Acessibilidade / Reportar erro

Reforma monetária, indexação generalizada e o plano de estabilização

Monetary reform, general indexation and the stabilization plan

RESUMO

O Plano de Estabilização FHC consiste em três etapas, uma das quais é a reforma monetária, onde inicialmente é criada uma nova moeda-de-conta como base para uma nova moeda própria a ser emitida posteriormente em substituição ao cruzeiro real. O artigo explora as diferenças entre indexação e reforma monetária à luz das inconsistências distributivas geradas por um regime de alta inflação. Mostra-se que a possibilidade de soluções explosivas para o problema de coordenação durante a transição para o dinheiro novo é muito aumentada pelas regras propostas pelo governo.

PALAVRAS-CHAVE:
Estabilização; inflação; Plano Real

ABSTRACT

The FHC Stabilization Plan consists of three stages, one of which is a monetary reform where a new money-of-account is initially created as the basis for a new money proper to be issued later to replace the cruzeiro real. The paper explores the differences between indexation and monetary reform in the light of the distributive inconsistencies generated by a high inflation regime. It is shown that the possibility of explosive solutions to the coordination problem during the transition for new money is much increased by the rules proposed by the government.

KEYWORDS:
Stabilization; inflation; Real Plan

1. INTRODUÇÃO

O plano de estabilização apresentado pelo Ministro Fernando H. Cardoso em dezembro de 1993 desdobra-se em três fases. Na primeira, são estabelecidas condições na verdade preliminares ao plano de estabilização propriamente dito, buscando-se a eliminação do déficit público através de medidas fiscais tanto transitórias quanto permanentes. A fase seguinte consiste na introdução de nova unidade de conta, a URV, que se espera substitua gradualmente as outras unidades de conta utilizadas na economia, para a denominação de contratos privados e na definição de obrigações de natureza fiscal. Finalmente, na terceira e última fase, a URV, se bem-sucedida na segunda fase, se constituiria na base de uma nova moeda propriamente dita, em substituição à moeda legal do país.

A segunda fase, em termos de estabilização de preços, é, sem dúvida, a mais crucial e problemática. O plano pode ser derrotado, eventualmente, já na sua primeira fase caso não haja o acordo político necessário à aprovação das medidas fiscais preliminares tendentes a eliminar o déficit público. Admitindo-se, porém, que esta barreira seja transposta, é na introdução da URV que o combate à inflação será ganho ou perdido. É no reconhecimento da URV como moeda-de-conta estável por todos os grupos relevantes de agentes econômicos que a possibilidade de estabilização dos preços será ou não obtida.

Apesar da importância estratégica da URV, muito superior à da aprovação das medidas fiscais propostas, bastante desfiguradas pela negociação política que se seguiu ao anúncio do plano, o documento divulgado, e as explicações dadas ao público pela equipe do Ministério da Fazenda, é impressionantemente vago no que diz respeito ao processo esperado de introdução da nova moeda de conta. Em particular, algo que, se bem-sucedido, se constituirá numa verdadeira reforma monetária, foi apresentado como sendo apenas mais uma modalidade de indexação. Nesta nota queremos explorar as diferenças entre uma reforma monetária, como a que teve lugar em várias experiências de estabilização, e o processo de indexação. Esta discussão deve servir não apenas para a reflexão em torno do desdobramento do combate à inflação, como também para a identificação dos riscos envolvidos nesta estratégia.

2. INDEXAÇÃO

A indexação de contratos nada mais é que a substituição da moeda legal como unidade de denominação dos compromissos acordados por uma nova unidade de conta, cujo valor estabelecido em termos da moeda legal passa a definir as condições de liquidação da obrigação. Essa nova unidade de conta deve representar uma medida real de valor mais significativa para os contratantes do que a representada pela moeda corrente. Ela pode ser definida por cestas de bens representativas do perfil de demanda dos contratantes, por moedas estrangeiras cujo poder de compra se julgue estável (ou, pelo menos, significativamente mais estável que a moeda legal do país), etc. Em tese, a indexação garantiria aos contratantes o valor real do contrato, colocando-os a salvo da corrosão inflacionária, dado que as obrigações seriam definidas diretamente em quantidades de produto. Assim, salários seriam fixados em termos de cestas de bens de consumo, obrigações financeiras em termos do índice de preços dos bens e serviços relevantes, valendo o mesmo para outras rendas, obrigações fiscais, câmbio etc. Ainda em tese, no limite, todos estariam defendidos contra a inflação, neutralizando seus efeitos.

