Acessibilidade / Reportar erro

Toda via,: os cortes de Michele Santos — a mulher, periferia, a poesia

Toda via,: Michele Santos’ cuts — women, periphery, poetry

Toda via: los cortes de Michele Santos — mujer, periferia, poesía

Resumo

O presente artigo lê o livro Toda via, (2015), de Michele Santos, em três movimentos essencialmente: em primeiro lugar, faz a apresentação da coleção de poemas que marca a estreia da escritora e agente cultural do extremo da zona sul de São Paulo, ressaltando as principais linhas de força de sua escrita. Em seguida, tentamos compreender seu estilo em diálogo com as questões da literatura periférica. Na última parte, realizamos uma análise interpretativa dos poemas, na qual observamos os recursos estéticos usados para, entre outras coisas, refletir a linguagem e seus limites, o que se liga intrinsicamente, no caso de Michele Santos, a ter consciência de ser mulher no mundo a partir da periferia.

Palavras-chave:
literatura periférica; poesia; mulher; sarau; periferia

Abstract

The present article intended to read the book Toda via, (2015) by Michele Santos, in three acts: the first one is the presentation of a collection of poems, which marks the debut of the writer and important cultural agent of the extreme south zone of São Paulo, highlighting the main lines of her writing. Next, we will try to understand her style in dialogue with the issues of peripheral literature. In the last part, an interpretative analysis of the poems will be performed, which was aimed to observe the aesthetic resources used by this poet, to, among other things, reflect on language and its limits, which is intrinsically linked, in the case of Michele Santos, to having the awareness of being a woman in the world from the periphery.

Keywords:
Peripheral literature; poetry; woman; soirée; periphery

Resumen

El presente artículo pretende leer el libro Toda via, (2015) de Michele Santos, en tres movimientos esencialmente: en primer lugar, la presentación del libro que marca el debut de esta escritora e importante agente cultural de la zona extremo sur de São Paulo, destacando las principales líneas de su escritura. A continuación, tratamos de comprender su estilo en diálogo con las cuestiones de la literatura periférica. En la última parte, se realizó un análisis interpretativo de los poemas, en el que queremos observar los recursos estéticos utilizados, entre otras cosas, para reflejar el lenguaje y sus límites, lo cual está intrínsecamente ligado, en el caso de Michele Santos, a tener conciencia de ser mujer en el mundo desde la periferia.

Palabras clave:
literatura periférica; poesía; mujer; soirée; periferia

Sons, palavras, são navalhas

E eu não posso contar como convém

sem querer ferir ninguém

mas [...]

Isso é somente uma canção

A vida realmente é diferente

Quer dizer

A vida é muito pior

(Belchior).

Neste artigo, tratarei do livro de poemas Toda via, (2015), de Michele Santos — uma jovem poeta de São Paulo. É importante frisar desde já que sua poesia se inscreve na esteira da literatura marginal/periférica (Eble; Lamar, 2015EBLE, Tais; LAMAR, Adolfo (2015). A literatura marginal/periférica: cultura híbrida, contra-hegemônica e a identidade cultural periférica. Especiaria: Cadernos de Ciências Humanas, v. 15, n. 27, p. 193-212.), que tem início na virada do século. Michele ocupa um papel reconhecido tanto de escritora como de produtora cultural no extremo da zona sul, organizando o sarau Sobrenome Liberdade e, mais recentemente, a Festa Literária do Grajaú (FLIG). Ligada às mobilizações literárias das periferias desde muito cedo, sua obra começa a se destacar por volta de 2013, quando escritoras iniciam, de forma estratégica, um questionamento e uma denúncia sobre a reprodução de estruturas machistas nos próprios saraus. Mais tarde, em 2015, este levante desaguaria no movimento conhecido pela hashtag “não poetize o machismo”. Muito da elaboração dessa sua estreia se situa nesse contexto. Isso se observa no trecho da poesia “(E)fême(r)a” (Santos, 2015SANTOS, Michele (2015). Toda via,. São Paulo., p. 41), em que, de fato, a autora reflete profundamente sobre ser mulher na sociedade:

Ser a dita mulher

moderna

ser a bem

ser a mal

dita mulher

bela anti amélia

[entre outros predicados

tantos

vai se equilibrando no desvario do cotidiano.

