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Viagem, paisagem e poesia: os sertões de Guimarães Rosa e Juan Rulfo

Travel, landscape and poetry: the sertões of Guimarães Rosa and Juan Rulfo

RESUMO

Com o intuito de abordar os processos criativos no campo das práticas artísticas - o lugar da poesia na elaboração da linguagem ou a inscrição da dimensão poética no desenvolvimento do que se chama projeto no campo da arquitetura ou ainda, simplesmente, design em termos gerais -, o ensaio elege a literatura como exemplo do fazer artístico e, nela, os retratos da viagem e suas paisagens, como metáforas sobre tais processos criativos. Para isso, comenta dois contos, comparativamente, ambientados em dois sertões: “Cara-de-Bronze”, do escritor brasileiro João Guimarães Rosa, e “Talpa”, do escritor e fotógrafo mexicano Juan Rulfo.

PALAVRAS-CHAVE
Poética; paisagem; linguagem

ABSTRACT

With the intention of addressing the creative processes in the field of artistic practices - the role of poetry in the elaboration of language or the inscription of the poetic dimension in the development of what is called Project in the field of architecture or, simply, Design in general terms - the essay selects literature as an example of artistic creation and, within it, the portrayals of travel and landscapes as metaphors for such creative processes. For this, it comments two novels, comparatively, set in two backlands: “Cara-de-Bronze” by Brazilian writer João Guimarães Rosa and “Talpa” by Mexican writer and photographer Juan Rulfo.

KEYWORDS
Poetics; landscape; language

O sertão de Rosa

Figura 1
“Derramados, em raio de légua, pelo ar, fogo, faúlhas e restos, por pirambeiras, gargantas e cavernas, como se, esplendidissimamente, tão vã e vagalhão, sobre asas, a montanha inteira ardesse”. Frase do conto “Nada e a nossa condição” do livro Primeiras estórias (ROSA, 1967ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967., p. 89). Fotografia: Letícia Oliveira Berrocal (2019)BERROCAL, Letícia Oliveira. Nada e a nossa condição - Mo[vi]mentos em Guimarães Rosa. Trabalho Final de Graduação. Orientado por Luís Antônio Jorge. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2019.

Em J. Guimarães Rosa: correspondência com o tradutor italiano, Rosa, ao responder a uma carta de Edoardo Bizarri, em 25 de novembro de 1963, a respeito do conto “Cara-de-Bronze” (publicado originalmente em Corpo de baile, 1956a) apresentou uma curiosa gradação hierárquica dos temas e dos conteúdos que ele considera ter retratado no conjunto de contos daquele livro: “a) cenário e realidade sertaneja: 1 ponto; b) enredo: 2 pontos; c) poesia: 3 pontos; d) valor metafísico-religioso: 4 pontos” (ROSA, 1972ROSA, João Guimarães. J. Guimarães Rosa: correspondência com o tradutor italiano. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,1972 - Caderno n. 8)., p. 68). De acordo com essa intrigante classificação, Rosa estabeleceu uma rota para as suas viagens ao sertão que parte do concreto e material (a realidade sertaneja) para almejar a transcendência metafísica, simbólica ou religiosa, desde que guiada por uma estória a narrar (o enredo) e uma forma de realizá-la (a poesia). Cada conto tem sua ênfase nesses pontos e coube ao conto “Cara-de-Bronze”, segundo seu autor, abordar a POESIA, grafada em letras maiúsculas na referida carta.

“Cara-de-Bronze” é a estória de uma vontade de retorno mediado a um lugar, ou melhor, é a estória de um desejo de dar nitidez às reminiscências embaçadas pelo tempo. Após prolongada ausência, o velho e solitário patrão moribundo procura um vaqueiro, dentre tantos por ele empregados, para delegar uma missão: viajar para relatar o que ele não podia mais encontrar por si mesmo. Viajar para falar de tudo ou de nada em específico. A encomenda é vaga, todo aquele mundo é motivo de atenção. Procurar ver “o que no comum não se vê” (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Cara-de-Bronze. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de Baile). 9. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 107-174., p. 145) ou, como Rosa escreve ao seu tradutor italiano, citando, como endosso, o prefácio de Paulo Rónai2 2 “Rondando os segredos de Guimarães Rosa”, de Paulo Rónai, foi publicado como prefácio em Corpo de baile, cuja primeira edição é de 1956, que, em sua terceira edição, foi dividido, pelo próprio escritor, em três volumes autônomos: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém (onde também se encontra o conto “Cara-de-bronze”) e Noites do sertão : procurar na

[...] multidão de observações aparentemente desconexas e frívolas do seu antigo mundo, elementos que lhe permitem reconstruir para o seu próprio uso a realidade íntima do passado, uma visão poética de seu universo. O material reunido pelo emissário é de uma riqueza disparatada e barroca, transborda do texto da história e se espalha por uma série de notas... (RÓNAI, 2001RÓNAI, Paulo. Rondando os segredos de Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de baile). 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 17-25., p. 24).