Na realidade, porém, a neutralização da inflação não seria atingida por diversos motivos. Em primeiro lugar, porque a indexação, mesmo a mais ampla, como no caso do Brasil, não atinge todas as obrigações. Compromissos financeiros para liquidação a curto prazo não são geralmente indexados, ainda que suas taxas de juros reflitam em algum grau expectativas inflacionárias, que podem ou não se confirmar. O papel-moeda em poder do público não é indexado. Mais importante: os preços de oferta dos bens e serviços não são indexados.

A determinação dos preços de oferta se modifica quando a inflação se mostra persistentemente elevada. Pensar, porém, em indexar os preços de oferta é esquecer que isso seria equivalente a um congelamento (na verdade, seria um congelamento dos preços relativos). Os efeitos seriam exatamente os mesmos, pois o sistema de preços seria impedido de refletir as variações relevantes nas condições de oferta e demanda nos diversos mercados que são necessariamente diferenciadas (por exemplo, entre produtos em safra ou entressafra, produtos de demanda declinante ou ascendente etc.). O processo de formação de preços se altera, mas de modo diferente. A maioria dos preços de oferta não é determinada em contratos, mas, sim, em mercados à vista. Como poderiam regras de indexação ser aplicadas? A resposta é diversa. Os ofertantes devem se preocupar com as defasagens que separam o processo de produção da colocação do produto no mercado. Os custos incorridos no presente, em termos nominais, serão certamente menores que os que serão incorridos no período seguinte, porque os preços dos insumos subirão. Por isso, as empresas devem formar expectativas dessas altas e tentar obter na venda do produto corrente o suficiente para a retomada do processo produtivo. Por outro lado, é preciso formar expectativas também do próprio processo inflacionário como um todo de modo a tentar preservar a posição relativa de seu produto em relação aos outros bens e serviços.

A coexistência de diversos indexadores aplicáveis aos diversos contratos e dos diversos modos de precificação dá à inflação ampla influência redistributiva, ao contrário da expectativa inicial. O resultado é a frustração das expectativas dos agentes, ou de grande parte deles, que vê sua estratégia de resistência contra a redistribuição inflacionária de renda prejudicada. Nessas circunstâncias, um regime de alta inflação, conflitos distributivos se agravam à medida que tentativas de contra restar perdas inflacionárias por parte de cada grupo exacerba perdas para outro, induzido, por sua vez, a reagir, em processo que se autoalimenta.

É extremamente importante, porém, observar que esse sistema possui uma válvula de segurança: os mecanismos de correção monetária não operam instantaneamente, mas apenas após um determinado intervalo de tempo. Razões operacionais (ligadas ao cálculo dos índices de correção) e institucionais (decorrentes dos prazos de correção contratualmente estabelecidos) impõem um determinado grau de rigidez (stickiness) aos valores nominais dos contratos que permite que qualquer perfil redistributivo, não importa quanto ele desagrade aos agentes econômicos, seja recomposto a uma taxa finita de inflação. Assim, conflitos distributivos, por mais incoerentes que sejam as aspirações dos diversos grupos sociais, são dissipados em pressões inflacionárias sem que, contudo, ocorram necessariamente explosões inflacionárias. Defasagens de ajuste dos valores nominais dos contratos permitem que uma situação de equilíbrio, ainda que espúria, seja alcançada à medida que representam estados de descontentamento dos agentes. Esse equilíbrio se define pela existência de uma taxa finita de inflação que permite a recomposição de um determinado perfil distributivo, ainda que todos os agentes tenham suas rendas indexadas.