Acorda

:corta cura

acode acua

corre senta

sangra

sua

e de ser tanta gente numa

já não sabe quem tomar por égide

[embora

concatena

não ser possível representar-se em

vulto algum

Atena?

Afrodite?

Pagu?

Quem melhor espelha a mulher moderna –

acumula invernos

infernos

questões internas

já que o mundo não a responde

vocifera.

O mundo, fera

fere

[…]

Os trocadilhos, o ritmo acelerado e as rimas irregulares se referem a boa parcela dos artifícios da escrita de Michele Santos. Ela explora, com muita destreza, certa maleabilidade da língua. E há um impulso de criação em sua fatura poética: os versos se precipitam uns sobre os outros numa enxurrada, dando novos sentidos às palavras, como na passagem da quarta para a quinta linha, em que o vocábulo “maldita” se forma por uma associação sonora. Aqui, tem-se que olhar principalmente para a arquitetura dos cortes precisos — que, por sua vez, sempre revela um aspecto ambíguo da linguagem. Como quando, no final do excerto, “vocifera” se decompõe e queda “fera” e, igualmente, pela repetição da rima, este traz consigo o verbo ferir que, de fato, aparece logo abaixo, conjugado. Tal proceder — a ruptura atrás do ambíguo — espalha-se de um jeito obsessivo quase por todas as páginas. Trata-se, sem dúvida, de um princípio organizador da obra. O próprio título do poema, assim como o do livro, é dividido tipograficamente. O mesmo acontece com os subtítulos de quatro (das cinco) seções, que separam os poemas: “Entre/tanto”, “Con/tudo”, “A/pesar” e “Em/bora”. São todas conjunções que criam relações de oposição.

O artifício, se olharmos com mais calma, indica uma desconfiança latente em relação ao alcance da linguagem. Um incômodo com a distância entre o mundo e sua representação artística. A poeta se confronta com uma espécie de incompletude da palavra, que é formulada, por exemplo, no começo do poema “A mares morto”:

Há palavras tão cansadas de existir

quanto as próprias coisas pra que elas servem

você veja o mar, não te parece eterno?

sua palavra é gasta porque nós a fizemos

mas não cansa os olhos nem as manhãs a coisa

devíamos aprendê-lo

quando ele diz

gritando onda por sobre o silêncio

daí a gente faz prendê-lo

álbum de verão

os risos e os ‘xis’ perdem-se no documento

a foto não segura

o oco do nosso dentro

a gente é mouco

pro mar

para existir ele só precisou ser

e ele há

[…]

Este trecho exemplifica seu questionamento sobre o limite do signo. Algo falta nessa relação, algo está perdido e a poeta se depara com o vazio, “oco do nosso dentro”. É bem provável que o grande esforço, que se enxerga no livro, de tentar redefinir os objetos, por ela mesma, tenha nascido como uma reação a esse espaço que separa a gente das coisas. São inúmeras as formulações, ao longo do livro, tentando responder a esta pergunta: o que é, verdadeiramente, a poesia? Do mesmo jeito que isso me parece uma das origens daquela ânsia de criação mencionada acima, seria uma estratégia de resistir a esse sentimento de gastura. Mas, daí a contradição, o corte revela o novo somente destruindo o que existe. A revelação da ambiguidade, por meio da ruptura, desvela também a incompletude da palavra e concede à poética de Michele Santos um caráter meio de denúncia (em parte, para si mesma), meio de inconformismo quanto à insuficiência de sua matéria-prima. Talvez a leitura do poema “Othelo’s” (Santos, 2015SANTOS, Michele (2015). Toda via,. São Paulo., p. 52) possa esclarecer melhor a questão:

Versos que lhe cortassem.

Lhe atravessassem feito falta de mãe ou perda de amor ou

lhe dobrassem em decúbito

dor

sal

versos que lhe lessem-nos

sobretudo versos que não estivessem nem aí para a utilização

equívoca do pronome oblíquo

quando oblíquo de fato

somos-nos

[…]

Sendo o que sou

não posso mais que as sinta

e sentir é analfabetamente empírico

eu lírico um títere chapado de ego trip

testando efeitos e cortes precisos

pré cisos arrombando fundos de bocas mortas

as palavras são nascidas do rasgo da gengiva

o gozo do palato duro quando a língua toca

parindo fonema:

delícias de som e forma

mede-as todas mete-as

num poema

não para

não para

não para

não para mim

[nunca pra mim

deus me dê fenda

por fim

que lá quero com verso que corte

que revele?

que releve?

que resvale

na pequenez do meu ciúme de morte?