O patrão envia o vaqueiro à sua terra natal para ouvir dele qualquer coisa que pudesse ser rememorada, revisitada, recolhida pelo narrar. Uma promessa de achado ou reencontro com sua história existencial, com as profundezas de si mesmo. A procura do vaqueiro é a tradução, transformada em enredo, da procura do escritor Guimarães Rosa: ambos foram buscar poesia. Procurar as coisas que contêm poesia, como as árvores nativas da realidade sertaneja, de nomes como ana-sorte, joão-curto, angelim-macho, guzabu-preto, bela-corísia, oiti-bêbado, carvão-branco, pau-de-pente, carrancuda, triste-flor, calcanhar-de-cotia, jacarandá-mimosim, colher-de-vaqueiro, e milhares de outras arroladas nas notas e no corpo do conto “Cara-de-Bronze”. Na volta, ao patrão, oferecer palavras que dessem conta da viagem feita para ser narrada. A busca de um vaqueiro viajante pelo sertão é análoga ao ofício do poeta3 3 “Na página 620, há um oculto desabafo lúdico, pessoal e particular brincadeira do autor, só mesmo para o seu uso, mas que mostra a Você, não resisto: ‘Aí, Zé, ôpa!’, intraduzível evidentemente: lido de trás para diante = apô Éz ía, : a Poesia...” (ROSA, 1972, p. 70).. .

Em outros termos, a busca pela poesia empreendida pelo escritor é a própria experiência no mundo transformada em um tipo incomum de linguagem. Nos argumentos do poeta Pedro Xisto (1970, p. 8)XISTO, Pedro. À busca da poesia. In: XISTO, Pedro; CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Guimarães Rosa em Três Dimensões. Imprensa Oficial do Estado (Conselho Estadual de Cultura/Comissão de Literatura): São Paulo, 1970, p. 7-39.,

As ciências especializadas concordam em que a linguagem primitiva é de natureza poética. E concordariam, assim, com o filósofo (Heidegger) que, ouvindo e repetindo o poeta (Hölderlin), reconhece que a poesia - fundadora do ser e da essência de todas as coisas - não recebe, jamais, a linguagem como um material de trabalho, previamente dado, mas, antes, a poesia começa por tornar possível a linguagem.

A promessa de encontro da poesia é motivação maior da viagem pelo sertão, metáfora, nesse caso, da própria linguagem. Viajar pelo sertão é viajar pela linguagem.

A perspectiva aberta pela busca da poesia é tão alargada quanto possa ser uma viagem por territórios ilimitados e sem propósitos ou destino certos. Mais que seguir o caminho, o que se espera do viajante é uma adesão ao espírito da viagem, a atenção a quaisquer detalhes que escapam ao apressado, aquele que recusa os apelos dos descaminhos, as inúmeras sugestões alternativas ao fim determinado, as promessas de descobertas que retardam a jornada e embaralham a orientação. Os personagens viajantes de Rosa quando se movem pelo sertão estão, simultaneamente, superando espaços e buscando a si mesmos. A noção de travessia é ambígua: ato de atravessar, percorrer, vencer distâncias, tanto quanto imersão, autorreflexão, indagação sobre o ser e o estar no mundo. Exterior e interior em diálogo: o que se dá a ver e sentir durante a viagem serve para interrogar a própria alma do viajante. A paisagem se metaforiza, mas não a ponto de se ausentar. Ela permanece ao redor, transcendente e imantada por um feixe de significados cambaleantes, errantes, incertos, duvidosos, suspeitos, paradoxais, misteriosos - a matéria da metafísica de Rosa. Essa ambiguidade é elaborada em termos poéticos no interior da linguagem. Manter as duas travessias, pelo espaço e pela alma, como dois percursos de uma só viagem helicoidal, vigiando para que um não se distancie do outro dentro da construção literária, configura a poética que fabrica o sertão com a sua grandeza de forma e de significados. Lembremos que o sertão “está em toda parte” e “é “dentro da gente”4 4 Frases ditas pelo narrador personagem Riobaldo em Grande sertão: veredas (ROSA, 1956b). .

Em “Cara-de-Bronze”, vê-se

Este mundo, que desmede os recantos. Mar a redor, fim a fora, iam-se os Gerais, os Gerais do ô e do ão [...] Pelo andado do Chapadão, em ver o viajante é um cavaleiro pequenininho, pequenino, curvado sempre sobre o arção e o curto da crina do cavalo - o cavalinho alazão, sem nome, só chamado Quebra-Coco. Cavaleiro vai, manuseando miséria, escondidos seus olhos do à-frente, que é só mesmo duma distanciação - e o céu uma poeira azul e papagaios no vôo. Os Gerais do trovão, os Gerais do vento. (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Cara-de-Bronze. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de Baile). 9. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 107-174., p. 107-108)5 5 Nas citações de “Cara-de-Bronze”, foram mantidas a grafia e a pontuação originais .

A viagem se faz em camadas: a infinitude do mundo sertão, seja no desmesurado das suas extensões, seja na diversidade das suas formas viventes, se interpenetra nas profundezas da alma humana em seus movimentos indagativos, reflexivos e comunicantes. Dessa relação brota a poesia, junto com a

[...] brotação das coisas [...] [entre] toda qualidade de répteis de alma-vivente, bichos de entre-mato-e-campo, bichinhos de terra e do ar [...]

