólogos para se transformar em uma profissão.

Eu ouvi aquela fábula sobre Mao Tsé-Tung e o ingênuo militante de esquerda no mestrado em História da UFRJ. Na época, um curso ainda em construção em meio aos escombros do então Departamento de História deixados pelo golpe de 1964, cujo responsável local foi seu próprio diretor, o professor Eremildo Vianna. Esse professor foi um dos responsáveis pela prisão e, depois, cassação de dezenas de professores pelo AI-5 de 1968 no Rio de Janeiro, entre eles, a própria Yedda Linhares.

Essas e outras passagens estão presentes no livro Maria Yedda, formadora de gente, de Ana Arruda Calado, publicado em dezembro de 2022. A autora é jornalista, portanto, não tem por formação o ofício que sua biografada contribuiu para construir no país. Porém, por ironia da história – ou em razão da novidade do dito ofício ainda ser jovem nesses trópicos – graças a seu texto temos a oportunidade de conhecer um pouco mais sobre a vida de uma das principais protagonistas na implantação da profissão de historiador no Brasil.

Com a leitura, sabemos da trajetória de uma mulher que foi da primeira geração de graduandos de História da Universidade do Brasil; como tal, presenciou a Segunda Guerra Mundial; viveu os sonhos de modernização dos anos JK; o impacto do golpe de 1964 e o exílio; de volta ao Brasil, participou das esperanças da redemocratização nos anos de 1980. Nessa década, D. Yedda, além de fomentar a pós-graduação, foi secretária de estado de Educação do Rio de Janeiro e uma das responsáveis pela criação dos Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs).

A história da historiadora Maria Yedda Linhares é narrada em nove capítulos. Considerando, de maneira geral, as conjunturas políticas acima sublinhadas, destaco os capítulos a seguir.

No primeiro capítulo temos a infância no Ceará pré-revolução de 1930 e o impacto da depressão internacional da crise de 1929 na adolescência de uma filha de comissário de algodão. No mesmo capítulo, a experiência de uma estudante, recém-aprovada no curso de História e Geografia da Universidade do Brasil (UB), nos Estados Unidos; primeiro no Barnard College em Nova Jersey e na Columbia University em Nova York. Durante esse período, D. Yedda deu aulas particulares de português, e no Barnard College. Após o ataque japonês a Pearl Harbour, em dezembro de 1941, sua vida tomou novos rumos. Com a guerra, as universidades americanas iniciaram uma política de aproximação com a América Latina que, entre outras coisas, implicou a abertura de cursos de espanhol e de português. Nesse ambiente, foi convidada para ministrar o primeiro curso de português na Columbia. Apesar de o capítulo ter como pano de fundo anos trágicos, também traz passagens divertidas como a experiência de D. Yedda nas rádios NBC e na CBS como atriz, interpretando diversos papéis, como de um garoto da resistência francesa ou de uma professora na Polônia ocupada. Na universidade, D. Yedda filiou-se ao clube espanhol dos refugiados antifascistas da Guerra Civil espanhola.

O segundo capítulo trata de seu retorno ao Brasil e à Faculdade Nacional de Filosofia da UB em 1943, época em que também participou da UNE e da campanha para o ingresso do Brasil na guerra contra o nazifascismo. Sua militância levou-a a conhecer Marighela e João Saldanha, ambos do então Partido Comunista. No capítulo quarto, temos o ingresso da professora Yedda na área de Moderna e Contemporânea e, no final da década de 1950, o concurso para a cátedra da área. Naquele momento, tornou-se a primeira mulher a ocupar o topo da carreira no magistério superior no Brasil. Callado também traz à baila os bastidores do surgimento de historiografia mais crítica no Brasil ao descrever as viagens de D. Yedda a São Paulo para participar do grupo de estudos encabeçado por Florestan Fernandes, do qual participavam Fernando Henrique Cardoso, Otávio Ianni, Alice Canabrava e Fernando Novais, entre outros.

O quinto capítulo merece especial atenção dos profissionais da área, pois trata das tensões na Faculdade de Filosofia com Eremildo e seu grupo, que reverberaram no campo da produção historiográfica. Mais precisamente, no que concerne às diferentes visões teóricas ou quadro interpretativos sobre a história das sociedades; mas, sim, lutas políticas, no sentido literal, cujas consequências foram sentidas no ensino de História no país. Tudo isso teve como cenário político o golpe de 1964 e o processo que o precedeu. Em 1964, D. Yedda era diretora da Rádio MEC que, na ocasião, foi invadida por Eremildo Vianna acompanhado por policiais e estudantes favoráveis ao golpe. O ambiente tenso retratado pelo capítulo não deixa, contudo, de apresentar passagens cômicas como o comentário do jornalista Moacir Werneck de Castro, em abril de 1964: “sobre a criação de comendas da Ordem do Dedo-Duro que vão contemplar os ases da alcaguetagem, da delação nos tempos que correm” (CALLADO, 2022, p. 103CALLADO, Ana Arruda. Maria Yedda, formadora de gente. Rio de Janeiro: Betel, 2022.).

Igualmente, merece destaque o sétimo capítulo, que revela o dia-a-dia das tensões vividas quando do retorno de D. Yedda do exílio e as mudanças dos rumos no Departamento de História com a incorporação, em 1979-1980, dos cassados pelo AI-5 de 1968. Nessa época, quando da votação para a chefia do Departamento, Eremildo Vianna e seu grupo perderam a direção por apenas um voto. Essa situação muito nos informa sobre aqueles tempos de abertura num dos principais cursos de graduação de História do país.