A faca já lascou foi toda a pele.

palavra,

hora dessas?

não fede não cheira e

principal e sobremaneira:

não fecha o rombo que me fode o peito desde que você foi

embora.

A conjugação no subjuntivo, na primeira estrofe, já demonstra incerteza e dúvida quanto aos versos, que precisariam ser outra coisa, mais tangíveis, mais cortantes de verdade, menos distantes da ação, para atender às necessidades da poeta. Ainda que haja um grande deleite erótico — isso ela não esconde — na experimentação poética, no final, prevalece o descontentamento. A palavra que não resolve o problema, “não fede não cheira”, não sana a dor. Reparem que este processo formal do corte é tão intenso que, em certos momentos, ultrapassa um limiar delicado, tornando-se excessivo, às vezes um maneirismo, no sentido de que a forma suplanta a expressão sem contribuir efetivamente com ela. A imagem acaba prejudicada, como acontece em “as sinta”, que, pela estrutura da frase, sugere o “verbo assentir” ou no desdobramento de “precisar” em “pré ciso”.

Essa relação oblíqua com a palavra, essa desconfiança um tanto melancólica, configuraria a nosso ver um traço dissonante no contexto da Literatura Periférica1 1 Na bibliografia, destacamos os livros de Erica Peçanha do Nascimento (2009) e Lúcia Tennina (2013; 2017). Trabalhos fundamentais para se compreender a história e o desenvolvimento da literatura marginal-periférica. Interessa-nos, sobretudo, os instantes em que as duas pesquisadoras se detêm nas dinâmicas dos saraus. Os títulos são, respectivamente, em Vozes Marginais da literatura (2009) e Cuidado com os poetas! Literatura e periferia da cidade de São Paulo (2017). O artigo “Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos” (2013) de Tennina também merece ser salientado. , que, em grande parte, conta com produções literárias que aderem ao “poder da palavra”, apostando que a poesia mudará a realidade imediata. Uma atitude que, não raramente, converte-se em formulações idealistas, entusiasmadas, positivadas, as quais têm suas razões políticas, éticas e psicológicas, sobretudo num país tão desigual. Não obstante, os resultados estéticos são insuficientes, simplificados e, às vezes, inocentes demais. Justamente, o cismar da poeta quanto à sua própria matéria-prima condiciona uma proposta formal sutil e original (este gesto no mínimo ambicioso de produzir algo diferente, talvez, seja responsável — como um efeito colateral — do hermetismo em seu estilo). Infelizmente, apesar de ter circulado bastante nos saraus e de isso ter sido, acredito eu, uma experiência formadora para a escritora, pouca discussão sobreviveu às instâncias da divulgação ou do lançamento. Embora a poeta represente uma presença forte e constante na periferia da zona sul de São Paulo, não houve um debate sobre suas escolhas estéticas. Em forma de texto, por exemplo, uma das únicas reflexões disponíveis foi escrita no blog Outras Palavras, de Eleilson Leite (2020)LEITE, Eleilson (2020). Poemas para não serem lidos em voz alta. Outras Palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/poeticas/poemas-para-nao-serem-lidos-em-voz-alta/?fbclid=IwAR0SozjXzj1FADGBhjzcq4uI0EeQSxqpQx8pgVZswX-4P9okuvNcpkCiXSk. Acesso em: 30 out. 2020.
https://outraspalavras.net/poeticas/poem...
. No caso, notem que o comentário compreende os poemas de Toda via,2 2 Existem muitas entrevistas de Michele Santos na internet, que são, igualmente, interessantes para conhecer a produção da poeta, contudo focalizam a pessoa, o percurso da escritora e muito pouco as escolhas formais de seu livro. precisamente, ocupando um lugar de exceção no movimento periférico:

Michele Santos é erudita e seus poemas são elaborados com um esmero de carpinteira. Ela escreve como João Cabral de Melo Neto. O poeta pernambucano, que faria 100 anos em 2020, dizia que sua poesia tinha “uma textura áspera; difícil de ser lida em voz alta”. Ele não queria um poema que embalasse o leitor numa leitura fluente como um carro que desliza numa pista asfaltada. Sua poesia era uma rua de pedregulhos. Vejo a escrita de Michele um pouco assim. A arquitetura de seus poemas é rebuscada; não usa estrofes, seus versos são equilibrados como caixas de formatos distintos empilhadas, mas que formam um conjunto coeso, apesar da aparente instabilidade. […] As duas autoras aqui analisadas publicaram seus livros de estreia na poesia (Lana tem um livro anterior em prosa) já nesse contexto mais contemporâneo no qual a experimentação literária já tinha ganho espaço na literatura periférica. Isso significava também não só o desprendimento do sarau, como do território a ele vinculado. Lana e Michele fazem uma poesia desterritorializada que cabe em diferentes contextos, não só da periferia que mal é citada pelas duas. Uma poesia cuja densidade e amplitude de repertórios a conecta com pessoas de realidades e perfis sociais distintos. São livros que expandem o gosto pela literatura e o próprio circuito em que a produção literária da periferia é produzida e consumida (Leite, 2020LEITE, Eleilson (2020). Poemas para não serem lidos em voz alta. Outras Palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/poeticas/poemas-para-nao-serem-lidos-em-voz-alta/?fbclid=IwAR0SozjXzj1FADGBhjzcq4uI0EeQSxqpQx8pgVZswX-4P9okuvNcpkCiXSk. Acesso em: 30 out. 2020.
https://outraspalavras.net/poeticas/poem...
).

Eleilson Leite (2020)LEITE, Eleilson (2020). Poemas para não serem lidos em voz alta. Outras Palavras. Disponível em: https://outraspalavras.net/poeticas/poemas-para-nao-serem-lidos-em-voz-alta/?fbclid=IwAR0SozjXzj1FADGBhjzcq4uI0EeQSxqpQx8pgVZswX-4P9okuvNcpkCiXSk. Acesso em: 30 out. 2020.
https://outraspalavras.net/poeticas/poem...
se propõe a compartilhar sua leitura pessoal dos poemas de Toda via, — numa perspectiva comparativista em relação ao livro Cheiro de Mato e Capim-limão, de Ivone Lopes Lana, escritora da zona leste de São Paulo. Então, apesar de notar a densidade e amplitude da arquitetura rebuscada de Michele, suas observações não ultrapassam o patamar do comentário, por assim dizer, mais descritivo. Como o próprio autor esclarece noutro instante do texto, ele não tratará das escolhas formais, uma vez que sua análise foca somente o conteúdo da obra e não a parte estética. O que lhe chama atenção, coisa que se apresenta desde o título do artigo “Poemas para não serem lidos em voz alta”, seria a impressão de que essa poesia não é prioritariamente oral, ou seja, não se adequaria completamente ao sarau. Em seus termos, os versos “são melhores percebidos se lidos” no papel. Eu discordo desse argumento. Insisto no fato de que o traço particular de Michele Santos está na concepção mesma da palavra, na incredulidade, que a faz mergulhar numa pesquisa estética profunda para revelar os mistérios da poesia. E, por conta disso, escapa de certa ideologia (problemática) que modela parte das produções periféricas. Ademais, não tenho dúvida de que seu processo estético está ligado intimamente ao sistema de saraus, às questões da literatura da periferia3 3 O percurso deste livro, por si só, aponta para uma série de características importantes da literatura periférica: Toda via, foi custeado pela autora, que, desde a publicação em 2015 até o último lançamento oficial na Cooperifa em 2018, divulgou, discutiu e vendeu seus versos de maneira independente. Este tem sido o caminho natural da maioria dos artistas periféricos. Até pouco tempo atrás, todos os dias da semana havia um sarau nalguma quebrada da cidade, onde se poderia “mangear” os poemas, geralmente, num preço médio de vinte reais. .

A linguagem não é fácil. O obstáculo não tem a ver com a leitura em voz alta ou não, pois, de modo geral, a contemplação silenciosa de Toda via, propõe um desafio igualmente intrigante. Por este ângulo, aliás, penso o contrário: a declamação facilitaria a compreensão da poesia, porque envolve o corpo. Por exemplo, convido os leitores a assistirem à participação de Michele Santos, em 2016, no programa Manos e Minas da TV Cultura4 4 “(E) fême (r) a. Disponível em: https://youtu.be/TXfJT9b0zrQ. Acesso em: 22 out. 2020; e “Sobre searas: saraus. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Rjm1qO8GVVU&t=26s. Acesso em: 22 out. 2020. Outras declamações da poeta podem ser facilmente encontradas na internet. . Prestem atenção especialmente nos movimentos dos braços, mãos e dedos, que acompanham o desenho das palavras numa tentativa de potencializar seus significados. Observem que existe uma relação evidente entre os cortes, o ritmo da respiração quando a poeta profere seus versos e a disposição tipográfica no papel. As performances são de “(E) fême(r)a” e “Sobre searas: saraus” (Santos, 2015SANTOS, Michele (2015). Toda via,. São Paulo., p. 33-34), do qual reproduzirei parcela logo abaixo.:

Aquele que se indaga

aponta pra si

a ponta da adaga

da dúvida

[donde a arte que me inflijo é bainha.

Escrevo porque sangro

num canto

onde só a palavra estanca

escrevo pra conhecer minhas perguntas

respostas são feitas de enquantos

A palavra carrega em si o poder do encanto

mas que não se finde nela o alumbramento

estético

o que procuro dela é o

espanto

a traduzir os lapsos do cotidiano

e perceber o milagre

das flores amarelas chorando sobre Macondo

[ao que paro

penso

peço:

que estes traços

concebidos à sombra do

caos

sejam preces a trazer

luz

pros próximos passos.

A adaga da dúvida seja enfim

lâmina

fria

cortando-me a carne

me talhe

em pedaços de

palavra &

poesia

: vou me dar aos bifes [té não sobrar mais nada]

Irmanado meu por-dentro

pode até que fique oca. vazia,

mas consiga sentir

a tempo

que

o lamento que

verbalizo

é alimento que

compartilho

pra uma antropofagia dos sentidos.

Os gestos são cuidadosamente calculados em sua declamação5 5 É possível até mesmo verificar que, já em 2013, ou seja, alguns anos antes da declamação no programa da TV Cultura, alguns dos gestos enfatizados da poesia “(E)feme(ra)” já existiam em gérmen nesta performance no Sesc de Belo Horizonte. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gdfkUEHAtBo. Acesso em: 22 out. 2020. . Tal mímica corresponderia às estratégias de comunicação, com a intenção de facilitar a compreensão de uma linguagem não tão evidente. A boca pronuncia “adaga”, as pontas dos dedos lhe ameaçam o pescoço. A “arte”, que é bainha, falada entre um sorriso, traduz-se na outra mão e afasta a lâmina da dúvida. Acontece que Michele, na passagem do livro para a declamação (e vice-versa), estuda as possibilidades da representação, por meio de uma equivalência entre tipografia, ondulações da voz, respiração, movimento do corpo etc. Ela adéqua sua poesia às diversas superfícies e vai absorvendo o microfone, a câmera, os espaços em branco, em sua prática poética. Vai testando seu desejo de fazer do verbo carne.

Não julgo, vejam bem, a efetividade de suas escolhas — é difícil analisar a multiplicidade das formas num único artigo. Somente destaco que a autora é consciente na hora de transitar sua escrita nos diferentes meios; mas, tal como a palavra, nenhum desses espaços lhe é suficiente. O exercício de sua poesia constantemente a faz extrapolar as bordas circundantes, seja pela disposição gráfica emulando o respirar, seja pela linguagem mutilada visualmente, a escrita de Michele Santos explora as fronteiras dos materiais condutores dos versos. Sua ânsia de experimentar a impulsiona aos limites de cada coisa, porque, no final, o objeto desejado nunca está ali, encontra-se noutro lugar, talvez escondido nas “gretas do cotidiano” (como escreve na dedicatória do livro), talvez perdido para sempre.