[ou entre]

[...] a damiana, a angélica-do-sertão, a douradinha-do-campo. O joão-venâncio, o chapéu-de-couro, o bom-homem. O boa-tarde. O cabelo-de-anjo, o balança-cachos, o bilo-bilo. O alfinete-de-noiva. O peito-de-moça. O braço-de-preguiça. O aperta-joão. O são-gonçalinho. A ata-brava, a bradamundo, a gritadeira-do-campo... (ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Cara-de-Bronze. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de Baile). 9. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 107-174., p. 151).

Trata-se de visitar a sortida riqueza do sertão: atualmente, mais conhecida como a biodiversidade do bioma do cerrado brasileiro.

Do objeto concreto, singular e bem localizado, para a eleição do signo verbal a representá-lo, dificuldades se avolumam dada a profusão ou variedade de alternativas ou possibilidades que demonstram a complexidade da linguagem que se quer elaborar, para conferir densidade poética e significativa ao ambiente mental, imaginário ou fabuloso que a língua inaugura e a literatura transfigura. A biodiversidade da natureza é o espelho no qual a língua vem se mirar.

No conto “Cara-de-Bronze” os personagens tomam a palavra, dialogam entre si, como falas de uma peça teatral. No trecho a seguir, as dificuldades de entender a necessidade da poesia e de aceitar a falta de receituário ou fórmulas prontas para encontrá-la estão nas indagações dos vaqueiros sobre a viagem do Grivo, o escolhido pelo velho patrão acamado:

Iô Jesuino Filósio: E ninguém sabe aonde esse Grivo foi? Não se tem idéia?

[...]

O vaqueiro Muçapira: Ele ia por desertas.

[...]

O vaqueiro Cicica: Pois então o senhor mesmo me diga: o que foi que ele foi fazer? Que saíu daqui, em encoberto, na vagueação, por volver mêses, mas com ponto de destino e sem dizer palavra a ninguém... Que ia ter por fito?

O vaqueiro Tadeu: Essas plenipotências...

O vaqueiro Doím: Boa mandatela! A gente aqui, no labóro, e ele passeando o mundo-será...

O vaqueiro Fidélis: Tem de ter o jús, não foi em mandriice. Por seguro que deve de ter ido buscar alguma coisa.

O vaqueiro Sãos: Trazer alguma coisa, para o Cara-de-Bronze.

O vaqueiro Mainarte: É. Eu sei que ele foi para buscar alguma coisa. Só não sei o que é.

Moimeichêgo6 6 “Bem meu caro Bizarri, por hoje, já exagerei. Encerro. Apenas dizendo ainda a você que o nome MOIMECHEGO é outra brincadeira: é: moi, me, ich, ego (representa ‘eu’, o autor...). Bobaginhas.” (ROSA, 1972, p. 71). Rosa em carta ao tradutor E. Bizarri, enviada do Rio de Janeiro, em 25 de novembro de 1963. : Ia campear mais solidão?

O vaqueiro Sacramento: Há de ser alguma coisa de que o Velho carecia, por demais, antes de morrer. Os dias dele estão no fim-e-fim...

Moimechêgo: O Grivo então foi de romeiro?

(ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Cara-de-Bronze. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de Baile). 9. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 107-174., p. 117-119).

Na viagem busca-se a linguagem: ela é o destino. A travessia pelo sertão de Rosa é o sumo ato da construção da linguagem: é tanto busca como encontro, tanto absorção e seleção de informação como elaboração ou fixação da poesia no ato da escrita. A travessia é uma via de mão dupla para o corpo no espaço, para a alma na linguagem. Já do ponto de vista do leitor, a travessia é elaboração do lugar do sertão na cultura brasileira. Para o escritor, também é, mas, além disso, é a superação das fronteiras da língua para refletir o lugar do humano no mundo. É o Brasil? É, mas, poética e filosoficamente, universalizado. O retrato do sertão como realidade sociocultural e geográfica, mas também, simbólica, metafísica e religiosa. Do sertão material para o sertão metafísico pavimenta-se a estrada que liga o local ao universal.

O diálogo dos vaqueiros sobre os propósitos da viagem, as motivações do patrão, a tarefa do viajante remetem à fórmula platônica (e socrática) de vasculhar os termos do debate e a aproximação paulatina ao mundo das ideias, revelado pela linguagem. Assim, os diálogos ao longo do conto oferecem paralelos com os próprios sentidos da linguagem, assumindo feições metalinguísticas. Os vaqueiros, entretidos em definir o sentido da viagem de encomenda do velho patrão, tecem considerações de uma procura sem objeto, de um buscar sem focos antecipados, a esmo e em tudo, para abordar os difíceis caminhos da poesia.

O vaqueiro Mainarte: Ele queria uma idéia como o vento. Por espanto, como o vento... Uma virtudinha espritada, que traspassa o pensamento da gente - atravessa a idéia, como alma de assombração atravessa as paredes.

O vaqueiro Noró: Que relembra os formatos do orvalho... E bonitas desordens, que dão alegria sem razão e tristezas sem necessidade.

O vaqueiro Abel: Não-entender, não-entender, até se virar menino.

O vaqueiro José Uéua: Jogar nos ares um montão de palavras, moedal.

O vaqueiro Noró: Conversação nos escuros, se rodeando o que não se sabe.