É no ambiente retratado por esse capítulo, “História da Agricultura no currículo”, que ocorreu o dedo de prosa entre Mao Tsé-Tung e o jovem militante de esquerda inventado por D. Yedda. Aliás, um dos resultados historiográficos desse dedo de prosa foi o surgimento da chamada “escola do Rio de Janeiro”. “Escola” que reuniu os alunos de D. Yedda cujas pesquisas contribuíram para transformar, na historiografia brasileira, o escravo de semovente ou instrumento de trabalho em protagonista (FRAGOSO; FLORENTINO, 1987FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Marcelino, filho de Inocência Crioula. Neto de Joana Cabinda: um estudo de famílias escravas em Paraíba do Sul (1835-1872). Estudos Econômicos, v. 17, n. 2, p. 151-173, maio/ago. 1987.) e a demonstrar que o chamado Brasil Colonial era mais do que um engenho de açúcar (FARIA, 1998FARIA, Sheila Castro. A Colônia em movimento – fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.; FRAGOSO, 1998FRAGOSO, João. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.; ALENCASTRO, 2002ALENCASTRO, Afonso. A princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.). Na mesma “escola”, temos os ouvintes da fábula de Mao Tsé-Tung que estudaram, nas palavras de D. Yedda, o “lado escuro da Lua”. D. Yedda referia-se à pouca atenção dada aos lavradores livres e sem terras que, muitas vezes, nos livros de História do Brasil eram escondidos pela senzala e casa grande. Nessa virada de abordagem acerca dos lavradores sem terras, temos os estudos de Francisco Carlos Teixeira da Silva (1984)SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Camponeses e criadores na formação social da miséria (1820-1920). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1984. e Hebe Castro (1987)CASTRO, Hebe. Ao Sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987.; (2023CASTRO, Hebe. Das cores do silêncio. Campinas: Ed. da Unicamp, 2023.).

No capítulo seguinte, Ana Arruda apresenta a experiência de Maria Yedda como secretária de estado da Educação do governador Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1983-1987) e, como tal, uma das realizadoras do projeto de Darcy Ribeiro dos CIEPs, projeto de ensino que objetivava diminuir as desigualdades da sociedade. D. Yedda, assim como outros, acreditava que a educação era um instrumento fundamental para transformar a sociedade, apesar da política educacional dever ser acompanhada por outras práticas públicas e da população em geral.

Quando entrei na antiga Faculdade Nacional de Filosofia, na época já IFCS, aprendi, naqueles corredores, que um dos pecados capitais de um professor de História era o anacronismo. Quase 50 anos depois, acredito que há vários outros, dentre os quais o pecado de o historiador não conhecer a história de sua profissão na sociedade em que vive. Sobre isso, o livro de Ana Arruda nos dá a oportunidade de ficar menos tempo no purgatório de Clio.

Claro está que não se trata de uma biografia feita conforme as normas técnicas da pesquisa em História. Porém, depois da leitura aprendemos, pesquisadores de História no Brasil, um pouco mais sobre nossa história. Por esse motivo, estou submetendo esta resenha a uma revista acadêmica e não a uma de literatura. Quiçá, pudesse submetê-la a alguma revista de literatura ou de teoria da história e historiografia. Quiçá, num campo específico chamado “terceiro continente”, no qual trabalhos ficcionais pudessem adquirir o estatuto de texto historiográfico (JABLONKA, 2017, p. 9-17JABLONKA, Ivan. O terceiro continente. ArtCultura, v. 19, n. 35, p. 9-17, 2017.). Sobre isso, prefiro me abster. Sobre o livro, chamo a atenção para sua importância: seja para os jovens, seja para os velhos historiadores.

Agradecimento

O autor agradece ao CPNq pelo seu apoio ao projeto de pesquisa n. 305897/2021/ PQ-1B — “Nobrezas principais da terra na Bahia e no Rio de Janeiro (séculos XVII e XVIII)”.

Referências

  • ALENCASTRO, Afonso. A princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais: São João del Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002.
  • CALLADO, Ana Arruda. Maria Yedda, formadora de gente Rio de Janeiro: Betel, 2022.
  • CASTRO, Hebe. Das cores do silêncio. Campinas: Ed. da Unicamp, 2023.
  • CASTRO, Hebe. Ao Sul da história: lavradores pobres na crise do trabalho escravo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
  • FARIA, Sheila Castro. A Colônia em movimento – fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
  • FRAGOSO, João. Homens de grossa ventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
  • FRAGOSO, João; FLORENTINO, Manolo. Marcelino, filho de Inocência Crioula. Neto de Joana Cabinda: um estudo de famílias escravas em Paraíba do Sul (1835-1872). Estudos Econômicos, v. 17, n. 2, p. 151-173, maio/ago. 1987.
  • GOUBERT, Pierre. Cent Mille Provinciaux au XVIIe siècle — Beauvais et le Beauvaisis de 1600 a 1730. Paris: Flammarion, 1968.
  • JABLONKA, Ivan. O terceiro continente. ArtCultura, v. 19, n. 35, p. 9-17, 2017.
  • LABROUSSE, Ernest. Voies nouvelles pour une histoire de la bourgeoisie occidentale aux XVIIIe et XIXe siècles (1700-1850). In: X CONGRESSO INTERNAZIONALE DI SCIENZE STORICHE, 1955, Roma-Florença. Relazioni […], v. 4, p. 365-396.
  • SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Camponeses e criadores na formação social da miséria (1820-1920). Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1984.
  • VILAR, Pierre. La Catalogne dans l’Espagne Moderne 3 v. Paris: SEVPEN, 1962.
Editoras responsáveis: Luiza Larangeira e Silvia Liebel

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Maio 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    24 Mar 2023
  • Aceito
    02 Maio 2023
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