Muitos desses elementos se encontram no poema acima6 6 Não por acaso, os dois poemas declamados no programa da TV Cultura servem como uma espécie de carro-chefe de Toda via, isto é, são aqueles que apresentaram o livro nos saraus e eventos literários. Evidentemente, porque guardam elementos importantes de sua poética. , no qual Michele Santos tece os medos, vontades e motivos de sua escrita. Novamente a palavra se torna maleável em suas tintas. Aqui, estabelece-se uma correspondência direta entre a dúvida (ou procura), o corte, o corpo e a poesia — uma poética, afinal. Para mais, a necessidade de escrever, que envolve uma frequentação dolorosa com o caos, serve para estancar seu próprio sangue, conhecer suas perguntas, ou seja, trata-se de algo pessoal, uma urgência que é dela. Ainda assim, a autora se debate com essa condição, não quer que o “alumbramento estético” seja o propósito nele mesmo. O ideal seria que a via-crúcis se convertesse em ordem, em luz, num alimento para ser compartilhado; que sua pesquisa alcançasse o outro, como se a coerência formal (o artífice da poeta) pudesse pacificar as dores da existência ou, pelo menos, comunicá-las, aliviá-las. Esse traço — que tenho a impressão de vir mais do contexto do que de uma necessidade interna — modula um impasse latente da autora: como fazer da experiência formal um ato coletivo? Evidentemente, seria precipitado exigir tão cedo uma resposta para isso — lembremos que é apenas sua estreia. É preciso, entretanto, reconhecer o mérito de ter conseguido já no primeiro livro elaborar tamanha pergunta.

De qualquer modo, tanto a comunhão quanto o ceticismo de Michele Santos desenvolvem caminhos formais, que funcionam num regime de palavras. Ela economiza o traço. Seu gesto prioritário é ir enxugando, diminuindo as estrofes angustiadamente, os versos também; é ir crivando sons e imagens atrás da combinação mínima perfeita. O movimento pode ser visto simplificado na disposição mesma dos textos. Até certa altura os poemas são largos, trovas longas; no entanto, na última página de Toda via, se afigura uma única linha: “Poesia: estreia do espanto”. Assim, verso sem verbo, cru. Construção bem diferente de formulações anteriores da antologia sobre o mesmo tema: “O preço do poema é a eterna falta de serventia para fins comerciais” (Santos, 2015SANTOS, Michele (2015). Toda via,. São Paulo., p. 39) ou “Poemas são todos/ tentativas de voo” (Santos, 2015SANTOS, Michele (2015). Toda via,. São Paulo., p. 82). É como se o livro fosse um peneirar devagar, no qual Michele Santos garimpa pepitas valiosas, por meio de um cálculo engenhoso, uma lapidação paciente e uma manipulação fina dos resíduos da língua, que resultam numa construção rebuscada.

*

Pretendo, agora que já apresentei as linhas de força da escrita de Michele Santos, por minha conta, fazer uma rápida incursão interpretativa sobre a urgência do corte em sua poesia. Para começar, arriscaria dizer que esse artifício representa “o conceito do livro” ou, pelo menos, foi um dos parâmetros que elegia ou excluía os poemas. A ruptura do estado das coisas funciona sem dúvidas como um princípio organizador de Toda via, que, para além das sílabas, dos versos, estrofes, espalha-se pelos títulos, subtítulos e acontece, sobretudo, por uma intervenção tipográfica. O aspecto visual constitui uma dimensão importante da obra. Neste sentido, olhando a capa (Figura 1), que foi desenhada pela própria poeta, é possível vislumbrar vestígios da origem deste recurso.

Figura 1
Capa e contracapa do livro Todavia,.

A orquídea ensanguentada sugere o sexo feminino. Quando as páginas se dobram, envelopando os versos, a imagem se torna mais complexa, mais perto do limiar entre um e outro símbolo. Chama mais atenção também a cor, que, pelos traços gotejantes, parece escorrer de dentro da flor para o livro (se tiver a obra nas mãos, perceba que o avermelhado adquire tonalidades diferentes das pétalas para a capa). O sangue preconiza uma ação violenta cortando a pele, talhando a carne. Então, assim como versos de “Sobre searas: saraus”, há uma aproximação entre o talho, a poesia e, finalmente, o corpo. O recurso do corte estaria de algum modo intrinsecamente ligado à experiência feminina no mundo. Quer dizer, grosso modo, o rasgo na palavra seria a depuração estética encontrada pela poeta, a representação formal da mulher.