O vaqueiro Mainarte: Era só uma claridade diversa diferente...

O vaqueiro Cicica: Dislas. E aquilo dava influição. Como que ele queria era botar a gente toda endoidecendo festinho...

O vaqueiro Parão: Tudo no quilombo da Faz-de-Conta...

O vaqueiro Pedro Franciano: Eu acho que ele queria era ficar sabendo o tudo e o miúdo.

O vaqueiro Tadeu: Não, gente, minha gente: que não era o-tudo-e-o-miúdo...

O vaqueiro Pedro Franciano: Pois então?

O vaqueiro Tadeu: ... Queria era que se achasse para ele o quem das coisas!

(ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Cara-de-Bronze. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de Baile). 9. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 107-174., p. 140).

A poesia é descoberta aventurosa, depois de árduo trabalho inventariante, incansavelmente, atento a tudo. Vigilante para não tomar caminho fácil, como alertou Rosa ao seu tradutor alemão, Curt Meyer-Clason, em carta enviada do Rio de Janeiro, em 24 de março de 1966:

Duas coisas convém ter sempre presente: tudo vai para a poesia, o lugar-comum deve ter proibida a entrada, estamos é descobrindo novos territórios do sentir, do pensar, e da expressividade; as palavras valem “sozinhas”. Cada uma por si, com sua carga própria, independentes, e às combinações delas permitem-se todas as variantes e variedades. (ROSA, 2003ROSA, João G. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Edição, organização e notas de Maria A. F. M. Bussolotti. Tradução de Erlon J. Paschoal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 314).

Em uma carta mais antiga a Meyer-Clason, de 17 de junho de 1963, Rosa critica a tradução inglesa de Grande sertão: veredas (The devil to pay in the backlands), para demonstrar as distâncias insuperáveis entre a poesia e o lugar-comum. Alerta Rosa que, na edição americana,

[…] lê-se “My memories are what I have”. Ora, o que está no original [...] é: “O que lembro, tenho”. E a afirmação é completamente diferente... Riobaldo quer dizer que a memória é para ele uma posse do que ele viveu, confere-lhe propriedade sobre as vivências passadas, sobre as coisas vividas. Toda uma estrada metafísica pode ter ponto-de-partida nessa concepção. E o que os tradutores entenderam, chatamente, trivialmente, foi que Riobaldo, empobrecido, em espírito, pela vida, só possuísse agora, de seu, suas lembranças. Um lugar-comum dos velhos. Justamente o contrário. Viu? Tanto mais que, seguindo-a imediatamente, a pequenina frase que completa é, no original: “Venho vindo, de velhas alegrias”. E eles verteram: “I am beggining to recall bygone days”. Aí, toda a dinâmica e riqueza irradiadora do dito se perderam! Uma pena. Tudo virou água rala, mingau. (ROSA, 2003ROSA, João G. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Edição, organização e notas de Maria A. F. M. Bussolotti. Tradução de Erlon J. Paschoal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 114).

A oposição extrema entre lugar-comum e poesia exposta por Rosa demonstra, além de uma refinada educação e consciência estéticas, o entendimento de que as palavras alargam a percepção da realidade, enquanto aprofundam e acionam a dinâmica dos significados. Todo o impacto da obra literária de Rosa nos seus leitores deve-se, em grande medida, à percepção de um mundo que as palavras não definem, mas tateiam, bordejam, iluminam, aproximam, mas não esgotam. O insondável, o indizível, o duvidoso fazem parte de um projeto, deliberadamente, não resolutivo, não finalista, não certeiro. A beleza da POESIA está na abertura que a linguagem inaugura. A “água rala”, o “mingau” do lugar-comum é a morte da linguagem ou o fim da viagem.

Em outra carta a Meyer-Clason, de 9 de fevereiro de 1965, Rosa reafirma suas posições ao defender, a presença no livro Corpo de baile, de passagens obscuras:

A excessiva iluminação, geral, só no nível do raso, da vulgaridade. Todos os meus livros são simples tentativas de rodear e devassar um pouquinho o mistério cósmico, esta coisa movente, impossível, perturbante, rebelde a qualquer lógica, que é a chamada “realidade”, que é a gente mesmo, o mundo, a vida. Antes o obscuro que o óbvio, que o frouxo. Toda lógica contém inevitável dose de mistificação. Toda mistificação contém boa dose de inevitável verdade. Precisamos também do obscuro.

Em geral, quase toda frase minha tem de ser meditada. Quase todas, mesmo as aparentemente curtas, simplórias, comezinhas, trazem em si algo de meditação ou de aventura. (ROSA, 2003ROSA, João G. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Edição, organização e notas de Maria A. F. M. Bussolotti. Tradução de Erlon J. Paschoal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003., p. 238).

Assim, a poesia é um convite à reflexão e à sensibilização para algo inconcluso, sempre em movimento ao aberto, para reconhecer a validade das suas expressões nos seus próprios termos, independentemente de servir a prévios propósitos.