3. REFORMA MONETÁRIA

É exatamente essa válvula de segurança que desaparece na reforma monetária. Para que essa nova unidade de conta represente efetivamente valores reais para os agentes, deixando de induzi-los a procurar sempre por compensações por perdas contratuais passadas, ela tem necessariamente de ser atualizada diariamente. Além disso, é também necessário que ela sirva de medida para todas as operações relevantes da economia, de modo a coibir as influências redistributivas da inflação mencionadas anteriormente. Isso significa que sua adoção deve ser generalizada, como ocorre com a moeda em economias estáveis. Assim, para que a segunda fase do plano de estabilização possa atingir os objetivos esperados pelo governo, eliminando o acúmulo de perdas sofrido na vigência da indexação de contratos e, consequentemente, as tentativas de recomposição de renda que perpetuam pressões inflacionárias, a nova unidade de conta tem de ser estabelecida diariamente.

A diarização do cálculo da URV é condição necessária para a estabilização, porém não suficiente. Tudo que ela garante é o valor real da própria URV (em termos de algum indicador que, em que pese toda retórica diversionista do governo, só poderá ser mesmo o dólar). O que é necessário, porém, é a estabilização das rendas dos agentes, não apenas da unidade de medida em si. Isso demandará não apenas que a paridade URV/dólar, digamos, seja mantida diariamente, mas também que as defasagens entre o cálculo do valor real dos contratos e sua efetiva apropriação sejam também eliminadas. Contratos em URV terão de ser liquidados em URV da data de liquidação. Qualquer outra hipótese gera perdas e, com isso, o incentivo à reposição e, desse modo, à retomada de pressões inflacionárias. Em outras palavras, a válvula de escape permitida pelo sistema de indexação desaparece com a reforma monetária, em que se eliminam os intervalos em que valores corrigidos no passado (por mais próximo que seja) são corroídos pela inflação desde então.

Perceber a eliminação da válvula de segurança serve para enfatizar a importância dos modos pelos quais se dará a passagem para o sistema “urverizado”. Em um processo inflacionário como o vivido pelo Brasil nos últimos anos, a distância entre as aspirações e a efetiva apropriação de renda é muito grande. A aceleração da inflação aumentou a diferença entre os picos e vales de renda realmente experimentado pelos agentes. Em particular, nos últimos meses de 1992 e no decorrer de 1993, a taxa de inflação variou bastante, apesar de uma tendência de “longo” prazo claramente crescente. Dados os complexos processos de correção introduzidos no sistema de indexação de alguns contratos importantes, como, por exemplo, os de salários, e o próprio comportamento variável da inflação, a renda média apropriada pelos agentes dificilmente poderia ser percebida (se é que é possível ao agente fazer o cálculo de sua renda média) como algo mais do que um resultado acidental de influências aleatórias. O que os agentes realmente aspiram é àquela renda que a sociedade lhes reconhece como justa, à medida que lhes reconhece o direito de recompô-la periodicamente. Este, porém, é o pico de renda real, atingido apenas à época do próprio reajuste.

Isso é tanto mais importante quanto se lembre que, como já observado, não é possível indexar preços de oferta. É crucial que se perceba a diferença entre indexar um valor e denominá-lo em uma nova unidade de conta. Indexar significa fixar um determinado valor em uma certa unidade de conta, fazendo com que seu equivalente na moeda legal seja calculado de modo automático e não arbitrário de acordo com a variação do valor nominal da unidade de conta. Denominar preços na mesma unidade, por sua vez, preserva a flexibilidade de decisão do formador de preços, podendo ele recalcular aquele preço, em qualquer unidade de conta, quando julgar conveniente. O ponto, ao risco de soar repetitivo, é que a maioria dos preços de oferta não são grafados em contratos, mas, sim, formados à vista, conforme a avaliação que faça o price-maker das condições correntes de mercado. Não faz sentido estabelecer regras a priori de conversão para a nova unidade de conta quando se fala de uma reforma monetária: os formadores de preços vão fixá-los e alterá-los sempre que julgarem vantajoso.