Até mesmo a necessidade constante de Michele Santos de reinventar a definição das coisas ou da realidade, isto é, o impulso mesmo de sua poesia, tem a ver com a urgência política de desfazer o que nesta realidade adquire contornos naturais, quando, na verdade, corresponde a mecanismos de opressão. Seus versos estão no fio afiado entre ser concomitantemente “Atena”, “Afrodite”, “Pagu”, em outros termos, assumir a razão, o amor e a luta em sua poética. Um processo legítimo e preciso, que, no entanto, envolve muito sofrimento. Infelizmente, o ato da ruptura coaduna em si diferentes elementos, podendo bem representar os impedimentos enfrentados pelas mulheres na sociedade machista. O corte encerra a violência, a intermitência, aquilo que poderia ter sido e não foi: a poesia — como a leitura do poema “Sui” (Santos, 2015SANTOS, Michele (2015). Toda via,. São Paulo., p. 45) nos mostra:

A escritora fazia poemas incríveis

que lembravam emilydickinson etc.

e os guardava à chave

na gaveta da cômoda

ninguém vai se lembrar dela

do chão pra janela do oitavo

[uns vinte metros fácil

Veio o jornal o fotógrafo freela

o pastor da universal 

a polícia depois

[a polícia sempre

depois.

foto reza vela perícia quem tem o número da família?  

ninguém vai se lembrar dela.

uma mãe frita ovos no interior de Minas

gavetas gritam no oitavo andar

O título do poema é interrompido como a vida, que se jogou do oitavo andar — “Sui”, de suicídio, mas também de “sui generis” — algo único em seu gênero. Novamente, o corte percorre os versos tanto na disposição visual quanto nas rimas, nos cruzamentos entre as imagens e nos jogos de sons entre consoantes mudas e vozeadas, como em “foto reza vela perícia”. Como é sugerido no poema “E(f)ême(r)a”, a mulher se entrelaça ao esquecimento apesar de seus “poemas incríveis”. Daí, talvez, a desconfiança para com a palavra?

Muitos outros poemas de Toda via, vão problematizando esse “lugar” feminino na sociedade, ora com ânimo e esperança, ora com tristeza e certo desespero. A poeta, com certo êxito, tenta encontrar as respostas estéticas para todas essas questões da vida. O trabalho é muito grande. Por sinal, o flerte com o hermetismo excessivo é devido à complexidade dessa tarefa ambiciosa. Nas produções posteriores, porém, sinto que ela tem conseguido se resolver. Justamente, para finalizar, reproduzo um poema mais recente de Michele Santos “Houvesse vísceras uma vulva”, publicado na Antologia Casa do Desejo (2018) pela Editora Patuá. Aqui, mantêm-se as principais características tratadas neste ensaio e, de modo geral, seu traçado apresenta uma maturidade, menos hesitação do que na estreia. O livro Toda via, depurou sua escrita. Para que o leitor possa, por si mesmo, conferir mais de seus versos, logo abaixo do excerto, deixarei uma pequena lista de revistas, em que estão disponíveis alguns de seus escritos (também em prosa). Espero ter despertado o interesse para o potencial da experiência poética de Michele Santos. No mais, boa leitura:

um homem triste me amou

com sua pica triste e seu abraço

morno. Um homem triste e a morte

pendurada no pescoço me atravessou

como se eu fosse um pedaço um

buraco. Um homem ativista me amou

com sua língua tímida e suas vergonhas

murchas. Um homem ativista e suas

taras cubanas me consolaram a vulva

como se eu fosse a camiseta que vira

pano de pia. Não não – o pano de chão.

Um homem sedutor me amou com

brasas, carmenere y palta. Um homem

sedutor que lambia botas de renome

me varou a cona me largou na rua na

manhã de um primeiro dia do ano. Um

homem literato me amou por trás e pelas

bandas. Um homem literato com uma

biblioteca nos braços me ardeu o grelo

como se eu fosse a culpa de raskolnikov.