Cabe ainda destacar, na referida carta de 17 de junho de 1963, o tema da memória como posse sobre as coisas vividas. Riobaldo também dizia que esquecer é quase igual a perder dinheiro. O enredo de “Cara-de-Bronze” desenvolve-se em torno do desejo de recuperar a propriedade sobre essas coisas vividas que as palavras do Grivo haverão de trazer de volta. A missão do personagem é exatamente a mesma do escritor. Guimarães Rosa diz ao seu amigo Pedro Bloch:

Você conhece meus cadernos. Quando saio montado num cavalo, pela minha Minas Gerais, vou tomando nota das coisas. O caderno fica impregnado de sangue de boi, suor de cavalo, folha machucada. Quero descobrir o que caracteriza o voo de cada pássaro, a cada momento. Eu não escrevo difícil. Eu sei o nome das coisas7 7 Depoimento a Pedro Bloch (RÓNAI, 1983, p. 91-92). .

Tais cadernos - verdadeiras relíquias do Acervo João Guimarães Rosa do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB/USP)8 8 O mais ilustre dos cadernos, intitulado “A boiada”, é o registro de uma viagem ao sertão que o escritor fez em maio de 1952, acompanhando a condução de uma boiada. Reconhecem-se, nesse caderno, elaborações textuais que ganharão forma final nos livros Corpo de baile (ROSA, 1956a) e Grande sertão: veredas (ROSA, 1956b). - demonstram quão laborioso, criterioso e organizado era o método de trabalho do escritor que retrata a si mesmo, nesse ofício inventariante e etnográfico, em vários contos, onde comparecem personagens viajantes, ora como um cientista a pesquisar a natureza do sertão (o senhor Olquiste, em O recado do morro), ora como sertanejos, vaqueiros, jagunços, como Riobaldo ou Grivo, que, ao final da sua saga, em conversa com os companheiros sobre a reação do velho patrão, o “Cara-de-Bronze”, ao saber do seu relato, diz:

GRIVO (de repente começando a falar depressa, comovido): Ele, o Velho, me perguntou: - “Você viu e aprendeu como é tudo por lá?” - perguntou, com muita cordura. Eu disse: - “Nhor vi.” Aí, ele quis: - “Como é a rede de moça - que moça noiva recebe, quando se casa?” E eu disse: - “É uma rede grande, branca, com varandas de labirinto...” (Pausa.)

José Proeza (surgindo do escuro): Ara, então! Buscar palavras-cantigas?

Adino: Aí, Zé, opa!

GRIVO: Eu fui...

Mainarte: Jogou a rede que não tem fios.

GRIVO: Não sei. Eu quero viagem dessa viagem...

Cicica: Dislas! Remondiolas...

GRIVO: ... Ele, o Velho, disse, acendido: - “Eu queria alguém que me abençoasse...” - ele disse. Aí, meu coração tomou tamanho.

Tadeu: Então, que foi que ele fez, então?

GRIVO: Chorou pranto.

(ROSA, 2001ROSA, João Guimarães. Cara-de-Bronze. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de Baile). 9. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 107-174., p. 173).

O Velho tomou posse de sua lembrança. Consumou-se a busca: a poesia é viagem. “Eu quero viagem dessa viagem...” No trivial das palavras, Grivo queria a linguagem da linguagem, nascedouro da consciência do lugar da poesia no universo da linguagem. Esse é o lugar do projeto ou do design.

O sertão de Rulfo

Figura 2
“... Aunque sabía que Talpa estaba lejos y que tendríamos que caminar mucho debajo del sol de los días y del frío de las noches de marzo, así y todo queria ir.” Frase do conto “Talpa” (RULFO, 2005RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas. Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60., p. 50). Fotografia do Autor, em viagem pelo sertão de Jalisco em 2014

O trânsito de Juan Rulfo nas artes da literatura e da fotografia convida seus admiradores a estabelecerem diálogos entre ambas as linguagens, a empreenderem uma espécie de viagem ou travessia intersemiótica, onde as operações simétricas de recortar, focar e registrar são percebidas nas escritas verbais e visuais. As palavras e as imagens procuram exprimir as dimensões trágicas e simbólicas da realidade natural e social do sertão de Jalisco, no México. As paisagens derruídas de um tempo suspenso do fluxo da história buscam um México essencial e profundo, rico de costumes e tradições, mas retratado com o mínimo de elementos ou personagens primordiais.

A fotografia em branco e preto ao realçar as formas, os volumes da arquitetura e os matizes de luzes e sombras da paisagem, parece sintetizar a infinitude do mundo, reduzindo-o ao que é mais representativo. Com esmeradas composições, a fotografia de Rulfo revela as profundezas do viver mexicano, com as suas doídas ressonâncias. Frequente e paradoxalmente, Rulfo mira a exuberância cultural mexicana, presente na diversidade das arquiteturas pré-hispânicas e dos tempos da colonização, em situações dramáticas ou extremas (em ruínas, em abandono ou vazias, com marcas de destruição ou violência), contrastantes com o meio natural, para provocar o estranhamento ou a percepção de conflitos permanentes. Rulfo está atento ao pormenor quando se aproxima da matéria, das texturas, das rugosidades e asperezas de um mundo construído, mas em processo de destruição. Iluminação e apagamento simultâneos, mesclando a vivacidade da imagem com a melancolia evocativa, simbólica ou religiosa.