Se a meta dos agentes é o seu pico de renda real, este será o valor que se tentará estabelecer e defender na nova unidade de conta, a URV. Imaginar que o mercado por si será capaz de orientar os agentes em direção a um conjunto de aspirações coerente em termos de renda, preservando a estabilidade do valor da URV, vai além da credulidade do mais dogmático teórico de equilíbrio geral. Apenas um processo de violenta repressão político-econômica das demandas dos grupos sociais poderia, talvez, impor aos agentes metas inferiores às suas aspirações. Na verdade, ao governo restaria recorrer, uma vez mais, mas com grande intensidade, à política monetária restritiva. Sua eficácia, porém, seria extremamente duvidosa. Controles quantitativos não são possíveis: dada a peculiar posição financeira do governo, a moeda tomou-se quase completamente endógena. Uma política monetária restritiva seria então uma política de juros reais ainda mais altos do que antes. Os limites dessa política são, contudo, evidentes: juros mais altos atraem capitais estrangeiros, que derrotam, pelo menos em parte, as intenções restritivas; além disso, juros elevados coíbem relativamente pouco os gastos do setor privado, que recorre cada vez menos a recursos financeiros no mercado, absorvidos prioritariamente pelo próprio governo; o efeito sobre a demanda agregada, desviando recursos da circulação industrial para a circulação financeira depende menos de uma taxa de juros real elevada do que de uma taxa de juros percebida como elevada, reduzindo a eficácia de uma política de juros elevados em ambiente de expectativas inflacionárias exacerbadas em que taxas altas no presente são vistas como baixas na realidade diante do aumento esperado de preços. Finalmente, não se pode desprezar a conjuntura política: políticas monetárias muito duras estariam provavelmente além do alcance de um governo forte, quanto mais o de um vivendo seus momentos finais. Em suma, a aceitação voluntária de metas que provavelmente são sequer percebidas, quanto mais desejadas, parece apenas uma delirante quimera. Os instrumentos de política restritiva disponíveis são, presumivelmente, pouco potentes. O mais provável seria a explosão hiperinflacionária onde todos podem sustentar aspirações mutuamente inconsistentes instantaneamente, fazendo com que a taxa de inflação tenda a infinito.

Nessas condições, não pode ser surpresa que o processo preconizado de adesão voluntária e livre dos agentes privados à URV tenha sido racionalmente percebido pelos agentes como uma impossibilidade, levando-os a se mobilizar em antecipação seja à anarquia que representaria a adesão voluntária do modo originalmente anunciado, seja à muito mais provável intervenção do governo, apesar de suas negativas, compungindo-os a aceitar controles de preços, em alguma forma de política de rendas. A aceleração inflacionária verificada refletiria essas expectativas racionais, em uma profecia autorrealizadora, pois a aceleração do aumento dos preços e da desorganização do sistema torna cada vez mais premente a escolha entre a anarquia e algum grau de controle de preços.

4. CONCLUSÃO

No início de janeiro, técnicos do Ministério da Fazenda começaram a divulgar a possibilidade de intervenção no processo de conversão de valores à URV, para “coibir abusos” dos formadores de preços, para induzir mudanças de política salarial de modo a garantir a conversão pela média etc. Se isso, por um lado, reflete um realismo recém-adquirido ou recém-divulgado, por outro confirma as expectativas que se generalizam de que a intervenção no processo de formação de preços é inevitável.

O governo propôs, em seu plano de estabilização, uma medida muito mais radical do que poderia parecer, qual seja, uma reforma monetária, que muitos perceberam como apenas mais uma modalidade de indexação. Os riscos envolvidos são muito maiores na estratégia adotada. Ninguém espera que a simples racionalidade privada possa conduzir os agentes àquelas demandas mutuamente consistentes entre si e com a preservação do valor da moeda. Por outro lado, a própria intervenção do governo no sistema de preços enfrenta problemas de credibilidade, em face do desmonte dos órgãos de controle existentes no passado.

Quando do lançamento do plano em fins de 1993, muitos observaram que uma de suas qualidades era a reversibilidade, isto é, a possibilidade de, em caso de insucesso, deter sua aplicação. Nas condições atuais, esta pode acabar sendo sua maior virtude.

REFERÊNCIAS bibliográficas

  • CARVALHO, F. (1992). Mr. Keynes and the Post Keynesians, Cheltenham: Edward Elgar.
  • CARVALHO, F. (1993). “Strato-inflation and High Inflation: The Brazilian Experience”, Cambridge Journal of Economics 17 (1), março.
  • 1
    JEL Classification: E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1994
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br