Um homem nunca perdoa meu uivo solo

de mulher louca no meio da noite um

homem não é afeito a mulheres ex

travagantes eu sou uma mulher

grande: a vênus de de willendorf as

tetas e os gritos gigantes pendendo

sobre o mundo eu sou uma mulher tão

eu sou uma mulher muito

  • 1
    Na bibliografia, destacamos os livros de Erica Peçanha do Nascimento (2009)NASCIMENTO, Erica Peçanha do (2009). Vozes marginais da literatura. Rio de Janeiro: Aeroplano. e Lúcia Tennina (2013TENNINA, Lucía (2013). Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos. Revista de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 42, p. 11-28.; 2017TENNINA, Lucía (2017). Cuidado com os poetas! Literatura e periferia da cidade de São Paulo. Porto Alegre: Zouk.). Trabalhos fundamentais para se compreender a história e o desenvolvimento da literatura marginal-periférica. Interessa-nos, sobretudo, os instantes em que as duas pesquisadoras se detêm nas dinâmicas dos saraus. Os títulos são, respectivamente, em Vozes Marginais da literatura (2009) e Cuidado com os poetas! Literatura e periferia da cidade de São Paulo (2017). O artigo “Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos” (2013) de Tennina também merece ser salientado.
  • 2
    Existem muitas entrevistas de Michele Santos na internet, que são, igualmente, interessantes para conhecer a produção da poeta, contudo focalizam a pessoa, o percurso da escritora e muito pouco as escolhas formais de seu livro.
  • 3
    O percurso deste livro, por si só, aponta para uma série de características importantes da literatura periférica: Toda via, foi custeado pela autora, que, desde a publicação em 2015 até o último lançamento oficial na Cooperifa em 2018, divulgou, discutiu e vendeu seus versos de maneira independente. Este tem sido o caminho natural da maioria dos artistas periféricos. Até pouco tempo atrás, todos os dias da semana havia um sarau nalguma quebrada da cidade, onde se poderia “mangear” os poemas, geralmente, num preço médio de vinte reais.
  • 4
    “(E) fême (r) a. Disponível em: https://youtu.be/TXfJT9b0zrQ. Acesso em: 22 out. 2020; e “Sobre searas: saraus. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Rjm1qO8GVVU&t=26s. Acesso em: 22 out. 2020. Outras declamações da poeta podem ser facilmente encontradas na internet.
  • 5
    É possível até mesmo verificar que, já em 2013, ou seja, alguns anos antes da declamação no programa da TV Cultura, alguns dos gestos enfatizados da poesia “(E)feme(ra)” já existiam em gérmen nesta performance no Sesc de Belo Horizonte. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=gdfkUEHAtBo. Acesso em: 22 out. 2020.
  • 6
    Não por acaso, os dois poemas declamados no programa da TV Cultura servem como uma espécie de carro-chefe de Toda via, isto é, são aqueles que apresentaram o livro nos saraus e eventos literários. Evidentemente, porque guardam elementos importantes de sua poética.

Referências

  • EBLE, Tais; LAMAR, Adolfo (2015). A literatura marginal/periférica: cultura híbrida, contra-hegemônica e a identidade cultural periférica. Especiaria: Cadernos de Ciências Humanas, v. 15, n. 27, p. 193-212.
  • LEITE, Eleilson (2020). Poemas para não serem lidos em voz alta. Outras Palavras Disponível em: https://outraspalavras.net/poeticas/poemas-para-nao-serem-lidos-em-voz-alta/?fbclid=IwAR0SozjXzj1FADGBhjzcq4uI0EeQSxqpQx8pgVZswX-4P9okuvNcpkCiXSk Acesso em: 30 out. 2020.
    » https://outraspalavras.net/poeticas/poemas-para-nao-serem-lidos-em-voz-alta/?fbclid=IwAR0SozjXzj1FADGBhjzcq4uI0EeQSxqpQx8pgVZswX-4P9okuvNcpkCiXSk
  • NASCIMENTO, Erica Peçanha do (2009). Vozes marginais da literatura Rio de Janeiro: Aeroplano.
  • SANTOS, Michele (2015). Toda via,. São Paulo.
  • SANTOS, Michele (2018). Houvesse vísceras uma vulva. In: LACERDA, E. (org.). Antologia do desejo São Paulo: Patuá. p. 251-252.
  • TENNINA, Lucía (2013). Saraus das periferias de São Paulo: poesia entre tragos, silêncios e aplausos. Revista de Literatura Brasileira Contemporânea, Brasília, n. 42, p. 11-28.
  • TENNINA, Lucía (2017). Cuidado com os poetas! Literatura e periferia da cidade de São Paulo Porto Alegre: Zouk.

Indicações de leitura

  • SANTOS, Michele (2015). Arrocha. RaiMundo – Revista da nova literatura brasileira
  • SANTOS, Michele (2016). Quatro poemas. Magma, v. 23, n. 13, p. 333-340. https://doi.org/10.11606/issn.2448-1769.mag.2016.126772
    » https://doi.org/10.11606/issn.2448-1769.mag.2016.126772
  • SANTOS, Michele (2017). 8 poemas de Michele Santos. Mallarmargens
  • SANTOS, Michele (2020). No trem do tempo com Michele Santos Leitura do poema “Descabimento”. Podcast.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    26 Out 2022
  • Aceito
    26 Out 2023
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revistaestudos@gmail.com