As feições do povo com seus costumes, registradas pelo fotógrafo Juan Rulfo, transcendem aquilo que se poderia chamar de retratos da cultura popular mexicana com suas típicas tradições. Seu olhar não é etnográfico, nem inventariante. Seus personagens são sobreviventes silenciosos, observadores ou testemunhas da dureza da vida nos pequenos, distantes e esquecidos lugares. São dignos guardiões daquilo que se pode chamar de um México profundo ou essencial. Seus corpos são laboriosos na batalha cotidiana pela sobrevivência em condições, amiúde, adversas. Quando estacam, exaustos, parecem esperar por algo que não vai suceder tão cedo naquelas paisagens áridas e disfóricas.

Já o escritor Juan Rulfo quer mergulhar nas profundezas da alma dos seus personagens fotografados, como se a palavra fosse o meio para extrair a dor ou as angústias guardadas em todo silêncio. Ao buscar palavras que procuram dar conta das condições da vida no sertão mexicano - um microcosmo dos dilemas existenciais da sociedade mexicana - Rulfo também trabalha com extrema economia, atento aos pormenores, para adequar as palavras à imagem perseguida, com uma estética de ênfases contidas e concentradas, análogas às suas composições fotográficas. O leitor, ao atravessar o Llano en llamas, irá descobrir a potência do lugar do sertão na cultura mexicana, mas também, como em Rosa, irá transcender o regional e alcançar o universal.

O conto “Talpa” (RULFO, 2005RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas. Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60.), do livro Llano en llamas, narra a viagem de dois irmãos e uma mulher, a Natalia, esposa de um deles, o Tanilo, e amante do outro, o narrador da história. Tanilo, enfermo, com seu corpo tomado de chagas, recorre à rota de peregrinação à Virgen de Talpa como último recurso para sua salvação. Os amantes, sabedores das dificuldades de realizar tal façanha, sobretudo naquelas condições de saúde em que Tanilo se encontrava, estimulam-no a fazê-lo, propondo acompanhá-lo com a certeza da morte iminente, libertadora do amor secreto que os cumplicia naquele intento criminoso disfarçado de misericordioso.

Rebecca Solnit (2016, p. 85; p. 86)SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar. São Paulo: Martins Fontes, 2016. define a peregrinação como uma das modalidades fundamentais do caminhar,

[...] é andar à procura de algo intangível [...] Os peregrinos [...] muitas vezes, tentam dificultar a jornada, o que me traz à lembrança a origem da palavra inglesa travel, viagem, que vem do francês travail, que significa trabalho, sofrimento e as dores do parto. Desde a Idade Média, há peregrinos que viajam descalços ou com pedras dentro dos sapatos, em jejum ou vestindo trajes de penitência especiais.

Os peregrinos não andam a esmo. O esforço empreendido na peregrinação, movido pela fé, atua como agente catártico, expiador de culpas, preparador para a redenção, que se dará ao cabo da jornada. Os três personagens do conto, no início, solitários, não tardam a encontrar com

[...] gente que salía de todas partes; que había desembocado como nosotros en aquel camino ancho parecido a la corriente de un río, que nos hacía andar a rastras, empujados por todos lados como si nos llevaran amarrados con hebras de polvo. Porque de la tierra se levantaba, con el bullir de la gente, un polvo blanco como tamo de maíz que subía muy alto y volvia a caer [...]. Y arriba de esta tierra estaba el cielo vacío, sin nubes, sólo el polvo; pero el polvo no da ninguna sombra. (RULFO, 2005RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas. Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60., p. 54).

Os peregrinos procuram vencer distâncias, superar a rudeza da natureza e o espaço entre eles e o destino certo. Uma natureza bruta que contrasta com a que envolve o vaqueiro Grivo na sua viagem. Nada os demove do intento, do desejo de chegar ao fim, de acabar com a longa espera que caracteriza o sacrifício, o imenso esforço físico sob o sol a caminho da Virgem de Talpa.

Algún día llegará la noche. En eso pensábamos. Llegará la noche y nos ponderemos a descansar. Ahora se trata de cruzar el día, de atravesarlo como sea para correr del calor y del sol. Despúés nos detendremos. Después. Lo que tenemos que hacer por lo pronto es esfuerzo tras esfuerzo para ir de prisa detrás de tantos como nosotros y delante de otros muchos. De eso se trata. Ya descansaremos bien a bien cuando estemos muertos. (RULFO, 2005RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas. Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60., p. 55).

O narrador de “Talpa” conta a estória do arrependimento que se avulta a cada passo da viagem que os levava em direção à morte de seu irmão Tanilo. Todo o penoso e crescente sofrimento de Tanilo alimenta o sentimento de culpa dos companheiros, amantes, já distanciados pelo sabor amargo do remorso. O próprio Tanilo já se arrependia do seu empreendimento, consciente da sua situação e exaurido de suas forças. Tempo demasiado consumido em uma longa viagem, suficiente para fazer os corpos perecerem e as almas se transformarem.

Mas a dura travessia do corpo pelo espaço alimenta a fé na recompensa visada. A peregrinação envolve corpo e alma em um movimento transcendental de fervor e vertigem crescentes. A paisagem parece assistir ao ato heroico de fé e força física, inclemente e impassível como o fim daqueles desfavorecidos e oprimidos. A natureza é um obstáculo a ser vencido, colocado entre o peregrino e a Virgem Santa.

A paisagem dramática criada pela poesia de Rulfo acolhe os ritmos distintos do passar do tempo na peregrinação, o efeito das luzes, o som das rezas, os gestos dos corpos, as vozes da natureza:

Por las noches, aquel mundo desbocado se calmaba. Desperdigadas por todas partes brillaban las fogatas y en derredor de la lumbre la gente de la peregrinación rezaba el rosario, con los brazos en cruz, mirando hacia el cielo de Talpa. Y se oía cómo el viento llevaba y traía aquel rumor, revolviéndolo, hasta hacer de él un solo mugido. (RULFO, 2005RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas. Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60., p. 56).

Ao final da viagem, Tanilo, entorpecido pela dor e pela fé na Virgen de Talpa, o último refúgio para o conforto espiritual, cumpre o destino comum àqueles que padecem no sertão de Rulfo: morre, em frente a

La Virgen nuestra, nuestra madre, que no quiera saber nada de nuestros pecados; que se echa la culpa de nuestros pecados; la que quisiera llevarnos em sus brazos para que no nos lastime la vida, está aqui junto a nosotros, aliviándonos el cansancio y las enfermidades del alma y de nuestro cuerpo ahuatado, herido y suplicante. (RULFO, 2005RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas. Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60., p. 58).

A paisagem, indiferente, como a expressão de bondade da Virgem, segue seu curso normal, mas as almas dos companheiros de Tanilo estavam transtornadas:

Afuera se oía el ruido de las danzas; los tambores y la chirimía; el repique de las campanas. Y entonces fue cuando me dio a mí tristeza. Ver tantas cosas vivas; ver a la Virgen allí, mero enfrente de nosotros dándonos su sonrisa, y ver por el outro lado a Tanilo, como si fuera un estorbo. Me dio tristeza. Pero nosostros lo llevamos allí para que se muriera, eso es lo que no se me olvida. (RULFO, 2005RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas. Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60., p. 59).

A vida do povo é consumida naquele Llano em llamas. A fé é uma forma de apaziguamento da alma: oferece resignação e aceitação da morte. O transcendente é um ingrediente das paisagens de Rulfo, como o diabo no meio da rua, do redemoinho, nas paisagens rosianas. Mas a poesia em Rulfo não apazigua. Ao contrário, incomoda, brota seca como um coice, rude como a miséria, violenta como a morte arrastada de Tanilo, com seu corpo

[...] lleno por dentro y por fuera de un hervidero de moscas azules que zumbaban como si fuera un gran ronquido que saliera de la boca de él; de aquella boca que no pudo cerrarse a pesar de los esfuerzos de Natalia y míos, y que parecia querer respirar todavia sin encontrar resuello. De aquel Tanilo a quien ya nada le dolía, pero que estaba como adolorido, con las manos y los pies engarruñados y los ojos muy abiertos como mirando su propria muerte. Y por aqui y por allá todas sus llagas goteando un agua amarilla, llena de aquel olor que se derramaba por todos lados y se sentía en la boca, como si se estuviera saboreando una miel espesa y amarga que se derretia en la sangre de uno a cada bocanada de aire. (RULFO, 2005RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas. Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60., p. 59).

A imagem do morto é multissensorial e de uma nitidez absoluta, que até a fotografia seria incapaz de captar. A descrição escorre, lenta, viscosa, ocupando todos os espaços, acionando todos os nossos sentidos.

As viagens pelos sertões, em “Cara-de-Bronze” e em “Talpa”, têm propósitos opostos no plano do enredo e similares, no campo poético. Em Rosa, a viagem ao destino fragilmente definido, a um lugar do passado, tem objetivos intangíveis, nebulosos, incertos. Em Rulfo, a viagem ao destino precisamente definido, tem objetivos concretos - no plural, porque se opõem na intriga ou dilema entre os três personagens. Ambas as viagens são, por acumulação crescente de tensões, tratadas como meio de problematizar a fabricação dos significados do mundo. Esses retratos literários dos sertões enfrentam o desafio insuperável do infinito ou, em outros termos, a inesgotabilidade da poesia, a incompletude do mundo da linguagem, o real percebido como sem nome, o indizível.

Os retratos dos sertões de Rosa e de Rulfo são tramas tecidas com as línguas que desbravam os Brasis e os Méxicos e revelam os enigmas que envolvem a fatura poética no afã do mais dizer ou de ser “signo de ser”. Ao inaugurarem, com seus agudos olhares, obras consideradas como verdadeiros “ensaios de formação”, convocam-nos a reconhecer o papel estratégico da poesia (e da arte) na abordagem da realidade dos lugares. Demonstram a legitimidade desse caminho pela qualidade dos retratos realizados e das indagações desentranhadas naquelas viagens. Tais qualidades incentivam, permanentemente, a atualização das leituras: viagens sobre como descobrir as coisas a descobrir.

Procurar correspondências entre dois dos mais brilhantes autores da literatura obedece a um desejo de aproximação de culturas que ainda têm muito a oferecer, mutuamente, no campo da sensibilidade artística que instrui e desencadeia processos crítico-criativos, em ambientes afeitos à prática do projeto ou design.

A poesia, como o projeto, é um metamétodo para a descoberta, uma procura dos propósitos da vida dos lugares, dos sentidos profundos da viagem, da travessia ou da linguagem, que, ao se realizar, desenha o próprio espaço: o mundo inventado, desejado, o sertão. Com Rosa e com Rulfo, aprendemos que a fabulação inventiva é uma interpretação profunda da realidade dos lugares. O projeto é uma viagem ao sertão.

Figura 3
Lápide na beira da estrada para Talpa. Fotografia do Autor, em viagem pelo sertão de Jalisco em 2014

  • 2
    “Rondando os segredos de Guimarães Rosa”, de Paulo Rónai, foi publicado como prefácio em Corpo de baile, cuja primeira edição é de 1956, que, em sua terceira edição, foi dividido, pelo próprio escritor, em três volumes autônomos: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá, no Pinhém (onde também se encontra o conto “Cara-de-bronze”) e Noites do sertão
  • 3
    “Na página 620, há um oculto desabafo lúdico, pessoal e particular brincadeira do autor, só mesmo para o seu uso, mas que mostra a Você, não resisto: ‘Aí, Zé, ôpa!’, intraduzível evidentemente: lido de trás para diante = apô Éz ía, : a Poesia...” (ROSA, 1972ROSA, João Guimarães. J. Guimarães Rosa: correspondência com o tradutor italiano. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,1972 - Caderno n. 8)., p. 70)..
  • 4
    Frases ditas pelo narrador personagem Riobaldo em Grande sertão: veredas (ROSA, 1956bROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956b.).
  • 5
    Nas citações de “Cara-de-Bronze”, foram mantidas a grafia e a pontuação originais
  • 6
    “Bem meu caro Bizarri, por hoje, já exagerei. Encerro. Apenas dizendo ainda a você que o nome MOIMECHEGO é outra brincadeira: é: moi, me, ich, ego (representa ‘eu’, o autor...). Bobaginhas.” (ROSA, 1972ROSA, João Guimarães. J. Guimarães Rosa: correspondência com o tradutor italiano. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,1972 - Caderno n. 8)., p. 71). Rosa em carta ao tradutor E. Bizarri, enviada do Rio de Janeiro, em 25 de novembro de 1963.
  • 7
    Depoimento a Pedro Bloch (RÓNAI, 1983, p. 91-92).
  • 8
    O mais ilustre dos cadernos, intitulado “A boiada”, é o registro de uma viagem ao sertão que o escritor fez em maio de 1952, acompanhando a condução de uma boiada. Reconhecem-se, nesse caderno, elaborações textuais que ganharão forma final nos livros Corpo de baile (ROSA, 1956aROSA, João Guimarães. Corpo de baile. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956a.) e Grande sertão: veredas (ROSA, 1956bROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956b.).

Referências

  • BERROCAL, Letícia Oliveira. Nada e a nossa condição - Mo[vi]mentos em Guimarães Rosa Trabalho Final de Graduação. Orientado por Luís Antônio Jorge. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, 2019.
  • HEIDEGGER, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesía. Revista Universidad Pontificia Bolivariana - Revista de Divulgación, v. 11, n. 38, octubre-diciembre 1944, p. 13-25. Disponível em: https://revistas.upb.edu.co/index.php/revista-institucional/article/view/4268/3960 Acesso em: jun. 2023
    » https://revistas.upb.edu.co/index.php/revista-institucional/article/view/4268/3960
  • RÓNAI, Paulo. Rondando os segredos de Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de baile) 9 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 17-25.
  • ROSA, João Guimarães. Corpo de baile Rio de Janeiro: José Olympio, 1956a.
  • ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. 1. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1956b.
  • ROSA, João Guimarães. J. Guimarães Rosa: correspondência com o tradutor italiano. São Paulo: Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro,1972 - Caderno n. 8).
  • ROSA, João Guimarães. Cara-de-Bronze. In: ROSA, João Guimarães. No Urubuquaquá, no Pinhém (Corpo de Baile) 9. ed. São Paulo: Nova Fronteira, 2001, p. 107-174.
  • ROSA, João G. Correspondência com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason (1958-1967). Edição, organização e notas de Maria A. F. M. Bussolotti. Tradução de Erlon J. Paschoal. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/Academia Brasileira de Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
  • ROSA, João Guimarães. O recado do morro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007. (Biblioteca do Estudante).
  • ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. 3. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.
  • ROSA, João Guimarães. A boiada Ilustrações de Paulo Mendes da Rocha. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
  • RULFO, Juan. Talpa. In: RULFO, Juan. El llano en llamas Ciudad de Mexico: Editorial RM, 2005, p. 49-60.
  • RULFO, Juan. 100 fotografias Juan Rulfo. São Paulo: Cosac Naify, 2010.
  • SOLNIT, Rebecca. A história do caminhar São Paulo: Martins Fontes, 2016.
  • XISTO, Pedro. À busca da poesia. In: XISTO, Pedro; CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. Guimarães Rosa em Três Dimensões. Imprensa Oficial do Estado (Conselho Estadual de Cultura/Comissão de Literatura): São Paulo, 1970, p. 7-39.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Jan 2023
  • Aceito
    06 Jul 2023
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